Eu acredito na inteligência do público, mesmo que não seja um público erudito no que está assistindo. Um público erudito vai saber explicar o que aconteceu, o porquê da qualidade do espetáculo, identificará os virtuosismos – o que não significa que o público ignorante (no sentido de ignorar) possa ser iludido por qualquer coisa que lhe é apresentada. Às vezes um público leigo conseguirá aproveitar mais, justamente por não ter com o que comparar. Aquela experiência pode ser a primeira, com o estranhamento e o deslumbre que só uma primeira vez é capaz de fazer. O público leigo saberá se o espetáculo foi bom pela emoção, pelo arrebatamento, pelo tédio ou entusiasmo que sentiu durante o tempo que esteve lá. Isso é mais do que uma crença, faz parte de algo que vivi.
Nós dançávamos uma coreografia muito vibrante, uma Farruca. A Farruca é tradicionalmente dançada por homens e tem certos movimentos característicos. Mesmo quando mulheres dançam Farruca existe o respeito por essa história, e geralmente se dança de calça e/ ou cores sóbrias. Os movimentos são mais contidos, não tem aquelas lindas mãos e quadris tão característicos do flamenco. Essa Farruca, em especial, tinha um momento no meio da coreografia que parávamos e a música interrompia, o que era muito vibrante e o público tinha a impressão de que tinha terminado. Vinham as palmas e a música recomeçava suavemente, pra depois crescer e terminar de verdade – momento em que o público batia ainda mais palmas.
Idealmente os espetáculos de flamenco devem ter música ao vivo, e esse foi um deles. Se de um lado é lindo, de outro dá margem a surpresas. Não sei e nem vou tentar explicar o que aconteceu, o fato é que naquela Farruca os músicos erraram feio, duas vezes. Na primeira comeram dois compassos, e na segunda vez acrescentaram um compasso inteiro. Pra quem está num palco é muito tempo errado. Estávamos em mais de dez pessoas dançando. No primeiro erro, as pessoas foram fazendo os movimentos de dois em dois; no segundo, ele aconteceu perto de um pedaço de improviso, então ficou parecendo que improvisamos mais. Ou seja, pra quem estava de fora, mesmo aqueles no público que já tinham visto a coreografia, não foi nada demais. Quem notou só achou que tinha algo estranho, sem saber o que foi. Pros bailarinos foi um desastre, queríamos que abrisse um buraco no chão ali mesmo. O tesão da maioria acabou ali, no primeiro pedaço. Na segunda vez eu pensei: “Não acredito que vocês vão fazer isso com a gente de novo”. Dançamos tudo direitinho, mas aquela Farruca – mais do que isso, aquele espetáculo – já estava estragado.
O público não notou nada conscientemente, mas na hora dos aplausos eles vieram chochos. A gente já tinha dançado antes e sabia que reação a Farruca causava, e naquele dia não foi nem metade. Não foi protesto nem nada, foi apenas o que eles acharam que merecíamos. O público notou sem ter notado, ele não se sentiu envolvido.