Assexuado

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Pela natureza dos exames eu adivinhei que o médico precisaria de alguma habilidade para tornar tudo o mais profissional possível. No primeiro, ele precisaria introduzir uma sonda em mim para verificar meu útero por dentro. Há muitos anos, quando eu havia ameaçado colocar DIU e acabei desistindo, fiz aquele mesmo exame. Uma enfermeira chegou do meu lado, vestiu uma camisinha na sonda, encheu de lubrificante e enfiou aquilo em mim numa velocidade e facilidade que eu fiquei me sentindo uma mulher da vida. O segundo exame do dia era um tipo de mamografia, e eu não fazia a menor ideia de como seria. Eu já havia feito aquele na máquina, o que aperta o peito e nos faz desejar colocar nela o saco do maldito que inventou aquela porcaria. Deve diminuir a vida útil do nossos peitos em alguns anos ter os coitados espremidos de cima e em diagonal daquele jeito. Como na sala do médico que faria meus dois exames não tinha aquele aparelho monstruoso e apenas uma cama ao lado de uma estação com computador, vi que aquele seria inédito.

É possível que o médico não tenha visto nem se eu sou loira ou morena, do tão pouco que ele fez questão de me olhar. Sua assistente me mandou tirar toda roupa no banheiro que tinha ao lado e vestir o avental que estaria num pacote lacrado. O tal avental é tão aberto e fininho que claramente é feito só pra constar, só pra gente não andar pelada por aí como se estivesse em casa. Aí eu me deitei na cama de joelhos dobrados e pernas afastadas. Sem nunca tirar os olhos da tela do computador, o médico me mostrou a sonda, que apesar de comprida e toda coberta por uma camisinha, iria entrar poucos centímetros em mim. Na parede oposta, uma TV mostrava o que a sonda filmava. Terminado esse, sempre em meio à uma conversinha social, ele me mandou aproximar mais e colocar o braço por detrás da cabeça – era o momento dos seios. Aí ele jogou uma quantidade enorme de KY no meio doseio, bem no centro, e passou sonda por cima de tudo. Repito: jogou uma quantidade enorme de KY em cada seio. Não sei se existem outros fins, mais puros, para o KY, mas pra mim aquilo tem cheiro de sexo. Não tem como sentir aquele cheiro e associar com Dostoiévski ou tarde de compras. Eu deitada, praticamente nua, braço apoiado atrás da cabeça e os seios cheios de KY. Se por acaso eu não tivesse notado todo profissionalismo do médico desde que coloquei os pés no consultório, qualquer fantasia teria se desfeito quando ele me falou:

– Para uma mulher da idade da senhora, os exames estão bastante bons.

Depois eu fui pro banheiro, sequei o excesso de KY, me vesti e saí na rua com meus exames na mão me sentindo meio… sei lá.

Fantasia

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O carnaval de Curitiba é isso mesmo que dizem, ou seja, não é. Se não fosse pela internet, não ficaria sabendo das músicas, dos desfiles, de nada. Mas tem as fantasias. Olho os meus amigos fantasiados, os links das melhores fantasias, e começo a imaginar que deve ser muito legal se empenhar a cada ano pra fazer uma coisa diferente, ser um meme encarnado ou aproveitar o seu tipo físico – penso agora no meu amigo Rodrigo, que fica ótimo de Fidel Castro. Começo a me perguntar o que faria, que ia gostar de me arrumar assim, ter amigos animados e sairmos alegres e fantasiados pelas ruas. Aí lembrei da última vez que me preparei com uma roupa especial: uma festa de quinze anos. Minha fantasia foi de mulher lindona. Comprei um vestido de flamenco que me deixava linda (hoje acho que fico pançuda), fiz cabelo no salão, me maquiei e usei salto. Entrei confiante na festa, me apoiando suave e regiamente nos braços do meu então marido, com todos os holofotes imaginários voltados pra mim. Me sentei com toda elegância e catiguria na mesa especial dos parentes, postura reta na pontinha da cadeira. Meia hora depois estava sonhando com chinelo, camisetão e sofá. Não tenho o temperamento certo.

Louca obsessão

Contém spoilers (é um filme de 90´s, pô!).

Havíamos acordado cedo. Foi um dia inteiro viajando de carro pelas cidades do Recôncavo Baiano, comendo bem, ouvindo Folia de Santo sem parar, passando por altas aventuras como a busca pela casa da Dona Canô. À noite estávamos exaustos e ainda tinha algumas horinhas até o horário de dormir. Ligamos a TV à procura de qualquer coisa razoável para ver e passamos por um filme chamado Louca Obsessão. Regina quis deixar lá, era um filme bom, ela havia visto. “Ainda mais pra você, que escreve. Tem uma cena massa, pena que eu acho que já passou…” Aí ela nos explicou o contexto: um escritor famoso caiu perto da casa de uma enfermeira, que era fã dele. Não encontraram o sujeito e ele era dado como morto. Ele havia escrito uma série com uma personagem que tinha muitos fãs, e no último livro deu um fim nela. Então a tal enfermeira fã cuidou dele e o mantinha em cárcere privado para que ele escrevesse um novo livro que trouxesse a mocinha de volta. Ele não gostou disso, tentava chamar atenção das pessoas naquela casa isolada, fingiu que ainda continuava doente, essas coisas. Até que a louca nota que ele está se recuperando. Não lembro o que acontece, mas sei que ele acorda todo amarrado na cama. “Eu me enganei, ainda não passou”. A cena seguinte se passa quase toda do ponto de vista do escritor, na cama. A louca começa a conversar com ele, diz que ele tem se comportado mal, que ela tem cuidado tão bem dele. Ele reclama, quer ir embora. Enquanto isso, ela se movimenta pelo quarto, claramente se preparando. Ela pega um pedaço de madeira e coloca firmemente entre os tornozelos dele, e continua. Ficamos sem saber pra que serve aquilo – as pernas sustentando uma madeira, os pés soltos no ar.. Até que ela pega um martelo bem pesado, puxa para trás e bate com toda força na lateral do pé. Cena de pé virado e osso partido. Eu e Laécio pulamos no sofá. Regina ri da nossa cara. Fico traumatizada para sempre. Fim.

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A cobradora

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Foi por pura falta de opção que eu me sentei no lugar que fica colado na cobradora. Não sei se é da linha Interbairros 2, mas sempre fico impressionada do quanto conversam esses cobradores. Fico uns 20min no ônibus e tem papo do início ao fim. Aí calculo que o povo conversa a viagem inteira todos os dias e concluo que deve ser muito estressante ser cobrador de ônibus, é falação, história e social o tempo inteiro. Além do intercâmbio normal da cobradora e o motorista, ela estava com uma amiga sentada na frente dela, ou seja, à minha esquerda. Algumas vezes pareciam amigas de longa data e outras vezes não, uma descobrindo e tirando onda com o bairro que a outra mora naquele momento,os  dois violentos, um em Curitiba e outro na região metropolitana. De qualquer forma, a cobradora dominou a conversa. Por volta dos seus trinta anos, cabelo preso, o rosto alegre e sem maquiagem, a camisa do uniforme por cima de uma longa saia estampada me fizeram pensar que era crente. Depois soube que estava grávida, quem sabe a saia fosse por isso. De qualquer forma, a achei, na falta de uma expressão melhor, “bela, recatada e do lar”. Não que não seja, é que… Ainda mais que ela contou que o namorado arranjou ingressos pra um evento gratuito do Atlético e ela ia com as duas filhas, à tarde, e logo de manhã na linha perto do estádio já tinha mulher de micro-shorts e adolescente com tubão (refrigerante batizado com álcool) e ela avisou pras filhas que não iriam mais. E que nunca vai nesses eventos baratos de um real ou quarenta reais, que só dá nóia e mulher de boné virado pro lado.Que foi num evento com os três filhos, o filho queria levar o celular e ela impediu porque seria roubado, e só nóia, as filhas querendo chegar perto do DJ porque eram fãs e elas mesmas ficaram com medo e quiseram ir embora. Enfim, uma mulher tranquila que cuidava da família. Bem, não que não cuide da família, é que…

Quando eu já estava nas curvas finais, quase descendo, a cobradora contou de um bailão que foi com uma amiga. Do nada uma mulher ficou encarando ela. Ela virou pra mulher e apontou pra própria cara e fez gesto com as mãos, naquele típico “qualé?”. A mulher disse pra ela que ela estava encarando, que se continuasse olhando ia ter briga. A cobradora falou algo como “então bate aqui” e deu uns tapinhas no próprio rosto. Dali há pouco, a mulher veio com um copo de cerveja na mão e derrubou inteirinho no tênis dela, que era novo. Ela não fez nada. Depois a cobradora disse que tinha que ir ao banheiro, a amiga até se ofereceu pra ir junto, ela disse que não precisava. No banheiro, chega a tal mulher de novo. Pergunta, cheia de veneno, se o tênis tinha ficado muito molhado. Com uma cara de pouco caso a cobradora respondeu que não. “A gente pode resolver isso lá fora”, disse a mulher. A cobradora: “A gente pode resolver aqui dentro mesmo” e agarrou a mulher por detrás da cabeça, pelos cabelos, e bateu com a cabeça da dita cuja com toda força na parede. E saiu. Não teve testemunhas. Depois ouviu chamarem uma ambulância, porque tinha uma mulher desacordada no banheiro…

Amor de empapar todas as folhagens

Talvez os religiosos tenham razão e a nossa grande dor seja a separação do Amor Primordial. Porque não há como – diante da lindeza dessa descrição de amor e a interpretação fabulosa da Bethânia – não se sentir tocado, saudoso de um amor tão grande. É como se todos soubéssemos como é amar e ser amado assim, mesmo que não possamos nomear quando e onde, mesmo que na nossa lembrança remeta a um paraíso que não sabemos como se perdeu.

Reforma

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Não é de hoje que a biblioteca pública está em reforma, inclusive achei que demorou porque a planta de como vai ficar esteve no site faz tempo. Por ali dava pra ver (já não dá mais) que vai ficar lindo – vão aproveitar a área do fundo, a do balcão de empréstimo, pra colocar uma cantina, tendência que tem em tudo quanto é livraria e o potencial imenso da biblioteca pública não era explorado. Mas tirando umas numerações que mudaram de lugar e a necessidade de manter a porta da sala de literatura (a primeira à direita no térreo) sempre fechada, nada de muito chato estava acontecendo. Hoje cheguei lá e foi um susto: pra começar, a parte onde deixamos as bolsas virou um balcão baixo e feioso, temporário, e deixou as moças tão mais próximas da gente que chega a ser esquisito. Na entrada propriamente dita, uma baita quebradeira e o balcão de empréstimo na cara da gente, à direita do hall, como se fosse um quiosque e dificultando o acesso à sala de literatura. Peguei o que queria e quando fui devolver e emprestar meus livros a moça ficou sem graça: o sistema não lia direito o código de barras (sim, tem código de barras. E leitura de digital também, te mete), o que tornou o processo muito mais demorado do que os trinta segundos normais. Enquanto isso, o som de quebradeira ao fundo. Terminei essa etapa e fui passar no carinha que desabilita o alarme (sim, alarme). “Mas que barulho, hein? Só no tempo que a moça levou no empréstimo já fiquei com vontade de sair correndo”. Ele estava muito puto. Falou que aquilo era serviço para se fazer à noite, que não tinha a menor condição, que ontem levantou um pó tremendo e eles lá, que aquele barulho nem estava tão ruim assim porque tinha momentos que era pior. Ele fez o que tinha de fazer, me devolveu os livros e nos olhamos indignados cúmplices. E eu fui embora sem saber se havia lhe feito um bem ou um mal.

Veneno

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O tempo nos faz adquirir umas conclusões internas e algumas são bastante duras. Uma das minhas, e que acaba de obter confirmação, se refere à impossibilidade de uma pessoa mal resolvida com um assunto estar ao lado de uma bem resolvida com aquele mesmo assunto. Ela não vai conseguir se segurar, vai se comparar e vai sentir inveja, é humano. E sentindo inveja, como todo invejoso, revestirá esse sentimento doloroso de várias justificativas e sempre que tratar desse assunto com a pessoa invejada atuará para o mal. Ela pode tentar segurar, mas não tem como ela dizer algo bom se por dentro nela há apenas frustração e tristeza por ter aquilo tão mal resolvido dentro de si, por outro ter o que ela gostaria tanto e não consegue por um motivo qualquer. Essa acusação é muito grave, porque nos faz pensar que a com namorado não pode ficar ao lado da amiga que tenta arranjar um e não consegue, que o rico não pode estar do lado daquele que batalha e não prospera, a bonita ao lado da feia, etc. Que, no mundo ideal, as melhores companhias são as pessoas bem resolvidas, tão felizes quanto você naquilo que você é feliz. Só que o mais grave de todas essas conclusões e acusações é perceber que a invejosa e mal resolvida sou eu.

O velho chato do cinema

CINEMATECA

É uma dessas lembranças que de vez em quando nos invade e nem sabíamos que estava lá:

Morávamos eu, meu irmão e minha mãe. Eu sempre fui preguiçosa com relação a ir ao cinema, enquanto os dois estavam sempre de olho na programação de um dos três cinemas da Fundação Cultural. Eles decidiam que filme ver e eu ia junto, normalmente com um dos dois. Vi muito filmes-feitos-em países-sem-rede-de-esgoto, como gostávamos de definir, assim como também vi muita coisa boa. Embora não combine nem um pouco com o tipo de filme que víamos, lembro que naquela vez estávamos assistindo Truman Show. E ele estava lá. Ele, o velho chato do cinema. Assim como nós, ele estava sempre de olho na programação. Não sei se era coincidência e ele gostava de ir nos mesmos horários que a gente, ou se o cara simplesmente estava lá sempre. A gente fazia o possível para evitar ficar perto dele, mas o cara também era chegado em sentar no meio. O comportamento dele era sempre o mesmo. Lembro que no Truman Show era aquela parte que Truman está atravessando o mar pra chegar até o “Boni”, todo mundo emocionado diante da TV. Aí o velho chato se vira pra gente e “quanta baboseira, né?” e começa a discursar contra o cinema americano. Na hora era ruim, depois a gente lembrava dele e ria.

Contravenção

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Eu geralmente uso cartão transporte, daqueles que precisa recarregar. Acho mais prático não ter que ficar contando moedinhas, mas como a cada recarga ele desconta um real, procuro só fazer a recarga máxima. A passagem aumentou mais de 15% de um dia pro outro e não sei se a recarga também, e se não tiver aumentado o valor de um real se torna proporcionalmente mais caro. Como fiquei indignada com o aumento, ainda não recarreguei. Ainda estava indignada quando fui para o tubo de sempre. Parei na frente da roleta e saquei minhas moedas. Só tinha três reais. Aí quando fui pegar uma nota pra completar o valor, o cobrador me ofereceu pra passar do lado, ou seja, não registrar na roleta e desembolsar meus três reais. Bateu aquela dúvida rápida, a vontade de não fazer nada errado e ao mesmo tempo a revolta contra o aumento. “Vai que”, pensei comigo, “ele está precisando desse dinheiro, tem que comprar remédio pro filho, um gasto extra”. Passei, aí ele ficou com medo. “´Cê acredita”, me falou olhando de lado, “que propus isso pra uma moça e ela sacou o celular na minha frente e ligou pra empresa?”. “Pffff, quis ficar do lado da empresa, justo a empresa, contra o trabalhador?” Aí ele viu que tinha ali uma companheira, ficamos falando dos abusos que os cobradores e várias categorias profissionais vinham sofrendo nos últimos tempos. Meu ônibus chegou logo e subi.

Outro dia fui no tubo e estava ele de novo. Desta vez o tubo não estava vazio, tinha uma adolescente de olho no celular. “Quer fazer aquilo de novo?”. Putz. Olhei pra moça e disse que era melhor não, fiz de conta que estava com medo de testemunhas e paguei a passagem inteira.

Ou seja, desde então, por causa de um ato de contravenção, um momento de fraqueza pelo aumento da passagem, cada vez que vou no tubo fico torcendo pra não ser esse cobrador, porque ele me acha parça em não pagar passagem.

Cone da vergonha

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Fui passear com a Dúnia e logo que ela virou vi uma clareira nos pelos atrás e um buracão de pele exposto. Já passeei chateada, teria que colocar o cone. Na primeira vez que coloquei, ingenuamente quase joguei fora assim que não precisou mais. Teria sido desperdício de dinheiro, porque ela já usou várias vezes. Na última ficou muito tempo, muito mesmo, porque eu fiquei com dó e tirei antes de ficar totalmente cicatrizado, o que fez ela abrir outra cratera. Eu tinha tanta pena de vê-la com o cone e sentia tanta culpa que passei a tratá-la diferente, dava mais ossinho, qualquer coisa achava que ela estava infeliz. Esperta do jeito que é, ela notou logo e ficou dengosa e chorona. Agora aprendi a lição e faço de conta que é super normal, que não me incomodo dela arrastar aquilo no chão quando tenta pegar o osso, que está ok ela não conseguir entrar na própria casinha se eu não tirar o teto, que eu não me pergunto se aquilo não faz com que ela sinta dor no pescoço. Olho a bicha nos olhos e falo como se nada estivesse acontecendo, aquela cara feliz de orelha pra cima cercada de branco. Mas sabe qual o momento que realmente parte meu coração? Eu tiro o cone na hora do passeio, apenas na hora do passeio, porque ali posso controlar que ela não se machuque. Aí quando voltamos pra casa e eu tiro a corrente, ela estende o pescoço e me ajuda a colocar o cone de volta. Cachorro é puro amor mesmo. Um gato me arranharia inteira e eu entenderia.

Borboleta

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A cada ano que passa, a lua se afasta cerca de quatro centímetros da Terra. Os movimentos da maré tem tornado o movimento de rotação alguns milésimos de segundo mais lento a cada ano, o que num efeito acumulativo fará com que no futuro o dia passe a ter um pouco mais do que 24h. A Via Láctea é muito próxima da galáxia de Andrômeda e a lenta aproximação das duas fará com que a gravidade as atraia, misture e forme outra galáxia. Quando a gente começa a ver documentários científicos, percebe que o rio nunca passa duas vezes no mesmo lugar até mesmo num sentido bem mais amplo e profundo; as medidas do universo são tão vastas que nos fazem pensar que apenas nós mudamos, que o tempo e o espaço que nos cercam continuam sempre o mesmo, o que não é verdade. A gente acha a vida da borboleta, que dura uma semana, um nada, mas nós em relação às estrelas somos ainda mais fugazes. Eu me pergunto se a borboleta no quarto dia sente que as suas asas já não são tão leves quanto no primeiro ou se entre o nascer e o pôr do sol acha que o tempo se arrasta.

Mais uma manhã

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Abro os olhos. O alarme não tocou, o quarto está escuro e tudo está silencioso. Penso durante alguns instantes, tentando localizar em que dia da semana estou. É domingo. Vou até o banheiro fazer xixi e pelo relógio do corredor descubro que não são nem sete horas. Quando não precisa acordar cedo o corpo é um metrônomo. Faço xixi, lavo as mãos e olho para a minha cara amassada à procura de marcas de sol. Estão lá, mas nada muito indecente. Me arrasto até a cama, abraço os dois cachorros de pelúcia e viro de lado. Quando abro os olhos de novo minha mente está vazia. Tento pensar em algo bom e nada me vem à mente, nada que me faça enrolar mais um pouco. Consulto o relógio da cabeceira e são nove horas. Abro as cortinas ajoelhada na cama, sento na beirada e pego a camisola jogada no chão, procuro o chinelo com os pés. Arrasto os chinelos até o banheiro para um segundo xixi e sentada no vaso começo a pensar no meu dia. Nenhuma programação, mesmo? Lavo o rosto e olho de novo pra minha cara, que ficou até com um aspecto saudável com o vermelho na testa e nas maçãs. À caminho da escada passo pelo computador, ligo, desço, desligo o alarme e abro a porta dos fundos, a grande saída de ar da casa. O céu está limpo, vai ser outra alegria de viver ter sol de novo. Vou pegar a toalha e lembro que hoje é dia de colocar pra lavar. Bom, sol e toalhas, já temos parte de uma programação pra hoje. Subo de novo, abro o Chrome, todas as janelas da casa, pego toalhas novas e coloco as usadas no cesto. Ou será que já seria bom colocar de molho? Tenho doze notificações no facebook e duas no twitter, pouco. Me consulto e acho que tenho fome. Pego toalha nova, separo vestido de ficar em casa, roupa íntima, atiro a camisola na cama e vou pro meu banho. Posso procurar um documentário sobre ciência, ainda mais que descobri novas estrelas de programas científicos. Tem o Bernhard. Tem o capítulo um. Affe, nem me lembre do capítulo um. Está apenas ficando menos pior. Mas é o que tem pra hoje, a não ser que. Termino o banho, me enxugo, faço a risca no cabelo, desço com a toalha e olho novamente pro céu. Já está ensolarado. Será que monto um QG pra aproveitar o tempo bom, com rede, livros, caderno de citação, gengibirra com limão e celular? Acho que vai dar. Abro a geladeira e procuro os quatro itens necessários ao café da manhã. Quando estão todos reunidos – café na xícara, duas fatias de pão de fôrma cobertas com requeijão e grossas fatias de queijo – subo de novo e me sento na frente do computador. Veremos o que são essas notificações. Abro o arquivo com o capítulo um com desânimo. Talvez seja melhor voltar pro Bernhard. Ou talvez eu precise nascer de novo. Busco consolo no cheiro de café e na foto da lua que recebi por DM. Bem que eu podia ser capaz de unir lembranças, caminhadas, conversas, risos, reflexões, leituras, desejos e intuições numa história coerente e interessante. Mordo uma fatia de pão.

Palhaçona

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Eu não sei quando eu deixei de acreditar que qualquer um que se tornasse meu amigo de facebook descobriria que eu sou uma pessoa muito legal. Não, não foi por causa do crush que nunca passou disso, eu já sei que ele gosta de mulher musculosa. Talvez tenha sido o amigo do amigo que jamais curtiu nada; eu já tinha “roubado” muitos amigos desse amigo, mas esse realmente parece nunca ter lido nada, adicionou por pura educação. Esses dias me vi querendo ser amiga de um aí cujas publicações eu leio faz um tempo e me vi incapaz de adicionar. Porque é uma pessoa séria. Aí descubro uma coisa curiosa a meu respeito: não suporto falar sério, quase nunca na vida e nunca pela internet. O problema não é nem discordarem de mim, não gosto até quando concordo. Não gosto de achismo, tanto meu quanto dos outros; quando perguntam muito minha opinião, minha voz me cansa, acho que estou demais, quem se importa? Então o que busco no facebook são motivos para rir e para fazer os meus amigos rirem. E cada vez que eles me mandam coisas engraçadas, fico lisonjeada de ser assim que eles lembram de mim. A coisa estranha é perceber que embora não faça nada para ser séria, tenho a mágoa de não ser levada à sério. Do bestão que arrota compra de livros ou tira foto na frente de estantes ter mais respeito do que eu, que leio e não me preocupo em acumular livros e nem de listar tudo o que passou pelas mãos. Que não percebam que não opinar sobre tudo é uma forma de respeito à realidade. Sempre procurei seguir a máxima que com a modéstia sempre se ganha: se você se diz grande coisa e não é, quem é o tal percebe e você fica ridículo; se você não se diz grande coisa e é, as pessoas vão acabar percebendo e você vai ficar parecendo ainda maior. Pois bem, amiguinhos, não tem funcionado. Tenho olhado o Círculos de Intelectuais debatendo com muita seriedade, elegância, garbo e blefe enquanto olho por debaixo da minha roupa de palhaço.

Curtas de pequenas gostosuras

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Eu gosto de tomar café com pão de queijo sempre no mesmo posto de gasolina. Eu comprava o tal do pão de queijo de provolone apenas porque ele tem um formato comprido – acho mais original e anatômico. Aí cheguei lá e tinham acabado de fazer. E né que tem provolone mesmo?

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Quando a Dúnia vai trocando de pelo (ou, dito de outra forma, fica muito tempo sem banho), ela começa a perder tufos de pelo. Você olha no pelo preto dela e tem uns marrons, são os pelos mais soltos. Você puxa e sai um algodãozinho, é uma delícia. Quando ela para pra cheirar, chego do lado dela e puxo. Ela não gosta. Mas tolera. Aí fico perseguindo meu próprio cachorro pra puxar o pelo dele.

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Descobrir um autor novo para amar é… nossa.

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Redescobri o broto de alfafa. Melhor broto, melhor salada.

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Comecei a fazer aula num cantinho por vários motivos: tinha buracos no chão da sala (aluno pesado e cheio de entusiasmo na hora de sapatear) e o espelho costuma ser muito disputado, o que me fazia ficar cada dia num lugar. Até que enfezei e passei a fazer aula de frente pra porta, porque ninguém queria ficar lá e era mais perto pra abrir e me refrescar (a sala é num antigo estúdio de gravação, um forno). Aí descobri que é muito legal fazer aula sem espelho, a gente se solta mais. Apelidei o meu lugar de “O cantinho da auto-estima” e juro que melhorei muito depois que comecei a dançar lá. Pelo menos é como eu me sinto.