A vida é como um grande telemarketing

Eu soube que telemarketing era um dos piores empregos que existiam há uns vinte anos. Uma secretária comentou comigo que uma vez viu que a carga horária era de seis horas por dia e achou que seria ótimo, que daria para trabalhar e ainda frequentar uma faculdade. Depois ela descobriu que não dava. Ela me dizia se lembrar de sair do escritório e sentir um ódio profundo de todos aqueles que entrassem no mesmo elevador que ela. Era tanto maltrato durante aquelas seis horas, levava tanto tempo para conseguir se desentoxicar, que ela não tinha energia para arranjar outra atividade. De lá pra cá, o telemarketing só piorou. Ele se tornou um trabalho tercerizado, com contratos de trabalho. São empresas demitem todos os funcionários e recontratam, abrindo e fechando as empresas apenas no papel, tudo para não ter vínculo empregatício e ter que oferecer vantagens como, por exemplo, férias.

Sabendo de tudo isso, há anos decidi tratar telemarketing o melhor que posso. Apesar de chatos, há uma pessoa do outro lado da linha e ela é a ponta mais frágil de um trabalho explorado. Só que esse “melhor que posso” consegue muito pouco. Recentemente recebi um telefonema da minha operadora de celular, que queria aumentar meu plano. A gente já se arrepende de ter atendido assim que eles começam a falar. Como todo mundo sabe disso, a técnica deles já manda falar sem parar, porque ninguém vai ficar de boa vontade do outro lado da linha. Eu esperei ela terminar a na primeira brecha disse que não gostaria, porque já nem uso direito o plano que eu tenho. Ela não me deu ouvidos e partiu para outro texto, enumerando as “vantagens” que eu teria, e eu comecei a repetir que não queria; ela me ignorou e foi falando por cima de mim, até que eu perdi a paciência e respondi com um tom de voz grosseiro. Só então parou. Terminei a ligação me sentindo muito mal, eu havia estragado o dia de uma pessoa e falhado no meu propósito de ser gentil com telemarketing. Falei dessa frustração no meu twitter e fiquei surpresa com a quantidade de pessoas que compartilhavam desse sentimento.

Uma outra história para falar dessa: quando eu fazia faculdade, uma das minhas colegas era enfermeira e entrou para o exército. Ela não aguentou e saiu anos depois, com processo de assédio sexual e tudo. Ela me disse que, como pessoa muito correta e profissional que sempre foi, tinha a ilusão de que conseguiria ser uma militar com a ficha totalmente limpa, sem nunca ter sido presa. Ela não conseguiu e me disse que havia uma cultura de fazer de tudo para que a pessoa deslizasse e fosse presa, não era pra ninguém passar em branco pelo exército. Tratar com telemarketing é assim, foi feito pensado de maneira a estressar clientes e funcionários, não há vencedores. A única vencedora é a empresa.

Tratar os outros bem e ser uma boa pessoa; falando assim parece ser simples, mas talvez seja uma das tarefas mais difíceis da vida. O “Minha Luta“, o seis livros auto-biográficos de Karl Ove Knausgaard não é a luta pela pureza do povo ou a resolução de grandes problemas sociais (como nos lembra outra obra também chamada “Minha Luta“), e sim a luta de um homem comum em ser uma boa pessoa. O argumento dele é: eu quero ser uma boa pessoa, eu sinto vontade de ser uma boa pessoa, então por que eu não consigo? Por que esses erros, o egoísmo, as escolhas medíocres? Então ele tenta se olhar da maneira mais franca possível. Estou vendo a série sobre o cantor Luís Miguel na Netflix, que o tem como co-autor, e também esta série impressiona pela sinceridade. Parece impensável que seja possível ser lindo, famoso, rico e talentoso e ainda assim sentirmos muito por alguém, mas é o que acontece. Há momentos que Luís Miguel sofre grandes injustiças e infelicidades, assim como há momentos que ele é o agente de injustiça e infelicidade nos outros. Luís e Karl são pessoas terríveis? Não, apenas seres humanos.

Quem está no twitter sabe que, assim que anunciam os nomes de pessoas que vão entrar no BBB, tudo a respeito deles começa a vir a tona. Aparecem ex-colegas de colégio com fotos feias, que baladas que frequentam, os cheques sem fundo, as bobagens postadas em redes sociais. Eu nunca entendi a ilusão das pessoas em relação a ficar confinado e entediado com estranhos durante meses e saírem dali heróis nacionais. Não basta ser uma pessoa popular e boa na vida comum, ninguém sabe direito o que é longe do que está acostumado, o nosso comportamento sob pressão é quase impossível de prever. Da minha parte, eu não tenho qualquer ilusão sobre o que se pode descobrir a meu respeito, e não estou falando de uns tweets com opiniões impopulares – quando já se viveu algumas décadas, nós temos mais do que apenas opiniões feias, nós fizemos coisas feias. Não que eu tenha feito algo que envolva CPFs falsos ou derramamento de sangue, mas eu fiz coisas que exigiriam um olhar carinhoso e empatia para serem entendidas. Ou seja, eu errei, eu me comportei para fora da linha esperada algumas vezes.

Toda noção de moralidade que nós temos fala de um ideal, e não poderia ser diferente. Mas a vida trabalha no particular, nas exceções, nas atitudes tomadas no calor do momento e com um número limitado de informações – isso sem dizer em como cada ser humano é também limitado nas suas reações. Por exemplo, o ideal do casamento fala em fidelidade. Trocando em miúdos, cada parceiro só pode fazer sexo com o seu cônjuge. O que não é mencionado é que os anos de convívio acabam diminuindo o desejo sexual de um pelo outro. Vejam, de um pelo outro, mas cada pessoa continuam sendo um ser desejante. O que fazer com o desejo? No âmbito do ideal, os parceiros podem: ignorar o próprio desejo, tentar reacender a chama, separarem-se ou adotar uma relação aberta. Pessoalmente, concordo muito com relações abertas e poliamor, acho que é a solução do futuro. Mas EU não consigo. Eu me sentiria mal, teria ciúmes, acharia que estou sendo posta de lado. Ou seja, minhas limitações fazem com que das quatro alternativas que eu listei, apenas três são viáveis sem ferir meu próprio senso de moralidade. Tanto pior para mim, não? E é assim mesmo: até existem alternativas melhores ao que estamos fazendo, mas somos contraditórios e o fato de ser melhor não quer dizer que conseguimos. O seres humanos trabalham dentro do campo do possível e não do ideal.

Somos os únicos protagonistas das nossas vidas e o único ponto de vista que temos. Não é verdade quando alguém diz que age pensando sempre nos outros, é impossível. Pensamos em nós mesmos, nem que para isso façamos coisas pelos outros para obter vantagens secundárias, como manter a presença, amor ou até mesmo a possibilidade de cobrar um preço mais tarde. E fazemos sempre o que nos parece melhor a cada momento, mas o problema é que o melhor de cada um leva pode colidir com o melhor do outro. Fora os suicidas, acredito que as pessoas não saem de casa de carro com o intuito de bater em postes, outros carros ou pedestres. Mas cada um com o seu carro e cuidando de si gera acidentes todos os dias. Os carros automatizados, aonde o motorista apenas coloca o destino e o resto é decidido por uma central, provavelmente é a melhor solução para o trânsito. Mas veja que para isso é preciso desistir do controle individual. Adam Smith acreditava que uma Mão Invisível regularia o mercado e garantiria um equilíbrio não pensado pelas partes. Talvez pensar que não existe um equilíbrio natural, que as coisas não vão se ajeitar automaticamente porque somos bem intencionados, seja uma verdade dura demais para ser encarada. Ateus dirão que esta é a base de todas as crenças religiosas.

Há os que dizem: “eu gostaria de ter a sua idade com a cabeça que eu tenho hoje”, mas há também os que acreditam que teriam feito tudo exatamente igual. Em algumas ocasiões, o outro lado chega até nós. Uma vez eu pedi uma pizza e ela demorou muito, e foi a minha ligação para reclamar que fez descobrirem que o motoqueiro havia se acidentado. Quantas vezes que não nos sentimos cheios de razão e até estamos, mas saber o outro lado torna a nossa razão irrelevante, ou até mesmo cruel. Talvez a única ética possível seja: “Se fosseis tratar todas as pessoas de acordo com o merecimento de cada uma, quem escaparia da chibata? Tratais deles de acordo com vossa honra e dignidade”. (Hamlet, ato II, cena II). Eu não gosto e tento evitar, mas tenho que reconhecer: aquela mulher grossa ao telefone que recusou um novo plano de celular também sou eu. 

Já fui longe demais no meu caminho de destruição

O monge olhou para Angulimala como se ele uma pessoa íntegra e digna de respeito.

Angulimala perguntou: “Você é o monge Gautama?”.

O Buda consentiu.

Angulimala disse, “É uma pena não encontrei você antes.

Já fui longe demais no meu caminho de destruição.

Não é mais possível voltar atrás”.

Não é verdade que nunca é tarde para voltar atrás. Não é verdade nas leis da física – o conceito de Flecha do Tempo fala que o universo caminha de uma baixa entropia para uma alta entropia, por isso que os acontecimentos caminham sempre na mesma direção, a que chamamos de Futuro. Voltar no tempo seria como tentar pegar várias partes explodidas e tentar juntá-las de novo, a “bagunça” excederia o volume do objeto original. Voltar atrás tampouco é uma verdade orgânica. Biologicamente, o máximo que se pode fazer é tentar retardar o envelhecimento. Um órgão de uma pessoa de quarenta jamais voltará a ser o mesmo de quando tinha vinte anos, porque aos vinte estamos numa curva ascendente e depois dos trinta começamos a decair. O que se faz hoje é tentar diminuir a angulação dessa curva, tornar menos acentuada, mas sabemos que a direção inevitável é a decadência. Por fim, quanto mais velhos ficamos, mais difícil é a aprendizagem. É muito pequena a janela na infância onde tudo pode ser aprendido, desde a interpretação de estímulos luminosos serem transformados em imagens até habilidades muito especiais e refinadas, como tocar um instrumento musical. Não estou dizendo que, depois que essas janelas passam, é impossível e proibido aprender certas coisas, sempre existem os casos de pessoas que começaram tarde e se tornaram muito boas, etc. O que quero dizer que não é tudo na vida que você pode acordar, tenha trinta, quarenta ou sessenta anos de idade e dizer pra si mesmo: “nessa nova fase da minha vida, serei violinista. Nunca estudei música, mas basta contratar um bom professor e me dedicar bastante e tudo é possível.” Existe um discurso que diz que com força de vontade tudo é possível, e não é verdade.

O mundo adora os jovens, e mais ainda os prodígios. O próprio termo prodígio só se aplica a jovens, se você parar pra pensar. Um adulto que seja muito bom em algo, de certa forma, não faz mais do que a sua obrigação, porque se dedica a uma determinada atividade há muito tempo. E mesmo que ele se revele muito bom em algo que não fazia antes, vamos encontrar atividades correlatas que de forma indireta contribuíram para que ele tivesse um bom desempenho. Os jovens prodígios têm tantos feitos alardeados, que às vezes os feitos infantis se sobrepõem até mesmo ao que produziram de melhor, depois – porque o impressionante é fazer quando criança, depois de adultos era obrigação. Penso sempre em Mozart, que é tão famoso por ter sido prodígio, por ter composto a primeira não-sei-o-que na idade que nós ainda arrancávamos cabeça de boneco com os dentes. O que ele compôs naquela idade é completamente irrelevante, ninguém nem ouviu, as obras maduras de Mozart que são interessantes, mas gostamos muito de repetir a história da infância. A fixação nos prodígios faz com que nós, reles mortais, tenhamos sempre um sentimento de insuficiência. Os prodígios fizeram pelo menos dez anos antes o que você só começou a se interessar agora. Quem mandou demorar pra pensar, quem mandou querer namorar quando adolescente ou brincar quando criança, perdeu tempo!

Verdade seja dita, gostamos muito de pessoas mais velhas que voltam a estudar, talvez porque nem encaremos isso como uma volta. Conhecimento é sempre algo novo. Pensamos em pessoas que tiveram que se dedicar às famílias e ao trabalho e que só depois de tudo resolvido é que finalmente podem ir atrás do que deveria ter lhes pertencido por direito. Queremos pais e avós em universidade, que ter curso superior se torne comum. Eu adoro séries de arquitetura, como As casas mais extraordinárias do mundo e Grand Designs, e acho que não é à toa que nunca apareceu nenhuma casa brasileira por ali. Falta de milionários dispostos a ter casas fabulosas é que não deve ser, nem tudo é questão de dinheiro. Vejo nessas séries técnicas de construção e cálculos elaborados em várias etapas; aqui, o conhecimento é tão verticalizado que imagino que tremendo telefone sem fio seria conseguir fazer metade do que foi pensado pelo projetista chegar lá na outra ponta, na obra propriamente dita. Mas, para o nosso mercado de trabalho, parece que só fazer conta e ler instruções tá ótimo. É muito bonito alguém se formar já maduro, é um enriquecimento pessoal e etc., mas que ele pretenda usar o diploma que acabou de obter para entrar na profissão é outra história. Um recém-formado velho e sem experiência, o pior dos mundos.

As últimas eleições para presidente foram dominadas por fakenews transmitidas predominantemente por whatsapp, mas elas não são um fenômeno isolado, um “privilégio” brasileiro, elas estão relacionadas a um movimento anti-cientificista global. As pessoas não querem mais confiar em especialistas, que fazem afirmações baseadas em algo que só eles mesmos entendem. Por que devo confiar no que diz um livro sobre o formato da Terra se, quando olho para o horizonte, o que vejo é plano? Recomendo muito o documentário A Terra é Plana, da Netflix. Achar simplesmente é que é um bando de gente ignorante, burra e teimosa não ajuda em nada a entender o fenômeno. No documentário vemos que o terraplanismo – e podemos supor que as conclusões valem para teorias conspiratórios em geral – apenas aproveitou uma brecha que já existia na sociedade: pessoas com desajuste social e que encontram sentido de pertencimento em teorias fora do mainstream, com inteligência e espírito investigativo que não encontra meios de expressão no seu dia a dia. Como os próprios cientistas entrevistados no documentário refletem, a emergência das teorias conspiratórias também não deixa de ser um atestado de fracasso à nossa maneira de compartilhar o conhecimento científico, que de tão misterioso e isolado acaba se tornando quase mágico. E, crença por crença, o indivíduo pode se sentir mais empoderado em produzir a sua.

Acho que esta reportagem que saiu na BBC, sobre QAnon e teorias conspiratórias em geral, vai no cerne sobre o problema de se arrepender quando diz:

“Para as pessoas que estão totalmente envolvidas com uma teoria da conspiração, se o que está previsto para acontecer pela teoria não acontecer, não importa. Às vezes é aí que as pessoas se comprometem ainda mais fortemente com a própria conspiração. Isso porque, neste ponto, as pessoas investiram tanto tempo e energia nisso, danificaram suas relações pessoais em nome disso. Virar as costas à teoria da conspiração seria uma admissão de que o último ano, dois anos ou três anos de sua vida foram um desperdício”, explica Young.

O problema de voltar atrás é que nunca realmente se volta atrás, a Flecha do Tempo vai sempre para frente. Eu costumo imaginar a vida humana como uma régua, onde começamos no zero e vamos passando pelos números até chegar ao fim. Reconhecer que estamos errados é como estar lá pelo número trinta e riscar um zero em cima. Quantas vezes na vida conseguimos recomeçar a graduar no Zero sem que isso nos afete pessoalmente, sem o sentimento de vida jogada fora ou de fracasso? Em teoria, é possível reconhecer e apagar continuamente, inclusive é bastante raro que alguém não tome uma decisão que não foi a mais acertada pelo menos uma vez. Ao mesmo tempo, se tudo bem estudar uma graduação e depois trabalhar em outra coisa, se tudo bem ter um relacionamento longo e ele chegar ao fim, se tudo bem parar numa sala de aula com o dobro da idade de todos que estão lá… mas quantas vezes isso é viável? Quem suporta encher a régua da sua vida de zero, riscar aos vinte, aos trinta, aos sessenta, quantas vezes suportamos decidir, arrepender e mudar?

Meu pai bebia muito e a aposentadoria lhe deu tempo livre para beber o quanto quisesse, sem amarras. Aí ele dizia que tinha dificuldade de arranjar companhia, porque ninguém acompanhava o ritmo dele. Mesmo aqueles que, no passado, bebiam tanto quanto ele, já haviam se endireitado; os mais novos, que bebiam o tanto quanto, não viam a menor graça de ter um velho bêbado com eles. Eu lembro de mim mesma aos trinta, no meio de meninas de quinze, fazendo balé. As mães me lançavam olhares espantados e as professoras não sabiam direito o que fazer de mim, tanto que o último ato que me fez largar foi quando a Diretora nem ao menos me avaliou. Fizemos um dia inteiro de prova, fomos testadas de várias maneiras, algo bem rigoroso. Depois, tivemos uma conversa séria de avaliação, que continha não apenas as notas como comentários sobre o desempenho na prova e no ano inteiro, sugestões, perspectivas de futuro. Ouvi durante horas todas as avaliações das outras meninas, fui deixada por último. Quando finalmente chegou a minha vez, a Diretora disse: “não tem en dehors” e dispensou a turma. Não tinha, é biológico, e eu não tinha mais como desenvolver, não tinha corpo pra balé, pra quê perder meu tempo falando mais – foi isso o que ela disse sem dizer naquela frase curta. Entendo pessoalmente sobre começos e recomeços, então sei que até para se arrepender e se “endireitar” existem expectativas – sobre quem você é, quais as suas obrigações, quantos anos você tem. Depois de certa idade, não é mais pra passar vergonha bebendo ou querer fazer balé. A sociedade espera que determinadas mudanças de rumo aconteçam até certas fases; depois que “época certa” termina, deixa de achar interessante e passa a ver como ridículo, motivo de vergonha.

Ao mesmo tempo, o desejo de voltar atrás seja um dos sentimentos mais básicos, aqueles que nos tornam mais humanos. Não estamos sempre chafurdando a vida dos nossos ídolos através de biografias e/ou revistas de fofoca para descobrir seus pés de barro, que um grande talento por um lado também acompanha grandes problemas em outros setores, algo que também para o ídolo não foi tudo perfeito e em algum setor da vida ele diferente? Ou, dito de outro modo, alguém é capaz de acreditar na estrela que é rica, talentosa, boa pessoa, come rúcula, é feliz no amor e sempre amorosa com os filhos? Sabemos que ninguém passa incólume pela vida. Queremos descobrir as imperfeições não necessariamente para criticar, e sim para humanizar. O arrependimento é tão humano existe uma categoria especial de pessoa que faz qualquer tipo de atrocidade e nunca se arrepende: o psicopata. E a eles temos horror.

A existência de um sacramento como a Extrema Unção (que agora é chamado de Unção dos Enfermos) mostra que até o último minuto é possível se arrepender, e que mesmo sem a menor oportunidade de transformar o arrependimento em atitudes, ele tem valor. Angulimala virou monge, protegido por Buda, mas ainda assim teve que lidar com a fúria das pessoas pelo que fez. É a finitude da vida humana que tornam o voltar atrás ao mesmo tempo apavorante e bonito. Para Anne Rice, em Entrevista com Vampiro, a perspectiva de uma vida infinita literalmente matava os vampiros de depressão, porque depois de algum tempo o tédio era insuportável. Borges, em O Aleph, nos faz acompanhar um explorador em busca da fonte de juventude eterna, e ele por fim descobre que os bárbaros que estavam por ali eram os Imortais. Embrutecidos, imóveis e sem ambições, a eternidade era para eles uma maldição. “Encarados assim, todos os atos são justos, mas também indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível é não compor, nem uma única vez, a Odisséia”. (p.20). Nós só nos arrependemos porque agimos, só agimos porque vivemos; só nos arrependemos porque o tempo que nos resta é pouco, e é o pouco tempo que temos que torna a vida preciosa.

O sonho burguês

O sonho burguês nos trai. Descobrimos que o nosso trabalho mal nos sustenta, quanto mais salvar o mundo. Que o nosso talento não é tão grande assim, pelo menos não o suficiente para nos tirar da multidão de anônimos que sai de casa e volta para casa justo no horário de maior movimento. O amor eterno não dura e vira lembranças negativas, traumas, cinismo na hora de começar novas relações. Ou, durante a relação, descobrimos que chulé quebra qualquer clima, junto com as toalhas molhadas, o som do secador de um enquanto o outro tenta dormir mais um pouco, ter que aguentar parente chato que nem é consanguíneo nosso. O sonho burguês nos leva a nos conformar em não ser realmente bonito, contanto que se possa pagar por coisas bonitas, quem sabe comprar alguém realmente novo e bonito para nos fazer o favor da sua companhia. Mas, se não passarmos pelo sonho burguês, como saber. Pior do que ser iludido pelo sonho burguês é nunca chegar até ele, e sonhar com emprego, o príncipe, a casa, os filhos, o amor eterno para sempre. Todos temos o direito a viver um pouco do sonho burguês.

suelo

As pessoas-ilhas

Arquipelagos-2

Quando eu vejo ruínas de antigas civilizações, tento imaginar como era pro cidadão que vivia lá. O egípcio ou o romano que saía de manhã cedinho e passava pelos portões de pedra, que olhava para areia em todo lugar ou aquedutos, e olhava para o mundo à sua volta e imaginava que seria sempre daquele jeito. Porque vemos as ruínas e pensamos no final, em quando estava se desfazendo e esquecemos que muitas vidas passaram por ali e viveram um período totalmente estável. Até a revolução francesa, que nos parece que foi um banho irrestrito de sangue, poupou alguns nobres, até mesmo nobres franceses. Eu fiz um passeio por uma cidade aqui perto – se lembrasse, diria qual foi – e visitei uma Casa Grande que pertenceu a uma ordem religiosa. Ainda havia restos das paredes aonde os escravos viveram e a casa em si tinha paredes inteiras decoradas. O interessante é que a ordem saiu de lá e durante quase um século a casa fosse gerida pelos seus próprios escravos. Ou seja, durante muitos anos, que sabe a vida inteira de alguém, viveram negros que não eram escravos na época que todos os negros eram escravos. Negros que puderam sonhar, fazer as suas coisas e quem sabe nunca tenham vivido a decepção da casa ser vendida e se tornarem escravos comum. Um negro que acordava cedo e passava por aquele gramado com a mesma confiança do egípcio e do romano. São vidas que são como ilhas, diferentes do que acontece à sua volta, isoladas. Fico curiosa sobre elas. A gente grita tanto por aí que a realidade é a maioridade estatística, que a realidade é tragédias, cidades poluídas e frias, boletos, lutar contra tudo e todos; quando encontramos alguém que não vive assim, que mesmo adulto é alegre e saltitante, dizemos que uma hora ou outra a realidade vai arrancá-lo da sua alienação –  porque a vida tem dessa crueldade, de perscrutar cada cantinho. Mas não, alguns realmente conseguem escapar e viver uma vidinha perfeita. Sorte deles.

Acabarão as fitinhas

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Eu faço controle de contas, tenho caderno de citações, cadernos de anotações diversas. E todos eles são marcados com uma fitinha do Senhor do Bonfim. Um dos cadernos acabou, e fui com urgência na livraria comprar outro bem bonito, porque seria mais um dos que vai me acompanhar durante anos, passeando entre os cômodos, recebendo anotações no sofá. Escolhi com todo carinho e quando cheguei em casa e fui correndo colocar a fitinha. Aí me deu aquele agridoce: eu tenho vários pacotinhos de fitinhas porque meu pai me enviou. Um dia – não sei nem dizer há quantos anos – eu mandei uma mensagem pro meu pai dizendo que estava sem fitinhas e se ele poderia me mandar algumas. Pouco tempo depois chegou uma caixa de correio com uma quantidade tão exagerada de pacotes, cada um deles com umas dez de cores diferentes. Tenho usado há anos sem me preocupar em contar, sabe quando você tem tanto de alguma coisa que é como se nunca fosse faltar? Foi um gesto de carinho de quem estava longe, de quem gostaria de oferecer muito mais e já não tinha como. “Acabaram as fitinhas”, eu pensei, como se já fosse passado. Não acabaram fisicamente, mas acabou. Já disse, assim que ele morreu, acabou Salvador, acabou tudo. Não que eu não tenha como comprar, não que eu não tenha quem me envie, mas acabou. Quem já se despediu de uma fase da vida sabe como é ver, pouco a pouco, as coisas se renovarem – peças de roupa que perdem cheiros, eletrodomésticos que ficam superados, lugares e hábitos totalmente inéditos. A cada mudança, vai embora uma testemunha da nossa história que nunca mais voltar.

Você não é Kardashian

Eu percebi que as grandes impaciências e infelicidades na vida são porque cremos que merecemos de tudo. Por isso, vivo repetindo pra mim mesma: você não é uma Kardashian, a vida não tem obrigação de te dar nada. É como se tivéssemos uma cartela de bingo imaginária: carreira – amor – dinheiro – viagem à Europa. Eu preenchi a viagem, mas cadê o mozão. Eu tenho um emprego, mas não quero preencher o item carreira, porque é apenas um ganha-pão que não me realiza. Tenho amigos, mas de que me adianta se não tenho casa. Vamos às cartomantes porque ela disse que vai aparecer, mas está demorando demais, os papéis ficaram retidos na burocracia do além, onde fica o setor de reclamação celeste. Tudo isto é porque, no fundo, temos uma lista do que a vida nos deve. Nos deve porque queremos, porque todos têm, porque gente muito pior do que eu tem e tem o dobro. Alguns recordam que a vida não lhes deve nada quando acontece uma tragédia ao lado, tipo uma amiga muito jovem para quase morrer. Aí lembramos: nada é garantido, nem ao menos a saúde. Se o mozão que a cartomante prometeu demorar, tem que ficar feliz porque pelo menos tem mozão, alguns nem isso. Muitos morrem sem jamais colocar os pés na Europa – e não há nenhuma tragédia nisso. Talvez o que você tenha é isso aí, é o que tem pra essa existência: a viagem até a cidade vizinha, os amigos que marcam em lugares baratos porque eles também têm empregos modestos, o nascer do sol pela janela do ônibus, beijar o galã da rua, economizar muito para trocar de sofá. Vamos quase todos morrer sem deixar qualquer traço na história da humanidade. Alias, os Kardashian também.

otro dia más

Esperando o Cristo

budista e niilista

Sem querer ser desrespeitosa, mas não consigo pensar numa comparação melhor. Esperar por Cristo é acreditar numa promessa vaga de uma volta que juram que pode ser a qualquer momento, amanhã mesmo, e de amanhã em amanhã já se passaram mais de dois mil anos. Mas, depois de tanto tempo, quem disse que não pode ser amanhã o amanhã de verdade? Então é preciso estar preparado, com a casa de ordem e boas ações no currículo.

Tá difícil. Tem época que dá pra largar mão de tudo: horário para acordar ou dormir, alimentação saudável, higiene, falar com pessoas, acompanhar as notícias. Dá pra abandonar pouco a pouco qualquer contato com o exterior e ficar preso apenas na auto-comiseração. Porque é difícil responder “tudo bem” quando nada está bem. E quando há um desespero coletivo, você nem ao menos consegue alguém que te dê uma mentira positiva porque ninguém está vendo saída em lugar nenhum. Mas é preciso levantar cedo, mesmo sem ter um compromisso depois; manter as unhas e os cabelos aparados, mesmo sem ter ninguém que nos olhe; comer a comida saudável e fazer exercício, mesmo sem ter quem se importe ou quem peça. É preciso fazer como aqueles que esperam Cristo, que se mantém ativos mesmo sabendo que o tal amanhã é uma conversa de mais de dois mil anos. É preciso encontrar forças mesmo na mais vaga das promessas, se preocupar com o que não está visível no horizonte. Não temos certeza da melhora, mas dá pra ter certeza da entropia natural das coisas, da desordem, da dispersão, da crueldade do tempo sobre os corpos, da maneira como o mundo parece cada vez mais assustador quanto mais nos afastamos dele. Se por um lado o esperar Cristo pode parecer uma prontidão vazia, sem ela nos tornamos totalmente inúteis – aí pouco importa em que dia estamos.

Viver é levar uma bandeja com água num tobogã

Eu estava conversando com uma amiga dia desses, ela estava tentando mudar seu padrão acumulador. Não sei o quanto a cada dela está abarrotada, não acredito que seja até o teto e com o cadáver de um gato sumido por detrás de revistas, mas ela me pareceu bem culpada. Pelo dinheiro gasto, pelo espaço ocupado, pela inutilidade da coisa, etc. Eu estava no celular e odeio digitar pelo celular, então quem sabe se não fosse isso eu pudesse ter lhe dito que lembrava de outra amiga, que para arranjar o emprego dos sonhos saiu de uma cidade no interior de SC e foi para o Rio de Janeiro e trabalhou com o que amava, mas cercada de muita competição e machismo. Ela passou por um período acumuladora também, gastava uma nota em sapatos. Foram alguns anos de Carrie Bradshaw, que também a chatearam. Eu lhe disse: nova, sozinha, numa cidade estranha, enfrentando tudo o que você enfrentou, queria o que, passar sem nenhuma válvula de escape?

Não sei se isso é vida real para quem vive em país subdesenvolvido econômica e culturalmente, ou se dá pra afirmar universalmente: a vida é dura. É uma crise atrás da outra – ou juntas. Na maior parte da vida, somos aquelas pessoas que descem no tobogã segurando uma bandeja (eu via no programa Silvio Santos, mas o vídeo que eu achei é do Ratinho), com esperança de conseguir manter um tiquinho de líquido ali. Estamos sempre tendo que aguentar alguma coisa, nos compensando de alguma coisa. Alguns fazem isso com sapatos, outras com namoros, sei lá. Quando nova, tinha a ilusão de conhecer meus defeitos e superá-los; hoje sei que quem consegue controlar o mecanismo que dispara um só defeito já fez muito nessa vida. Como disse para as duas: se pra comprar um monte de coisas, você apenas ficou um pouco pobre, ainda está no lucro. O grande desafio na vida é não fazer uma besteira irremediável, a si mesmo e aos outros.

As dificuldades

dificuldades

A vida na internet me colocou em contato com muita gente que escreve bem. Nós não sabíamos, mas estávamos todos naquela idade das possibilidades. Ou talvez um deles soubesse, quando me dizia: “você sabe que o que eu invejo não é o que você escreve, e sim você continuar escrevendo”. Porque ele, na verdade, foi um dos que eu conheci pós-escrita. Ele foi dono de um site delicioso, que teve muitos fãs e lhe permitiu “comer muita gente” (palavras dele). Eu acreditei piamente que um dia todos nós estaríamos num cocktail, comentando nossas críticas, dizendo por debaixo dos panos que Fulano ou Beltrano nem é tudo isso, que a literatura brasileira anda mesmo bastante decadente. Eu pensava, como na tirinha do Liniers, que a gente lutava contra os nossos fantasmas, contra o fato do que o que pareceu lindo na imaginação, praticamente um livro inteiro, se transformar em poucas linhas medíocres quando finalmente sentamos para escrever. Mas estes entraves – sei agora – são o de menos. O problema são os vazamentos do Intercept. Eu fico doida, não consigo pensar em mais nada. Clico em cada paródia, tenho que dividir todos os memes. Fui atrás do filme do Snowden (Netflix), ainda não tinha visto. Vi o David Miranda dançando e agora quero formar um trisal com Glenn e David (mas me conformo com um jantar). Quando o que me invejava-porque-ainda-escrevo me falou isso, eu lhe respondi que ainda escrevia porque não conseguia parar. Na expressão dele vi que isso soou muito invejável, mas talvez isso seja apenas um atestado da minha falta de saúde psíquica. Eu poderia ter lhe dito que ele se diverte em comer gente, em se envolver com as questões dos filhos, em frequentar bons restaurantes e eu não tenho nada disso. Até já tive, mas hoje estou sem restaurante, sem dinheiro, sem companhia, sem nada. Passo dias sem interagir com nenhum outro ser humano que não seja atendente da padaria. Uma pessoa mais normal se angustiaria; já eu acostumei e gosto. Até minha mãe se angustia pela minha recusa em conhecer gente. Meu mundo praticamente se resume a escrever e, sob este ponto de vista, eu sou extremamente incompetente. De todos os amigos escritores que eu imaginava um dia discutir, um deles ganhador do Nobel, o outro autor de crônicas, eu aparecendo disfarçada de personagem no livro de alguém, aquele que realmente conseguiu escrever foi um que não fazia alarde. Mais inteligente, ele não se propôs a nenhuma revolução, ouviu muitos conselhos e surpreendeu a todos com livro bacana, editado, recomendável; comparado com a nossa empáfia e publicidade, ele foi um verdadeiro um azarão. Conseguiu porque é professor, vida estável e disciplinado. A nossa culpa, dos que não escrevemos os famosos livros, é do Intercept, do divórcio, dos vídeos de gatinhos, dos app, dos astros. Pelo menos uns dez anos se passaram e estamos numa idade “ih, daí não sai mais nada”. Ou será que ainda sai?

Tartaruga na árvore

Há um dito que fala que se você encontra uma tartaruga numa árvore, ou teve enchente ou alguém colocou lá, porque subir sozinha é que não foi. Quanto mais profundamente me conheço – nessa cisma tão grande de ser eu ao longo da vida – e olho para a realidade lá fora – tão diferente do caminho que meu auto-conhecimento me levou – chego à conclusão que não posso ouvir mais esse ditado com ouvia antes, com a indignação de quem vê as pessoas que não merecem prosperarem. Porque sendo eu tão tartaruga num mundo cheio de árvores, só esperando ajuda da natureza ou de uma mão amiga pra conseguir um dia ser alguém no mundo.

Eu continuo a andar, mas para aonde?

passo

Extremo oposto

amigos mais talentosos

Hoje eu me pergunto se sempre foi tão impossível pra mim ter uma mente matemática ou se me falhou algo a mais, como aulas de robótica – um amigo colocou me contou que o filho lhe pediu pra fazer esta aula e achei incrível que exista. Sempre tive pra mim que matemática era a minha pior matéria mas, quando estudava em colégio particular, ela ser minha pior matéria queria dizer que eu precisava tirar 0,5 ou 1,0 para passar no quarto semestre, porque eu já estava passada em tudo no terceiro. Foi quando mudei para escola pública que degringolou, a física me caiu como impossível logo nas primeiras aulas. Mas, ainda assim, era apaixonada por trigonometria e gostava de voltar pra casa fazendo contas hipotéticas de logaritmo na cabeça.

Outra grande inveja minha é músico. Sempre tive pra mim que não os alcanço, que não ouço o que eles ouvem, que vivo num universo menor. Tenho um bom ouvido, sou afinadinha pra cantar, gosto de música clássica, mas não adianta, ninguém me convence de que eles não têm algo que eu não tenho. Minha impressão foi justificada quando li Alucinações Musicais – um livro incrível, principalmente pra quem for da área – e ele confirmou que o cérebro de quem estuda música desde criança se diferencia muito dos cérebros não-musicais.

Minha ideia pra uma encarnação posterior que realizasse o que não pude nessa é sempre foi que eu gostaria de nascer numa família que me colocasse diante de um instrumento desde cedo. De alguns anos pra cá, enfiei a matemática na fantasia. Ainda mais que música e matemática são bastante aparentadas, eno a fantasia ainda é bastante coerente.

Eu vi uma definição muito bonita sobre o auto-conhecimento; veio de um astrólogo, mas vale para tudo. Você nasce com algo na mão, digamos que um lápis. O que você precisa descobrir é o que fazer com ele. Você pode insistir em querer pintar uma parede ou esculpir uma pedra, mas se você usar o lápis para escrever ou desenhar, você vai muito mais longe na sua vida.

A vida é tão curta, então tem lógica que você descubra o melhor e vá atrás dele. Não me parece que a gente consiga fazer mais do que dois caminhos, quando muito. Mas, para além do que é fácil, existe também uma outra possibilidade: recusar o que lhe foi dado, fazer algo radicalmente distante. Por querer, para pisar em lugares desconhecidos de si mesmo. Até onde alguém que foi programado para A e B consegue se fizer Z?

(Às vezes lágrimas, amigos)

Dashas e vida de borboleta

zodiac copy

Se pegar um mapa normal de astrologia, normal digo ocidental, eu sei dizer mais ou menos quais são os trânsitos que estão acontecendo. Já a astrologia védica tem um cálculo tão diferente, que por mais que eu olhe, ainda não consegui entender a lógica. Fui em sites e procurei os tais dos dashas, e cada dasha tem os subdashas, digamos assim, que são as subdivisões dos períodos. Alguns duram anos, e começam no meu aniversário, outros duram meses outros sei lá daonde. Não foi nada bom saber que estou em Rahu-Saturno e as referências dizerem que une o mais temido com o pior. Preveem que eu procurarei um astrólogo, o que entendi que era outra forma de dizer: você vai ficar bem desesperada e vai pagar alguém pra te dizer o que está acontecendo. E, de fato, tentei procurar um astrólogo védico. Meu dasha temido e pior começou em 2017 e vai até 2020. Pensem na minha alegria ao ler isto.

Aí, CDF do jeito que eu sou, copiei tudo no word e transformei numa tabela. Período, quando começou, quando terminou e um espaço em branco do lado. Coloquei no espaço os fatos relevantes da minha vida, pra ver se entendo a lógica da relação entre os fatos e os períodos. Que.ex.pe.ri.ên.cia. A vida me bater na cara e me dizer que não sou importante já tem sido tão frequente que já chego protegendo o rosto, mas desta vez foi diferente. Eu me senti uma borboleta – nunca minha vida me pareceu tão curta e irrelevante. Anos e anos de espaços em branco, nada de realmente significativo pra registrar.

Nasci.

Mudança pra Curitiba.

Mudança pra escola pública.

Entrei na faculdade.

Terminei faculdade.

Atelier.

Casei.

Outra faculdade.

Flamenco.

Separei.

 

Omiti uma ou duas coisinhas muito íntimas, mas basicamente é isto. E se for pensar no que eu realmente decidi, no que manifesta meu livre arbítrio e decisões enquanto pessoa, são ainda menos itens. A gente toma uma ou duas decisões na vida, o resto é tempo perdido no trânsito.

O decurso geral da vida

carboidratos complexos

Isto não é uma louvação a Trotsky:

“Durante 43 anos de minha vida consciente fui revolucionário”, escreveu, “e durante 42 anos lutei sob a bandeira do marxismo. Se tivesse que começar tudo outra vez, tentaria evitar este ou aquele erro, mas o decurso geral da minha vida permaneceria inalterado. Morrerei sendo um revolucionário proletário, um marxista, um materialista dialético e um ateu irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é hoje menos ardente (antes, mais firme) do que era nos dias de minha juventude.”

Leonardo Padura/ O homem que amava cachorros

 

Já falei aqui, acho, que tem astrólogo que diz que a pessoa já nasce com tudo o que vai fazer em vida programado, do mesmo modo que vamos ao cinema ver um Batman sabendo tudo o que vai acontecer e nem por isso deixamos de ver. É uma ideia bastante esquisita e com várias consequências, nem sei se boas. Eu acredito num determinismo social, colocar as estrelas no meio já é crer que ele não é ao acaso. Não sei. O que sei é que me parece que é como Trostky descreveu, que só os detalhes sem importância poderiam ser mudados. Estamos o tempo todo diante de decisões sem importância, como o que colocar no leite do café da manhã ou que música ouvir. As decisões realmente importantes, aquelas que mudam o curso das nossas vidas são duas ou três. Cada um sabe quais foram as suas. Quando penso nas minhas, também acho que não faria diferente. Não que eu tenha gostado de todas as consequências, não que acredite que sou a melhor versão possível de todas as escolhas possíveis, e sim porque eu sei que não poderia ter feito diferente. Não quem eu era, não da maneira como eu via o mundo, não com o que eu sentia fome de viver.

Guarda-roupa

guarda roupa

Minha tia preferida passou um período morando na casa do meu pai, em Salvador, e depois voltou para São Paulo. Sobre o período, ela me disse uma vez: “bem quando eu tinha conseguido fazer um excelente guarda-roupa, deixei de usar todos os meus casacos”. Olha, difícil. Eu considero que até hoje não montei o guarda-roupa que eu queria pra Curitiba, que me garanta estar à vontade quando é pra ficar à vontade e elegante nos momentos elegantes, ainda estou chegando lá. Semana passada eu fui mandar a minha bicicleta pra fazer uma revisão, algo que exige de mim uma programação extra, porque normalmente ando de bicicleta com roupa berrante e elastano e se deixo a bicicleta pra ir de ônibus (e vice-versa), preciso de algo intermediário. Naquele dia me programei, pronta para pagar pros freios novos e quem sabe até pneu. O cara foi sincero e me disse que não precisava, ela estava excelente. Deixei ela lá pra fazer a super limpeza e revisão, considero que é o meu IPVA. Paguei, perguntei se não precisava pegar uma ficha, algo que descrevesse qual delas era a minha bicicleta. “Imagina, você já é de casa”, ele me disse. Não esperava, eu passo lá poucas vezes por ano. De roupa mais ou menos berrante e colante, fui comer no posto de gasolina de sempre; agora eles olham pra mim e já vão pegando o café e o pão de queijo de provolone. Tem o vizinho que conserta coisas, o pão de queijo certo, a turma de que topa confraternização na data que eu propus, a turma que marca segunda confraternização pra eu ir, o verdureiro que dá as dicas, a loja de bike de confiança… Enquanto mordendo o pão de queijo quentinho, pensei: o que a vida vai me aprontar agora? Porque ela é assim, não pode ver um guarda-roupa ajeitadinho que manda a gente pra longe.

Pedras arredondadas

pedra rio

Durante muito tempo, eu considerei a minha ex-sogra como uma vilã do meu casamento. Com os anos as coisas foram anuviando, igual uma metáfora que eu vi que as pessoas que convivem são como pedrinhas numa garrafa, que de tanto se machucarem acabam ficando redondas. No final do processo de separação, eu lembro que olhei pra ela – deve ter sido no dia da assinatura do divórcio, ela estava de testemunha – e senti pena do nosso caminho juntas ter terminado. O mesmo sentimento de quando eu saí de casa para casar e sabia que dali por diante nunca mais moraria com meu irmão e minha mãe de novo. Eu mesma fiquei surpresa com o sentimento, porque nunca tive por ela o afeto de uma filha. Fiquei triste pelo ciclo que se encerrava. Fomos pedrinhas que se machucaram muito, detestaram ser encerradas na mesma garrafa, e no final se entendiam mais. Quando deixamos de conviver, eu vi que havia um tempo que faríamos parte da vida uma da outra, que teríamos algo a acrescentar à vida uma da outra, e que ele se encerrava ali para nunca mais – e eu sabia que passamos tempo demais nos detestando. Tenho certeza que com a nova nora dela, ela pegou muito mais leve e demorou bem menos para mostrar seu lado agradável; da minha parte, se um dia que voltar a ter uma sogra, cederei muito mais do que cedi com ela. Quem sabe o legado que tínhamos para deixar fosse esse. O que me tocou muito foi ver que, tivéssemos cumprido ou não o que tínhamos que cumprir, o nosso tempo havia acabado. Agimos como se as coisas fossem durar para sempre e na verdade o mais comum é que durem pouco – cinco anos, uma década, muito raramente duas décadas. Cada um segue a sua vida, esse evento único e complicado; algumas pessoas andam alguns metros do nosso lado e depois se vão. O ideal é que seja caloroso, o ideal é que sejam boas lembranças. Nós não temos obrigação de ficar, os outros têm o direito de partir.

Ilibada

no-de-oito

Lembro de uma enfermeira que eu conheci, que num determinado momento da vida prestou concurso para trabalhar nas Forças Armadas. Nunca convivi muito com ninguém que foi das Forças Armadas, então repetirei apenas o que ela me disse, ok? Quando ela entrou, por ser uma pessoa correta, achou que conseguiria ter um currículo sem nenhuma prisão. Isso acabou não acontecendo. Lembro de um rapaz que me contou que foi preso porque se atrasou. Minha amiga nem me contou o motivo, mas ela foi presa. De acordo com ela, existe uma pressão pra isso, que de certa forma era pretensão dela achar que nunca seria presa, as pessoas não largam do pé até que aconteça.

Eu acho que a vida também faz isso com a gente. Temos a pretensão de passar ao largo dos erros – mas, à medida que avançamos, a coisa vai ficando confusa e as escolhas limitadas. Muitas vezes o moralmente correto é escolher entre o sacrifício anônimo e o prazer. Quando conhecemos aquele que parece que conseguiu passar por tudo sem cometer um deslize, ele não passa uma impressão feliz, pelo contrário, soa mais como arrogante e invejoso. Isso me faz pensar que o erro (ou pecado, use o termo que quiser) é inevitável, e na balança o não jogar o jogo seja o pior deles.