Pacto da mediocridade

Roubei do blog do Milton.
A experiência é real e foi conduzida por um cientista norte-americano chamado Harry F. Harlow (1905-1981). Achei fascinante
Um grupo de cientistas colocou cinco macacos numa jaula, em cujo centro colocaram uma escada e, sobre ela, um cacho de bananas. 
Quando um macaco subia a escada para apanhar as bananas, os cientistas lançavam um jato de água gelada nos que estavam no chão. Depois de certo tempo, quando um macaco ia subir a escada, os outros enchiam-no de pancadas. 
Passado mais algum tempo, nenhum macaco tentava subir mais a escada, apesar de ser tentadora a visão da fruta predileta tão próxima dos olhos. Então, os mesmos cientistas substituíram um dos cinco macacos. A primeira coisa que o pobre fez foi subir a escada para colher as belíssimas bananas, sendo retirado de lá imediatamente pelos outros, sob uma chuva de pancadas. 
Depois de algumas surras, o novo integrante assimilou a ideia do grupo e não tentou mais subir a escada, apesar de continuar lambendo os beiços cá debaixo. 
Um segundo macaco foi substituído, e o mesmo aconteceu, tendo o primeiro macaco substituído participado com alegria e entusiasmo do corretivo que o grupo impôs ao segundo novato. 
Um terceiro macaco foi trocado, e repetiu-se o fato. E assim fizeram com o quarto, e finalmente com o quinto e último dos veteranos. Deste modo, todo o grupo foi substituído. 
Os cientistas ficaram, então, com um grupo de cinco macacos que, mesmo nunca tendo tomado um banho frio, continuavam batendo naquele que tentasse chegar às bananas. 
Se fosse possível perguntar a algum deles porque batiam em quem tentasse subir a escada, com certeza a resposta seria: “Não sei, as coisas sempre foram assim por aqui.”

Das dores de cada um

Estava conversando com uma amiga que soube há pouco que eu me separei. Ela se disse triste por mim, que parece que está todo mundo se separando, que conhecia tanta gente. Eu também, parece uma espécie de surto. Minha cabeleireira havia me dito no início do ano que 2014 era ano de Xangô, e que tudo que estivesse mais ou menos iria se desfazer. Vai ver que é. Porque ninguém se separa assim, porque teve uma briguinha. É um processo tão longo e tão doloroso que a gente atrasa o quanto pode, faz terapias, procura ajuda, tenta deixar pra lá, até que uma hora não dá mais. Aí citei uma perda que ela teve esse ano, de uma amiga. A amiga pedia ajuda, ameaçou várias vezes, até que no fim se matou mesmo.
Enfim. O assunto acabou caindo aí, na ajuda. Se ela poderia ter ajudado mais, a mim, à outra. Eu pedi pouca ajuda, e até me recusei a desabafar com muitos ombros. Eu lhe disse minha teoria sobre o assunto, e a ela pareceu que mesmo sofrendo eu fui meio altruísta. Não sei. Por um lado, sempre tive mesmo a tendência de resolver minhas coisas sozinha, de não procurar ajuda. Por outro, é que eu acredito realmente que até podemos pedir ajuda, uma ou outra ajuda, mas que o sofrimento é solitário. No meu ponto de vista, o ser humano é essencialmente sozinho. E o sofrimento é um desses momentos em que sentimos a nossa própria solidão com intensidade- é inútil tentar escapar, ninguém pode resolver pela gente. Mesmo porque ninguém está aqui à passeio. Fui procurar ajuda e encontrei meus amigos com seus próprios problemas: um com depressão e passava o dia inteiro na cama, outra inconformada com o fim do noivado, outra não tendo de onde tirar dinheiro com mudança de imóvel. Como mensurar quem sofria mais, como querer que os outros deixem seus problemas de lado em favor do meu. E se por acaso estiver tudo bem, se eu tivesse encontrado todo mundo feliz, brincando na sala com a família – eu teria o direito de estragar, adicionando uma carga à vida dos outros? Também acho que não. 
Eu procurei ajuda dessas pessoas sim. Procurei até onde podia, até onde não lhes causou muito desconforto. Fiquei mais tempo do que a educação recomenda na casa de alguns, interrompi algumas reuniões de família, me convidei para programas que normalmente não me chamariam e minha simples e pesada presença sem dúvida intimidou demonstrações de felicidade. Num fim de semana ia pra casa de um, depois me auto-convidava pra um programa com outro, e fui levando assim. Tive crises de ansiedade, crises de choro, crises de tédio. Comprei muito sorvete, chocolate e salgadinho, assim como também passei dias praticamente em jejum. Momentos que ninguém soube, só eu e meus fantasmas. Não sei se é de criação ou o quê, mas eu não consigo pensar num luto diferente. É igual doença – é preciso dar um tempo pro organismo, pra expurgar. Na minha matemática, na minha maneira de ver o assunto, a presença constante de pessoas não acelera o processo. Então, preferi poupar meus amigos. Prefiro que eles ainda me olhem como boa companhia e não alguém que lhes pesa. E teria horror que eles me vissem como alguém digno de pena.
Claro que estou falando de mim, etc. Cada um enfrenta suas tristezas da maneira que pode.

A floresta escura

Agora eu sei como minhas amigas se sentiram. “Eu gostaria de poder fazer mais” me disse uma que ofereceu colo, casa, comida, tudo o que eu precisasse. Que ficasse a semana inteira aproveitando o clima maravilhoso que a casa dela tem. Clima e família maravilhosa que ela criou a duras penas. Outra me ofereceu conversas de madrugada, aproveitando que está num fuso horário diferente, me dizendo que o que ela queria, às vezes, era só falar. Já outra, quando liguei aos prantos e disse que não suportaria, invocou o seu próprio exemplo, o de sua filha e o de tantas mulheres que já haviam passado por coisas difíceis e estão aí. Na hora achei duro, não lembro o que esperava ouvir. E todas, todas foram unânimes em me dar o mesmo conselho: ocupe-se. Que eu arranjasse coisas para fazer e lugares para ir o tempo todo, que não deixasse a mente ociosa e a depressão bater, que depois de me ocupar muito um dia eu perceberia que passou. A noite demoraria, seria difícil e dolorosa, mas chegaria ao seu fim. 

Tenho uma amiga que está começando esse mesmo processo. Que angústia, eu gostaria de poder fazer mais. A única coisa que se pode fazer é apoiar. É como se a pessoa fosse entrar numa floresta. Podemos lhe dar um cantil, os sapatos mais apropriados, bússolas, conselhos, nossa experiência pessoal, a festa do lado de fora. Mas quando ela entra, está sozinha. Há dores que não se economiza, há dores incompartilháveis.

Compras no posto

Estava fazendo meu caminho de sempre, perdida em pensamentos, quando ouvi gritarem:
– Ô, METIDA!
Conhecedora da impressão que passo, ela nem precisou gritar duas vezes. Era a mocinha que atende na loja do posto. Ela estava sentada fora da loja, tomando um suco. Fui lá. Disse que pra variar ela estava dando prejuízo pra loja, consumindo mercadoria sem pagar. Ela me perguntou porque eu não estava vindo mais. Na verdade, eu tenho ido raramente, geralmente aos sábado e só pra comprar pão de queijo, mas ela não fica lá nos sábados. Durante todos esses meses, eu já consumi de tudo um pouco naquela loja. Bolachinhas, chás, hidrotônicos, café da máquina, chocolates. Ultimamente, parava lá pra comprar achocolatado. Eu disse a ela que trago de casa e bebo no caminho, que agora compro o achocolatado mais barato, no supermercado. Eu descobri que no posto ele custa o dobro e não quis mais comprar. Mas eu não sabia que no posto era tudo mais caro? Eu estava lhe dizendo que saber eu sabia, mas que nunca havia me dado ao trabalho de olhar o preço, quando veio uma cliente e ela teve que correr de volta para a loja.
O que não deu pra explicar pra mocinha é que antes, por mais que eu soubesse que era mais caro, eu não tinha como deixar de passar ali. Mesmo que fosse três vezes mais caro, eu não estava em condições de fazer aquela economia. Meus dias eram infinitamente tristes. Eu chegava perto do posto e aquela loja acenava para mim como uma fonte de calor. Passar por ali e trocar duas palavrinhas com ela, sorrir e vê-la sorrir era muito importante para mim. Pagar aqueles reais a mais era um presente que eu me dava. Eu precisava demais de um respiro. O sorriso dela me ajudava a dar mais um passinho. Mais um dia, mais um passo, mais um pouco. Se agora eu pude olhar o preço, é porque ela me ajudou e eu voltei a amar a minha vida.

Curtas e solteiras

Acho, apenas acho, que as pessoas à minha volta já esperariam que eu estivesse envolvida em alguma história. Romanticamente falando, sabe.
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A tal festa da qual falei no post passado. Eram mesas compridas, cheias de gente, e na prática só dá pra conversar com quem está sentado perto. E eu sentei perto das minhas amigas. Dias depois, comentando sobre a festa, a aniversariante apontou pra mim e pra outras: “Tinha três amigos solteiros lá. TRÊS. E ninguém foi”. Eu não havia me tocado disso: de que agora sou solteira, e quando vou num ambiente devo reparar em todas as mãos masculinas pra ver quem também é solteiro. Aí eu avalio, vejo se quero, e se quiser já parto pra cima. Ou seja, deixa eu mudar o botão do modo “normal” para o modo “desesperado”.
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Na minha adolescência e na faculdade eu passava longos períodos sozinha. Era difícil eu me envolver com alguém. Tinha muitas paixões platônicas, vivia apaixonada, mas só queria algo se fosse assim, apaixonada. Não ia a baladas, e quando ia não ficava porque não via graça. Cantadas me causavam uma reação estranha, quase uma coceira, uma vontade irresistível de responder de maneira cretina. Como vão os namorados? Todos bem, com saúde, graças a Deus.
Eu, casada, olhava para trás e pensava: que boba que eu fui, deveria ter aproveitado mais. Deveria ter namorado, ficado, dado. Agora estou solteira de novo e quem disse? A gente é o que é, não adianta.
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Um dos problemas, um dos meus grandes problemas, é que não sei se sei me relacionar da forma adulta. Agora eu devo olhar pro cara, avaliar se gosto do currículo e se estiver tudo ok eu dou pra ele? Afinal, pra que enrolar se somos dois adultos, sem ilusões e nem expectativas e no fundo tudo se resume a sexo? Não sei se consigo, juro. Se conseguisse, já teria arranjado alguém. Sou ridícula, tô indo pra casa dos quarenta e quero me apaixonar.
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Então eu acho que o sujeito tem que me conhecer e aprender a gostar de mim. Tá bom. Tá bom nada, tenho medo.

Curtas de baixa auto-estima

Li uma dessas frases de facebook, falando da pessoa ser extrema, não ser comum, não ser sem graça, melhor ser quente ou frio do que ser morno, essas coisas. Só que a autora da frase é uma escritora tão sem graça, tão comunzinha nas suas entrevistas, que fica parecendo que ela estava falando mal de si mesma. Ai pensei: nunca mais devo dizer isso. Porque eu também já disse. E também não sou lá essas coisas em termos de presença.

 

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Eis que você gosta muito de uma amiga. Não tem tudo isso de contato com ela, mas sabe aquele sentimento? Tem pessoas que nos cativam. Aí você é convidada pra festa de aniversário, se anima, compra um presente até mais caro do que deveria. Porque era a cara dela e o afeto te levou a não economizar. Você vai na festa, se diverte, fica até o fim, os últimos a sair do restaurante. Por causa da carona, mas e daí? As pessoas eram legais. Fotos pra lá e pra cá, felicidade. Mal chega em casa e a festa já está repercutindo nos álbuns de fotos, marcações. E das muitas fotos que você apareceu, ninguém postou nenhuma. Quer dizer, você aparece de lado, no canto de uma delas. Mas tudo bem, outra turma. Até que saem fotos só da turma do gargarejo, com legenda de amigos mais amados e postam exclusivamente fotos em que você não aparece. Que dizer? E o presente ainda nem foi pago.

 

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Das coisas que não se pede: declaração de afeto e lugar melhor em coreografia. Se você pede, até dão – “você está incomodado com isso, nossa, pra quê” -, mas aí não vai ter graça.

Eleanor Rigby

A minha bolsa tem um par de asas. Eu estava à caminho do ponto de ônibus quando uma mulher, do outro lado da rua, gritou pra eu prestar atenção à minha bolsa. De longe, lhe deu a impressão de que ela estava aberta ou com papéis caindo. Nos encontramos de novo no tubo, trocamos algumas palavras, eu lhe agradeci. O ônibus chegou pouco depois e fomos as duas para a parte da frente. Eu me sentei e ela ficou perto da porta. Aí pude vê-la melhor: uns cinquenta anos, jeans e uma camiseta branca já velha, cabelo preso da maneira mais prática possível, sem maquiagem, expressão cansada, segurando bolsa e sacola. Às vezes colocava a mão na costela, como quem sente ou verifica alguma coisa. No terminal, a porta do ônibus abriu e ela saiu logo. Eu demorei mais e cheguei o mais rápido que pude no tubo, para pegar o Inter 2 que já estava estacionado. Um monte de gente na minha frente, as pessoas saiam e entravam no ônibus, eu aflita. Quando cheguei, encontrei a mulher de novo. Ela chegou a colocar o pé na plataforma do ônibus e fez sinal para o motorista esperar. No mesmo instante a porta do ônibus fechou, a plataforma subiu, a porta do tubo quase fechou em cima dela. Assustada, ela quase caiu para dentro do tubo e eu a segurei. A mulher xingou o motorista, disse que ele a viu, porquê não esperou, que ódio. Fomos para a fila que se formou rapidamente e ela atrás de mim estava quieta. Depois me agradeceu, disse que se eu não a tivesse segurado, ela teria caído. O que é isso, não foi nada. Aí ela começou a chorar. Um choro sentido, que eu reconheci logo. Disse que já não estava bem, que estava com a costela machucada, e o que seria se ela tivesse caído e se machucado ainda mais. Um choro de quem tem lutado muito e se sente cansado. Independente de quem era e que família tinha, se tinha marido ou não, naquele instante ela se sentia muito só. Era apenas uma mulher contra o mundo, quase se afogando na força da correnteza. Tem dias que viver é pesado demais. Eu senti sua dor e justamente por saber o quão profunda era, fiquei sem saber o que fazer. Alisei seu braço, ofereci o floral que tinha na bolsa, me perguntei o que minha terapeuta – que é tão boa em emergências – lhe diria. Falei que ela não caiu, que eu estava lá, e que se não fosse eu, seria outra pessoa, que Deus não a deixaria desamparada desse jeito. Ela disse que não, que se não fosse eu a deixariam cair, porque ninguém se importa com ninguém hoje em dia. Eu pensei e não disse (deveria ter dito) que tem gente que se importa sim. Ela se importa.

Momento Leila Diniz

A pessoa fala e tem que fazer. Fico aqui pregando pela liberdade de se expor e amar seu próprio corpo e depois me escondo? Nananinanão. Saiu veranico, todo mundo suando em bicas e fui lá expor a barriga na aula de natação. Já fiz isso verão passado. Acho que sou a única. Do meu horário, do posterior e do anterior, eu sei que sou. Digo que acho que sou a única da escola inteira. Pense, mulheres de todos os tipos físicos e idades. Minto, ouvi falar que tem uma no horário das 18h. “Uma que dá até ódio, com uma barriga retinha, perfeita”. Bem, ódio de mim por causa da barriga perfeita e lisinha com certeza ninguém tem. Fama eu sei que tenho. Uma vez conversei com uma mulher no banheiro, que nunca tinha visto na vida e ela falou “ah, você é aquela moça que faz aula de biquini?” Ou seja…
O biquíni – feito por mim – é tão grande que tem piriguete que sai mais descoberta do que eu na balada. A parte de cima é um modelo de um top de ginástica e a parte debaixo de uma calcinha grande. Chego na aula na maior, a única, a desinibida, a que vai de biquíni. Faz de conta que eu me acho a top. Faz de conta que não é nada, que sempre fui extrovertida e prafrentex. Faz de conta que não sei que comentam. Faz de conta que não noto os olhares. Faz de conta que não morro de vergonha.
Olha, gente, a revolução exige superação de limites pessoais.

Cacoetes

Fui para a parte da frente do Biarticulado. Nela, pra quem não conhece, tem lugares duplos dos dois lados. Eu estava de costas para a porta 1. Na minha frente um casal jovem conversava. Os dois tinham aquela pinta de advogados, sabe? Muito mais formais e cheirosos do que normalmente se vê no ônibus. Ela, mais perto da janela, vestia um taillerzinho sem mangas, cabelos lisos e presos e óculos. Ele, de camisa de listras, calça social e sapato. A conversa girava em torno da atitude de alguém que não havia sido profissional. Ok. Só que em menos de cinco minutos ali, eu percebi que o sujeito tinha um cacoete sério com aquele cabelo. A cada minuto ele passava a mão direita pelo cabelo, mas não de qualquer forma – era dando umas três recuadinhas no meio do caminho, pra dar um aspecto de cabelo que havia passado por escova (vai ver que tinha. Olhando bem, acho que o sujeito era gay).

 

Se tem uma coisa que eu num guento é ficar perto de gente com cacoete. Então eu me virei. Fiquei quase em frente à porta e à minha esquerda, mais duas pessoas sentadas. Da mulher, não guardei nenhuma lembrança. Ao lado dela um senhor com volta de sessenta anos, alto. Ele estava bem na frente do meu ângulo de visão. Pele branca, cabelo branco e camisa branca de listras claras, tudo bem branco. E beiçudo. Acho que normalmente eu não teria notado que ele era beiçudo, nada contra beiçudos. O problema é que ele era daqueles velhos que mastigam chicletes imaginários. O beição subindo e descendo dava ainda mais amplitude aos movimentos bucais.

 

Chicletes imaginários são demais pra mim. Me virei para frente, para a rua, na mesma direção que o motorista. E não é que naquela posição, de canto de olho, eu via um ajeitar o cabelo e o outro mascar?

O jeito foi passar a viagem olhando pro chão.

Fedor no Ligeirinho

Ele entrou pouco antes da porta fechar, no terminal. Era horário de rush, o ônibus estava cheio, muita gente de pé, eu entre elas. Ele passou por todos e se sentou no degrau do fundo. Carregava uma lata de tiner. O cheiro era muito forte. Como sempre, as janelas do Ligeirinho estavam todas fechadas. Ao lado dele, nos bancos, duas mulheres, uma delas com conjuntinho de recepcionista. Elas começaram a reclamar em voz alta – “Moço, abre a janela aí porque não dá”. “Eu estou ficando com dor de cabeça, porque o cheiro aqui do lado está demais”. Eu mesma estava começando a ficar zonza. Nunca a distância entre o terminal e a praça me pareceu tão longa. Até que um homem que estava no fundo se junto com uma mulher de uniforme de cobradora, e levantaram o cara até a porta. “Aqui você não pode ficar”. Todos aliviados. A porta abriu e ele saltou. O ônibus ficou parado, esperando o sinal, e quando ia embora, ele entrou de novo. Gritaram pro motorista esperar, a mulher foi lá na frente, expulsaram o sujeito de novo. Suspiramos duplamente aliviados.

 

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A viagem seguia tranquila, silenciosa. Todos os lugares estavam ocupados e ninguém estava de pé, como é típico no Ligeirinho pra lá de nove horas da noite. Do meu lado, o cara quase dormia. Atrás de mim, um casal com um filho meio dormindo no colo. Aí o ônibus parou no sinal ao lado do Festval, quase no ponto. Algumas pessoas se levantaram. Aí o ônibus fui invadido por um cheiro tão forte, tão podre, que era difícil de definir. Cheiro de geladeira, cheiro de animal em decomposição, cheiro de ovo podre, que cheiro horrível era aquele? Algumas pessoas levaram discretamente a mão para o nariz. Começou a busca, as pessoas olhavam para os lados à procura do responsável. Olhei para trás e o casal protegia o nariz da criança. Perguntei em voz alta “de onde vem isso?”. O cara do meu lado acordou o pegou um lenço na mochila. Um que estava sentado no fundo descobriu “É lá atrás, tem um caminhão de fossa bem atrás da gente”. Todos já protegiam seus narizes. O sinal abriu.

Admirador secreto

Colégio Estadual Rio Branco, segundo grau, década de 90. Minha amiga Andréia tinha um cabelo castanho que ia até a cintura, um jeito meio desengonçado de andar e mascava chicletes de boca aberta, pra dar um ar descolado. E despertava paixões facilmente. Tinha um japonês bombado que sentava do meu lado, e um dia pedi um livro emprestado pra ele, que ficou sem graça e não me emprestou. Depois ele veio me explicar que no livro havia um desenho da Andréia de perfil, que ele havia pedido pra um outro menino da sala fazer. Ficamos amigos depois disso.

 

Um dia a Andréia começou a receber bilhetes de um admirador secreto. Os bilhetes apareciam como mágica na carteira dela. Foi a sensação do recreio. Tentávamos adivinhar quem era, se ele tinha cúmplices, reparávamos em quem demorava pra sair da sala. A cada bilhete ele ia falando mais, se revelando, até que no último dele disse que depois do recreio, na aula tal, ele se sentaria na carteira vazia que estava na frente dela. Finalmente saberíamos quem era, que emoção!

 

Chegou a tal aula e todo mundo de olho na carteira vazia. A aula acontecendo e a carteira ainda vazia. Aí num momento que todos estavam concentrados, com o quadro cheio de matéria para copiar, ele se levanta ostensivamente e senta na carteira da frente. Ficamos em choque. Ninguém havia cogitado aquele nome. Hoje penso no quanto aquilo deve ter custado, o gesto corajoso e suicida, mas na época… Vou explicar: ele era gordo. Existem duas saídas clássicas para o adolescente gordo. Uma delas é ser vítima, receber apelidos, aquele sofrimento todo. A outra via é virar o jogo. Ele era uma espécie de líder. Tinha bigodinho, era forte e um jeito muito agressivo de ser. Lembro que uma vez levei esporro dele durante uma partida de handebol. Nunca imaginamos que alguém intimidante, do tipo que chama para briga e coloca apelidos, seria capaz de se declarar para uma menina. Ainda mais daquela forma.

 

A Andréia, morrendo de vergonha, ficou copiando a lição do quadro, como se ele fosse invisível. Ele sustentou o olhar durante longos minutos, sentado de frente pra ela. Depois voltou para a própria carteira e a história acabou aí.

 

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Daí eu formulei uma Teoria Sobre Admiradores Secretos que nunca foi desmentida. É a seguinte: se você recebe presentes, flores, bilhetes de um admirador secreto, contenha a felicidade. Não é aquele cara pra quem você tem sorrido. Não é o Gianeccini da firma. Esses dois sabem que não precisam de nada disso, que é só chegar junto e dizer “vamos”. O admirador secreto é sempre o cara que sabe que tem alguma desvantagem, que a princípio você nunca pensaria nele. Então ele precisa te amolecer antes.

Espera

Agora quase todos os tubos e terminais de ônibus de Curitiba dizem em quanto tempo chegarão os próximos ônibus. Acho que os ônibus têm um rastreador. É uma ideia tão simples e tão boa. É um alívio muito grande olhar para o relógio e saber o horário do ônibus, que mais uns cinco minutos ele estará lá. E quanto não estará, quando leva muito mais tempo, você já pensa “xi, vou ter que ficar plantada esperando” e já se programa pra pegar um livro, pensar em outra coisa. A espera é a mesma, mas subjetivamente é muito melhor. Não tem mais aquela ansiedade de que a qualquer momento, a qualquer sinal, o ônibus pode vir. Ou aquele desespero de que fomos esquecidos, de que o ônibus não vem mais, não vem a tempo, que ficaremos o dia inteiro lá para nada.

 

E isso é apenas ônibus. Imagine como é o tal do “ter fé”. Tenha fé: isso é só um período. As coisas vão melhorar. Não há mal que sempre dure. Você voltará a se sentir melhor. Sua vida vai entrar nos eixos de novo. Há um lugar no mundo para você. Você não está só.

Quando?
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O Paradoxo da Espera do Ônibus from MPL on Vimeo.

Perfeito, Marcela, obrigada!

Nuvem

Quando eu fiquei deprimida, parei de ler. Foi como um choque. Eu já sabia que ler e meu bem estar estão ligados. Eu lembro que quando lia muito na adolescência, era acusada de fazer isso por ser problemática. É justamente o contrário, leio quando estou bem. Meu estado normal é ler vários livros ao mesmo tempo. Quando não estou, as letras se embaralham e não consigo me concentrar. Nos últimos meses eu ia à biblioteca e escolhia de tudo, me propunha a ler os mais variados gêneros. Na prática, apenas levava os livros pra passear, muitos ficaram apenas juntando pó na minha mesa.

 

Agora voltei a ler. Mas ainda não consigo escrever sobre eles. Fico com vontade de voltar a alimentar o outro blog, mas leio as minhas críticas antigas e parece que foi outra pessoa. Parece que eu não tenho nada a dizer, que seria incapaz de voltar a fazer aquelas análises. Parece que não tenho mais nada a dizer.

 

Sobre as outras escritas, inclusive este blog, é como se a nuvem da dúvida, que antigamente era até simpática, tivesse se tornado uma nuvem de tempestade. Agora ela torna o dia noite, tampa o sol e me deixa com frio. A coisa mais importante da minha vida, a que mais me faz bem, a que mais me acalma, ainda está contaminada, ainda está de luto.

Posso dormir e só acordar o ano que vem, depois que tudo estiver acabado?

Seis curtas

Aquela fase da vida que quando um atendente te chama de “mocinha”, você olha bem pra cara dele, à procura de um sorriso sarcástico.

 

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A sensação deliciosa de experimentar uma roupa e ser surpreendida, se sentir outra, imaginar situações onde estará maravilhosa dentro dela. Tenho que arranjar um presente à altura pra retribuir a Raquel.

 

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E eis que de um dia para o outro, num piscar de olhos, a vida se torna cinquenta reais mais cara.

 

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Adoro passar na frente do Museu do Olho. Em qualquer dia da semana, a qualquer hora do dia ou da noite, tem turistas por ali. Turistas são a coisa mais fofa e feliz que existe. Dias frios e cinzentos não os afetam. Eles ficam lá, procurando poses novas, redescobrindo ângulos, olham fascinados para tudo. Sou figurante em centenas de fotos deles.

 

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Versão repartição pública do policial bonzinho com o policial malvado: funcionário cheio de boa vontade mas inexperiente, e funcionário que domina todos os trâmites mas te trata às patadas porque não suporta público.
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Quando a pessoa é exagerada e inconveniente demais nas redes sociais, tenho até medo de cortar suas asinhas. Vai que aquilo é tudo o que ela tem. Vai que a alternativa, ao invés de encher o saco, é ficar chorando no cantinho.