Disfuncional

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Ele foi uma das pessoas mais disfuncionais que eu conheci. Tão disfuncional, com o mundo e com ele mesmo, que se matou. Deixou tudo organizado e se atirou debaixo de um ônibus. Ele conseguia ser feio, ter cheiro desagradável, falar cuspindo e sem noção ao mesmo tempo. Era uma pessoa tão difícil que eu um dia o encontrei na rua e ele estava todo feliz, porque trabalhava num órgão público, desses que pagam uma fortuna, e deram para ele uma função que o permitia passar o dia inteiro fora. Pros teus colegas de trabalho preferirem que você ganhe praticamente sem aparecer é porque a coisa é feia. Eu o encontrava em dois ambientes de aula ao mesmo tempo e nos dois as pessoas se afastavam assim que ele chegava. Arranjava confusão, se achava mais qualificado do que gente quilômetros de distância melhor que ele. Do tipo que vira pra uma mulher e reclama: um bando de mulher de TPM! Só que no meio de tantas manias irritantes, de chegar perto demais, dos assuntos que não despertavam interesse, ele virava pra você e dizia coisas gentilíssimas. Do nada, ele percebia que te notou, valorizava quem você era e fazia, te fazia ganhar a semana. Nenhuma mentira, ele apenas pegava o que via de bom e devolvia, transformava em palavras o que estava no ar e presenteava. Essa estratégia me fazia pensar que, ao contrário do que parecia, ele percebia os efeitos que causava. Era disfuncional, consigo e com o mundo, pouca gente gostava dele, mas havia ali a capacidade de oferecer calor.

Fio vermelho

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A palestrante nos mostrou a caixinha de acrílico onde nossos fiozinhos vermelhos ficaram durante não sei quantos dias, com uma palavra protetora grudada, debaixo de uma piramide. O fiozinho vermelho, de algodão, deve ser colocado no pulso esquerdo, primeiro com um nózinho seguido de outros seis, e com a recitação conjunta da oração, em língua oriental, por alguém que amamos. Nesse momento, abaixei a cabeça e disse “me fudi”, o mais discretamente que eu pude. Mas na falta de um amor, podia ser o coleguinha do lado. Eu havia conhecido meu colega do lado, o Henrique – perguntei logo depois da oração, só pra ficar menos casual – poucas horas antes, quando eu lhe ofereci para colocar a bolsa dele na cadeira que puxei exclusivamente para colocar a minha, algo que mais ninguém tinha feito. Depois, como eu ficava me inclinando na hora de copiar as projeções, ele me disse para ficar à vontade para me sentar ao lado dele, o que eu acabei não fazendo. Ou seja, já era quase amor. O problema é que o fiozinho era comprido, pensado tanto para pulsos femininos e como masculinos e no meu dava quase para dar duas voltas. Eu conseguiria dar os nós com duas voltas, mas é porque sou boa nisso; como eu sei que homem raramente tem uma boa coordenação fina (tente pedir pra um ajudar como ganchinho do colar pra ver), estendi meu braço pro Henrique com uma volta só. Sobrou fiozinho vermelho pra caramba. Olhei para aquele fio escorrido no meu braço e fiquei imediatamente incomodada. “Pode cortar, né?”. Henrique ficou na dúvida. Eu olhei de novo pro meu pulso e pensei alto novamente (vergonha!) que no dia seguinte nadaria e aquilo ficaria balançando na água. Na hora o Henrique me perguntou “Essa é a razão do cabelo curto?” e eu fiquei sem graça. A moça da frente, que também tinha cabelo curto, entrou na conversa. Eu disse que ia cortar a sobra do fiozinho pra não me dar vontade de cortar tudo, e que também não suportaria cortaria caso ele durasse muito tempo e ficasse nojentinho igual fita do Senhor do Bonfim. Ela foi procurar a professora para perguntar do fio e o Henrique elogiou a minha resolução, pois “é melhor se propor a fazer algo possível” – leitor amigo, o Henrique estava dando em cima de mim? Aí a moça voltou com o tom satisfeito e nos informou a regra: não podia cortar o fiozinhos, era pra enrolar a sobra nele mesmo. Eu disse: “Ahn… Tá” enquanto enrolava inutilmente o troço. Se eu reencontrar o Henrique, será que o fiozinho dele também tem um cotoco na ponta?

Un manoir à Neufchatel, ce n’est pas pour moi

Todo mundo já foi lá, então não sabiam me indicar certinho o endereço. “É uma casa na frente do Parque Barigui”. A localização não é ótima apenas por ser um parque – morar na frente do Barigui significa morar, no mínimo, numa casa muito boa. Mais provavelmente numa mansão. Aí me deram umas indicações, fica no meu caminho quando passo de bicicleta, eu apenas não sei qual delas. Voltando da aula, com minha roupa de pedalada e mochila nas costas, passei reparando e achei. Pode ser uma casa enorme que fica à esquerda ou uma mansão estonteante que fica à direita. Só vai ser meio chatinho à noite, se ninguém me der carona. Cada vida tem suas características, seus desafios, e eu percebo que a minha me faz conviver com grupos muito diferentes. Há pessoas que dizem: “não conheço ninguém que voltou na Dilma”, ou “todos meus amigos são do mundo artístico”, ou “somos um grupinho dos que estudaram no Colégio Tal”. Eu nunca, sempre foi tudo muito misturado, tão misturado que jamais poderia colocar todo mundo no mesmo ambiente. Um dia ouço uma mulher falar do período que passava fome e no outro a que reclama de ter ir a Europa de novo. Olhei para a casa que ainda conhecerei, e lembrei de um amigo que reclamou que eu não o levava junto quando tinha convite high-society. Ele queria ir mesmo sem conhecer ninguém, via como oportunidade. Em compensação, tem outra que poderia e faz questão de não ir. Olhando as mansões de bicicleta, lembrei que muitos de lá dentro tem a mesma idade que eu, de carne o osso também, quem sabe até menos qualificados. Em algum lugar, quem sabe, eu devesse desejar estar lá, lutar para isso, não perder tão feio quando sou comparada aos meus primos. Deveria não estar tão feliz apenas montada numa bicicleta, com dinheiro contado e escrevendo coisas que caem sem efeito no mundo. Mas eu realmente nunca quis, nunca fiz por onde, é como se em algum momento tivessem dado o sinal de largada e eu não ouvi. Não sei se é porque nunca quis ter filhos e não tenho que deixar um legado. Talvez seja porque a gente aprende desde cedo a não sonhar com o que está longe demais – sou de humanas, curso de humanas não enriquece. Zaz, pensei. A moça que ganhava dinheiro cantando nas ruas. A música que me soou tão adolescente. Quem sabe também me diga respeito.

Pomada

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Ela atendia os pacientes em casa. Uma moça chegou por indicação, parente de uma cliente assídua. A moça precisava de ajuda porque estressada, em fase de mudanças. O atendimento acontecia na sala de estar mesmo, já organizada para esse fim. O banheiro disponível era o seu banheiro mesmo, o único do pequeno apartamento. Na pia, apenas um sabonete líquido para os clientes. No armário apertado atrás do espelho, pasta de dentes, escova, fio dental e uma pomada que ela passava toda noite. Era uma pomada de tuia, feita em farmácia de manipulação, uma embalagem de 5g dentro de uma caixinha. Ela tinha umas pequenas verrugas no rosto que queria tratar sem fazer cicatriz, então passava a pomada todas as noites para ver se as verrugas regrediam (regrediram). Como o combinado, a moça chegou, foi atendida, tudo transcorreu normalmente. No fim do atendimento, a moça pediu para usar o banheiro. Ficou poucos minutos lá dentro e foi embora. Naquela mesma noite, antes de dormir, ela foi passar a pomada no rosto e a caixinha estava vazia. Depois a parente da moça ficou sem graça com a descontinuidade do tratamento – a moça ficava de ligar e não ligava, sempre sem tempo e estressada. Os atendimentos eram justamente para ajudá-la nisso.

Teve outra que deixou de vir para não devolver uma sombrinha.

Uma historinha oriental

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Gosto muito de histórias antigas, parábolas orientais, não sei nem dizer onde eu lia tantas. Nelas, um homem anda distraído e fazia um gesto qualquer – dá esmola, ajuda a velhinha a atravessar a rua, deixa o faminto ficar com metade do seu sanduíche – sem saber que exatamente naquele momento estava passando por um teste. O mendigo era na verdade enviado de Deus. Só que para as coisas não serem tão simples, o sujeito da história não é realmente bom; a ajuda que ele dá é feita mais por convenção e preguiça, o sujeito deu sorte deu sorte e no fundo não merecia a dádiva – ou seja, o teste divino tinha mais de uma camada, e o anjo era apenas aparentemente ingênuo ao distribuir suas bençãos. Só pra não deixar tudo no ar, cito uma dessas histórias: o sujeito deu uma esmola pra um mendigo, que era na verdade o Arcanjo Miguel, que em agradecimento eu a ele o direito de passar 5 min com o Livro do Destino. O livro era como um grande catálogo telefônico, com o nome de todas as pessoas da terra e tudo o que lhes aconteceu e acontecerá. Do lado, lápis e borracha. Era pro fulano procurar o seu próprio nome e reescrever sua vida como quisesse. Só que ao invés de fazer isso, ele procura os desafetos e se dedica a estragar as vidas deles. Depois de ferrar com todo mundo, quando finalmente vê o próprio nome, fulano descobre que coisas horríveis o aguardavam e não consegue apagar porque o tempo acaba. Acho o detalhe dele chegar a ler um requinte de crueldade.

Não vou falar o óbvio sobre a lição de moral. O que me chama atenção é outra coisa, não sei nem se consigo explicar. Eu vejo que tendemos a achar que a vida vai funcionar como um espetáculo: tem uma data marcada lá no fundo, o grande dia especial e, até lá, tudo vai ser de brincadeirinha, nada sério. Vamos repetir mil vezes, cometer todos os erros que devem ser cometidos, pra chegar no momento realmente importante e arrasar. Só que as coisas quase nunca funcionam assim, nem existe O Dia. A vida nos pega de surpresa, no meio do caminho, tal como o anjo do teste. A namorada que era pra ser um casinho engravida, o curso que se faz por fazer vira ganha pão, os móveis das Casas Bahia que eram só pra quebrar um galho ficam vinte anos na sala. “Essa mulher/ ocupação/ mesa brega que está aí não me representa, o que combina comigo é algo melhor, eu caí numa armadilha!”. Lamento, não caiu não.

Entrincheirados

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Longe de mim querer tirar sarro dos japoneses, não é nada disso. Está registrado, é fato histórico, que muitos anos depois de terminada a guerra ainda existiam alguns soldados japoneses que continuavam nos seus postos. Isolados, sem saber que o Japão já havia sido derrotado e se rendido, eles se mantinham firmes nas suas posições. Sem saber, realizavam o papel patético de continuar lutando com um inimigo que havia se retirado. “Alá, um soldado japonês”, eu tenho vontade de dizer em certas ocasiões.

A árvore que cai na floresta vazia

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Antes de mais nada: a atitude mais antifilosófica que pode existir é a resposta imediata. Este é um dos grandes males do nosso mundo hoje, talvez a origem: a necessidade de responder de uma vez que sim ou que não. O zen – pelo menos o zen com que sonhei a minha vida inteira através dos livros – trabalha justamente com a atitude contrária. Ele tem os chamados koans, que são perguntas que podem não fazer muito sentido e que servem de objeto de meditação para o discípulo. Num deles, se perguntava se Buda realmente existiu. Acho forte pedir para alguém que largou tudo e se propôs a uma vida monástica colocar em dúvida se o ser que teria dado origem à sua religião. Aqui, do lado cristão, as pessoas agem como se Deus fosse ficar ofendido.

Depois de anos sem ler sobre o zen, me pego com este koan dançando na mente:

Se uma árvore cai numa floresta e não tem ninguém lá para ouvir, será que ela faz barulho?

Eu vi e testemunhei momentos lindos. Tive uma professora de balé que quando se aproximava da barra para mostrar um exercício modificava a ar à sua volta de uma forma que céu e terra se encaixavam. Conheci uma recepcionista com um bom humor invencível e que conseguia tirar o melhor de quase todo mundo que cruzava seu caminho. Eu vi carinho e generosidade de quem não tem nada ou quase nada, vi lágrimas de amor em ponto de ônibus, desconhecidos que se ajudam na rua cientes de que nunca mais se verão. Eu me pergunto sobre performances artísticas com energia de mudar o mundo e que tiveram meia dúzia de parentes como público. Eu já vivi, como tantos outros já viveram, estalos internos e arrebatamentos que não podem ser descritos em palavras. As estrelas olham para nós e eventualmente olhamos para elas no mesmo momento. Amazônias inteiras. Como, aonde?

Frustração, frustração e Chico

Eu descobri uma vez um escritor frustrado, que era amigo de outro escritor frustrado. Era – pouco tempo depois da descoberta, eles devem ter tido alguma briga e se bloquearam no face. Tanto que depois não descobri mais o Fulano, porque o nome era comum e eu contava com o outro para encontrá-lo. O fato é que ele tinha algumas coisinhas publicadas no mural, e na impossibilidade de julgar a qualidade delas, coloquei num grupo de amigos, sem qualquer introdução. De primeira, gostaram, acharam que embora escatológico era interessante e bem escrito. Na segunda – “é o cara do cocô de novo? Já deu!”. Não sei o que pensa um escritor da Finlândia, eu sei que aqui é muito fácil dizer que a culpa das edições pagas com o próprio bolso não venderem é de temos um pouco inculto, que mal abre um livro, etc. Tenho muito medo de ficar assim, de verdade.

Bem naquela época eu estava viciadinha nesta música do Chico. Tem aquela brincadeira que nenhuma mulher diria não pra ele, né? Ouvindo esta música, mergulhando nesta música, colocando história e rosto na música, pensei no quanto o Chico é doce. Talvez seja o momento que tenha me dado um Eureka. Cresci ouvindo Chico e às vezes um artista está tão sempre na nossa cara, tão dado e normal, que perdemos a dimensão da sua genialidade. O Chico é um doce. Uma música de fala de sexo de uma maneira intensamente terna. A gente se sente lá, naquele momento que depois pode não dar em nada, ou em crime, mas que é lindo, confuso, apaixonado e se carrega pela vida inteira. Pensei que era esse o problema do primeiro e do segundo escritor frustrado: um grande artista nos leva para o mundo dele. Queremos estar com ele, pulsar ele, ver com os olhos dele. Pra ficar no rame-rame ou pensar em cocô, ninguém precisa de ajuda.

O engenheiro de obras do Niemeyer

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Meu pai é engenheiro e meu irmão é arquiteto. Esse meu irmão me ensinou a apreciar o trabalho de Niemeyer, a radicalidade do seu trabalho que não se parece com mais nada, nem com seu entorno. Meu pai diz que a questão não é o Niemeyer e sim o engenheiro de obras do Niemeyer. O Niemeyer desenha a curva fabulosa e é o engenheiro que tem que fazer o cálculo de como tornar aquela curva viável, resistente, usável. Voltei esse comentário com o meu irmão, que rebateu:

É verdade. Mas se depender do engenheiro ele faz uma reta e pronto, faz tudo reto. É o Niemeyer que joga pra frente, que obriga a fazer o que de outra forma ele jamais faria na vida. Niemeyer lança o desafio e o engenheiro tem que correr atrás.

Vocês viram This is it? Viram documentários sobre o Darcy Ribeiro? Trabalhar com gente assim dói no lombo e é bão.

Curtas escritos nas estrelas

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Na busca por novos posts no blog, que quase sempre me atormenta quase à meia noite, hora que gosto de postar, comumente quero procurar outros blogs para ver do que eles estão falando e ver se me inspiro. Ultimamente, como era de se esperar, não há um único. Os que continuam vivos postam uma vez por bimestre, sei lá. Só eu continuo aqui. Insanidade, persistência?

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Sei umas coisas de astrologia e sempre usei para consumo próprio. Recentemente, numa conversa em grupo de whatsapp, me vi analisando três mapas. Assim, na brutalidade, olhava e falava o que me dava na telha. Num deles, necessidade de amigos, de contatos, de amor, de dividir, de… e me conscientizei do quanto o meu mapa é solitário. Tem arte, tem literatura, tem até amor universal, mas eu cá e vocês lá.

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O que me remete a amiga que me manda mensagens falando de amizades verdadeiras, duradouras, imagem de amigas bem velhinhas. Tenho vontade de avisar: você realmente não sabe com quem está lidando.

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A cada dia que passo, me pareço cada vez mais com o Touro Ferdinando. Já fui o Sapo Cantor, hoje sou Touro Ferdinando. Pro bem e pro mal, o tempo faz com que o importante se reduza a duas ou três coisinhas.

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Tive um sonho. Nele um ex-crush (uma história que eu me interessei, me aproximei, me encantei, descobri coisas e terminei tudo sozinha) escreveu (era como se fosse numa folha de almaço) que acompanhava vários blogs, cita uma amiga minha que trabalhava com internet e depois coloca um nome que parece Caminhante Diurno. Olho fixamente, a imagem está borrada, eu me esforço, aquela dificuldade dos sonhos. No fim, é um outro nome. Sinto uma dor profunda no coração: meu blog é desconhecido.

Desencontro

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Eu passei todo funeral do meu ex-sogro normal. Algumas vezes eu sentia que as lágrimas vinham e voltavam para dentro dos olhos e deixei. Mas naquela manhã muito chuvosa no cemitério, com o gramado encharcado, olhei para os filhos e a viúva molhados, acompanhando sozinhos o caixão descia, e chorei muito, incontrolavelmente. Por eles, pelo significado tão difícil daquela cena. Eu não sei se foi isto ou se foi no momento que cheguei ao lado da minha sogra, poucas horas antes, sem dizer nada, e lhe abracei, que ela passou a gostar de mim. Ela passou grande parte do casamento me achando uma péssima escolha. Os parentes do interior, que nunca tinham me visto na vida, não cansaram de me dizer “você é uma pessoa tão legal, nós tínhamos uma impressão totalmente oposta de você!”. Depois minha sogra continuou fazendo tudo o que ela fazia antes – me receber, preparar almoços, fazer sala -, só que com um carinho palpável. Eu achava uma pena e não tinha como dizer, não ainda; mais de dez anos haviam se passado e ela nunca se deixava convencer, nunca tinha realmente me olhado. Quando percebeu, o período que tínhamos juntas estava chegando ao fim.

Será falta de chocolate?

Pensei em falar sobre o professor Victor, que tinha acabado de voltar de Paris 7  e falava das Paixões Tóxicas na Adolescência, tese que ele tinha acabado de defender. Estar apaixonado, adolescentemente apaixonado, era como usar droga. Pensei em falar de drogas, da DMT (documentário Netflix) que leva a estados de viajar pelo universo, conversar com as células, sentir o amor que permeia tudo. Pensei em Bhakti Yoga, em meditação, no grande objetivo que é controlar a mente, termo que me confundiu durante muito tempo, e hoje me parece que é mais uma retirada do que uma imposição. Do quanto eu meditava e me isolava na adolescência até ver de nada importava a paz de espírito cheia de exigências, que eu deveria conseguir me manter equilibrada no turbilhão da vida.

Mas o mais honesto mesmo é dizer: passei a vida incólume a esse sentimento, me sentindo meio superior e sentindo pena, mas finalmente chegou: virei uma fã.

Um moreno

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Era uma festa de ciganos e, como um espécie de presente, nosso anfitrião disse que quem quisesse poderia fazer uma rápida consulta com as ciganas. Claro que eu aproveitei. Não quis falar nada pra ela, queria ver aonde ia chegar. A cigana me conhecia apenas de vista e assim que olhou a minha mão disse que eu já tinha sido casada. Até aí, informação fácil. Depois disse uma ou duas coisinhas a respeito do meu casamento que eu juro que nenhum dos presentes tinha como saber, fiquei impressionada. Eu disse que falavam pra mim de um moreno que ia aparecer, mas que moreno demorado. Não lembro que termo que usei ao invés de aparecer, sei que ela me corrigiu dizendo que ele já me conhecia de alguma forma, apenas não via razão para se aproximar. No começo eu pensei: “Poxa, comassim moreno, me conhece e não me dá bola?” Depois eu gostei. Só por que me viu ou me leu por aí era pra mover céus e terras, ficar apaixonado à distância, me stalkear, ficar cheio de ilusões? Isso é coisa de gente louca ou carente, quem está bem segue seu caminho. Um dia, conversando comigo, aí sim poderíamos ver se rolava uma afinidade e faria sentido ele se aproximar de mim.

Foi então que eu descobri o quanto a minha visão sobre o amor mudou.

Cronista

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No mesmo caixa da mesma padaria, estava um jornal que havia sido uma revista mas que mantinha sua linha editorial de socialites curitibanos. No primeiro número, estava na caixa uma moça mulata que não tenho visto mais por ali, e eu lhe disse que não pegaria aquela porcaria porque conheci a antiga editora e era uma dessas pessoas que faz com que a gente se sinta mal ao lado dela, que te diz com um olhar que te considera inferior porque detectou em você a ausência de algum símbolo de status. E que, ironicamente, hoje ela trabalha como terapeuta. Quando nos olhamos nos olhos, a moça da caixa expressou a solidariedade de quem sabia bem do que eu estava falando. Só que hoje, muitos números depois, havia no canto inferior direito da capa do jornaleco uma foto de um rapaz bonito, da minha faixa etária, com o sobrenome estrelado do primeiro ginecologista que eu fui na vida, e lá dizia que ele retratava Curitiba através de suas palavras. Não resisti ao apelo e enfiei o jornal na sacola junto com o pão e o bolo. Entre mordidas, li com a impaciência de quem vê a falta de talento ser exaltada por bons contatos, desprezei os livros publicados de próprio bolso e vendido apenas a amigos, obtive a confirmação de tudo quando soube que era um colaborador assíduo daquele mesmo jornal, outrora revista, de socialites, daquela que despreza com o olhar. Depois de comprovar que eram muitas as páginas de fotos de inaugurações e festas, o jornaleco foi pro lixo reciclável; depois, decidi que pode me ser útil no futuro, para desentupir privada, e já que peguei de volta mesmo, conferi a exclusiva palinha do novo livro do Fulaninho. Li. Não é um gênio, não é um idiota. Tentei ver, para além de todas minhas frustrações, se ele conseguia. Se ele tem o que todos querem e nos transforma em tolos que tentam aprisionar fantasmas. Quis saber se ele tem o dom de nos fazer interromper uma frase pela forma como ela nos atinge, se nos puxa para o mundo dele como uma energia irresistível. Quis desfazer aquele trabalho e me vi emudecida pela minha incapacidade de ter uma panorama: o meu é melhor?

Balanço

no balanço

A ninguém é dado viver tudo. Uma amiga reencontrou, depois de vinte anos, um amor de adolescência. Ambos lembraram de como eram unidos, do quanto doeu se separarem, que quiseram manter contato e a mãe dele não passou o endereço novo para ninguém, foi como se tivesse ido para outro mundo. “E se”, ela dizia, e eu lhe disse que provavelmente casariam e ficariam juntos e perguntei se ela preferia que ele tivesse sido seu único e primeiro em tudo – namorado, marido, homem, pai da sua filha. Pela cara que ela fez, acho que não.

Eu fiz muitas coisas e pra todas elas investi tempo, dedicação e sonhos. Conheci a área, seu cotidiano, as pessoas, os valores, lugares importantes, vocabulários. Só que o dinheiro – esse grande e único indicador de sucesso – não vinha e eu partia para outra, e nela investia tempo, dedicação e sonhos. A cada momento achei que lá era o meu porto e queria ficar, e teria ficado, desde a primeira escolha, se tivesse feito sucesso. Teria me casado e deixado de ver e viver tudo o que vi e vivi. Prefiro do jeito que eu fiz, muitas vidas em uma.