Dúnia e Dúnia.

Eu estava me programando pra tirar foto do cachorro, mas como nunca vou me lembrar de sair com celular pra isso, vai ter que ficar apenas na imaginação de vocês. Estou apaixonada por um cachorro de uma casa aqui perto. Na verdade, é uma cadela. Mais do que isso: é a Dúnia. Ela é totalmente a Dúnia quando novinha. A mesma orelhona desproporcional pra cima, a mesma magreza, a mesma pata branca e grande, o mesmo pelo preto arrepiado. Ela late no portão quando estamos passando, mas se me aproximo um pouco, corre pro fundo da casa – a Dúnia fazia a mesma coisa, levou tempo pra ela descobrir que o portão é impenetrável. Passar por ali é viajar no tempo. Tenho vontade de adotar e ficar com duas Dúnias em casa.

De cachorro mais desajeitado do mundo, depois de velha, a Dúnia passou a virar bird killer. Encontrei dois no espaço de alguns dias. Pior que nunca os encontro apenas mortos, eu cheguei poucos segundos antes da Dúnia matá-los. Peguei ela caçando, com os bichos nas últimas, sem ter como salvar. Assim que eles morrem ela larga, como se fosse um brinquedo estragado. Nunca pensei que por volta dos oito anos, mais calma e cheia de pelos brancos, a Dúnia descobriria uma habilidade nova e violenta.

Tudo muda, até mesmo os cães.

Dava

Antes de ficar solitária, deprimida e pobre, dava pra ter evitado. Dava pra não ter passado no banco. Dava pra chegar em casa e, pensando bem, não parece mais um negócio tão confiável. Dava pra ter dito que não, que não disporia das parcas economias pra entrar no negócio dos outros. Dava pra não ter entrado no carro, dava pra não ter dito que tinha outro compromisso e tinha a agenda cheia até 2030. Dava pra ter excluído do Facebook, apagado o telefone, excluído de tudo. Dava pra ter achado o fim do mundo quando ele procurou de novo, e disse as mesmas loucuras de novo. Dava pra ter considerado que se ele trai a namorada com você, se você fosse a namorada também arranjaria outra. Dava pra ter excluído da vida, do Facebook e do telefone na primeira incoerência. Dava pra não ter achado nada demais aquele dia que ele foi gentil. Dava pra não ter dormido com ele. Dava pra encarar apenas como sexo. Dava pra ter recusado o encontro. Dava pra ter achado a foto e o perfil ridículos no Tinder. Dava pra não ter entrado no Tinder. Dava.

Todas as respostas

 

Hoje eu conto como vantagem e gosto de chocar meus amigos dizendo que não fui batizada quando criança, e sigo na minha vida sem saber para onde vou, já que o Vaticano excluiu o limbo. Mas houve uma época, durante a adolescência e faculdade, que eu assistia missa e tudo. E coincidentemente, minha colega mais próxima, com que eu saía e fazia trabalhos, era de uma família muito católica. Eu já consideraria ser mais religioso do que a média realmente seguir os sacramentos. A grande maioria dos católicos que eu conheço gostam das orações, se apegam a santos, assistem novenas, e ao mesmo tempo frequentam cartomantes, fazem mapa astral e alguns são até médiuns. Acho que faz parte da religiosidade brasileira, sou muito à favor. Lá em casa era assim também. A família dessa minha amiga não, eles eram católicos de raiz. Não apenas nunca perdiam missa, como também ajudavam na congregação, se mantinham catolicamente atualizados por estarem vinculados a centros de estudos católicos e a mãe dela era inclusive amiga pessoal do padre Quevedo. Um dia minha amiga me convidou para ouvir umas fitas do Quevedo, e ele mal começou a falar com sarcasmo das crenças dos outros, e eu me senti mal e arranjei uma desculpa pra ir embora. Ela estava rindo à beça.

 

Deus é uma criação humana frente à morte e a finitude da vida humana? Faz sentido, pode ser. O sentimento de transcendência que todos os homens sentem é a prova de existência de Deus? Também pode ser. Não tenho certezas, por isso nenhuma das duas posições me ofende. Se existir um Deus, ele precisa ser maior do que eu; se eu, tão pequena, sei que fórmulas e discursos valem muito pouco, que dirá quem conhece o coração de cada um. Como eu ia dizendo, naqueles dias eu rezava o terço, eu ia à missa, estava realmente católica. Mas pra minha amiga e pra família dela aquilo não era suficiente. Em pouco tempo percebi que eu não era católica do jeito certo. Eu era uma católica desatualizada, católica selvagem, católica ignorante. Um dia fui mostrar para minha amiga um folheto sobre Nossa Senhora de Medjugorje. Uma publicação católica, Nossa Senhora, um monte de aparições documentadas, padres, ou seja, achei super católico e que o folheto faria o maior sucesso. Minha amiga passou os olhos com desdém e falou:

– O padre Quevedo já falou sobre esses (esqueci o termo que ela usou. Era algo do nível “histeria coletiva”).

Outra vez, quando o Padre Marcelo estava no auge do sucesso, ela me perguntou o que achava dele. Eu respondi que não tinha nada contra e nem a favor. Ela ficou irritada – “Então você não tem posição”. Eu disse que tinha sim, que aquela era minha posição. Que achava superficial por um lado e benéfico por outro. Pelo silêncio dela, adivinhei que eu deveria ser ardentemente contra. Vai ver que o Padre Quevedo era.

 

Então eu parei de falar, parei de tentar ser católica com ela. Porque na minha visão bastava se considerar católica, seguir os princípios básicos, rezar, ir a missa, ser uma boa pessoa no meu dia a dia. Com ela eu descobri que para os católicos mais teóricos, existe uma série de opiniões e condutas que ditam como as coisas devem ser. Eu deveria ser contra e a favor de um monte de coisas, eu deveria usar os termos certos, eu deveria pensar da maneira certa sobre muitos detalhes. Era uma linha estreita de códigos e ai de mim se falasse da maneira errada. Para ela, tudo isso era muito claro, tão claro que era como se o mundo inteiro soubesse. Quem fazia diferente só podia ser do outro time. Já eu me sentia pisando em ovos, porque tudo era certo ou errado, para ela não existiam zonas cinzentas.

O feminismo faz com que eu também me sinta assim.

De volta

 

Eu resisti bastante à ideia de fazer críticas de livros porque eu sempre achei que não teria nada a dizer. Essa impressão só mudou quando procurei críticas para livros específicos e me frustrei. Algumas são feitas com boa intenção e pouca bagagem, e se limitam a dizer que o livro é “nossa, muito bom”. Outras são tão ricas e analíticas, que se tornam melhores do que o próprio livro, e acabam não respondendo à questões básicas: é gostoso de ler? Do que o livro fala? Então passei a querer escrever as críticas que eu gostaria, como se fosse um amigo me recomendando um livro. Sigo princípios muito simples: contar do que o livro trata, sem ser um simples resumo da obra ou estragar tudo o que acontece. E colocar um trecho que dê uma noção do estilo do autor.

 

Quando o Milton me convidou pra escrever no Sul21, eu estava numa fase que sentia necessidade de provar para mim mesma que poderia ser séria. Eu queria debater as grandes questões, mostrar que posso ser impessoal. No início do blog, arrisquei pitacos a questões que eu considerava importantes. Nos meus pitacos, eu sempre tentei ver a questão por algum prisma que eu não via ser discutido por outros. Depois fui parando, não sei explicar direito o porquê. Talvez eu já tivesse provado para mim tudo o que quisesse provar, talvez eu não tenha esgotado a minha originalidade nas questões que eu já escrevi. Não sei.

 

Aí veio a grande pane e parei de ler. Por parar de ler, tive que parar de escrever as críticas. Sempre deixei o blog aberto, sempre entro lá para apagar os spams, mas a impressão que me dava era que ele tinha sido escrito por outra pessoa. Outra pessoa muito mais corajosa e inteligente do que esta. Vai ver ela pertencia à outra vida, e havia morrido com o fim dela. Publiquei uma ou duas coisinhas aqui com o sentimento de que poderia ter sido aprofundado e ido pro outro blog. Estava me ensaiando pra voltar, quem sabe, depois que o espetáculo passasse, já que eu voltei a ler. Estava nesse movimento preguiçoso e o Milton me mandou um e-mail, meio que um puxão de orelha a todos os que não atualizam seu blogs no Sul21 faz tempo.

 

Depois de tanto tempo, escrevi de novo uma crítica. Do Carcereiros, muito fácil por ser um livro que gosto de uma pessoa que também gosto. Foi tão bom escrever, foi tão bom voltar a isso. A que escrevia no outro blog não morreu, ela acaba de voltar pra casa.

Los simuladores

Minha queridíssima amiga Viviane me indicou uma série que fez muito sucesso na Argentina e desde então tenho rido e me divertido muito sozinha em frente ao computador. Ela está na íntegra no youtube. Só que está toda falada em argentinês e sem legenda. Eu mesma perco algumas coisas que eles falam. Mas quem quiser se arriscar, é totalmente excelente. Eu diria que é quase como um conto de fadas moderno. Os clientes têm problemas pessoais insolúveis – marido que quer que a esposa volte, os vizinhos barulhentos, o pequeno comerciante ameaçado pelo agiota, o aluno que precisa passar de ano, etc. – e a equipe dos Simuladores arma situações para ajudar. É do mesmo diretor de Relatos Selvagens, o filme que representará a Argentina no próximo Oscar e que também é imperdível.

Pré-espetáculo

Sim, eu sei que não tenho escrito direito, que só estou enrolando. Não adianta, todo pré-espetáculo é a mesma coisa: fico entretida demais com a dança e não arranjo o que escrever. E esse será especial por vários motivos. É a primeira vez, desde que mudei de escola, que vou me apresentar no teatro. Achava que eles eram até contra, que só gostavam de apresentações íntimas na própria escola. Não é, eu é que peguei um período de entressafra mesmo. Depois porque é um espetáculo importante para a própria escola, um espetáculo comemorando aniversário. Por fim, pela primeira vez terei um número maior de pessoas me vendo. Eu sempre dizia que minha dedicação ao flamenco era inversamente proporcional ao meu público, que eu dava prejuízo pra escola. Eu era responsável pela venda de um (1) convite, o do meu marido. Talvez por agora não ter o marido, todo mundo ficou com pena de mim e resolveu ir. Mentira, é que eu também fiz novos amigos e a conjunção astral parece estar favorável. Sabe que saber que a gente tem plateia faz mesmo diferença? Faz diferença até pro mal – fico com mais vontade ainda de dançar numa posição mais destacada, que me vejam mais. E não estou lá na frentão nas coreografias mais importantes. Um lado meu entende que estão preocupadas com a acústica do teatro e colocaram as grandes sapateadoras (aka as que batem o pé mais forte) lá na frente. Mas meu outro lado fica puto, acha que se tivesse poste no meio do palco me colocariam atrás dele e tem vontade sentar e esperar na parte que ficamos num bolinho e só aparece minha cabeça. Enfim de novo. Vai ser lindo.

Old fashion

Celulares com internet não são apenas coisa de rico, estão em todos os lugares. Nos cafés, nas apresentações, nas aulas, nas ruas, nos ônibus. Quando estou voltando para casa à noite, sou uma das poucas que ainda precisa da janela do ônibus para olhar para fora. 

Tarde vazia

Eu até tinha o que fazer, mas subjetivamente era como se não tivesse. Nenhum prazo estourando, muito pelo contrário, seria bom é que algumas coisas que eu fiz se desenrolassem e/ou fossem pagas. Peguei chuva de manhã, e choveu praticamente o dia inteiro. Ou seja, o antídoto natural para estados depressivos de passear com o cachorro eu também não teria. Dormi de tarde, tarde demais, e fiquei com dor de cabeça. O dia parecia destinado a se arrastar até à noite. Mas aí ela me chamou pra ir pra casa dela. Ela mesma não havia passado bem e não estava a fim de sair, comeríamos uma pizza. Choveu em todo longo trajeto da minha casa até a dela, que inclui dois ônibus e caminhada. Molhei o tênis, a meia, a barra da calça. Pra ajudar, eu ainda me perdi. 

Nós duas conversamos e rimos tanto que quase perdemos o horário da pizza, quase perdemos o horário de eu voltar pra casa e conseguir dormir o suficiente pra passar o dia inteiro ensaiando. O que é uma tarde vazia diante do poder de uma amizade. Obrigada, Vivi.

Curtas de puro glamour

Já teve noite que cheguei cansada da aula de flamenco, tomei um banho e coloquei minha camisola branca transparente sem nada por baixo. Estava puro erotismo e glamour. Mas, sejamos sinceros: o grande prazer de morar sozinha está mais pra comer uma tigela de pipoca inteira usando roupa puída.

 

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O motivo definitivo pela qual eu não coloco whatsapp: a quantidade de gente que me pede pra colocar. Se todo mundo que me pediu whatsapp realmente me adicionar, eu não faço mais nada da vida. Sem dizer que digito mensagem como quem acaba de ser alfabetizada. Não daria certo.

 

 

Quando estou andando na rua – e as condições climáticas não são extremas – passo pelos carros com seus motoristas estressados, aborrecidos, engarrafados e sempre sempre me sinto superior. Vocês estão presos e eu estou aqui, andando, sentindo o vento no rosto, saudável, feliz.

 

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Fiquei muito irritada e considerei má fé do fabricante descobrir que a minha cafeteira cara, que tem clube exclusivo que me dá café grátis no shopping, com cápsulas que custam mais um real por café, estraga com menos de dois anos de uso. É que o filtro entope. Você liga pro atendimento – tão ótimo, bonito e cheiroso quanto – e eles mandam a gente esfregar a dita com escova de dente (!). Depois de uma manhã inteira escovando minha máquina, me dei conta de que aquilo nem adianta, é por dentro. É cenzão de reparo (eles buscam em casa. Aposto que o funcionário usa luvas brancas) ou uma máquina nova.
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Se tem uma coisa que atrai homem bonito e câmeras de televisão é quando você resolve sair de casa de cabelo sujo, óculos, moletom velho e camiseta de pijama por baixo. É por isso que sempre saio pra passear com a Dúnia com uma roupa pelo menos razoável. Por isso também que eu jamais conheci alguém enquanto passeava com ela.
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@SushiDeBatman: Homem pra mim é igual iate: não tenho nenhum.

Dr. Drauzio

O Carcereiros do Drauzio Varella furou a minha determinação de nunca comprar livros pela contracapa:

 

Depois de 23 frequentando cadeias, não faz sentido especular como eu seria sem ter vivido essa experiência; o homem é o conjunto dos acontecimentos armazenados em sua memória e daqueles que relegou ao esquecimento. Apesar da ressalva, tenho certeza de que seria mais ingênuo e mais simplório. A maturidade talvez não tivesse me trazido com tanta clareza a percepção de que entre o bem e o mal existe uma zona cinzenta semelhante àquela que separa os bons dos maus, os generosos dos egocêntricos. Conheceria muito menos meu país e as grandezas e mesquinharias da sociedade em que vivo, teria aprendido menos medicina, perdido as demonstrações de solidariedade a que assisti, deixaria de ver a que níveis pode chegar o sofrimento, a restrição de espaço, a dor física, a perversidade, a falta de caráter, a violência contra o mais fraco e o desprezo pela vida dos outros. Faria uma ideia muito mais rasa da complexidade da alma humana.

 

Esse trecho pra mim diz tudo. Em entrevistas e no próprio livro, ele fala do quanto o universo prisional o faz falta para não cair na mesmisse de estar e ouvir sempre as mesmas coisas. Numa escala bem menos radical, eu vejo que andar de ônibus pra mim significa a mesma coisa. Andar de carro é mais confortável, mais limpinho, mas me vejo detestando encontrar sempre o mais confortável e limpinho. Enquanto os outros parecem sempre estar à procura de concordância, eu vibro quando consigo entrar em contato com pessoas de visões e valores diferentes dos meus. Eu quero ouvir, quero entender, muitas vezes eu me choco. Gosto de pegar ônibus porque sinto a necessidade de compartilhar do cansaço e da luta daqueles que vivem uma realidade muito mais comum àquela a que eu estaria destinada (digamos assim) por nascimento.

 

Se fosse para escolher um autor em quem eu me espelharia, seria o Dr. Drauzio. Ele, que demorou pra se ver como autor, que não imaginou que impacto Carandiru teria. Posso ressaltar outros cujo estilo eu aprecio mais, posso falar aqui da minha paixão por Guimarães Rosa, citar Veríssimo pai ou filho, o gostoso que é ler Ubaldo. Mas eles são outra coisa, eles são de outra escala. O que eu sinto que me uniria ao Drauzio é uma paixão indisfarçável que ele tem pelo outro, a vontade de registrar os heróis anônimos, o olhar sobre a complexidade humana. A sua ambição é antes de tudo o registro. Drauzio mostra que o cruel e o dócil não só convivem lado a lado na sociedade, convivem dentro do coração de cada um. Porque apesar de todas as maldades, eu – arrisco dizer, nós – ainda sou fã da espécie humana.

Biografias

Jung foi o primeiro que me fez ver o contraste entre as biografias autorizadas das não-autorizadas. Na autobiografia dele, Jung diz que não tem o direito de expor certas pessoas e certos fatos e tal, e lá pelas tantas cita uma paciente que foi muito importante para ele, um braço direito. Depois, numa biografia, li que essa paciente viveu na casa dele com a esposa, como se fosse um casamento de três, e que evidentemente a Sra. Jung não gostava da moça. Pô, Jung, que hipocrisia, porque não contou que viveu com ela? Tem bem resolvido no processo de individuação, porque não falar claramente se na hora de fazer você não viu problema nenhum?

 

Agora sei como é. É um dos muitos sintomas de velhice, ao lado de ter empatia com pessoas idosas. Outro sintoma: quando conversei como meu irmão sobre a possibilidade de ir pro Recôncavo, e ele claramente torceu para eu ir, e me falou da aventura de morar sozinho, se arriscar, de ir para outra cidade. Coisa que ele mesmo faz, muito. Como explicar que o sentimento de aventura passa, como explicar o sofrimento e solidão totalmente novas de uma separação recente? Não tem como explicar, eu mesma não entenderia antes. Então não expliquei.

 

Tenho me sentido muito sensível à questão do amor. O amor antigo que nunca nos abandona, o amor que permanece apesar dos laços rompidos, amores inventados, a incapacidade de amar. Tenho acompanhado tantas histórias, tantos caminhos diferentes, justamente porque não existe uma solução. Sento na frente do computador e fico com vontade de dividir o quanto tenho aprendido nos últimos meses. Como detesto o tom de ajuda ou autoajuda, tenho me omitido. Porque não conseguiria falar sobre essas coisas sem citar histórias que não teria o direito de citar. Chega de magoar as pessoas com posts. Como Jung, me vejo no direito de falar de apenas mim, não dos outros. O que me faz pensar – lá vem uma frase de efeito – que a única maneira que eu teria de escrever certas verdades seria apelar para ficção.

 

Urna de sonhos

Amiga gostaria de dar aulas mas lhe falta mestrado. Leio isso e fico com vontade de emprestar meu diploma pra ela, que tirei e nunca usei. Outra quer tanto constituir uma família, casar e ter filhos, e eu casei sem nunca sonhar com isso e não tive filhos porque não quis. E elas têm e fizeram coisas que eu também gostaria. Isso apenas reforça uma teoria que formulei faz tempo, publiquei aqui em algum lugar e não acho. Era mais ou menos o seguinte: no céu, antes de nascer, escrevemos os nossos sonhos nuns papeizinhos e colocamos todos numa urna. Aí a gente sorteia os papéis e sai pela vida realizando os sonhos dos outros.

Curtas exemplares

Às vezes as pessoas me pedem conselhos. Fujo da situação, finjo que não é comigo, faço uma brincadeira. Tem os que conseguem ultrapassar todos esses obstáculos pra me colocar contra a parede e me fazer dizer coisas que não quero. Porque sempre, sempre eu me sinto uma farsante dando conselhos. Eu me sinto o cara do Little Miss Sunshine e suas palestras sobre como ter sucesso.

 

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Ela me pergunta sobre minha vida amorosa, e quando lhe respondo que nada aconteceu desde que larguei mão da minha paixão platônica, recebo um olhar preocupado. Durante quanto tempo posso não buscar o sexo oposto sem parecer anormal?

 

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Tenho uma amiga que tem que regular seu comportamento por ser líder de grupo religioso. Sou uma das pessoas de comportamento mais caretas que conheço e me arrepio diante de uma possibilidade dessas. Não me vejo como exemplo a ser seguido. Minha caretice é incurável, profunda, defeito de fábrica, é coisa mi-nha. Por mim, que bebam, comam carne e transem se isso os faz felizes. Se tem uma coisa que me é muito cara é o meu direito de mudar de ideia.

 

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Das coisas que tive vontade de dizer e não disse essa semana:
– Quantos anos você tem, treze? (quase quarenta, no caso)
– Se fosse na tua casa você também agiria assim?
– Literalmente significa ao pé da letra, logo, não é você “literalmente” nesse vídeo.
– Mostra minha mensagem anterior pra Fulana que ela vai te explicar.

E, principalmente:

Duas curtas sobre costura

Teve vezes que eu tive vontade de chorar na frente da máquina. Um servicinho fácil, que numa reta levaria uns dois minutos, levando pelo menos dez. Era costurar um pouco na agulha dupla e as linhas embolavam, pulavam pontos, arrebentavam. Aí eu tinha que parar, passar o fio de novo, voltar mais um pouco. Dá mais trabalho e o acabamento fica ruim. Quis chorar de raiva e de impotência. Pensei em comprar uma galoneira de uma vez. Aí fui percebendo que acontece só na linha de fora, e só com os tecidos muito macios. Ou seja, eu teria que usar uma agulha mais fina. Na prática não dá, porque ela quebraria nos pedaços que as costuras se encontram. Agora continuam acontecendo as mesmas coisas – a linha arrebentando, embolando, pulando pontos – mas eu estou tranquila. Não mudou nada, a dificuldade continua a mesma. Ser humano é um bicho que precisa entender.

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Eu estava costurando e me veio o medo. E se eu fracassar? E se tudo isso que eu comprei, o CNPJ, o site, enfim, se tudo acabar não dando em nada? Ah, meu outro lado pensou, taí uma coisa impossível de acontecer, eu fracassar costurando. Leela, leela! Esse conceito diz que a vida nada mais é do que um jogo, uma festa do espírito, que ele se envolve e logo abandona. Não existe ganhar ou perder, existe apenas o jogo. Aprendi uma habilidade que me deixa tão feliz, tão independente. Conheci um mundo novo, pessoas novas, uma nova forma de alegria. Mesmo que ninguém comprasse mais, ou que eu nunca mais precise vender, continuarei costurando pra mim. Vida é leela, costurar é leela, vida é costura.

Livramento

Conheci o termo livramento há pouco tempo, lendo uma amiga se queixando de um cafa que saiu da vida dela. Todo mundo vendo que era cafa, ela mesma sabendo que é um cafa, mas ainda assim sofrendo. Porque mulher é fogo, a gente espirra, o sujeito oferece um lenço, e já estamos emocionadas porque ele cuida da gente. Aí uma outra, muito apropriadamente, escreveu embaixo da queixa: livramento, amiga, livramento. E é mesmo. Tem uns que doem quando saem da nossa vida, mas o grande estrago foi deixar entrar. Gente que é tão patológica, mas tão patológica, que quando mais perto ficam, mais mal fazem. Um amor que nunca é amor, que é espelhamento, apropriação, parasitagem. Com um perfil desses, o único bem que a pessoa pode fazer é ir embora o mais rápido possível, pra ver se o prejuízo é menor. Não sei como deve ser viver assim, sendo uma maldição na vida dos outros. Olhar para trás e saber que deixou  um rastro de tristeza.