“Eu acho que quando você me deixar no termina
l vou a pé pra casa ao invés de pegar ônibus. A noite está muito agradável”. Foi o que bastou pra deixar a minha carona preocupada. Eu já havia feito isso antes, com a carona dela e outras, só nunca havia falado. É que das outras vezes a decisão de andar havia sido meio impulsiva; desta vez eu contei porque me pareceu meio ridículo acenar como se fosse entrar no terminal e sair andando escondida. “Numa hora dessas, tem certeza? É perigoso, pense bem. Qualquer coisa, me liga. Ou entra no ônibus. Melhor não, pense bem”. Já na sexta-
feira à noite seguinte preferi fazer aquele mesmo percurso de ônibus. Estava sentada perto da porta 4, coisa que evito, especialmente quando escurece. Dito e feito: num determinado período do trajeto, a cada parada entra um por detrás – um catador de latinhas, um casal estranho, um mendigo, outro mendigo. Meu desejo, nessas horas, é apenas que alguém com cheiro ruim não fique perto de mim. Já li que pessoas que não comem carne têm olfa
to mais apurado, e nessas horas sou inclinada acreditar que é verdade. Fedidas ou não, as figuras estranhas foram para seus lugares, desceram nos seus pontos, seguiram suas vidas. E eu, a pé ou de ôn
ibus, voltei tranquila para minha casa.
Eu sei que deixo as pessoas que me querem bem preocupadas. Por elas eu estaria sempre dentro de um carro, nem que esse carro fosse um táx
i. Se tento argumentar, pareço ingênua perto da violência está nas ruas, nos jornais, nas estatísticas, nas armas de fogo, no uso do crack, no machismo. Porque o que eu posso falar é disso, da caminhada, da noite, dos ônibus. Nunca estou sozinha nesses lugares, somos muitos. Estamos nas ruas, nos ônibus, nos parques, de dia e de noite, nos lugares bonitos e feios, seguros e perigosos. Alguns estão belamente vestidos enquanto outros fedem, mas ninguém ouve falar de nós. Eu e essas pessoas nunca que
bramos as janelas dos ônibus, não arrancamos cadeados, não batemos nos outros. Às vezes fazemos de conta que não vemos a velhinha, porque naquele dia não estamos muito a fim de dar o lugar, ou não recolhemos o cocô do cachorro, mas nem por isso estar ao nosso lado é perigoso. O
lhamos meio torto, é verdade, aquele bêbado fazendo escândalo ou o louco falando alto, mas também acolhemos e tentamos ajudar quando alguém está passando mal ou precisando de uma palavrinha. Quem já precisou contar com a solidariedade de estranhos sabe que isso é verdade. Existe sim aquele que sai no jornal, que vandaliza e faz mal aos outros, que sozinho é capaz de estragar o dia e a vida de um monte de gente. Ninguém sai pela rua querendo encontrar com ele e esse encon
tro pode nunca acontecer, mas mesmo assim somos todos contaminados, parece que é sempre. Para quem só frequenta “os melhores”, o mundo parece um lugar bipartido e quem não tem carro pra se isolar necessariamente não é “de bem”. E como diz aquela
tirinha dos Malvados… Quem anda
pelas ruas e pelos ônibus quase nunca o faz por opção, mas acaba tendo o privilégio de desmistificar algumas coisas. O terrível medo do outro é uma delas.