Eu soube que telemarketing era um dos piores empregos que existiam há uns vinte anos. Uma secretária comentou comigo que uma vez viu que a carga horária era de seis horas por dia e achou que seria ótimo, que daria para trabalhar e ainda frequentar uma faculdade. Depois ela descobriu que não dava. Ela me dizia se lembrar de sair do escritório e sentir um ódio profundo de todos aqueles que entrassem no mesmo elevador que ela. Era tanto maltrato durante aquelas seis horas, levava tanto tempo para conseguir se desentoxicar, que ela não tinha energia para arranjar outra atividade. De lá pra cá, o telemarketing só piorou. Ele se tornou um trabalho tercerizado, com contratos de trabalho. São empresas demitem todos os funcionários e recontratam, abrindo e fechando as empresas apenas no papel, tudo para não ter vínculo empregatício e ter que oferecer vantagens como, por exemplo, férias.
Sabendo de tudo isso, há anos decidi tratar telemarketing o melhor que posso. Apesar de chatos, há uma pessoa do outro lado da linha e ela é a ponta mais frágil de um trabalho explorado. Só que esse “melhor que posso” consegue muito pouco. Recentemente recebi um telefonema da minha operadora de celular, que queria aumentar meu plano. A gente já se arrepende de ter atendido assim que eles começam a falar. Como todo mundo sabe disso, a técnica deles já manda falar sem parar, porque ninguém vai ficar de boa vontade do outro lado da linha. Eu esperei ela terminar a na primeira brecha disse que não gostaria, porque já nem uso direito o plano que eu tenho. Ela não me deu ouvidos e partiu para outro texto, enumerando as “vantagens” que eu teria, e eu comecei a repetir que não queria; ela me ignorou e foi falando por cima de mim, até que eu perdi a paciência e respondi com um tom de voz grosseiro. Só então parou. Terminei a ligação me sentindo muito mal, eu havia estragado o dia de uma pessoa e falhado no meu propósito de ser gentil com telemarketing. Falei dessa frustração no meu twitter e fiquei surpresa com a quantidade de pessoas que compartilhavam desse sentimento.
Uma outra história para falar dessa: quando eu fazia faculdade, uma das minhas colegas era enfermeira e entrou para o exército. Ela não aguentou e saiu anos depois, com processo de assédio sexual e tudo. Ela me disse que, como pessoa muito correta e profissional que sempre foi, tinha a ilusão de que conseguiria ser uma militar com a ficha totalmente limpa, sem nunca ter sido presa. Ela não conseguiu e me disse que havia uma cultura de fazer de tudo para que a pessoa deslizasse e fosse presa, não era pra ninguém passar em branco pelo exército. Tratar com telemarketing é assim, foi feito pensado de maneira a estressar clientes e funcionários, não há vencedores. A única vencedora é a empresa.
Tratar os outros bem e ser uma boa pessoa; falando assim parece ser simples, mas talvez seja uma das tarefas mais difíceis da vida. O “Minha Luta“, o seis livros auto-biográficos de Karl Ove Knausgaard não é a luta pela pureza do povo ou a resolução de grandes problemas sociais (como nos lembra outra obra também chamada “Minha Luta“), e sim a luta de um homem comum em ser uma boa pessoa. O argumento dele é: eu quero ser uma boa pessoa, eu sinto vontade de ser uma boa pessoa, então por que eu não consigo? Por que esses erros, o egoísmo, as escolhas medíocres? Então ele tenta se olhar da maneira mais franca possível. Estou vendo a série sobre o cantor Luís Miguel na Netflix, que o tem como co-autor, e também esta série impressiona pela sinceridade. Parece impensável que seja possível ser lindo, famoso, rico e talentoso e ainda assim sentirmos muito por alguém, mas é o que acontece. Há momentos que Luís Miguel sofre grandes injustiças e infelicidades, assim como há momentos que ele é o agente de injustiça e infelicidade nos outros. Luís e Karl são pessoas terríveis? Não, apenas seres humanos.
Quem está no twitter sabe que, assim que anunciam os nomes de pessoas que vão entrar no BBB, tudo a respeito deles começa a vir a tona. Aparecem ex-colegas de colégio com fotos feias, que baladas que frequentam, os cheques sem fundo, as bobagens postadas em redes sociais. Eu nunca entendi a ilusão das pessoas em relação a ficar confinado e entediado com estranhos durante meses e saírem dali heróis nacionais. Não basta ser uma pessoa popular e boa na vida comum, ninguém sabe direito o que é longe do que está acostumado, o nosso comportamento sob pressão é quase impossível de prever. Da minha parte, eu não tenho qualquer ilusão sobre o que se pode descobrir a meu respeito, e não estou falando de uns tweets com opiniões impopulares – quando já se viveu algumas décadas, nós temos mais do que apenas opiniões feias, nós fizemos coisas feias. Não que eu tenha feito algo que envolva CPFs falsos ou derramamento de sangue, mas eu fiz coisas que exigiriam um olhar carinhoso e empatia para serem entendidas. Ou seja, eu errei, eu me comportei para fora da linha esperada algumas vezes.
Toda noção de moralidade que nós temos fala de um ideal, e não poderia ser diferente. Mas a vida trabalha no particular, nas exceções, nas atitudes tomadas no calor do momento e com um número limitado de informações – isso sem dizer em como cada ser humano é também limitado nas suas reações. Por exemplo, o ideal do casamento fala em fidelidade. Trocando em miúdos, cada parceiro só pode fazer sexo com o seu cônjuge. O que não é mencionado é que os anos de convívio acabam diminuindo o desejo sexual de um pelo outro. Vejam, de um pelo outro, mas cada pessoa continuam sendo um ser desejante. O que fazer com o desejo? No âmbito do ideal, os parceiros podem: ignorar o próprio desejo, tentar reacender a chama, separarem-se ou adotar uma relação aberta. Pessoalmente, concordo muito com relações abertas e poliamor, acho que é a solução do futuro. Mas EU não consigo. Eu me sentiria mal, teria ciúmes, acharia que estou sendo posta de lado. Ou seja, minhas limitações fazem com que das quatro alternativas que eu listei, apenas três são viáveis sem ferir meu próprio senso de moralidade. Tanto pior para mim, não? E é assim mesmo: até existem alternativas melhores ao que estamos fazendo, mas somos contraditórios e o fato de ser melhor não quer dizer que conseguimos. O seres humanos trabalham dentro do campo do possível e não do ideal.
Somos os únicos protagonistas das nossas vidas e o único ponto de vista que temos. Não é verdade quando alguém diz que age pensando sempre nos outros, é impossível. Pensamos em nós mesmos, nem que para isso façamos coisas pelos outros para obter vantagens secundárias, como manter a presença, amor ou até mesmo a possibilidade de cobrar um preço mais tarde. E fazemos sempre o que nos parece melhor a cada momento, mas o problema é que o melhor de cada um leva pode colidir com o melhor do outro. Fora os suicidas, acredito que as pessoas não saem de casa de carro com o intuito de bater em postes, outros carros ou pedestres. Mas cada um com o seu carro e cuidando de si gera acidentes todos os dias. Os carros automatizados, aonde o motorista apenas coloca o destino e o resto é decidido por uma central, provavelmente é a melhor solução para o trânsito. Mas veja que para isso é preciso desistir do controle individual. Adam Smith acreditava que uma Mão Invisível regularia o mercado e garantiria um equilíbrio não pensado pelas partes. Talvez pensar que não existe um equilíbrio natural, que as coisas não vão se ajeitar automaticamente porque somos bem intencionados, seja uma verdade dura demais para ser encarada. Ateus dirão que esta é a base de todas as crenças religiosas.
Há os que dizem: “eu gostaria de ter a sua idade com a cabeça que eu tenho hoje”, mas há também os que acreditam que teriam feito tudo exatamente igual. Em algumas ocasiões, o outro lado chega até nós. Uma vez eu pedi uma pizza e ela demorou muito, e foi a minha ligação para reclamar que fez descobrirem que o motoqueiro havia se acidentado. Quantas vezes que não nos sentimos cheios de razão e até estamos, mas saber o outro lado torna a nossa razão irrelevante, ou até mesmo cruel. Talvez a única ética possível seja: “Se fosseis tratar todas as pessoas de acordo com o merecimento de cada uma, quem escaparia da chibata? Tratais deles de acordo com vossa honra e dignidade”. (Hamlet, ato II, cena II). Eu não gosto e tento evitar, mas tenho que reconhecer: aquela mulher grossa ao telefone que recusou um novo plano de celular também sou eu.
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