É a vida

Eu nem deveria estar postando isso. Quem teve orkut lembra do scrap da Samara – “Oi meu nome é Samara, tenho 14 anos (Teria se estivesse viva), morri aos 13 em Cascavel-PR…” O que vou postar aqui é semelhante, porque se tornará uma maldição a quem chegar até o fim do texto. Na hora não parecerá nada, mas quando você se der conta estará recitando a frase. Foi assim: uma colega de faculdade tinha um pai que ficava falando isso. Eu ouvi e achei a frase muito engraçada, porque é muito trágico e rima. Contei pra minha família, todos rimos, contei para o Luiz… O problema é que aquilo gruda, aí quando a gente pensa ” é a vida…” imediatamente surge essa continuação. Eu não queria pensar isso sobre a vida, é negativo, vai que atrai, essas coisas. Tentamos em vão formar outras rimas, coisas mais alegres, pra cima, quem sabe – é a vida, bela e divertida”,  “é a vida, feliz e sortida” mas nada soou tão chiclete, tão verdadeiro. No fim, vai ver que a vida é mesmo… 
Ainda quer ler o que o pai da minha amiga falava sobre a vida? Então lá vai:

 É a vida, dura e sofrida.

A porta de saída

Já citei muitas vezes aqui: “o destino conduz a quem consente. A quem não consente, ele arrasta” (ditado grego). Eu vejo que muitas vezes a gente faz umas coisas por pura programação. Um dia pesamos os prós e os contras e naquele momento ir pra tal lugar, aceitar tal oferta, tomar tal rumo era a decisão correta. Depois disso as coisas mudam, com os anos as coisas sempre mudam. Você decidiu entrar num lugar porque era mais barato, e quando reajustam nem é mais tão barato. Ou vai porque era perto de casa, mas você se muda e já não fica mais perto, esse tipo de coisa. A coisa continua meio na inércia; a causa inicial não está mais ali e isso não importa, a decisão já foi tomada. Teoricamente a gente deveria rever as nossas decisões sempre, a cada período, mas e daí? Também li num lugar que as lixeiras da casa devem ser lavadas uma vez por semana e só gente muito louca deve se dar ao trabalho. Não adianta pensar assim, não acontece. Só que não apenas a decisão vai perdendo a validade, a situação toda pode perder a validade. Quando o ambiente está desfavorável, eu vejo que os muito corretos, programados, disciplinados são os piores tipos. Porque pouco importa o descontentamento das pessoas, a dificuldade de trabalhar, o emperramento gradual – se eu me programei pra fazer, eu faço. Eu não mudo, eu não digo que não quero mais. Minha teimosia obriga o mundo a decidir por mim. Alguém de fora me faz uma sacanagem muito grande, um gesto que claramente significa – “Ei, vai embora! Não te queremos mais aqui!” A expulsão adquire um rosto e um motivo, que na verdade é o acúmulo de muitas coisas. Não sei se coisas da qual poderia ter tomado conhecimento ou se não, não tinha como ser diferente… Quando não tem mais jeito e repenso, me dou conta que era hora de ir mesmo, que os motivos que me levaram pra lá já tinham perdido a sua razão de ser. O que vem depois é sempre bom, eu chego num lugar novo com outra bagagem. A tal pessoa me expulsou de uma situação estava me fazendo mal, que não funcionava mais.
O problema, o insuperável problema, é: por mais que a tal pessoa tenha sido estopim de uma mudança que se mostrou positiva, não tem como não ficar com raiva. Eu dei o meu melhor e ela me sacaneou. Foi ela, foi ela.

Público

Eu acredito na inteligência do público, mesmo que não seja um público erudito no que está assistindo. Um público erudito vai saber explicar o que aconteceu, o porquê da qualidade do espetáculo, identificará os virtuosismos – o que não significa que o público ignorante (no sentido de ignorar) possa ser iludido por qualquer coisa que lhe é apresentada. Às vezes um público leigo conseguirá aproveitar mais, justamente por não ter com o que comparar. Aquela experiência pode ser a primeira, com o estranhamento e o deslumbre que só uma primeira vez é capaz de fazer. O público leigo saberá se o espetáculo foi bom pela emoção, pelo arrebatamento, pelo tédio ou entusiasmo que sentiu durante o tempo que esteve lá. Isso é mais do que uma crença, faz parte de algo que vivi.
Nós dançávamos uma coreografia muito vibrante, uma Farruca. A Farruca é tradicionalmente dançada por homens e tem certos movimentos característicos. Mesmo quando mulheres dançam Farruca existe o respeito por essa história, e geralmente se dança de calça e/ ou cores sóbrias. Os movimentos são mais contidos, não tem aquelas lindas mãos e quadris tão característicos do flamenco. Essa Farruca, em especial, tinha um momento no meio da coreografia que parávamos e a música interrompia, o que era muito vibrante e o público tinha a impressão de que tinha terminado. Vinham as palmas e a música recomeçava suavemente, pra depois crescer e terminar de verdade – momento em que o público batia ainda mais palmas.
Idealmente os espetáculos de flamenco devem ter música ao vivo, e esse foi um deles. Se de um lado é lindo, de outro dá margem a surpresas. Não sei e nem vou tentar explicar o que aconteceu, o fato é que naquela Farruca os músicos erraram feio, duas vezes. Na primeira comeram dois compassos, e na segunda vez acrescentaram um compasso inteiro. Pra quem está num palco é muito tempo errado. Estávamos em mais de dez pessoas dançando. No primeiro erro, as pessoas foram fazendo os movimentos de dois em dois; no segundo, ele aconteceu perto de um pedaço de improviso, então ficou parecendo que improvisamos mais. Ou seja, pra quem estava de fora, mesmo aqueles no público que já tinham visto a coreografia, não foi nada demais. Quem notou só achou que tinha algo estranho, sem saber o que foi. Pros bailarinos foi um desastre, queríamos que abrisse um buraco no chão ali mesmo. O tesão da maioria acabou ali, no primeiro pedaço. Na segunda vez eu pensei: “Não acredito que vocês vão fazer isso com a gente de novo”. Dançamos tudo direitinho, mas aquela Farruca – mais do que isso, aquele espetáculo – já estava estragado.
O público não notou nada conscientemente, mas na hora dos aplausos eles vieram chochos. A gente já tinha dançado antes e sabia que reação a Farruca causava, e naquele dia não foi nem metade. Não foi protesto nem nada, foi apenas o que eles acharam que merecíamos. O público notou sem ter notado, ele não se sentiu envolvido.

Escrita

Não vejo essa coisa de escrever como opção, não pra mim. É a mesma coisa que dizer que alguém escolhe ser gay. Escrever me acompanha a vida inteira. Na escola eram as redações e as histórias mirabolantes; mais tarde foram as cartas, os diários, os e-mails, orkut, blog, twitter, facebook… Pra mim não existe a grande e a pequena escrita, eu escrevo. Escrevo recados engraçadinhos, escrevo legendas de filmes indianos, escrevo coisas mais sérias. Minha mãe me considerava uma doente, porque fui uma das pioneiras a usar internet e com isso arranjava namoros virtuais. Seduzir escrevendo era perfeito pra mim – nada de sustentar olhares, provocar com decotes e proibir cedendo. Escrever me dava a distância e o tempo necessários para me deixar à vontade, para mostrar um lado mais solto que demoraria demais (ou até nem aconteceria) com a abordagem clássica de aproximação. Ao mesmo tempo, nunca quis fazer da escrita meu meio de vida. Se pudesse escolher, eu juro, teria escolhido outra coisa, outra vocação. Que bom seria se eu fosse uma pessoa das exatas, a vida é mais fácil para eles em tantos aspectos. Minha vida teria sido outra se eu soubesse seduzir (falo agora num sentido amplo) pessoalmente, se eu fosse gregária ou se pelo menos tivesse tino comercial. Por exemplo, eu sei que postar sobre os últimos escândalos ou assuntos específicos aumentam muito o número de acessos. Quem sabe se eu seguisse essas regras, teria um blog mais rentável com muito menos trabalho. Mas não, eu não posso, eu não consigo. Eu venho aqui, dia sim dia não, com um texto; rendo muito menos do que os que colocam fotos da Dickman pelada e pronto.
Eu não dou chance para autores novos. Entro numa livraria ou numa biblioteca e faço cara de nojo pra cada livro de alguém que eu nunca ouvi falar. Pouco importa a contracapa dizer que o livro é interessantíssimo, não confio em contracapas porque geralmente são escritas pelo próprio autor. Também não levo à sério a introdução de um outro escritor, esse sim famoso, porque já fico achando que ele fez aquilo só por amizade. Ou seja, se nem eu mesma dou crédito, como esperar que o mundo seja generoso com os desconhecidos que escrevem? Conheço tanta gente que se queixa de falta de visibilidade, e quando os leio, todos, acho de que há uma certa justiça. Eles escrevem bem mas não surpreendem. Vi semanas atrás um blog muito bom, num estilo que lembra o meu, e ele me fez descobrir o porquê dos meus acessos estarem estagnados: não vi novidade. Não o favoritei, e com isso entendi tanta gente que vem aqui, acha legal e nunca mais volta. Não fui marcante o suficiente para me destacar, é isso. Tem muito blog pessoal por aí, tem muito texto de muita gente que escreve bem e que reflete. É um mundo cheio de doentes que, como eu, não conseguem parar de escrever. Pouco importa se o mundo não nos dá atenção, se as editoras não nos publicam, se os milhares de acessos nunca chegam. Nós escrevemos porque é isso que sabemos fazer, porque é isso o que somos.

Qualquercoisoterapia

Minha amiga Isabel é uma grande cantora e professora de canto. Ela tem um problema que está se tornando cada dia mais comum: as pessoas, sejam elas potenciais clientes, alunos ou donos de escola, a pressionam para dizer que fazer aula de canto é terapêutico. Tem gente que abraça essa idéia é adora falar por aí que cantar é terapêutico, fazer sapateado é terapêutico, escrever em blog é terapêutico, cortar grama é terapêutico. Só que ela acha chato, assim como eu também acharia chato no lugar dela. Cantar é terapêutico? Pode ser. O que fazer aula de canto realmente melhora é a capacidade de cantar – esse deveria ser o objetivo, não? É complicado as pessoas procurarem uma coisa com o objetivo de melhorarem ou modificarem outra. Vamos combinar que aula de canto pode ser terapêutica, assim como ir a padaria também pode ser – tudo depende da disposição de quem faz. Algo que te tire de si mesmo, que te abra a novas relações, que te faça pensar na vida e quem sabe estabelecer alguns vínculos sempre será terapêutico. Nem todo mundo é assim. Uma pessoa pode fazer anos de aula de canto sem mover uma pedra de quem ela é. Outro pode ser tão disponível que encontrará coisas para mudar em si mesmo até enquanto lava a louça.

Meu conselho a todos que procuram atividades terapêuticas é: faça terapia.

Custos

As pessoas costumam pensar em operações plásticas quando vêem um corpo todo durinho e esquecem que existem os tratamentos estéticos. Descobri sem querer que um desses tratamentos, com eficácia que eu comprovei com os meus próprios olhos, custa mil reais, num pacote que inclui dez sessões disso, mais não sei quantos daquilo. Na hora que ouvi que mil pagava não sei quantas horas e profissionais e que pouparia uma plástica, até que não achei caro. E, confesso, fiquei com vontade. Mas depois eu me lembrei que seria mil reais gasto apenas na minha barriga. Apenas pra me apalpar e me olhar no espelho e me sentir mais gatinha. Como não sou do tipo que anda com a barriguinha de fora, é possível que as pessoas nem notassem – ou será que eu teria que passar a usar a barriguinha de fora, só para aproveitar melhor o meu investimento?
À medida que envelheço, a idéia de me manter jovem e bonita começa a ser um dilema. Muitas vezes um dilema moral – o quanto é justo pagar pela minha beleza física em detrimento do resto? Tem famílias que se sustentam com esse dinheiro. Mesmo não sendo o meu caso, eu não poderia gastar milão sem abrir mão de outras coisas – conforto na minha casa, frequentar lugares bonitos, fazer viagens, ter uma poupança, etc. O quanto a tal barriga é importante pra mim, do que abrir mão em nome dela? Essa é a parte das dietas, das eternas dietas, que ninguém fala. Se colocar numa eterna dieta é também dizer: meu peso é tudo pra mim. Comer uma comida saborosa, compartilhar de uma boa mesa com aqueles que amo, me presentear com um doce quando estou triste, comer pelo simples prazer de comer não significam nada diante do número do manequim. Como se não bastasse o dinheiro, investir em beleza também é tempo. Tem a academia, a manicure, a tintura no cabelo, ida à drenagem linfática, deixar agir o creme anticelulite… Enquanto isso eu não estou tomando um café com os amigos, não estou lendo, não estou deitada numa rede olhando o céu. E meu corpo, esteja onde estiver, caminha espontaneamente para a decrepitude.

Talibã à brasileira

Estou lendo O Livreiro de Cabul e gostando muito. Dentre muitas coisas, ele faz a gente ter uma idéia mais clara do talibã, do que significou para a população. Entendi que os setores mais conservadores e ignorantes da sociedade resolveram purificar a população através de medidas comportamentais. Pra vocês terem idéia do tiro no pé que isso foi, quando proibiram as mulheres de dar aulas ou frequentar escolas, isso acabou com o ensino no geral, porque não havia professores homens o suficiente para substituí-las. Proibiram até de empinar pipa. Eu fiquei me perguntando como seria a versão talibã no Brasil. Não teria burcas, porque não há nada parecido na nossa cultura. Pensei num fictício grupo evangélico bem radical – porque só grupos radicais têm prazer em condenar comportamentos alheios. Na certeza da sua verdade, eles arrancariam da nossa sociedade todos os costumes errados, como: ver TV, assistir filmes da Disney, fumar, beber, trabalhar nos sábados, adorar imagens… até dançar correria o risco de ser proibido. As mulheres seriam proibidas de usar decotes, fazer sexo antes do casamento, passar maquiagem. Seriam proibidas também coisas que assemelham as mulheres com os homens, como usar calças ou cortar o cabelo curto. Conseguem imaginar um mundo assim?

Flamingo

Ouço falar dela, da tal da escoliose, há mais de dez anos. Todo exame físico que eu ia fazer, viravam pra mim e diziam – não sei se você sabe, mas você tem uma pequena escoliose bem aqui… Sim, eu sabia. Eu sabia mas era uma informação meramente teórica, porque ela estava ali, me deixava pouca coisa torta em algumas posições, mas jamais havia me incomodado. “Mas um dia vai incomodar”. Pense que além dessa tendência hereditária e bípede, eu comecei a dançar e estraguei articulações outrora eram novinhas porque eu não me exercitava na adolescência. O flamenco, das danças com sapateado, é a que mais força a lombar. Se você reparar bem, nos outros sapateados – americano e irlandês – o tronco da pessoa fica subindo e descendo. No flamenco, o bailaor sapateia e se mantém sempre no mesmo nível. Quem segura essa onda toda é a perna, que fica mais flexionada, e a coluna. Então, depois de tantas ameaças, mês passado aconteceu. Finalmente, eu e meu destino nos encontramos – agora eu sinto minha escoliose.
O que me acontece é que às vezes vou me inclinar para pegar alguma coisa e AHHHH, que delícia! fico por ali mesmo. A posição encurvada é a que mais relaxa minha lombar. Então às vezes vou pegar uma coisa e pego mais outra e mais outra e fico andando pela casa igual o corcunda de Notre Dame. Ou aproveito que estou abaixada e abraço as coxas por trás e conto um minuto, e faço ali meu alongamento. É gostoso pra minha coluna mas meio esquisito enquanto cena. É como se eu tivesse virado um flamingo.

Meus ex-colegas

Eu passei a estudar num colégio público na oitava série e na minha época não existiam cotas. Num pequeno edital do meu colégio havia os nomes dos alunos que haviam entrado em faculdades. Eram poucos, nunca chegavam nem a dez. Eu passei no vestibular e no ano seguinte meu irmão viu que meu nome não estava lá. Ele fez questão de passar na diretoria e avisar que faltava o meu nome, que eu havia passado na federal. Eu passei a ser o nome mais brilhante do pequeno edital, porque os nomes que estavam lá costumavam ser de faculdades particulares e cursos pouco concorridos. Talvez por ter acontecido isso comigo, eu nunca me questionei sobre o futuro dos meus ex-colegas, se haviam entrado em faculdades ou não. Se eu entrei, eles deveriam ter entrado.

Só que o mundo pode ser tão diferente se descemos apenas alguns de degraus da escala social. Uma das CDFs da minha turma, a Simone, passou todo o segundo grau falando que queria fazer medicina, que era o sonho dela. Como ela sempre tirava as melhores notas, nunca duvidamos desse sonho. Só que chegou a época de se inscrever e ela me disse, muito triste, que prestaria vestibular para contabilidade. Eu achei um absurdo, que ela não poderia desistir do seu sonho, aquela conversa toda. Ela me falou que seu pai era mecânico e não teria condições de pagar nem pelos livros. Eu disse que quem sabe desse pra dar um jeito e tal. Ela disse que não tinha jeito; ele sentou com ela e teve uma conversa séria, e ela se conscientizou dos gastos imensos que uma faculdade de medicina envolve. Fiquei sem argumentos, realmente não tinha como dar jeito. Ela prestou vestibular pra contabilidade e passou.

No segundo ano do segundo grau havia uma menina com o mesmo nome que eu na sala, só que ao contrário de mim ela era muito popular. Ela conversava com todos os meninos, eles a achavam uma gostosa, ela namorava, ia a festas e tudo o que uma moça popular faz. Eu a encontrei quando comprei as minhas alianças de casamento, ela era vendedora da joalheria dentro de um shopping. Conversamos e ela soube que eu havia me formado, e ela lamentou ter tentado vestibular umas três vezes sem ter passado, até que desistiu. Eu falei pra ela que faculdade não era isso tudo, tentei ser bacana. E ela me disse que era sim, que as pessoas respeitam muito mais quem se formou. Também foi no shopping que encontrei outra que estudou comigo, só que dela eu não lembrei. Fui entregar um cupom numa dessas promoções que a gente concorre com compras acima de um certo valor. A moça do caixa disse que estudou comigo, que lembrava de mim, etc.

O caso mais triste de todos foi quando fui fazer uma comprinha no Mercadorama da Praça Tiradentes. Quem já foi lá sabe que aquele supermercado é um horror, apertado, feio, os produtos ficam meio jogados. Estava esperando tranquilamente na fila do caixa quando uma das caixas me chamou atenção. Ela se mexeu tanto e fez tanto esforço para se esconder que foi aí que eu a notei. Era a Márcia, uma das meninas mais lindas da escola. Ela tinha o cabelo loiro natural até a cintura, jogava vôlei e era uma pessoa legal. Como era toda atlética e reservada, os meninos suspiravam por ela. Agora ela estava no caixa de um supermercado, se escondendo para que eu não a visse. Fiz o favor de fingir que não a vi e fui embora correndo.

Adeus, Mimi!

Algumas histórias viram expressões e piadas internas entre amigos. Outras vezes as expressões são tão marcantes que são adotadas por pessoas que nem conhecem os envolvidos, apenas ouviram falar da história. Lembrei disso vendo Law and Order, com uma moça confessando que jogou a madrasta pela janela depois de dar um sonífero a ela. Quando a confissão chegou ao clímax, da madrasta cambaleante e se apoiando na grade, eu completei:

– … aí eu a empurrei e “Adeus, Mimi!”

É uma história antiga, de um amigo de um amigo, numa época em que o ativismo animal não existia. Esse amigo do amigo começou a trabalhar de empregado na casa de uma madame muito chique, que morava no alto de um prédio muito chique, de um apartamento por andar. Ele foi contratado para dormir no emprego. Só que antes dele ser contratado, o gato da casa – uma persa gorda e mal-humorada chamada Mimi – tinha se acostumado a usar o quarto de empregada como banheiro. Então quando ele chegava no quarto a gata havia quebrado coisas, feito xixi na cama, arranhado móveis, destruído o que não estava guardado, e tudo mais que um gato revoltado é capaz de fazer. Quando ele mostrava para a madame o que a gata havia feito, ela a pegava no colo e falava fazendo biquinho “Gatinha malvada, não faça mais isso!” Claro que a gata não parava. Ele cansou de reclamar e a madame nem aí, deixava a gata fazer o que queria. Ele acabou pegando ódio da Mimi.

Um dia a madame viajou e ele ficou sozinho no apartamento. Ele estava por ali, fazendo suas coisas, quando viu a Mimi na frente da janela aberta, relaxando. Era a sua chance de se vingar. Ele se aproximou e a Mimi quase fugiu – a antipatia era mútua. Só que ele foi bem de mansinho e começou a alisar e falar docemente com ela. Quando a Mimi finalmente relaxou, ele disse:

– Adeus, Mimi!

E num gesto rápido empurrou a gata do alto dos não sei quantos andares. Ela se espatifou no chão. Depois de comprovar que a gata tinha realmente morrido – com gatos nunca se sabe -, ele ligou para a madame e falou num tom bem desesperado:

– Madame, madame, aconteceu uma desgraça! A Mimi se suicidou!!!

O adeus

Li uma vez um texto ótimo da Danuza Leão que ela diz que ex jamais deveria se recuperar de ter nos perdido. Que o bom é encontrá-lo cabisbaixo, triste, doido para voltar. Ele jamais deve casar; se casar, que mesmo assim deixe claro que foi apenas falta de opção, porque o eterno amor dele sempre fomos nós. Talvez a pior sensação do mundo seja pensar que somos dispensáveis. O legal é imaginar o lugar que deixamos sempre ficará vazio, de uma maneira respeitosa. O desejo de tudo dê errado na nossa ausência só não é maior do que a verdade por detrás dele: todos nós somos substituíveis, sempre. A nossa falta pode causar menos ou mais estranheza, ela pode durar um minuto ou um dia, mas o nosso lugar será preenchido e a vida continuará.

Eu me pego pensando no lugar da sala ou no papel que ocupava em cada coreografia e imagino nada acontecendo sem mim. Que as pessoas da minha mais recente ex-escola digam que sem mim não há a menor condição de dançarem, que era de mim que elas copiavam, que eu era a alegria da sala, que sem mim não dá. É claro que não vai acontecer. Mesmo se acontecesse, por melhor que fosse, seria rapidinho; na segunda vez já estaria todo mundo adaptado e fazendo o que deve fazer. Porque eles são ótimos e não dependem de mim para serem ótimos. Se antes riam das minhas brincadeiras, depois rirão de outras brincadeiras – de qualquer forma, minha ausência não tirará o riso e nem a dança de ninguém. Melhor assim. E que haja dança e riso no próximo lugar que eu for.

Influência

Conheci muitos, geralmente místicos, que se propunham a ser uma influência na vida dos outros. Acho que tinham um certo sucesso com pessoas que gostam de gurus. A mim sei que sua influência foi pouca ou nenhuma. Quando chegavam repetindo as mesmas exortações, mantras e convites à mudança, eu percebia muito claramente que eles não me conheciam. Pra começar, eu sou tão A Louca das Mudanças Profissionais que ninguém me diria para mudar, muito pelo contrário – uma pessoa em sã consciência me diria para criar vergonha na cara e me estabelecer. O fato de me falarem algo que dizem a todos, sem saber até que ponto eu pratico ou gosto desses discursos, me desinteressa na hora. E mesmo àqueles que se interessam, acredito que a influência de mensagens padronizadas seja muito pequena. Achar mensagens bonitas e até soltar uma lágrima por elas é muito fácil; difícil é que não passe disso, que a pessoa realmente consiga fazer algo diferente na sua vida. Para que alguém me influencie, é preciso que saiba o mínimo a meu respeito. Que conheça um pouco da minha história, o que eu busco, que temas me tocam. Eu, como todas as pessoas, tenho um grande sentimento de importância pessoal. Eu não sou mais uma, pelo menos não para mim. Do mesmo jeito que o místico tem algo a me dizer, eu tenho algo a dizer a ele. Eu também vivi, refleti, tirei algumas lições da vida. Eu só me deixo influenciar se o outro se deixar influenciar também. Esse é o problema dos “influenciadores”, eles sempre partem do pressuposto que são a única parte modificadora e sábia da relação.

Borboleta preta

Tinha uma espécie de borboleta de cor clara e escura. As claras eram mais abundantes do que as escuras, porque a cor dela era mais propícia para a camuflagem na natureza. Só que surgiu a revolução industrial e tudo ficou meio empoeirado, meio cinza. As borboletas não se camuflavam mais em meio a lindas flores brancas e sim entre a fuligem. Aí as borboletas escuras é que conseguiam se camuflar melhor e se tornaram mais abundantes.
Existem muitas metáforas para o mesmo assunto. É o patinho feio que vira cisne, são as ovelhas negras que formam seu clube. Por uma questão de hábito, eu acabo pensando em termos de filosofia chinesa. Gosto muito do Feng Shui e do reconhecimento de que o meio nos influencia o tempo todo, de maneira consciente e previsível, mas também de maneira imprevisível e poderosa. Para o Feng Shui, a energia é cíclica, e em alguns momentos ela estará forte, expansiva e favorável. Nesses momentos, devemos crescer e levar os nossos projetos adiante. Quando a energia estiver em baixa, retraída e desfavorável, o recolhimento é a única maneira de sobreviver, e assim reunimos forças para o próximo ciclo favorável. Nada permanece como está; o que para alguns é o fim para os outros é começo.
Eu me acostumei a ser borboleta preta, não tento pintar as minhas asas de branco. Quando as pessoas vêm uma maioria, acham que o único caminho para a sobrevivência é aderir a ela. Não é – quem teima em ser quem se é, empurra o mundo inteiro a mudar na sua direção.

Voluntários

Das muitas coisas que eu sempre achei inverossímeis em novela é a conversão de vilões em mocinhos. Na minha infância eu assisti Roda de Fogo – com a Bruna Lombardi inesquecível morena e de cabelo curto – e esse era o argumento principal da trama. O empresário malvado vivido por Tarcísio Meira descobre que tem uma bolha no cérebro (eu e meus irmãos colocávamos a mão na cabeça e gritávamos “a bolha, a bolha” imitando o personagem) e a partir daí dedica o pouco tempo que lhe resta a ser uma pessoa boa, ajudar aqueles a quem prejudicou, se aproximar dos filhos, etc. E ele consegue. O que eu vejo na vida real é que as pessoas sem propõem a serem boas e levam seu orgulho, agressividade e preconceitos aonde quer que elas vão, até nos serviços voluntários.

Eu fui voluntária num lugar que tinha um grupinho tão fechado que eles expulsaram uma voluntária por ata. Era um lugar cheio de reuniões obrigatórias, uma por mês para o grupo, uma bimestral com todos os voluntários, e mais uma bimestral para quem era líder de um grupo. Não é à toa que esse grupo é formado por aposentados, porque gente muito ocupada não consegue ficar. Como se não bastasse tudo isso, faltar a essas reuniões faziam com que a pessoa pudesse ser expulsa. Essa minha amiga foi na reunião com os outros lideres de grupos. A reunião que era à noite, no meio da semana e durava horas. Ao contrario dos outros líderes ela era uma mulher legal, bonita e realizada profissionalmente. Já eram quase 21h quando ela pediu licença para sair antes do fim da reunião, porque sua mãe estava hospitalizada. No encontro seguinte, no meio de uma festa, lhe foi entregue a ata da reunião, assinada por todos: “Fulana pediu para se retirar do Voluntariado porque está muito ocupada cuidando da mãe doente”. Como as outras quinze pessoas presentes assinaram, não havia mais o que ser feito – muito menos clima.

Isso foi o que aconteceu com alguém próximo. Eu já tive um problema com um espírita, que conheci em outro trabalho voluntário – o derradeiro, nunca mais me animei a entrar. Nós nos dávamos bem, ele entrava depois do meu horário. Um dia ele descobriu que sou formada em psico e nunca exerci. Ele passou horas querendo me convencer a voltar para a área. Dei meus vários motivos – pessoais, filosóficos, profundos, limitações – e ele continuou insistindo, algo que não é nada compreensivo e gentil. Que eu arranjasse uma instituição para pagar o CRP e falasse uma vez por semana com menores delinquentes numa instituição. Na sua visão, não havia nada melhor e mais puro do que ser um curador, então era imperdoável eu abandonar isso. Se eu me formei é porque tinha carma, e ai de mim abandonar esse tipo de carma. “Por que você insiste – eu disse – que eu entre numa instituição de guarda-pó e crachá para falar com um menor? Se eu for com minhas roupas normais e simplesmente conversar com ele não é um bem?” Não, não era. O resultado da nossa discordância sobre o que é fazer o bem ficou tão profunda que fui surpreendida – vejam bem, um homem com quase cinquenta anos, casado, filhos e netos – ao receber scraps ofensivos desse sujeito no meu orkut.
Quanto mais tempo eu vivo, menos tenho certeza do que é fazer o bem. A capacidade do ser humano em conspurcar as coisas parece infinita.