Lições de um blog pessoal

Conheci duas pessoas que já tiveram padaria, e as duas diziam que todo mundo, uma vez na vida, deveria trabalhar em uma. Dizem que o que a pessoa aprende em termo de relacionamento e humildade é sem igual. Então me arriscarei também em dizer que todo mundo que quer seguir uma carreira literária deveria ter um blog.
Passou a ser muito diferente pra mim o dia que decidi que conseguiria postar dia sim, dia não. Até então, como a maioria dos blogs, eu postava quando estava inspirada ou achava que tinha algo interessante a dizer. Desde que me propus esse desafio, tenho conseguido manter. Às vezes de maneira bastante indigna, como na última vez que enganei colocando uma tirinha. Noutras, me surpreendi de ter conseguido colocar vários textos inspirados por dias seguidos, mesmo nas condições mais adversas. Quem vê o número de linhas ou os temas não consegue distinguir quais textos foram cuidadosamente mastigados e debatidos daqueles que foram escritos às pressas, praticamente no momento da publicação. Essa disciplina de escrever sempre ensina muito: ela nos força a estar sempre em contato com a escrita, a nunca se desligar da nossa criatividade, a sair da zona de conforto e escrever sobre coisas e com estilos que normalmente não exploraríamos. 
A questão do público é outra coisa muito importante. Embora o blog não tenha mais comentários, existe muitas maneiras de perceber o alcance dos posts: pelo número de acessos, de RTs, de referências, de e-mails. Escrever mais me fez ter menos controle sobre os meus conteúdos, porque muitas vezes sai o que dá e não o que eu acho bom. E a reação das pessoas me surpreende – posts que eu achava geniais tiveram pouca repercussão, posts que eu considerava simples foram populares. De um lado há o inesperado, o fora de controle, os detalhes que não parecem nada na hora que escrevemos e que nos surpreendem ao tocar as pessoas. Mas existe também uma regra, algo que mudou para sempre minha maneira de escrever: as pessoas gostam de sinceridade. Para flanar sobre um assunto com superioridade, dizer o que todo mundo diz ou repetir o senso comum, não é preciso abrir um link. Quem lê quer algo diferente.
Agora me desculpem a dureza da próxima afirmação, que só posso fazer porque ela me inclui. Este bloguinho nunca teve milhões de acessos, nunca foi citado em listas, nunca me trouxe mais do que satisfação pessoal, então, falarei mal de mim também. Meus anos de blog e de escrita têm me mostrado que a queixa de autores anônimos costuma ser injusta. Vejo um autor se queixando de que ninguém o publica, ninguém lhe dá bola e quando vou ler algo dele, acho que entendo o motivo. Existem desde os que não escrevem bem aos que até escrevem, mas… como direi? Não marcam. Eu aprendi a confiar no público. As pessoas recomendam, têm vontade de ler mais e de voltar naqueles que escrevem algo diferente e/ou bom. Se não conseguimos encantar em algumas linhas, em muitas páginas fica mais difícil ainda… Melhor do que se ver como um gênio incompreendido, é melhor perceber que algo precisa mudar.

O barato que saiu caro

Controle da mente, pra mim, é o poder de não se deixar levar pelos pensamentos inúteis que nos atormentam. Não me importo que a minha mente voe por aí na velocidade da luz, desde que ela não o faça de maneira masoquista. Percebo que a minha tem um tema recorrente – quando estou começando a ficar aborrecida, seja por um motivo verdadeiro ou uma queda hormonal, ela volta ao mesmo tema, o tema sem solução que me aborrece a meses: o meu sapato de flamenco. Venho tentando ser fina e guardar esse aborrecimento para mim, mas não consigo mais. Encomendei esse sapato em dezembro do ano passado, porque uma amiga virtual gentilmente se ofereceu para buscá-lo em Barcelona. Pois bem, ela e o sapato estão juntos, em Recife, desde fevereiro. Depois disso, muitas coisas aconteceram na vida dela (na minha, na sua, na da Dona Teresinha…), com direito à gravidez de risco. E o meu sapato foi ficando. Ela já me explicou e eu já fui compreensiva, só que façam os cálculos de há quanto tempo foi isso. Já pedi, já relembrei, já fui sutil, já fui nada sutil… Não há impedimentos que expliquem que durante quase um ano ela ou qualquer pessoa não possa, somente, postar um sapato no correio. As despesas seriam por minha conta, era só ter o trabalho de embalar e mandar. Mas não, tem sido im.pos.sí.vel. Oras digo pra mim mesma encarar os fatos e dar esse sapato de quatrocentos reais (o melhor sapato de flamenco do mundo, investimento pra uma vida, presente de natal de 2012) como perdido, oras digo pra mim mesma que devo ter fé, que algumas pessoas são assim mesmo. Semana passada, depois de mais uma cobrança, pela milionésima vez ela disse que ia me mandar o sapato sem falta. Segunda, por SEDEX, “com cartinha de pedido de desculpas e lembrancinha”. Nem preciso dizer que não recebi nada.

 

Se pudesse voltar atrás, não teria feito nada disso. Teria pagado o correio, a taxa da receita federal, quem sabe comprado outro sapato numa loja. Achava essa operação toda muito cara, hoje não mais. Caro é perder um monte de apresentações, ter que contar com a falta de compromisso dos outros, se aborrecer mil vezes ao longo do ano e se sentir uma idiota. Eu nem ao menos posso comprar outro sapato, porque, afinal, já gastei uma fortuna naquele que nunca vi. Não me importo com lembrancinha, cartinha, porra nenhuma. Eu só queria o meu sapato.

Corredor 10, porta 14

Essa eu achei no Facebook, faz tempo. E achei meio irritante ver que havia discussões nos comentários, das pessoas quererem ter a melhor explicação sobre o que é o Corredor 10 é. Não é nada, é tudo, vai de acordo com a subjetividade de cada um. Não acredito que haja uma resposta fechada. É como escrever prosa para explicar poesia – você está matando alguma coisa quando faz isso.

Sanduíche de atum

Meu irmão foi se aventurar na Chapada Diamantina com um amigo. Eles iriam andar por tudo, acampar, dormir em meio à natureza, mochila nas costas. O amigo lhe mostrou o que levar e antes de saírem encheu as mochilas de sanduíches de atum.
– Ah, eu não gosto de sanduíches de atum – chiou o meu irmão.
– Você ainda não gosta de sanduíche de atum – respondeu o amigo.
Não levou muitas horas de passeio para que o sanduíche de atum se tornasse a comida mais gostosa do mundo.
E eu não levei nem metade da minha vida pra descobrir que a vida, amigo, é cheia de sanduíches de atum.

Contrariando todas as tendências

Basta falar em grupo comigo – de estudos, blogueiros, artistas, o que for – que minha primeira, segunda e vigésima quinta tendência é procurar a saída mais próxima. Dificilmente falar em grupo ao meu lado conseguirá minha adesão imediata, ainda mais depois que aprendi a difícil arte de falar a verdade sem ofender (muito). Caso consigam, num caso de problema de audição, confusão verbal e insanidade temporária, minha outra providência era de arranjar uma boa desculpa posterior. No último caso, eu poderia simplesmente não aparecer. Isso sem falar que qualquer coisa que implique em contar com a colaboração de outras pessoas já gera em mim o sentimento de Ih, não vai dar certo. Ou quando alguém se mostra entusiasmado com seus muitos amigos, logo penso – Pobre iludido!

 

Muito disso é de família. Minha mãe é tão fechada e detesta contato humano num grau, que vocês se surpreenderiam de eu ser capaz de dizer Bom dia. Aprendi a amar – ou me conformar – com a minha timidez e não gostar de grupos faz parte do pacote. Há nisso uma carga de orgulho, de desdém. À primeira vista as pessoas não me pareciam cheias de qualidades o suficiente para me fazerem perder meu precioso tempo. Só que esse mesmo item, o tempo, me convenceu de que eu preciso mudar. Esse seria o meu segundo conselho aos jovens, nessa caminhada de erros que tenho feito. É muito difícil sair do lugar sozinho. Talvez seja possível, se a pessoa tem uma visão de mercado, seja muito empreendedora, muito inteligente, extremamente segura… um conjunto fabuloso de qualidades cuja dosagem eu não sei direito. Só sei que, seja lá como for, eu não tenho. Me recusar ao contato humano me garantiu muitas horas de leitura trancada em casa – e nenhum convite para as infinitas oportunidades de trabalho, crescimento e desafios que a vida oferece.

 

Reuniãozinha, conhecer pessoas? Respiro fundo, contenho o instinto de procurar nas pessoas provas incontestes da nossa incompatibilidade, reservo um lugar na minha agenda e me programo para estar no melhor humor que eu puder. Não tem sido tão ruim quanto eu pensei. Quem sabe um dia eu me acostume, quem sabe um dia eu até goste.

Dúvida dancística muito séria

Acho que são experiências universais: se estranhar das fotos, não gostar; se detestar em vídeos. Elevando esse princípio à enésima potência, está a experiência de se ver dançando em vídeo. Horror dos horrores. Muitas vezes me pediram pra colocar minha imagem dançando, e sempre expliquei que as escolas evitam colocar suas coreografias, então não havia nada de mim flamenqueando no youtube. Pois bem. Dia desses surgiu, bem no meu facebook, um vídeo onde danço e não consegui nem me ver, quanto mais divulgar. Morro e não mostro, não adianta.

 

Eu me pergunto se esse pessoal muito foda, poderosos e profissionais, tem semelhante bloqueio. Acho que eles devem se gostar pelo menos um pouquinho. Manuel Liñan, um dos preferidos da minha profe, é um dos meus preferidos também.Olha que coisa mais linda:
Não dá a impressão de que a gente descobre toda graça, força e doçura dentro desse homem, só de vê-lo dançar?

Medo de pegar taxi

Não sei nem se deveria contar isso aqui, vai que causo esse mal a mais alguém. É um medo criado pela minha mãe, e a gente sabe que medos que nossas mães colocam na nossa cabeça duram a vida inteira, não tem terapia que resolva. O medo de dar cambalhotas, por exemplo. Minha mãe me convenceu a não dar cambalhotas porque ela disse que eu poderia quebrar o pescoço. Oras, por causa do medo de pular em ponta na piscina, criado pela leitura do livro Feliz Ano Velho, eu já sabia que quebrar o pescoço poderia me deixar paralítica. Então, virar cambalhotas me deixaria paralítica. Só fui enfrentar esse medo há poucos anos, por causa de uma apresentação e, olha, foi duro. A cabeça entende mas o medo persiste. O que dirá, então, de quando o medo ainda por cima é bem fundamentado? É o caso do medo de andar de táxi.
Olha o argumento: se você está de ônibus, está acompanhada de um monte de gente. Eles te protegem só por estarem lá, são suas testemunhas. Se você pega táxi, está trancada num carro a sós com um homem. Ele pode pegar o carro e te levar para onde quiser, e depois vai ser apenas a sua palavra contra a dele. Conclusão: é muito mais seguro andar de ônibus do que de táxi. Enquanto as outras pessoas conseguem andar de taxi numa boa, acham que é sinal de status e um privilégio, eu evito ao máximo pegar taxi, tenho um verdadeiro bloqueio. Quantas vezes, tarde da noite, com o dinheiro separado pro taxi, eu preferi voltar para casa de ônibus, unicamente por causa do medo. Pior é que uma coisa puxa a outra e já li e ouvi várias histórias sobre taxistas tarados, o que me deixa com mais medo ainda.
E quando é inevitável? Tem vezes que não dá mesmo, porque perto da minha casa é perigoso. O mais comum é que eu pegue dois ônibus e só subir no táxi quando não tem mais jeito. Aí, entra em cena outro processo: eu acho que grande parte da violência é também por causa da despersonalização das relações. É mais fácil cometer uma violência contra um estereótipo, alguém que não te toque pessoalmente. Então, pra não ser uma vítima impessoal de um taxista, eu me obrigo a ser super simpática. Passo a viagem inteira falando. Ou fazendo ele falar. O que faz com que a viagem de táxi seja ainda menos interessante, porque não me permito simplesmente relaxar e olhar pela janela.

O desafio entre turmas

Acho que eu estava na 6º série. Os professores resolveram que seria interessante fazer um desafio de perguntas e respostas com a outra turma. Pra isso, três alunos da nossa turma enfrentariam, no teatro, uma sabatina, com três alunos da outra turma. Não tinha prêmio nem nada, era só pelo desafio. Assim que a professora pediu nomes, a sala começou a se agitar, e todos quiseram ser representados – claro – pelos seus melhores alunos. Eu era um deles. Havia uma outra menina, que era ainda mais CDF do que eu, e quando todos disseram para ela ir, ela se recusou. Não seria capaz, não queria aquela responsabilidade, sei lá. Fomos eu e mais dois meninos.
Tenho lembranças de estar no palco, com as duas turmas nos olhando, de ser muito equilibrado. As perguntas eram sobre as nossas matérias. O que um não sabia, o outro acabava lembrando e ajudava a responder. Lembro até que a pergunta que nos fez perder era sobre o esqueleto humano, uma matéria que nós ainda não havíamos tido e depois a sabatina terminou lá na diretoria, porque a nossa professora assumiu a sua culpa pelo resultado. Mas isso seria dias depois, então na hora nós perdemos por um ponto de diferença. Ou seja, foi equilibrado. Desci do palco satisfeita com o que havíamos feito. Quando fui falar com a fulana, a outra CDF, fiquei surpresa de quase apanhar. Ela estava louca da vida. Da platéia, a cada pergunta ela respondia imediatamente. Ela, sozinha, sabia tudo, ao contrário de nós que ficávamos nos consultando. Ela teria feito a nossa turma vencer, ela sim, que absurdo nós. Por sorte, um dos meninos teve muito mais presença de espírito do que eu e lhe disse: 
-Você teve a sua chance e não quis ir. Agora não adianta nada ficar reclamando da gente. Tivesse tido coragem e dado a cara pra bater, igual nós.
Ela ficou quieta e foi embora, acredito que agora furiosa consigo mesma. Naquele dia, eu descobri que é fácil e o quanto os outros estão predispostos a criticar quem se arrisca, se expõe. E ela, a amarga lição de que não fazer, deixar nas mãos dos outros, costuma ser muito pior do que se arriscar.

Aceite conselhos

Faça o que quiser sobre o uso de filtro solar, mas não deixe de ouvir conselhos. A primeira vez que eu percebi que tem quem tenha problemas em ouvir o que os outros falam foi na minha fase de escultora, no atelier. Era um atelier aberto, meio escola, meio livre. O coordenador do atelier, digamos assim, era um escultor muito experiente. Ele estava lá para nos atender, lidar com as nossas dúvidas, mas também podia ser completamente ignorado por quem quisesse apenas utilizar o espaço. Foi lá que eu vi, muitas e muitas vezes, pessoas que haviam chegado ontem, com pouca ou quase nenhuma experiência em esculpir, decidirem ignorar conselhos. Essas pessoas ignoravam desde dicas simples de como fazer a experiências de vida e coisas que os anos de profissão haviam ensinado. Aquilo me deixou meio chocada, especialmente porque quando as coisas davam errado, ainda havia a possibilidade da desculpa – errei porque ninguém me ensinou! Eu via que para elas era muito difícil aprender, que ouvir os outros as feria em seu orgulho, como se ouvir conselhos fosse o mesmo que abdicar de sua individualidade. Nem preciso dizer que se faziam isso com o super escultor, o que dirá ouvir conselhos de pessoas mais novas com experiência, como era o meu caso.

 

Tenho muitos defeitos e sou perigosamente teimosa e orgulhosa, uma bela combinação para se ferrar na vida com escolhas erradas. Se economizei alguns ossos quebrados foi porque, pelo menos, sei ouvir conselhos. Ouvir conselhos não é abdicar da sua individualidade e nem chega a ser fazer tudo o que os outros nos disseram pra fazer. Ouvir conselhos é levar em conta, com tanta atenção e cuidado como aquilo que nós mesmos já havíamos pensado ou percebido. Há ocasiões na vida que percebemos muito pouco ou percebemos mal, o que não tem a ver com caráter ou inteligência. A inexperiência costuma ser péssima conselheira. Sobre assuntos do coração, amores e afins, deveria haver até permissão de bloquear juridicamente, de tanta cegueira e más decisões que se toma. Outra coisa importante é saber que ouvir não é o mesmo fazer de guru, não é acatar tudo, não é pra todos os setores. Eu ouvia muito o que o escultor experiente me dizia sobre escultura, mas só sobre escultura. Talvez a parte difícil dos conselhos seja essa: arranjar alguém confiável e saber no que a pessoa é confiável. Nem todos os conselhos são isentos, nem todos os conselhos merecem ser ouvidos. Mas uma vez que surge uma pérola dessas – um bom conselho, totalmente oportuno e vindo de alguém com know-how– não perca. Com ou sem filtro solar.

É mais fácil

Cirurgiões plásticos seguem certas regras de beleza. No nariz, eu sei que a medida ideal coloca o canto das narinas na mesma linha do canto dos olhos. Os peitos ideais, manda o silicone, são aqueles redondos, que na natureza só são alcançados quando recebem uma certa pressão. Existe também uma proporção entre cintura e quadril que torna o corpo um violão, e todo mundo sabe que os homens gostam de corpo violão. Ou não? Ah, gostam sim. Eles às vezes podem relevar nosso nariz batatinha, os peitos pequenos e/ou caídos, a cintura grossa, mas que os homens gostam de um belo corpo jovem, cheiroso, redondo nos lugares certos… Uma mulher assim sempre os fará virar a cabeça, uma mulher assim sempre estará no topo da descrição da mulher de corpo ideal. Eles relevam quando a mulher vale a pena. Quando ela tem um tchans, um brilho no olhar, uma risada gostosa, uma personalidade, um conjunto que vale a pena. Eles relevam essas coisas físicas quando a mulher tem um conjunto tão atraente – personalidade, jeito, brilho, charme, são muitos os nomes – que aquilo que em qualquer outra mulher pareceria um defeito, nelas é charme. Nelas uma característica fora dos padrões só contribui para deixá-las ainda mais apaixonantes, vira um atributo que confirma o quanto ela é única.

 

Se eu pudesse escolher, era essa a plástica que eu faria, a de personalidade. O problema é que prótese e cirurgião plástico a gente escolhe – basta pesquisar, pagar bem, fazer em suaves prestações. Ter o peito dos sonhos é relativamente fácil. Já ter uma personalidade vibrante, ah! tem que nascer. Na falta de um mercado de venda de personalidades, é mais fácil investir no corpo. A gente investe em plástica, apesar de saber que personalidade é muito melhor, por não confiar no próprio taco. Eu posso, na hora de me vestir, colocar a roupa mais cara, mais estilosa, mais tribal, mais colorida; posso, quando ao lado de um homem, fazer uma lista completa dos livros que li, rir das piadas dele, fazer gestos teatrais e grandiloquentes. Pelo menos em teoria, posso tanto virar arroz de festa, a pessoa mais animada, a companhia ideal para todos os programas; ou posso partir para o oposto e adquirir ares de mulher misteriosa, inacessível, desejada. Eu conheço muitas mulheres de sonhos, de Marilyns a Audreys, e poderia tentar ser como qualquer uma delas. Mas tentar ser, ter o projeto de ser, não é ser. Eu poderia tentar de tudo e, sem saber, esbarrar no mesmo lugar comum de sempre, das pessoas que tentam parecer o que não são. Existem aquelas que nada fazem pra isso, mas são naturalmente charmosas, agradáveis, mordíveis. Elas não precisam do corpo da moda, elas estão acima da moda. Homens, mulheres, aliens não deixarão de notá-las, nunca. Mas como ser? É mais fácil procurar um bom cirurgião, é mais fácil fazer lipo.

A Morte, essa do contra

Não adianta, depois que li os Contos de morte morrida, a Morte pra mim virou gente, merecedora de letra maiúscula, nome próprio. Essa historinha real que eu ouvi de uma amiga só faz confirmar a ideia. A morte é voluntariosa, cheia de opiniões e até move a cabeça pros lados, fazendo Tsc, tsc, tsc! quando algo a desagrada.

 

Essa amiga foi num campeonato de natação. Esses campeonatos, de categoria Master, são a coisa mais linda. Tem gente jovem, bonita, alta e com tudo durinho, assim como tem gente com barriga, gordurinha, desengonçada, gente como eu e você. E tem gente de todas as idades. Você vai lá e descobre que tem atleta de natação com mais de oitenta anos de idade. Dos que nadam aos oitenta tem aqueles que nadaram a vida inteira, assim como tem os que descobriram o esporte aos setenta e nove. Voltando: minha amiga, que já é master, foi num campeonato e encontrou uma outra nadadora master. Não sei dizer quantos anos a outra tinha, sei que ela já estava se considerando velha. “O que eu quero é morrer”, a mulher falava. Desfiou aquele rosário de reclamações: a vida pra ela não tinha o menor sentido, o que ela queria era deitar de não levantar, ela não tinha mais o que fazer na Terra, porque a  morte não vinha buscá-la de uma vez.

 

– A Morte não vem te buscar porque você reclama. A Morte é assim, quanto mais a pessoa chama, quanto mais a pessoa deseja, aí que ela não chega. A Morte só leva quem não quer morrer.

No campeonato seguinte, e depois nos seguintes, a mulher não estava reclamando mais.

Assim assim

Faz-se uma feira ou evento. Desses que recebem uma centena de pessoas por dia, que duram semanas. Essas pessoas gastam com entrada, com o que elas consomem e quem sabe até com estacionamento. Aí um dos organizadores decide dar um toque cultural e convida pessoas para dançar. Como palco, um canto sem stand, um tablado igual aqueles de escola, um chão mais elevado, o que tiver lá. Pro som, uma tomada. As escolas são contactadas para a grande oportunidade: venha dançar aqui, de graça, manhã-tarde-noite, de preferência todos os dias que durar a feira. Como retribuição, nós os autorizamos a colocar um banner e dizer o nome da escola. Oportunidade bem assim assim.
Não tem camarim, espelho, ensaio no palco. Muitas vezes, nem gente pra anunciar no microfone e avisar que vai começar. Se não tem nem pãozinho, que dirá um cachê. Sem tanta coisa, a escola precisa contar com o que tem. Pra dançar, vai quem se dispõe, os malucos que topam qualquer coisa. Experiência de palco, qualquer palco, é importante pra quem dança, mas nesse caso não dá pra cobrar ensaios. Muita gente se recusa porque não topa desse jeito, sem se preparar como deve. Pela carência de ensaio, não dá pra fazer nenhuma inovação, marcações difíceis no palco. A escolha da coreografia é feita com base em quem se dispõe, o que está fresco na memória e que não exige muito. Como figurino, o que a pessoa tem em casa. Com relação a tudo o que a escola e os bailarinos poderiam oferecer, a apresentação também fica assim assim.

Inverno russo, Sherazade e Alquimista

Há uma piadinha que eu não sei contar direito e que só tem graça pra quem conhece história.  Não sei que país pediu a Rússia conselhos sobre como lidar com os inimigos. O exercito inimigo vai avançando, avançando, e o único conselho que chega dos russos é esperar. A situação já está calamitosa, ninguém entende porquê esperar tanto, aí vem a explicação: espere o inverno chegar. Inverno, pra quê esperar o inverno? Ora, ele vai dar cabo sozinho de todos os inimigos. A graça da piada é que nem todo país tem um inverno daqueles, que pode dizima exércitos inteiros e decide a guerra sem que os russos precisem sair de casa. Hitler e Napoleão que o digam.

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Nessas histórias que só fazem sentido depois de muito tempo, como insights, penso também na Sherazade. Ela contou histórias durante mil e uma noite, todos sabemos. Só que pense por dentro da história: enquanto ela fazia isso, noite por noite, ela não sabia o que aconteceria. Ela não sabia se conseguiria amolecer o coração do rei, se o seu plano daria certo. Cada vez que entrava nos aposentos dele, poderia ser a última. E se o rei nunca mudasse de ideia, e se uma história ficasse entediante e ele não ficasse curioso para conhecer seu fim? A situação dela era muito frágil, Sherazade estava sempre no limite. Uma mulher que se salvava aos pouquinhos, todos os dias, sem saber como seria o dia de amanhã. Não sei quanto a vocês, mas me soa desesperador.

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Ainda na linha das histórias dos livros: tem o sonho que o Santiago, personagem do Alquimista de Paulo Coelho. Ele sonha com um tesouro nas pirâmides, uma cartomante lhe diz que ele precisa ir pras pirâmides e vai. Ele vai. Acontece um monte de coisas e ele continua indo. Nem vou entrar no mérito do quão difícil e duvidoso seria modificar toda a sua vida por causa de um sonho e uma cartomante, o que me impressiona é a quantidade pequena de sinais que ele precisa. Penso na quantidade de amigos que me estimularam e me estimulam de tempos em tempos e eu vivo fazendo o maior muxoxo. Como um atleta que tem o treinador gritando “Vai, vai, vai!” o jogo inteiro. Gente comum  – em contraste com gente literária – precisa de lembretes constantes, de milhões de sonhos, cartomantes, sinais, afagos. E mesmo assim… sei lá.