A tarada da costura

Eu contei essa história pra minha professora de costura e ela riu e disse que assim eu a matava de vergonha. “Viu o que as tuas aulas estão fazendo comigo?”

 

Estava muito frio e eu estava sentada na parte de trás daqueles Inter 2 sanfona. Já estava escuro, num horário que ainda estaria claro que estivéssemos no verão. De pé, ao meu lado, parou uma moça. Eu olhei para cima e vi que ela vestia um tipo de casaco que não sei definir, não sei se tem nome, mas que eu acho um charme: é como uma manta, fechada no pescoço e que cai sem mangas. Muito curto pra ser um poncho, mas é o mesmo princípio. Esse casaco que ela usava balançava levemente a cada movimento do ônibus. A cor era predominantemente marrom, com salpicos de preto e bege, o que lhe dava um aspecto meio animal. Era peludinho por fora. Por dentro, dava para ver as mesmas cores, só que sem os pelos, o que mostrava que aquele tecido, ou seja lá o que era, não tinha forro.

 

O que seria? Tinha todo aspecto de ser uma pele, de muito boa qualidade dada a leveza, mas pele precisa de forro. Descobri isso porque uma moça que faz aula comigo viu uma polaina de pele por quase cinquenta reais e comprou, pra tirar cópia e revender. Só que quando foi fazer as polainas descobriu que pele é caríssimo (custou uns 70 reais o metro) e difícil de costurar. Cada vez que você manuseia ela se desfaz um pouco, precisa colocar forro, a linha se perde lá dentro, um saco. A curta experiência fez com que ela – e todos nós que acompanhados o drama – percebesse que a polaina não estava tão cara quanto pareceu à princípio.

 

Eu passei quase toda viagem olhando para o casaco da moça, bem ao meu lado, tentando adivinhar o que era. Seria lã? Isso explicaria a leveza e a ausência de forro, mas seria uma lã bem incomum, para fazer aqueles pelinhos por fora. E a cor tinha todo aspecto de pele. Pele ou lã, pele ou lã, pele ou lã? Aí finalmente eu tinha que descer e me levantei. Eu fiquei ao lado da moça. Sem que ela percebesse, eu baixei a mão esquerda e pus discretamente sob o seu casaco e apalpei.

Lã.

Mistério resolvido.

Era

Eu comecei a cortar o cabelo curto na adolescência, mais precisamente no segundo grau. Lembro que na época eu andava com a Débora, que estudava na sala do meu irmão e era a única pessoa que eu conhecia que também lia Agatha Christie. Ela tinha um cabelo longo, liso e claro, que ela sempre alisava  com as unhas longas e faziam um barulho característico. Como mandava a moda curitibana da época, a franja era finalizada com um volumoso topete.

 

Primeiro cortei chanel e pouco tempo depois apareci com ele bem curto. Sem avisar e nem consultar ninguém. Mais: eu gostava de mudar de corte de cabelo no meio da semana. As pessoas me encontravam, ficavam espantadas, comentavam. Minha amiga Débora dizia:

– O cabelo dela ERA lindo!

Não preciso nem explicar que durante todos aqueles anos ela nunca havia dito nada a respeito do meu cabelo.

Os deuses nos moldaram para o amor*

Foto de Letícia Volpi
Encontrei minhas amigas na festa, eu e ela de flamencas. Enquanto assistíamos os mestres dançarem, perguntei para duas delas se elas estavam sozinhas. Estavam. Uma estava porque havia se enrolado para convidar o bofe, que mais tarde apareceu – e  foi tão simpático, tão fofo, morreu tanto de orgulho de vê-la dançando que deixou as amigas convencidas de que ele merece o status de namorado. A outra, está enrolada numa história e gostaria tanto que ele tivesse ido, gostaria tanto que ele a quisesse como namorada e nada parece caminhar nesse sentido. E como Curitiba é um ovo, a amiga da amiga que foi à festa conhecia o sujeito pessoalmente, e rolou troca de informações. Não sei quais foram, só me parece que não foram favoráveis. Havia também as duas amigas muito bem casadas, obrigada. Uma casada mesmo, recentemente; a outra com um namoro firme que é como se fosse um casamento e tem tudo para dar em casamento. Os dois maridos, imensamente pacientes com essa vida que é ter companhia apaixonada por flamenco, de ver a mulher montada rodando sozinha no salão enquanto eles assistem. Porque o flamenco é algo que nasceu espontâneo e quem quer entrar no mundo flamenco trabalha tanto pra chegar nessa espontaneidade programada. E há outra que tem o namorado que está sempre lá, fotografando, mas que nunca é assumido como namorado. Todos nós o temos como namorado dela e acho que ele também. Acho que ele é do tipo que sabe que se chegar muito sério assusta aquela mulher. Então finge que se conforma de não tê-la, fingindo que não sabe que a tem. E tinha também aquela amiga de quem todos somos fãs, que é a alegria em pessoa, aquela que torna qualquer aula em festa, qualquer festa em acontecimento. Solteira, inexplicavelmente solteira. Naquela avaliação de solteira, que há muito não pratico, ela percebeu que o aluno-guitarrista gato já era comprometido, e que não tinha um homem hetero e solteiro dando sopa por ali.

 

* O que é a honra comparada com o amor de uma mulher? O que é o dever contra sentir um filho recém nascido nos braços… ou a memória do sorriso de um irmão? Vento e palavras. Somos apenas humanos, e os deuses nos moldaram para o amor. Esta é a nossa grande glória e a nossa grande tragédia. (….) Um covarde pode ser tão bravo quanto um homem qualquer quando não há nada a temer. E todos cumprimos nosso dever quando ele não tem um preço. Como parece fácil então seguir o caminho da honra. Mas, cedo ou tarde, na vida de todos os homens, chega um dia que NÃO é fácil, um dia em que ele tem que escolher. – Meister Aemon/ Game of Thrones vol 1 p. 467

Cuma?

 

Mocinha-novinha-gostosa conversando atrás de mim no celular com o namorado: “Quando eu digo pra você tomar no cu, não é que eu queria que você tome do cu. Quando eu digo pra você se foder, não é pra você se foder. É que eu estou nervosa, nunca falei essas coisas à sério. (…) Acho chato você ficar reclamando dessas coisas com a sua mãe, como se eu te tratasse mal. Eu nunca te desrespeitei. Porque eu sei que no fundo do meu coração que nunca te quis mal, então eu nunca te desrespeitei”.

 

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Mulher liga pra marido atrás de mim, tarde da noite, no Inter 2. Ele estava dormindo e rola todo um papo fofo de que ele não precisa esperar por ela. Depois, ela pede pra ele aproveitar e deixar o chocolate em cima da mesa, pra ela comer quando chegar. Depois, solta uma ótima: “A cerveja ainda está aí?” Não, ela saiu pra comprar pão.

 

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Última de ônibus e celular. Tubo cheio, a mulher conversa no viva-voz com o marido. Todos acompanhamos. O ônibus chega vazio, sento, atrás de mim sentam duas mulheres. Uma delas: “Sou contra ficar conversando de celular no ponto de ônibus”. Eu me lembrei de um video:
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Única colega chata e meio encrenqueira da costura. A profe faz trabalhos lindos de patchwork. Fiquei de olho num puxa saco de galinha, com pintinhos e tudo no bolso e não comprei. Era elaborado e por isso caro. O preço era justo mas eu não tinha tudo aquilo pra investir num puxa-saco. Saímos da aula comentando. Ela: “Acho que as coisas que a professora faz muito caras. Tem mais baratas por aí. Ano passado eu comprei uns trabalhos dela, coisa mais linda, mais de sessenta reais. Eu paguei, mas acho ela careira”.

 

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– Eu queria falar com Fulana.
– Ela não está.
– Que horas eu consigo falar com ela?
– Mais tarde.

Epifania

Estava eu no carro, debaixo do sol, durante uma hora naquela manhã quente de terça-feira esperando que o meu examinador me levasse para fazer a baliza. Era o meu segundo teste. No primeiro, fui muito bem na baliza. Pode parecer incrível, mas eu gosto de fazer baliza. Durante as aulas práticas, tinha vontade de ficar fazendo baliza durante uma hora. Parece um joguinho. Chato mesmo era o resto, quando eu tirava o carro da garagem e tinha que enfrentar o trânsito. Não gosto de dirigir e isso não deve ter ajudado em nada no processo. Voltando: estava lá observando as pessoas fazerem baliza, eu e as outras duas pessoas que também estavam tostando entediadas dentro dos carros. Numa média, oito em cada dez candidatos não passam na baliza. A gente vai assistindo e se angustia. Teve uma deixou pouco espaço e errou na saída. Teve outra que fez tudo direitinho e quando deu ré pra voltar pra linha vermelha, ou seja, nos finalmentes, deu uma ré tão torta que ela quase estacionou o carro de novo. Muita gente ficou indo e voltando em busca da posição perfeita e o tempo estourou.

 

Tentei não me deixar abalar, mas aquilo me afetou. Na minha curta experiência, já vi que dá pra ver se a pessoa vai passar no teste só dela se aproximar do carro, já na partida. Gente que chega com a intimidade de quem já dirige há anos sem carteira e só foi lá oficializar. Digo mais: homens. Eles chegam chegando. Um deles chegou tão seguro e estacionou com uma facilidade que o examinador disse (juro por deus!):

– O pneu de trás não ficou muito bem alinhado com o da frente, tire da vaga e faça de novo.

Tudo sem dar mais tempo pro rapaz, claro. Pense, amiga leitora, se isso acontece com você. Aquilo me abalaria na hora, eu não ia conseguir mais. O rapaz tirou o carro, colocou, tirou de novo e passou no teste. Ele não se deixou levar. Lembrei do meu primeiro teste, onde arrasei na baliza. Na saída do DETRAN não quis colocar o carro muito no meio da rua e saí com pouca visibilidade. O meu examinador, um cara grandão com cara de mau, me passou o maior pito, com direito a “como é que você me explica você ter feito uma coisa dessas” e tudo. Eu já estava nervosa e aquilo acabou comigo, meu teste acabou ali, depois só fiz besteira. Todo mundo me dizendo que é máfia, que o interesse deles é reprovar o máximo possível e eu não acreditava. Vou falar: interesse em deixar a gente à vontade eles não têm não. No segundo teste, depois de uma hora no sol, vendo todos aqueles absurdos, saí com o carro e mesmo longe demais do protótipo eu manobrei, porque tive medo de ajeitar e estourar o tempo. Vai que eu teria que tirar e colocar de novo, por “rodas desalinhadas”. Resultado: cuidei tanto das rodas alinhadas que bati atrás, um erro totalmente estúpido. E dale mais duzentos e cinquenta contos.

 

Foi aí que eu tive minha epifania: Freud é quem tem razão. Homem é outra coisa, homem é outra história. Homem não se abala igual a gente. Pode deixar uma hora no sol, dar pito, mandar repetir baliza, não importa. Eles decidem ignorar e ignoram, simples assim. A opinião de mundo e os testes dos outros não importam, porque eles são mais eles. Tudo o que eles precisam, o que realmente importa, já está grudado no meio das pernas deles.

Que ódio.

Quero sacar meu FGTS

Acho dada a frequência com que já ouvi essa história – que é comum pessoas que trabalham em lugares que não entram em acordo, se tornarem empregados difíceis até serem mandados embora. É uma linha tênue entre o ser difícil e o justa causa, o que torna a situação uma guerra silenciosa no ambiente de trabalho. Sempre que sei do fim de relacionamentos onde um dos dois foi extremamente canalha, eu me pergunto se não houve algo semelhante.

 

Me explico com um exemplo: eu conhecia um casal que se dava muito mal. Eles se davam mal naquele nível que constrangiam as pessoas que estavam por perto. O desprezo dela pela opinião dele era evidente, só faltava revirar os olhos e falar “dãr” pra cada coisa que ele falava. Pra ajudar, ele vinha com um divórcio complicado e filhos à tiracolo. Era daqueles relacionamentos que ninguém entendia, e ao invés de dar as costas, aí sim que ela casou com ele. Aguentou ele e todos os problemas que ele trouxe, porque acreditava que não se pode dar as costas pra um casamento. Casamento era dever, era karma, era missão e ela não tinha permissão para romper.

 

Eu achei que o casamento duraria para sempre e soube que os dois se separaram. Sem dúvida a coisa partiu dele. Vai ver que fez algo muito grave, algo imperdoável. Porque ela estava disposta a suportar qualquer coisa para ficar ao lado daquele homem. Quando as coisas são colocadas nesses termos, da missão e do sacrifício, não tem como pular fora sem ser um canalha.

Blackbird

Abandonar os CDs e colocar tudo num pen drive tem vantagens e desvantagens. Abro os arquivos e a primeira música que ele solta é sempre a mesma, a da Carla Bruni, e tô garrando ódio dela só por isso. A vantagem é que me peguei ouvindo todas as músicas que eu tenho dos Beatles e eu nem lembrava que tinha tantas e que gostava de tantas. Deixei tocando e cantarolando, eis que
Blackbird. Passei anos sem conseguir ouvir essa música porque ela me lembrava um ex, uma história muito mal resolvida. Ele tocava violão e gostava de tocar essa música para mim. Então quando começava Blackbird eu tinha que sair da sala, que pular a faixa, dar um jeito. A música me doía não só pela separação, mas também pelo incômodo – que só agora sei explicar – de que meu amado era meio blackbird, ele se via quebrado, esperando, e eu não. Eu estava pronta pra guerrear, pra fazer o que fosse preciso. E foi meio por isso que acabou, porque havia um descompasso muito grande entre os dois e eu sabia que lutaria sozinha.

 

Agora, quando ouvi a música, eu lembrei dele e sorri. Foi bonito. Foi bom. E não dói mais. Acho que esse é o destino dos grandes amores: viram lembranças pontuais e bonitas, que cicatrizam sem que a gente perceba.

Feminices

Eu fico achando que eu e a cobradora do tubo temos um relacionamento, só porque estamos lá mais ou menos sempre o mesmo horário. Eu reparei quando ela sumiu – estava doente – e no dia que estava pintando as unhas e o cabelo todo alisado. Mas quando tento entrar no tubo correndo quase caio na catraca trancada. Ela só libera depois do dinheiro na mão dela, nem carteira aberta a convence. E você acha que eu faria isso com você? tenho vontade de perguntar.

 

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Comprei um esmalte que me prometeu um “efeito diferenciado” nas unhas. Ao invés de ficar com uma unha elitista, parece que eu estava pintando as paredes de casa de preto e não consegui tirar os respingos.

 

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Aquela sensação que toda mulher conhece de ter certeza de que soltou uma enorme bolha de sangue na calcinha. E a partir de então ter medo de sentar, de encostar uma perna na outra, de que te olhem e você está com uma bola vermelha na calça.

 

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Queria ir linda e flamenca pra uma festa, ia até colocar o meu aplique de coque (carinhosamente apelidado de “rato”) no cabelo. Mas na minha atual condição, acho que vou de ônibus e me troco lá. Sem chance pro cabelo. Sou a favor do transporte alternativo e etc., mas coletivismo e glamour não combinam nem um pouco. Pena.

Sem ela saber, a minha amiga morrendo de medo da vida pós-casamento me ajudou muito. Me ajudou perceber o quanto que a minha experiência e a de outros não a ajudava em nada; o quanto ter escolhido o que viria a seguir não ajudava nada; em resumo, o quanto não saber o que nos espera, mesmo que seja algo bom, traz ansiedade. O desconhecido traz ansiedade. Talvez sejamos todos essencialmente pessimistas, e supomos que se não vemos é ruim, se não podemos controlar, vamos nos machucar. 

Tenho feito tudo certinho, e quem me conhece e já passou por situações semelhantes garante: posso estranhar nas primeiras semanas, mas me sairei bem. A solidão, embora difícil no começo, chega a ser viciante de tão boa. Ficamos mais fortes, mais criteriosos, mais amigos de nós mesmos. Uma pessoa que sabe viver com a sua solidão jamais cairá no golpe do amor porcaria. No meu histórico, fui sempre amiga de ficar sozinha, quieta, no meu canto. Já passo muito tempo sozinha. Mas, tal como minha amiga, saber e ouvir são uma dimensão, o sentimento é outra coisa. Medo é medo.

Então, a única imagem que eu consigo ter, é daquele que me parece o melhor exemplo de fé. Penso numa criança que está com medo e o adulto que a ama lhe pede para seguir em frente. O adulto lhe pergunta:

– Você confia em mim?

Ela concorda com a cabeça e vai, mesmo com medo. Porque se aquela pessoa lhe disse para ir, nada de mal pode lhe acontecer.

Offline

Agora eu tenho um celular razoável e poderia acessar WhatsApp e tudo o que quisesse. Se quisesse.

 

(Pode continuar lendo, juro que não farei nenhum discursos clichês sobre as pessoas não estarem mais se comunicando por causa da tecnologia.)

 

Eu estava voltando tarde da noite e vi que quase muita gente estava usando seus celulares. Os que tinham os mais simples, usavam para ouvir música. Outros reliam e mostravam mensagens para os amigos, jogavam com resoluções incríveis ou acessavam seus sites preferidos. Tinha até uma gordinha olhando fotos de comida – uma cena tão clichê que parecia filme.

 

O que eu percebi é que, mesmo no ônibus, ninguém estava no ônibus. O caminho, graças aos arquivos, é quase como estar em casa. Todos envolvidos com o seu mundo, a sua música, as suas coisas. Talvez eu fosse uma das poucas a não tirar o celular da bolsa porque tudo o que eu desejava era estar ali mesmo, no ônibus. Eu não queria estar mais algumas horas adiante porque não tenho conseguido pensar a longo prazo, apenas em pequenas tarefas. O meu futuro é imprevisível (todo futuro o é, mas vivemos na inconsciência disso), por isso incontrolável, por isso assustador. Eu tenho dependido muito do sol, da alegria gratuita da Dúnia, do vento gostoso na janela, da solidariedade dos rostos desconhecidos. Os longos caminhos que me levam aos lugares – e deus sabe o quanto tenho ido e voltado – tem sido tão ou mais importantes do que os meus próprios compromissos. São a minha cura, a minha paz. Eu só consigo isso olhando ao redor e me fazendo presente de corpo e alma. Não posso e não quero acessar minhas coisas, que estão uma bagunça. Não quero levar o meu mundo comigo e sim expandi-lo.

 

Que a tecnologia (agora sim, uma observação pessimista) não nos tire essa possibilidade.

Máquina de abraço

Tenho quase certeza de que é no Antropólogo em Marte que Oliver Sacks mostra a história de uma autista que desenvolvia aparelhos que diminuíam o sofrimento animal durante o abate. Daí a gente conclui que apesar da sua doença, ela conseguiu se desenvolver e levava uma vida quase normal. Lá pelas tantas ela revela ao Doutor Sacks que tinha desenvolvido para si mesma uma máquina que simulava a mesma sensação do abraço. Como autista, ela tinha uma dificuldade natural com contato físico. Mas, ao mesmo tempo, sentia falta. Incapaz de pedir e relaxar no abraço dos outros, ela desenvolveu uma máquina que (pelo que eu entendi) que descia sobre a pessoa como um daqueles cintos de montanha russa e a pressionava. Ela fechava os olhos e se deixava ficar lá, abraçada, amada, o tempo que precisasse. Chega a ser um contra senso a pessoa desenvolver um aparelho que a torne independente de algo que é essencialmente compartilhado.

Nunca tirei essa história da cabeça porque vivo sentindo falta da tal máquina de abraço. Fico me abraçando com ursinho de pelúcia, almofadas, pontas de cobertores, travesseiros. Eles se deixam abraçar mas não devolvem. Máquinas de abraços djá, consórcios de Máquinas de Abraço, Bolsa Máquina de Abraço! O mundo está cheio de gente precisando.

Pazes

Naquela noite minha mochila estava especialmente pesada com o material de costura. Geralmente eu me programo pra fazer algo que não exija muito material quando vou da costura para o flamenco, mas daquela vez eu calculei mal. Fui pelo caminho pensando em que alívio seria tirar a mochila das costas. Bastava chegar na escola – aí eu dançaria, ganharia carona até o ponto de ônibus, iria sentada o trajeto todo e do ponto até em casa é rapidinho. O caminho do ponto até a escola é que é longo. Só que bem naquela noite, justo naquela noite, a aula foi desmarcada. Conseguiram avisar todas com antecedência menos eu. Tentaram me ligar várias vezes. Sempre que pedem meu celular, eu alerto as pessoas que o último lugar pra tentar me encontrar é o telefone, que eu nunca ouço. Lá estavam, as mais de cinco ligações e mensagens. Tentaram também me avisar pelo FB, mas passei o dia longe de computador e não acesso internet pelo celular, então nada feito.

 

Minha vontade foi de dar as costas e ir embora assim que ouvi a notícia. Mas as minhas profes ficaram sinceramente sentidas e quiseram conversar comigo e me compensar de alguma forma. E eu quis que elas não ficassem tão sentidas, que eu entendia o que tinha acontecido, e fiquei conversando com elas um tiquinho. Depois, voltei por todo aquele caminho, com a mochila ainda mais pesada por ser um peso que eu não esperava mais. Nos dias seguintes, ficaria toda dolorida. No caminho, não sabia se calculava como vantagem a uma hora que chegaria mais cedo em relação à programação normal ou as duas horas de prejuízo por não ter voltado direto pra casa depois da costura.

 

Cheguei em casa cansada, com peso nas costas, faminta. E encontrei minha casa escura, inesperadamente escura. Olha, no estado em que eu estava, nem deu pra achar triste, silencioso ou depressivo. Eu só queria tirar aquele peso, aquela roupa, comer alguma coisa, parar. Acho que eu e a casa fizemos as pazes.

Coisas antigas

Uma das minhas peças mais antigas, em terracota.
Por causa de uma reportagem na TV, com meu ex-professor de escultura, andei fuxicando no FB e descobri que minhas antigas colegas de atelier ainda estão lá. Iguais, apenas mais velhas. Olhei para elas e tudo o que vivemos juntas voltou, o fazer escultura voltou: pensar sobre a próxima peça, montar uma estrutura, pesquisar, o trabalho braçal de fazer e tirar o molde, e escolha do material de acordo com o orçamento, a ausência de perspectiva de um dia vender o trabalho. Eu esculpia muito rápido e isso tornava tudo ainda pior. Lembro do cheiro do atelier, da umidade, da maneira como o tempo parava quando estávamos lá dentro. O atelier tinha algo que nos puxava, como um buraco negro, como uma dimensão fora do tempo. É como se elas tivessem ficado aprisionadas lá dentro. Fico feliz de ter fugido, eu vivi intensamente essa última década. Se estivesse lá, estaria ouvindo as mesmas piadas, vivendo as mesmas picuinhas.

 

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Quando alguém me pergunta de uma das minhas esculturas, digo que fiz em uma outra encarnação. Não há maneira melhor de definir meu sentimento com relação a certas coisas do meu passado, que foram tão importantes, tão intensas, mas que nada dizem respeito ao meu presente. Não tenho saudades e nem amargura, são coisas da minha encarnação passada.

 

Recebi uma notificação do correio pra pegar uma encomenda e pagar mais de cem reais, e levo um susto achando que é uma das minhas compras do Ali. Aí o Luiz me explica que o pacote é dele. Por causa de uns parangolés, ele fazia encomendas no meu nome e essa é uma delas. Ele me pediu meu RG e CPF pra poder pegar o pacote pelo correio em meu nome. Veja bem, RG e CPF, documentos importantíssimos. Sorte que ainda nos damos muito bem.

– Quantos pacotes em meu nome ainda vão chegar?
– Tem esse e depois mais uns três.
– Três!?
– Eu não tenho culpa se o correio demora tanto. São encomendas que fiz antes de janeiro.

Eu já desconfiava: janeiro de 2014 também é encarnação anterior.

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Temos nos aventurado por aí, eu e minha Drogon. O nome dela acabou se mostrando muito adequado, porque eu tinha a expectativa de pendurar a bicicleta na sala – acho tão legal, tão decorativo! – e descobri o porquê de bicicletas leves no mercado. Eu não consigo erguer a minha bicicleta, quanto mais pendurar numa parede. Ela realmente é um dragão.

 

Dizer que temos dados voltinhas não é muito exato, o que temos feito é o trajeto que pretendo fazer de bicicleta no futuro, pra ver se meu corpo acostuma. As distâncias não são o problema e sim o fato de que eu moro num lugar alto. Pra sair de casa é tranquilo, pura descida. Pra voltar… Eu volto – esbaforida e querendo chamar uma ambulância, mas volto. Só que depois, lá por umas 19h, estou imprestável.

 

Um efeito colateral inesperado, o único motivo pela qual estou tocando no assunto neste post: tenho feito muito cocô. E não é só isso: uns cocôs fedidos. Tenho certeza que não são resíduos recentes. Quem diria que mesmo andando, nadando e sapateando, um exercício diferente tiraria de dentro de mim umas sujeiras pré-históricas.

Amiga da amiga

Lá na loja de conveniências do posto, sou atendida por dois homens diferentes. Com mais frequência, pelo Fortinho. O Fortinho deve ser um pouco mais novo do que eu, gosta de camisas polo de marca e tem aquele jeito sério de quem é muito profissional. A maneira dele de querer me atender com a mesma cara de como se fosse a primeira vez, como se ele já não soubesse das minhas preferências antes mesmo de entrar na loja, traz à tona meu lado desafiador e tenho me dedicado a ser o mais simpática o possível, pra ver quanto tempo eu levo pra quebrar aquele gelo.
O outro é o Homem de Terno. Ele também é sério, mas talvez pela diferença de idade e a vestimenta, nunca me atrevi a puxar papo. Quando o Fortinho está lá, as mesas e as cadeiras ficam num canto e nunca tem salgados. O Homem de Terno arruma as mesas de forma convidativa, faz pão de queijo e já o flagrei limpando os vidros da geladeira. Ele claramente tem uma relação diferente com aquela loja. Aí numa conversa com a Dani, que trabalha e mora por ali, ela me disse que quem comprou aquela loja é o ex-chefe dela, o Sérgio. “Posso falar que te conheço? Vai que depois de saber que nós somos amigas eu nunca mais sou bem vinda na lojinha do posto.” Podia falar sim, eles se davam bem.
Quando me aproximei da loja na terça e o vi atrás do balcão, fiquei feliz. “É hoje!”. Comprei um hidrotônico e fui pagar.
– Você é que é o Sérgio?
– Sérgio de Isso e Aquilo, já ouviu falar?
– Pior que já ouvi sim.
– (cara de espanto) É? Onde?
–  Nós temos uma amiga em comum.
– Quem?
– A Dani, de Tal Lugar.
Quando a gente diz “fala de mim pro Fulano”, sempre acha que vai ser legal, que vai ser reconhecido, o que nem sempre acontece. É duro, mas temos muito menos importância pros outros do que acreditamos. Minha mãe me contou que uma vez foi num médico por indicação da minha avó, que obviamente disse para minha mãe citar que era filha dela. Minha mãe já começou a consulta com um “eu sou filha da Dona Léa” e o médico ficou repetindo o nome com cara de quem não estava ligando à pessoa. Alguns minutos depois, durante o exame, ele disse “Eu lembro da sua mãe. Uma senhora muito simpática”. “Foi aí que eu tive certeza” – minha mãe, na conclusão da história “- de que ele não fazia a menor ideia de quem eu estava falando. Muitas coisas podem ser ditas para definir a sua avó; que ela é uma senhora simpática sem dúvida não é uma delas”.
Como a Dani foi subordinada do homi, eu imaginei que o Sérgio se lembraria. Mas eu esperava uma reação comedida, um “ah, sim, a Dani”. Ao ouvir o nome dela, ele imediatamente sorriu e foi muito espontâneo:
– Rá! Pense numa pessoa legal!
Fiquei lisonjeada por ela. “Pense numa pessoa legal”. Espero que alguém um dia também reaja assim ao ouvir o meu nome.