29. Christina Oiticica e o novo Paulo Coelho conhecem uma mulher misteriosa

Eles se viram no meio da rua; talvez pela sonolência e a surpresa, nem atinavam onde estavam e para onde deveriam ir. Todos os planos de Christina Oiticica iam até a placa e resolver o problema, ela não quis nem pensar na possibilidade de não dar certo. A tristeza tomou conta deles, dos seus rostos, dos seus gestos, nos passos desanimados, nas sombras que projetavam na rua. As sombras que as ruínas projetavam eram sombras tristes, os ecos dos passos na rua eram perdidos, o ar da noite era de desesperança. Surgiu, eles não souberam localizar da onde, uma mulher muito velha e expressão bondosa. Sem dizer nada, ela fez um gesto com a mão pedindo para que eles a seguissem, e eles foram atrás dela por dentro de uma ruela escura.

A mulher virou uma ruína pra lá, uma escadinha medieval pra cá, entrou num beco e, numa rua sem saída, entrou numa portinha ao lado de uma loja de souvenires numa construção toda de pedra. Subiram um andar e a escada era de pedra e os degraus altos, desajeitados. Quando a porta da frente se abriu, deram de cara com a sala e uma ampla janela com vista para a praça. A lua estava cheia e a sala cheirava incenso. A mulher acendeu a luz, mas ela era tão fraca que foi quase como se não tivesse acendido. As paredes eram forradas de tecidos de cores intensas e detalhes bordados em dourado. Christina Oiticica e o novo Paulo Coelho sentaram em volta da mesa redonda e aguardaram em silêncio enquanto ouviam a movimentação na cozinha. Pouco tempo depois a mulher surgiu com xícaras descombinadas cheias de café com leite e algumas bolachas.

O nome dela era Tâmara. Ela lhes perguntou pouca coisa, os seus nomes e de onde eram. Achou o Brasil “tão longe”. Ela não, nasceu e cresceu naquele lugar, naquela casa. Embora estivessem os três à mesa, Christina Oiticica percebeu que era como se ela não existisse – Tâmara se dirigia somente a Paulo Coelho, que lhe correspondia com um olhar hipnotizado, absorvido. Enquanto mexia vagarosamente o café e fazia a porcelana tilintar de maneira ritmada, Tâmara então começou a lhes contar da sua mãe, que usava uma saia volumosa que se arrastava pelo chão e mal lhe cobria os pés descalços. Que o corpo da mãe cheirava a incenso e curry. De que puxava a saia para chamar atenção da mãe, que lembrava das suas mãos presas na saia, tufos de tecido entre os nós dos dedos gordinhos. O braço bronzeado da mãe sobre a mesa, a mão forte que subia e descia com a tesoura quando ela fazia roupas para as duas. Daquela mesma janela, ela via o homem passava pela rua acendendo os lampiões. A casa tão quente com o forno à lenha, os adultos que apareciam na janela para chamar quem estava na rua. O pão com alecrim. Enquanto Tâmara falava, a lua se movia lentamente no céu, criava sombras estranhas e Christina sentia suas pálpebras pesarem. Jogar frutinha nos turistas em cima da árvore. O amor, ah, o amor. O calor quando via o moço bonito esperando ela passar pra pegar água. As roupas apertadas quando os seios começaram a despontar. A mão do vizinho por debaixo da blusa, no muro que fica logo ali. O vestido de casamento reformado de presente da vizinha. Partir um pão em quatorze pedaços pra ele durar a semana inteira. Tiros de madrugada, os soldados de Franco. A vida crescendo dentro dela. Os olhos da mãe se tornando azuis.

Quando a lua completou todo seu passeio e o sol surgiu no horizonte, rasgando o céu limpo e transformando em desenhos de elefantes miúdos, padrões geométricos e flores de lis o que até pouco tempo eram pequenas manchas nos tecidos, Christina Oiticica abriu os olhos e viu de novo onde estava. Piscou, e piscou novamente tentando ajustar o olhar, tentou espantar o sono e as visões. Mas não era o sono e nem visão: as linhas em torno dos olhos e da boca de Tâmara se desfaziam suavemente, exibindo um rosto forte de uma mulher morena de lábios carnudos, enquanto Paulo Coelho perdia seus cabelos, a gordura se acumulava na barriga e suas mãos exibiam manchas senis.

 

FIM

28. Christina Oiticica e o novo Paulo Coelho tentam desfazer a magia cigana

O problema é que Dom Pepe havia dito que eles deveriam encontrar a placa, mas não o que fazer. Chegaram ali e nada aconteceu. Christina Oiticica chamou Paulo Coelho, que naquele instante estava fazendo um post no Instagram e lhe pediu para tocar a placa, se concentrar. Nada ainda. Ela pensou então em puxar uma oração, que também não adiantou. Ela socou a placa, chorou, apertou os olhos e fez força, tentando dirigir seu pensamento pra algum lugar. Christina Oiticica se sentia cada vez mais desesperada, afinal a pessoa que entendia de magia ali não era ela.  Depois dessas duas tentativas, ela queria continuar por ali, na esperança de ter alguma iluminação ou que algo acontecesse, e Paulo Coelho quis se afastar para continuar seu passeio. Ela lhe disse que ele não podia se afastar dali, ele não queria ficar, ela lhe disse que aquilo não era um pedido e eles começaram a discutir. Então ela foi obrigada a abrir o jogo, e dizer que eles estavam ali porque Dom Pepe lhe disse que era aquela a maneira de reverter o rejuvenescimento.

Christina Oiticica havia escondido a informação até aquele momento porque sempre viu o novo Paulo Coelho saltitante por aí, e acreditava que ele estava muito feliz com a nova condição. Mas, depois de lhe dizer a verdade, pela primeira vez desde que ele havia rejuvenescido, ela viu de novo o olhar do seu marido brilhar naqueles olhos. Ele lhe confessou que não estava feliz em estar jovem daquela maneira. Ele sentia que o raciocínio dele não chegava mais aonde chegava antes. Se por um lado sentia mais energia, não sabia mais o que fazer com ela. Terminou dizendo que sabia que ela não o amava mais e isso partia o seu coração, e começou a chorar. Realmente, seu marido estava se perdendo, chorar daquele jeito… Os dois se deram as mãos e rezaram juntos em voz alta, sem parar.

Foi ficando escuro e cada vez mais silencioso. Com pausas para descansar, Christina Oiticica e o novo Paulo Coelho insistiam. Eles tentaram de tudo um pouco, Paulo Coelho até mesmo bateu a cabeça contra a placa. Num desses intervalos, se sentaram e acabaram cochilando.

Eles foram acordados com chutes nos pés de um policial. Foi rápido: ninguém podia passar a noite ali. O policial não quis ouvir qualquer explicação e os tocou pra fora.

27. Christina Oiticica leva o novo Paulo Coelho para Sevilla

Quando falou para Paulo Coelho que os dois iriam viajar para Sevilla, Christina Oiticica estava pronta para lhe contar umas mentiras, mas não foi necessário – foi só falar em viagem que ele correu animado para o quarto e fez as malas. Por sorte, Sevilla não era tão grande e com as dicas que Pepe lhe forneceu – placa perto de ruínas – a busca não seria impossível.

Eles saíram cedo pela cidade, antes das 8h, e mesmo assim o calor já castigava com quase 30ºC. As ruínas mais famosas a serem visitadas eram as romanas; Christina Oiticica, àquela altura, não tinha a menor vontade de vê-las, mas era importante para manter diante do novo Paulo Coelho uma fachada de viagem turística. Entusiasmado, ele queria ver tudo, fotografar, conversar com as pessoas. Enquanto observava Paulo Coelho comprar uma coleção de lembrancinhas, Christina Oiticica percebia que, quanto mais o tempo passava, mais a sua mente se perdia e em breve Paulo Coelho deixaria de ser um homem que rejuvenesceu para se tornar apenas um homem jovem. Do ponto de vista dele, o casamento ia bem: faziam sexo em dias alternados, ele não sumia mais de madrugada, faziam as refeições juntos, passeavam. Já Christina Oiticica se percebia entediada ao lado do marido, pelas suas birras, as conclusões apressadas sobre todos os assuntos, a necessidade de ter sempre a última palavra, o egoísmo. Tudo agora precisava ser para ele e sobre ele, Paulo Coelho passava horas falando sobre si e mal perguntava a Christina Oiticica como ela estava. Por um lado, bastava afagar o ego e dar a entender que a idéia era dele, que o novo Paulo Coelho fazia qualquer coisa – mas não era esse o casamento que Christina queria ter, ela detestava se ver nesse papel.

Eles alugaram um carro e Christina Oiticica traçou um trajeto que começava na parte mais externa da cidade, quase fora de Sevilla e terminava próxima a Iglesia de los Gitanos. Enquanto Paulo Coelho se dedicava a tirar selfies, ela perguntava discretamente pros comerciantes locais que eles sabiam de alguma placa, se um dia houve ciganos por ali. Ninguém parecia ter ouvido falar de qualquer episódio importante e falavam que ela deveria ir para a Iglesia. Para agradar Paulo Coelho, foram para o Alcazar, Giralda, Bairro Judeu, comeram paella e churros. O sol já estava se pondo e os turistas também quando finalmente Christina se viu diante de uma placa de bronze que relatava um massacre de ciganos ocorrido no final do século XIX.

26. Christina Oiticica procura Dom Pepe

-Você tem certeza que quer ter um marido velho de volta? Eu tive uma vez uma cliente. Mônica o nome dela, chegou a atender aqui no centro, trabalhava com terapias alternativas, muito interessada em cultura cigana, tão interessada que eu tinha que dar umas chamadas nela, dizer que não era tudo isso, que cigano tem seus defeitos também. Casou novinha, um rapaz muito bonito e de boa família. Nunca tinha feito esforço na vida, boa pessoa mas um sonhador. Ele não tinha estabilidade, ganhava muito e gastava tudo, não ganhava nada e os pais acudiam. Ela tinha sangue árabe, uma parte de vendas muito forte, trabalhava numa loja e tirava uma fortuna como comissão. Brigava com ele, queria que ele mudasse, a mãe dela pressionava muito. Até que pediu pra separar. Eu falava “não faz isso filha, é assim mesmo, a gente ajuda”. Ela não quis, queria separar de todo jeito. Era orgulho. Ela era nova, não admitia aquilo, que ela fosse a mais forte que sustentava a casa, ele tinha que colocar o dinheiro dele. Já faz quinze anos isso. Acha que ela encontrou alguém pra casar com ela depois? Hoje em dia as pessoas só querem bagunça. Hoje ela fala “Dom Pepe, eu deveria ter ouvido você”. Ele casou de novo. Ela reconhece que não era nada demais, que hoje aceitaria um homem instável financeiramente e bom marido. (Dá de ombros). Quando eu estava encarnado, não tive ninguém pra me avisar, e acho que mesmo que tivessem me avisado, eu não teria feito nada diferente. Ou quem sabe, não sei. O que me entristece não foi o que aconteceu comigo, e sim com a minha tribo, que não merecia pagar pelos meus erros. Logo depois que eu morri, Esmeralda foi levada até a mãe dela e foi presa num barraca sem qualquer contato com de fora. Emalesca disse pra tribo dela que a filha estava com uma doença muito contagiosa, por isso que não podia ter contato com ninguém. Quando Esmeralda deu a luz à nossa filha, Emalesca envolveu a menina num pano e fugiu com ela à noite, até encontrar outros ciganos que estavam passando. Ela inventou uma história e deu a menina pra eles. A Esmeralda não aguentou mais, perder a liberdade, o nosso amor e depois a nossa filha e entrou em greve de fome. Ela morreu de tristeza e inanição. Vocês gadjes ficam muito tempo trancados, passam a vida num lugar só, isso pra um cigano é a morte. Um dia um fala – Vamos para Santa Marta, Cadíz, Valencia? Não precisava mais nada, arrumava as coisas e ia. E é isso, isso era bom, pelo menos pra maioria. Alguns tinham vontade de parar. Não era todo cigano que queria dinheiro, viver era o mais importante, eles não tinham apego ao lugar. Eles não estudavam, não sabiam ler, nem iam a igreja – nem deixariam eles entrar. O mundo era a pátria do cigano. O único local que eles se importavam de ir era para Sevilla durante a feira. Estar sempre de viagem, no carroção, é um trabalho, e ora era a roda que quebra, ora o cavalo ficava doente. Dava mais despesa que outra coisa. Então alguns ciganos paravam. Dalila montou uma loja com o que hoje chamamos de artesanato e parou. Ela fazia flores. Nós e o marido dela fomos embora e ela ficou. No fim, foi bom pra ela. Depois que a Esmeralda morreu, de tristeza e fome, o irmão dela, o Ramirez, ficou inconformado e decidiu se vingar na minha tribo. Foi uma chacina. Zoraide tinha duas tranças pretas, que foram amarradas num rabo de um cavalo e mandaram o cavalo correr. O couro cabeludo foi arrancado; Juanita viu eles chegarem, tentou correr até sua barraca. Jogaram uma adaga nas costas dela, já quase entrando; Soraia: pegou uma carroça e se mandou. Chegou ao litoral, para viver sozinha. Só que ela lá no litoral, passava um gadje e a achou bonita. De tanto passar lá, quis se meter com ela. Ele a agarrou, ela lutou com ele, então ele a estrangulou e afogou. Parece que cigano nasceu pra sofrer, é destino. As ciganas que abordam as pessoas na rua não sabem o futuro mesmo. Nem toda cigana tem o dom de ver, mas toda cigana é ensinada a sua mãe a respeito do que falar. A cigana fala a chamada Bona Dita, ela mente mesmo. Mas ciganos têm poder sim. As ciganas entendem muito de chás e ervas, coisas para a saúde, são muito boas para fazer remédios. O que aconteceu com seu marido é magia cigana. Depois do que fez com o meu povo o Carlos Ramirez cometeu suicídio. Numas ruínas de Sevilla há um busto com um cigano e uma placa que relembra um massacre de ciganos que houve por ali. Eles estavam desprevenidos, morreram todos, nem as crianças foram poupadas. Procure essa placa junto com o seu marido e só assim você vai conseguir ter ele de volta.

25. Christina Oiticica leva o novo Paulo Coelho para casa

Christina Oiticica não podia negar que seu marido estava um gato, ainda mais novo e bonito do que quando eles se conheceram. A primeira atitude dele quando chegaram em casa foi querer aproveitar a cama, e eles passaram dias ardentes nela e em outros cômodos da casa – foi como uma lua de mel tardia tão quente quanto a original. Christina andava de camisola pela casa, preparava o café, observava um novo homem que agora dormia bastante estirado na cama. O novo Paulo Coelho dedilhava canções de amor no violão feitas especialmente para ela. Os vinhos da adega, acumulados durante anos, foram consumidos rapidamente madrugadas adentro. A luz vermelha do fogo na lareira, a música no último volume, projetos loucos sobre mudar o mundo, tudo no novo Paulo Coelho tinha um frescor hippie.

O cheiro, o olhar e a voz continuavam os mesmos, e Christina tinha prazer em se sentar no colo de Paulo e enrolar os dedos no seu cabelo. Mas os gestos ganharam mais inquietação, e de um dia para o outro a lua de mel terminou, como se ele tivesse apenas enjoado. Christina Oiticica retomou as suas atividades e quando cruzava com Paulo Coelho pela casa, quase podia vê-lo soltando faíscas, numa agitação furiosa que às vezes o levava a escrever, a consertar algo, correr pelo bairro. Começaram a discutir também, sempre por bobagem, e ela tinha impressão que ele tinha necessidade de descontar nela a sua agressividade por conta do tédio. Paulo Coelho passou também a ter crises de desânimo, e sentar no sofá o dia inteiro, mudar de canais sem qualquer sentido, encher a sala de migalhas. Até tênis sujo no sofá ele colocava. Mas o pior mesmo foi Paulo Coelho ter voltado a fumar, quase dois maços por dia.

Um dia Christina chegou em casa depois das compras e Paulo Coelho havia sumido. Ela passou o dia preocupada, tentou discretamente encontrá-lo em casas de amigos, e já estava na cama quando o ouviu chegar. Que cena patética foi ver seu marido com os sapatos na mão, ziguezagueando pé ante pé na sala, achando que assim chegaria muito discreto. Nunca antes ela havia precisado fazer uma cena para saber por onde ele andou, nunca antes Paulo Coelho havia tentado lhe fazer de idiota com uma mentira qualquer. Christina Oiticica achou aquilo o fim, que eles tivessem se tornado esse tipo de casal. Na manhã seguinte fez suas malas e foi sozinha para o Brasil em busca de ajuda.

24. Termina a semana de Paulo e Expedito juntos

Christina Oiticica estava em frente à porta, pontualmente uma semana depois do seu marido se trancar lá dentro com Expedito. Ela não era a única: os seguranças, empregados da casa e os samoiedas, como nuvens branquinhas, também estavam lá. A porta se abriu e os dois homens saíram de lá conversando, como se nada tivesse acontecido. Christina correu para abraçar o seu marido e parou no meio do caminho, confusa, sem saber ao certo o que fazer: Paulo, magro, cabeleira preta e vasta, gestos ligeiros; Expedito careca, ombros caídos, barriga saliente. Paulo cinquenta anos mais moço e Expedito cinquenta anos mais velho.

23. Paulo Coelho passa a semana com Expedito

Primeiro, Paulo contou que gostava do verso “perguntas não vão lhe mostrar”, em Gita, talvez por ser despretensioso. Às vezes ele acha que é um verso seu, em outras que se apropriou do verso na lembrança, por desejo. Antigamente ele seria capaz de dizer quem colocou cada frase em Gita, e em todas as outras músicas dele com Raul. Agora ele é capaz de lembrar o cheiro do estúdio, do calor, das madrugadas, das cervejas quentes. É capaz de fechar os olhos e se transportar para lá, mas é como um filme mudo. As músicas que estão compondo debaixo do calor da janela aberta ou de casacos pesados e inverno se confundem. Ele se lembra de uma vez ter saído da casa de Raul numa madrugada, tão puto da vida, tão puto – depois de uma época, acontecia com frequência. Quis fumar e pegou a carteira vazia, pareceu um sinal. O que havia acontecido lhe parecia gravíssimo e que nunca mais quereria trabalhar com Raul na sua vida. Ficou a sensação das ruas vazias, a embalagem oca de cigarro que caiu perto quando ele jogou porque era leve, a irritação – já o motivo sumiu para sempre. Raul isso, Raul aquilo, era como se ele sempre estivesse um pouco mais para um lado ou outro do que deveria estar. Às vezes era como se eles se detestassem. Ele via a si mesmo como mais artista, tão artista que não precisava do reconhecimento público, de um figurino extravagante. Mas o que realmente importava em Gita, o “eu sou”, era impossível dizer de quem veio, porque Paulo e Raul liam as mesmas coisas, tinham a mesma visão de mundo. No fim das contas, os dois eram do meio artístico, fumantes, mais ou menos da mesma altura, magros, heteros, mesmos livros e crenças, muito parecidos até fisicamente. Hoje Paulo não se perguntaria mais sobre o talento, ele vê os dois como remos de um mesmo barco.

Segundo, no mapa astral de Paulo tem um stelium de plutão, saturno, mercúrio e vênus em leão na casa três. E sol na casa quatro. O stelium indica força, talento, necessidade, disciplina, uma vontade de brilhar com comunicação, e o sol, no ponto mais baixo do mapa, que o sucesso não viria antes da maturidade. Ele conhecia seu mapa astral, sua numerologia – tanto pitagórica quanto a cabalística -, as linhas das suas mãos. Tudo estava tão entranhado nele que, se fosse possível pegar os seus pensamentos como se fosse um pedaço de carne, e destrinchasse, possivelmente veria lá dentro todo tipo de informações mágicas guiando as suas ações, com cálculos rápidos de quanto dá a soma do armário com chave, afirmações que produzem efeitos na realidade, dias da semana mais adequados para realizar ações simples, prestar atenção em pontos cardeais. Paulo fez muitos rituais, que deveriam começar na lua certa, na hora exata, com os objetos de formatos específicos e as sentenças deveriam ser proferidas da maneira mais direta. Bebeu águas potencializadas por letras sagradas. Alguém de fora poderia dizer que tudo deu certo. Depois de dias de intensos estudos e ver sinais por todas as partes, chegava um momento que Paulo se sentia alienado e não queria mais nada, apenas a realidade. Às vezes o sinal vinha de um complicado jogo de cálculos e probabilidades, ou de alguém com contatos com outro mundo ou ele mesmo tinha um sonho, mas nenhum dos sinais era capaz de impressionar mais do que poucos dias. Depois a perspectiva deixava tudo menos mágico e ele tinha dúvidas – até o próximo sinal, o próximo cálculo. Com a maturidade, agora os objetos eram só objetos, ele não tinha mais paciência. Depois de muito buscar, um dia ele ultrapassou a fronteira das buscas, está além da arrebentação.

Terceiro, Paulo não saberia falar em nome das mulheres; sobre os homens, a grande motivação para serem ricos e famosos costuma ser bem simples: comer todas. Não era politicamente correto e nem maduro falar aquilo, mas Expedito também sabia. Mulheres dos sonhos, aquelas tão inacessíveis que de outra forma não se dariam ao trabalho nem de oferecer seu sorriso, quanto mais o resto. Mesmo antes de ser um escritor famoso, apenas por ser compositor e estar nos bastidores, Paulo já pôde aproveitar bastante. Ele era jovem no período hippie, que foi uma liberação em vários níveis, muito além do sexual. Aí veio a AIDS, como uma punição divina, como se os deuses tivessem invejoso dos humanos se divertirem livremente com seus corpos. O mundo se encheu de culpa e exigências na hora de fazer sexo. Hoje o sexo está em todos os discursos – as pessoas pensam mais e fazem menos. O da juventude dele não se era tão pervertido, tão exigente; uma conversa boa podia criar um clima e apenas acontecer. Sexo por alívio, por amor, descompromissado, animal, como meio de tentar alcançar o divino, com uma parceira ou mais de uma, até com alguém do mesmo sexo – se existir atração e desejo, por que não? O sexo não precisava ser escravizador e nem escravidão, podia ser apenas mais uma das muitas maneiras de experimentar a vida. O que se busca, o que se aprende e o significado do sexo não são os mesmos nas diversas fases da vida. Depois de buscar todas as mulheres e fantasias possíveis, ele percebeu que toda história seguia o mesmo curso e com o tempo se cansava das histórias antes mesmo de começar. Tal como o resto de nós, sexo amadurece.  Como tudo, talvez seja preciso viver intensamente, até o fim, para que não reste nenhum desejo insatisfeito e aí sim conseguir um equilíbrio.

Quarto, a praia preferida de Paulo não é nenhuma praia badalada, nem no Rio de Janeiro ou em qualquer outro paraíso turístico conhecido. Uma vez ele e Christina se perderam passeando em Natal, e se viram numa praia isolada e lá assistiram o pôr do sol e depois se deitaram na areia, diante de um céu deslumbrante. Eles sabem mais ou menos onde fica, como “se perder” até ela, mas fizeram questão de não pesquisar e não saber o nome. Aquele momento, sem que ele mesmo saiba explicar o motivo, se tornou uma das suas lembranças mais tocantes. Quando começou a viajar e conseguir frequentar os lugares mais caros, Paulo se pegou com saudades de coisas pequenas, geralmente aquelas que nem se capta de forma consciente, como cheiros de ruas ou azulejos coloridos, calçadas de pedras. Mas também dizer que tanto faz, que o simples é sempre o melhor, seria hipocrisia – claro que a toalha de fio egípcio aquecida no aparador é muito mais gostosa do que a toalha barata. Quando Paulo estava procurando um lugar para morar na Europa, até um castelo lhe foi oferecido. Com os meios que tinha, ele se viu apto a morar em qualquer lugar, qualquer tipo de casa, as decorações mais caras e excêntricas possíveis. Mas aí que algo muito profundo veio à tona, como uma necessidade física, uma coisa inconsciente, e o lugar que você se sente bem não é necessariamente o mais bonito ou o que coincide com o seu gosto. Quanto maior a possibilidade de escolha, mais essa necessidade grita, a vontade que o externo reflita um lugar que existe dentro do coração – ele mesmo se surpreendeu com o que o seu coração exigiu. A atual casa de Paulo, na Suíça, está de acordo com esse princípio. Vazios, silêncio, natureza, vastidão, cheiros, almofadas, objetos com histórias dele e de Christina, foi isso que seu coração exigiu.

Quinto, Paulo não pensou que a morte dos pais teria o impacto que teve sobre ele. Ele optou por não ser pai, quem sabe por ter sido ele mesmo um filho muito difícil. Os erros que os pais cometeram com ele, vistos em perspectiva, nem mereceram perdão – perdoar implica que a outra pessoa fez algo de errado que deve merecer um gesto superior de misericórdia, e os pais dele fizeram o melhor que podiam. Paulo entendeu. Para um casal tão normal, o seu comportamento contestador parecia (e era) auto destrutivo demais. As brigas, a internação compulsória e o clima de guerra eram consequência do desespero deles em lidar com o que não entendiam. O caminho mais fácil teria sido desistir e deixado Paulo seguir seu rumo sozinho, mas seus pais não se deram essa opção e assumiram a responsabilidade. Lidar com aqueles problemas era trazer para o mundo arrumado e burguês que seus pais escolheram viver um barulho insuportável – imagina o que é não poder sentar e fazer seus próprios planos porque o filho surge de repente e lhe arranca tanto a paz de espírito como o dinheiro. Há uma necessidade inegável de se mostrar vitorioso para os seus pais e os de Paulo viveram o suficiente para isso – aquele foi um bônus que a vida lhe deu, deve ser muito triste quando não acontece. Quando sua mãe morreu – o pai tinha ido antes -, Paulo recebeu a notícia, falou com os mais chegados, cumpriu todos os ritos sem maiores dramas e achou que tudo continuaria como antes. O peso chegou com os dias, com as semanas, crises de tristeza e choro. Sem os pais nos tornamos adultos demais, ninguém acima, nenhuma autoridade, ninguém que se lembre da sua infância e conte aquelas histórias por você. Dali, talvez, tenha nascido a necessidade de registrar, com biografia, com museu.

Sexto, a fama é algo estranho. Paulo a desejou ardentemente, desde que se lembra. Ele a desejava tanto, com tanta obsessão, que era como se ela fosse um direito seu; o direito de possuir a fama lhe era tão legítimo como quem tem saudades do corpo da mulher amada. Só que quando olhava para os lados, os outros também pareciam desejar muito, talvez mais do que ele, a se julgar o que eram capazes de fazer, então a intensidade do desejo talvez não possa ser usada como medida. Mas sonhar com a fama não quer dizer que a pessoa tenha noção do que ela realmente significa – se ele soubesse, quando O Diário de um Mago começou a vender tanto e os jornalistas não paravam de procurá-lo… Não que tivesse agido diferente, quem sabe tido menos pressa, menos ansiedade. Ironicamente, já famoso de verdade, ele se pegava olhando para trás: as pessoas que gostavam dele antes, sem saber mais nada e sem querer vantagem nenhuma; a impressão que causava ao entrar anonimamente nos lugares, as reações de homens e mulheres a ele, o atendimento nos lugares comuns. A fama criou um incontornável antes e depois: as pessoas do Antes lidavam com ele de fato, enquanto as pessoas do Depois querem tantas coisas, projetam tantas fantasias. A fama era uma espécie de sombra, um perfume, que o acompanhava em quase todos os momentos. Eram poucos os que olhavam para ele e realmente o viam, quase todo mundo era atingido pela sombra primeiro. Alguns queriam ficar perto dele, como se ele fosse um mestre cuja presença inspira – embora fosse uma grande demonstração de admiração, ele não gostava de estar com elas. Aquelas poucas que conseguiam evitar os extremos, entre a admiração e inveja, eram as que o conquistavam.

Sétimo, Paulo lhe falou que no fundo duvidava da inteligência de todo aquele que um dia não pensou seriamente em se matar. Algumas vezes desejou morrer por pura depressão, mas ele também já chegou ao tema suicídio de cabeça totalmente fria: nada vai para lugar nenhum, a vida é isso aí, depois de momentos de dor tudo se acaba. Quem tem uma crença religiosa diz que a vida não se acaba, mas até onde podemos alcançar, ela acaba sim. Só que, à medida que Paulo foi envelhecendo – ou seja, chegando cada vez mais perto da morte -, o assunto parou de vir à sua mente, até que um dia ele esqueceu totalmente qualquer vontade de morrer. Querer morrer é algo jovem, imaturo; a criança pequena chora diante de qualquer queda, muito mais pela surpresa do que pela dor. Paulo lembra das muitas vezes que pensou que a vida não lhe traria mais nenhuma novidade. E depois a vida mudava de rumo, ele pensava que era definitivo daquela vez, mudava de novo… Paulo sentiu medo em todas as mudanças, mas nunca se negou ao combate e ele, por assim dizer, foi ficando. Mais do que a vontade de viver, Paulo acha que o que realmente nos mantém aqui – mesmo quando os fatos parecem indicar que não vale a pena – é a curiosidade. Nem sempre essa curiosidade é otimista, pode ser uma curiosidade maldosa, que querer ver alguém receber o que merece. Quando se é jovem, falar para agir com ética, se esforçar, ter disciplina, cultivar bons hábitos, soam sempre como moralismo, porque só a passagem do tempo mostra o verdadeiro valor das ações. O tempo, ele sozinho, já pode ser o castigo: a solidão dos que nunca se preocuparam em cultivar as amizades, as consequências do abuso do corpo, a pobreza do que torrou todo dinheiro. A conclusão que ele chegava era: viver é ótimo, mesmo quando péssimo.

22. Paulo Coelho descobre as tentativas de Expedito

-Eu sei como é aceitar todas as oportunidades para se fazer mais vendável, algumas até mesmo ridículas. Falei com muito jornal de bairro, tirei muitas fotos de capa e segurando espada por ser o “mago Paulo Coelho”. Mas muita gente faz isso e nem por isso fica famoso. E você tem que admitir que conseguiu tudo rápido demais!

-Mas eu não fui na sua casa pra pedir pra ficar rico e famoso, eu pedi pra ser um escritor.

-Você pediu pra ser escritor porque imaginou que escritores fossem pessoas famosas que ganham rios de dinheiro, porque imaginou que eu

A expressão de Expedito ficou séria e ele mandou Paulo Coelho calar a boca. Ele lhes uma porta que dava para um escritório, discreto demais para ser notado diante do resto da casa. Havia apenas um sofazinho, um computador e uma estante. A estante estava cheia do que se adivinhava ser a mesma publicação, de lombada branca e com uma espessura fina. Expedido enfiou o dedo no meio de uma delas e entregou a Paulo Coelho. Era a história de Dom Pepe, o mesmo livro que Paulo Coelho havia lido numa improvisada cópia em Xerox, agora em versão encadernada com letras douradas. Expedido lhe mostrou diversas contas de e-mail, todas com nomes falsos e nelas haviam apenas e-mails de editoras. O conteúdo deles era basicamente o mesmo:

 

“Prezado João,

Nosso grupo de leitores avaliou a sua obra — Ciganos — e decidiu não indicar sua publicação pela Companhia das Letras.

Gostaríamos de lembrar que, conforme o procedimento da editora, os originais serão destruídos por uma empresa especializada, para segurança do autor. Quanto aos livros submetidos à reedição, esses serão doados a bibliotecas.

Agradecemos, de todo modo, a sua consulta.

Atenciosamente,

Departamento Editorial”

 

Na pasta do computador de nome LIVROS, havia mais de trinta arquivos diversos arquivos. Expedito contou que colocar a história de Dom Pepe no papel despertou algo dentro dele, uma vontade de falar das suas experiências para o mundo, a sua família, as coisas que via e pensava. Passou a escrever todos os dias, viciou, aquilo lhe ajudava a pensar. Expedito escreveu sobre a mãe, o pai, tia Cidão, a irmã, sua infância. Quando esse material se esgotou, escreveu sobre a cidade, as pessoas do Porto de Paranaguá, os frequentadores do centro onde a irmã atuava, e quando eles se esgotaram, passou a escrever histórias inventadas, coisas que ele adivinhava olhando para a cara das pessoas, misturadas com fragmentos de histórias que passavam na tevê. Escreveu sobre as festas que viu, as pessoas que bebiam, as prostitutas, a vida da família daquele cara que estava segurando o fuzil na frente da porta de casa. Expedito sabia que agora era temido e podia ser que uma editora aceitasse publicá-lo apenas por isso, mas pelo menos essa resposta sincera ele gostaria de ter, por isso que mandava os livros para as editoras sob pseudônimos. E as respostas que obteve sempre foram aquelas que ele mostrou, negativas. Ao tentar mandar livros para as editoras, descobriu que deveria ficar feliz quando elas se davam ao trabalho de dizer “não”, porque a maior parte das vezes elas nem respondiam. Aquelas edições encalhadas na estante foi uma das suas tentativas – ele foi parar numa editora picareta que lhe cobrou uma nota, prometeu distribuir o livro em livrarias e promover, e no final ele ficou sem dinheiro e cheio de livros que ninguém nunca leria. Como quem tem todas as suas forças sugadas num esforço, Expedido sentou deprimido e concluiu: “Por mais que eu me esforce, por mais que eu refaça, por mais que mude a história, nunca fica bom, nunca ficam satisfeitos.”

Paulo Coelho ficou sem saber o que dizer. Ele conhecia muito bem aquela sensação, e como conhecia. A vida inteira ele passara querendo também escrever e só aos quarenta conseguiu algo realmente bom. Mas o fato dele ter sonhado e finalmente conseguido aos quarenta não dizia nada sobre o processo de Expedito e o quanto ele conseguiria avançar com a escrita.

-Expedido, tem coisas que só a vivência traz. Você não tem dentro de si a bagagem que eu tenho e é justamente…

– Então eu passarei a ter. Durante uma semana você ficará preso comigo dentro deste escritório e você vai me falar da sua bagagem, do que os anos ensinam e eu não sei. No fim dessa semana, sua mulher pode vir aqui de volta pra te buscar. Até lá, seremos só nós dois.

21. Expedito conta o que viveu depois de ter conhecido Paulo Coelho

Quando o vídeo do V-Boy começou a viralizar, Expedido nem estava conectado. Ele estava no aeroporto, esperando o vôo para Curitiba. Sua preocupação com as malas, comer, não se perder, como faria quando chegasse em casa e etc. foi tanta que nem lhe ocorreu usar wi-fi do aeroporto. Na sua cabeça, ele estava sem crédito e pronto. Enquanto isso, Ian, um vizinho da rua debaixo com quem ele jogava futebol, passou na casa dele e foi falar com Isabel. A irmã não podia ver Ian que ficava toda derretida e o cara se aproveitava disso. Ian pediu pra Isabel repassar o vídeo do futebol pra ele. Isabel nem devia ter aquele vídeo mais, se fosse pela vontade de Expedito, mas ela tinha guardado por brincadeira, pra encher o saco do irmão de vez em quando. Ian passou para os grupos que participava, e esses grupos para os outros grupos e em poucas horas deu no que deu.

Expedito viajou e pegou ônibus de volta para casa sem desconfiar de nada. Quando chegou perto da porta da frente e o celular entrou na área do wi-fi, o aparelho começou a apitar sem parar, com notificações do facebook, Messenger, whatsapp. Em poucas horas, além das mensagens dos amigos que o reconheceram, suas redes sociais tinham centenas de novos seguidores e pedidos de amizade, até dos seus ídolos. A família o recebeu em festa. Havia pedidos de entrevistas de portais famosos na internet e já tinha lojas explorando a imagem dele em camisetas e canecas. Ele viu que seu momento havia chegado e resolveu aproveitar a onda – passou a usar suas redes sociais o tempo todo, postava tanto que às vezes nem era ele, alguém da sua família ficava encarregado de gerar conteúdo. Quando não tinha uma foto de torta para postar e dizer que estava comendo uma torta, arranjava uma foto pela internet. Procurava a todo custo interagir com pessoas com muitos seguidores para que eles prestassem atenção, e pra isso tanto fazia se era por bem ou por mal. Passou a cobrar para aparecer nos lugares; neles lhe pediam para recriar a cena do vídeo, então ele levava uma bola, fingia driblar, caía de costas no chão. Em Curitiba ainda dava para usar uma roupa almofadada por debaixo do moletom, mas no Rio de Janeiro a “roupa de cair” era uma camiseta fina de futebol, ele ficava todo machucado. Quando saiu de casa, sua única fonte de renda era ser garoto propaganda de um creme para micose, o resto era só imagem.

Foi no Rio de Janeiro que Expedito realmente descobriu o que era viver de glamour: que era possível “causar” sem ter um tostão no bolso. “Às vezes a graça de ir nas festas era para comer e economizar a janta mesmo”. Foi justamente por ir para as festas apenas para comer, e não beber – sua mãe proibia os filhos de beberam álcool, dizia foram as mulheres do porto e a cerveja que fez o pai dele se perder – que sua sorte mudou. Numa noite ele foi o único convidado masculino de uma festa de empresários, cantores e políticos. O entretenimento da noite eram ele e várias prostitutas. Depois que Expedito caiu todas as gargalhadas necessárias e os homens se fartaram das prostitutas até o limite das suas forças, a noite se tornou uma conversa de velhos bêbados. Só a mistura daquelas pessoas no mesmo ambiente – alguns posavam de inimigos declarados – já dava uma manchete. As moças são revistadas antes de entrar, não podem estar com celular ou qualquer outro aparelho que permita gravações. Mas ninguém deu a Expedito essa importância, confundiam ele com o V-Boy, achavam que, por ser uma figura engraçada, ele era idiota. De todas as informações que obteve ali, até hoje ele só precisou usar duas: pediu emprego pro político que tinha seu próprio laboratório de cocaína e se associou ao dono da fábrica de tubos que revendia armas ilegalmente.

20. Paulo Coelho e Christina Oiticica encontram Expedito

Às 20h em ponto surgiu um carro preto com vidros fumê na frente do hotel, conduzido por um silencioso motorista de boné. A viagem foi curta; foi impossível não pensar naqueles que se esquivaram em revelar onde encontrar Expedito, porque o endereço era inesquecível: ele morava numa das casas incrustadas na montanha, com vista para a Lagoa Rodrigo de Freitas.

Mas também havia dois homens armados de fuzis guardavam a casa e só os deixaram passar depois de falar com o motorista.

Contrariando o aparato intimidante, Expedito recebeu Paulo Coelho e Christina Oiticica com um largo sorriso. Fisicamente, ele continuava o mesmo rapaz franzino; vestia roupas largas e confortáveis, quase todas escrito “Supreme”, que depois Christina Oiticica descobriu que era a marca da roupa cara moderninha. Já a postura, o olhar, a vibração de quando se chegava perto dele era totalmente diferente. Havia algo de agressivo na maneira como ele estendeu as mãos, o peito de pombo, o modo como não se incomodava em interromper o interlocutor. Como uma criança feliz, Expedito fez um tour pela casa e lhes mostrou a piscina, o closed cheio de roupas, os quadros com as capas de revistas onde aparece, as fotos que tirou com celebridades, a coifa da cozinha (“tenho só de enfeite porque sempre peço comida”), a cama redonda feita sob medida, os cachorros samoiedas branquinhos e escovados. Depois, eles foram para o sofá de dez lugares da ampla sala de estar e finalmente Expedito parou para escutar.

-Expedito, precisamos falar sobre o pacto.

O rapaz se jogou para trás e afundou no encosto macio do sofá, numa enorme gargalhada.

19. Paulo Coelho e Christina Oiticica vão à praia e finalmente conseguem o que queriam

O brunch acabou terminando de maneira meio melancólica, com Nelson Motta preocupado e Paulo Coelho e Christina Oiticica tentando convencê-lo que não havia nada demais – mas, por dentro, eles estavam ainda mais preocupados. Mas o Rio de Janeiro tinha o talento de criar cenários deslumbrantes que colocam as dores das pessoas em suspenso e as convidam à felicidade.

Os dois saíram do Copacabana Palace – onde se hospedaram justamente pra isso – de chinelo e documento e um pouco de dinheiro escondido na roupa de praia. Andaram até o Arpoador, beberam água de coco, entraram na água. Com preguiça de voltar para o hotel, sentaram-se na areia olhando o mar. Perto deles, numa quadra improvisada, havia um jogo de futevôlei. Turistas tiravam fotos perto da placa do Posto 5. De repente, uma sombra cobre a visão da praia e Paulo Coelho consegue apenas adivinhar a silhueta de um menino sem camisa contra o sol:

-´cê que tá checando o Expe? Qual teu nome?

-Paulo Coelho.

E foi embora. Quando voltaram par ao hotel, havia um bilhete dizendo que um motorista viria buscá-los às 20h.

18. Paulo Coelho e Christina Oiticica recebem ajuda de Nelson Motta. Ou não.

Christina Oiticica ligou para Nelson Motta quando eles ainda estava à caminho e ambos marcaram um brunch no segundo andar da Confeitaria Colombo. Era para ser leve, divertido, sem compromissos, para espairecer, mas Nelsinho percebeu que havia alguma coisa errada. Quando Paulo Coelho olhou discretamente para o celular pousado em cima da mesa – justo ele, que fazia questão de valorizar os encontros pessoais de maneira bem desconectada -, Nelson Motta quis saber o que estava acontecendo, no que ele poderia ajudar.

Óbvio que ele sabia quem era o V-Boy e era mesmo estranho que um editor de uma revista que fez uma grande reportagem sobre ele não tenha repassado a informação de como encontrá-lo imediatamente. Despreocupado, Nelson Motta ligou imediatamente pra um jornalista da Revista Época e quis saber de Expedito – o jornalista disse que não fazia a menor idéia de quem era e praticamente lhe desligou o telefone na cara, alegando uma reunião. Também foi estranho com um conhecido do UOL, “prestes a entrar num túnel”, e o da Contigo tinha tempo pra explicar que estava ficando sem bateria mas não pra responder uma pergunta simples. Paulo Coelho ligou de novo para o celular de Roberto Homero, que desta vez não atendeu. O clima pesou na mesa. Nelson Motta ficou preocupado. “Há algo de ruim aí, tem certeza que vocês querem encontrar com esse rapaz?”.

17. Paulo Coelho e Christina Oiticica procuram Expedito

Paulo Coelho tentou a todo custo convencer sua esposa de que ela não tinha culpa de nada e não precisava ir com ele, mas Christina Oiticica não aceitou. Na manhã após o jantar o Dalai Lama, depois de uma noite de sono pesado, ela encontrou Paulo Coelho já de pé, olhando tristemente para a janela. No começo, ele até tentou disfarçar, falou que teve uma noite insone, etc. Mas Christina Oiticica conhecia seu marido e insistiu até ele lhe contar toda verdade.

Eles precisavam falar com Expedito, era a primeira coisa que precisavam fazer. Paulo Coelho verificou o seu whatsapp e a mensagem dele para Expedito não havia sido lida; a família do Expedido, aparentemente, não transmitiu a ele recado nenhum sobre entrar em contato. Alheio à programação de TV e revistas de celebridades, Paulo Coelho ficou surpreso quando colocou o nome de Expedito no Google e descobriu páginas e mais páginas sobre ele, onde contavam sobre entrevistas, capas de revistas, mulheres com quem havia dormido, aparições em programas de humor, dicas de beleza, polêmica com outras celebridades de instagram e algumas referências obscuras sobre postos de gasolina. Paulo Coelho e Christina Oiticica decidiram ir para o Rio de Janeiro e entrar em contato com as pessoas e perguntar, tentar um intermediário, ir para algum lugar onde Expedito estivesse. Se ele estava tão famoso, não era difícil.

Assim que chegaram ao Rio, no taxi, Paulo Coelho ligou para Roberto Homero, editor da Veja. Expedito havia saído na capa, com os dizeres: “O futuro chegou” e a reportagem ocupou cinco páginas centrais e estava recheada de fotos, dentre elas uma de péssimo gosto com Expedido numa banheira com uma mulher sentada no meio das pernas dele. Roberto Homero disse que ficou feliz em saber que Paulo Coelho estava no Rio e quis marcar algum encontro; quando Paulo Coelho perguntou sobre Expedito, Roberto Homero desconversou, disse que aquela edição foi feita justamente quando ele estava de férias. Paulo Coelho perguntou então do jornalista que escreveu a matéria e – olha que coincidência -, o rapaz havia acabado de sair de férias. O fotógrafo então, insistiu Paulo Coelho, e Roberto Homero disse que ia chamá-lo agora mesmo e retornaria em instantes. Paulo Coelho ficou com o celular na mão enquanto fizeram check-in no hotel, tomou um banho, descansou com o celular ao lado da cama e Roberto Homero não se manifestou.

16. Paulo Coelho e o diabo conversam, agora a sério

-Não foi pra oferecer nada que eu vim. Está ocorrendo um pequeno problema de… hum… jurisdição.

Não entendi.

-Sabemos que você ajudou Expedito a fazer um pacto e queremos saber com quem.

– Pacto…?

– Não me venha com papinho, vamos pular essa parte. Nós dois sabemos que aconteceu.

-Então me diga você, o que aconteceu?

-Um pé-rapado qualquer veio aqui, fez um ritual e poucas horas depois se tornou um fenômeno. Aparecer num vídeo ridículo e conseguir cinco minutos de fama na internet, ok, acontece, mas o que veio depois é totalmente fora do esperado. E nós sabemos que casos assim mostram que houve intervenção.

-Bom, se vocês acham que o rapaz saiu daqui com um pacto, é só falarem com quem fez.

-Não é assim que funciona. Você deve saber: não existe O Mal, O Diabo. Somos muitos. Tal como está em cima é também embaixo. Eles têm anjos, arcanjos, principados, potestades, e o mal também, no sentido inverso. Temos hierarquias, cargos especializados, planos de carreira, não é difícil entender. Mas, pela nossa particularidade, entendemos que se alguém se aproveita de informações que os outros não possuem, mente para os seus superiores, manipula as pessoas ao seu redor para se favorecer, é ainda mais qualificado e faz por merecer estar numa posição melhor. Vocês também prosperaram muito quando adotaram essa filosofia. O Expedito fez pacto, alguém puxou o tapete de alguém e alguém quer saber quem para puxar o tapete de quem lhe puxou o tapete.

-Não teve pacto nenhum. É só pensar um pouco: pra que eu, que conquistei tudo o que eu queria e não tenho tanto tempo pela frente, me sujaria sendo intermediário de um pacto com um menino que eu nem conheço? Ele veio aqui pobre, nunca havia saído do Brasil e gastou o pouco dinheiro que tinha pra vir me ver e pedir pra fazer um pacto. Não tive como chutar da porta pra fora, eu e a Chris encenamos

Ah!

-… uma bobagem à toa, tudo escuro, gotinha de sangue, palavras sem sentido, tinta invisível em pergaminho falso…

-Palavras sem sentido que vocês também não sabiam o que dizia, tiraram por aí.

– Da internet, a Chris achou interessante a escrita, muito diferente, uma grafia pontuda…

– Então vocês colocaram gotas de sangue num pergaminho com palavras desconhecidas e depois…

– Teve uma pequena, bem pequena, viagem, um LSD suave.

– Vocês o drogaram.

– Não, quer dizer, sim, mas, mas não foi nada, pra entrar no clima.

Sei.

-Falando assim parece que foi grande coisa, mas não foi.

-Claro que não foi.

Não foi.

-Claro.

-Droga.

15. Paulo Coelho toma chá com o diabo e é enganado por ele

Ele era alto, magro, jovem. Vestia um terno muito bem cortado de um tom de bordô profundo. Seu cabelo liso e preto ia até o queixo. Os traços eram finos e os olhos acinzentados.  Entrou sem esperar ser convidado e se sentou de pernas cruzadas na poltrona preferida de Paulo Coelho.

-Eu aceito aquele chá de gengibre com cardamomo. O meu é sem mel.

À meia luz, os dois sentaram na frente um do outro com suas xícaras na mão. Paulo Coelho observava o diabo, que de tão branco e belo tinha um quê de andrógeno; ao mesmo tempo, algo nele, talvez em suas maneiras afetadas, dava vontade de esganar. O diabo se deixou observar, parecia gostar daquilo. Ele pousou a xícara silenciosamente no pires, lambeu os lábios e começou a falar:

Da última vez que eu coloquei os meus olhos em você, o seu cabelo era preto e bem abundante, era até um problema para ajeitar. Você comia de tudo e não engordava de jeito nenhum, achava até ruim. Há quanto tempo você não dá três na mesma noite? E nem vou dizer que sem Viagra, porque você experimentou por curiosidade e não gostou do efeito, aquela dureza desacompanhada de desejo, a dificuldade em dormir depois, a dor de cabeça. Você acha que gosta da vida estável do casamento, de ter se tornado previsível, que agora está concentrado e ponderado, mas a verdade é que você está apenas velho. Como o seu corpo não é mais capaz de fazer as maravilhas que fazia antes, o resto tem que se acostumar e se conformar, e com você aconteceu isso, como acontece com todo mundo, porque vocês, humanos, não têm outra saída. Tudo o que você conquistou hoje, tão sólido, toda fama e dinheiro, seriam muito melhores vividos se você ainda fosse aquele homem que eu vi.

-Você perdeu o seu tempo para vir até aqui me informar que eu estou velho? Estou velho, feio, gordo, lento, com manias, e daí? Se o Paulo Coelho que você conheceu conhecesse este aqui, sentiria inveja das coisas que eu conquistei. Posso ter ficado mais chato, mas a matemática compensa. Eu não faço mais os excessos da juventude e a beleza da vida está nisso, a corrida entre…

– “A graça da beleza está aí, eu sou feliz sendo velho” – o diabo o imitou de uma maneira bem irritante – Conversinha, besteira. Vamos fazer o seguinte: eu faço você ficar jovem de novo. Você vai continuar tendo tudo o que você tem e você é, só que como se tivesse acabado de fazer vinte anos. É como se fosse duas vidas em uma, você faz vinte anos agora e envelhece normalmente de agora em diante, vive quase duzentos anos. Aceita? – Paulo Coelho engasgou com o chá, com as palavras, e antes que fosse capaz de responder, foi interrompido – Hahahahahaha, a cara que você fez! A proposta era boa, não era?