Primeiro, Paulo contou que gostava do verso “perguntas não vão lhe mostrar”, em Gita, talvez por ser despretensioso. Às vezes ele acha que é um verso seu, em outras que se apropriou do verso na lembrança, por desejo. Antigamente ele seria capaz de dizer quem colocou cada frase em Gita, e em todas as outras músicas dele com Raul. Agora ele é capaz de lembrar o cheiro do estúdio, do calor, das madrugadas, das cervejas quentes. É capaz de fechar os olhos e se transportar para lá, mas é como um filme mudo. As músicas que estão compondo debaixo do calor da janela aberta ou de casacos pesados e inverno se confundem. Ele se lembra de uma vez ter saído da casa de Raul numa madrugada, tão puto da vida, tão puto – depois de uma época, acontecia com frequência. Quis fumar e pegou a carteira vazia, pareceu um sinal. O que havia acontecido lhe parecia gravíssimo e que nunca mais quereria trabalhar com Raul na sua vida. Ficou a sensação das ruas vazias, a embalagem oca de cigarro que caiu perto quando ele jogou porque era leve, a irritação – já o motivo sumiu para sempre. Raul isso, Raul aquilo, era como se ele sempre estivesse um pouco mais para um lado ou outro do que deveria estar. Às vezes era como se eles se detestassem. Ele via a si mesmo como mais artista, tão artista que não precisava do reconhecimento público, de um figurino extravagante. Mas o que realmente importava em Gita, o “eu sou”, era impossível dizer de quem veio, porque Paulo e Raul liam as mesmas coisas, tinham a mesma visão de mundo. No fim das contas, os dois eram do meio artístico, fumantes, mais ou menos da mesma altura, magros, heteros, mesmos livros e crenças, muito parecidos até fisicamente. Hoje Paulo não se perguntaria mais sobre o talento, ele vê os dois como remos de um mesmo barco.
Segundo, no mapa astral de Paulo tem um stelium de plutão, saturno, mercúrio e vênus em leão na casa três. E sol na casa quatro. O stelium indica força, talento, necessidade, disciplina, uma vontade de brilhar com comunicação, e o sol, no ponto mais baixo do mapa, que o sucesso não viria antes da maturidade. Ele conhecia seu mapa astral, sua numerologia – tanto pitagórica quanto a cabalística -, as linhas das suas mãos. Tudo estava tão entranhado nele que, se fosse possível pegar os seus pensamentos como se fosse um pedaço de carne, e destrinchasse, possivelmente veria lá dentro todo tipo de informações mágicas guiando as suas ações, com cálculos rápidos de quanto dá a soma do armário com chave, afirmações que produzem efeitos na realidade, dias da semana mais adequados para realizar ações simples, prestar atenção em pontos cardeais. Paulo fez muitos rituais, que deveriam começar na lua certa, na hora exata, com os objetos de formatos específicos e as sentenças deveriam ser proferidas da maneira mais direta. Bebeu águas potencializadas por letras sagradas. Alguém de fora poderia dizer que tudo deu certo. Depois de dias de intensos estudos e ver sinais por todas as partes, chegava um momento que Paulo se sentia alienado e não queria mais nada, apenas a realidade. Às vezes o sinal vinha de um complicado jogo de cálculos e probabilidades, ou de alguém com contatos com outro mundo ou ele mesmo tinha um sonho, mas nenhum dos sinais era capaz de impressionar mais do que poucos dias. Depois a perspectiva deixava tudo menos mágico e ele tinha dúvidas – até o próximo sinal, o próximo cálculo. Com a maturidade, agora os objetos eram só objetos, ele não tinha mais paciência. Depois de muito buscar, um dia ele ultrapassou a fronteira das buscas, está além da arrebentação.
Terceiro, Paulo não saberia falar em nome das mulheres; sobre os homens, a grande motivação para serem ricos e famosos costuma ser bem simples: comer todas. Não era politicamente correto e nem maduro falar aquilo, mas Expedito também sabia. Mulheres dos sonhos, aquelas tão inacessíveis que de outra forma não se dariam ao trabalho nem de oferecer seu sorriso, quanto mais o resto. Mesmo antes de ser um escritor famoso, apenas por ser compositor e estar nos bastidores, Paulo já pôde aproveitar bastante. Ele era jovem no período hippie, que foi uma liberação em vários níveis, muito além do sexual. Aí veio a AIDS, como uma punição divina, como se os deuses tivessem invejoso dos humanos se divertirem livremente com seus corpos. O mundo se encheu de culpa e exigências na hora de fazer sexo. Hoje o sexo está em todos os discursos – as pessoas pensam mais e fazem menos. O da juventude dele não se era tão pervertido, tão exigente; uma conversa boa podia criar um clima e apenas acontecer. Sexo por alívio, por amor, descompromissado, animal, como meio de tentar alcançar o divino, com uma parceira ou mais de uma, até com alguém do mesmo sexo – se existir atração e desejo, por que não? O sexo não precisava ser escravizador e nem escravidão, podia ser apenas mais uma das muitas maneiras de experimentar a vida. O que se busca, o que se aprende e o significado do sexo não são os mesmos nas diversas fases da vida. Depois de buscar todas as mulheres e fantasias possíveis, ele percebeu que toda história seguia o mesmo curso e com o tempo se cansava das histórias antes mesmo de começar. Tal como o resto de nós, sexo amadurece. Como tudo, talvez seja preciso viver intensamente, até o fim, para que não reste nenhum desejo insatisfeito e aí sim conseguir um equilíbrio.
Quarto, a praia preferida de Paulo não é nenhuma praia badalada, nem no Rio de Janeiro ou em qualquer outro paraíso turístico conhecido. Uma vez ele e Christina se perderam passeando em Natal, e se viram numa praia isolada e lá assistiram o pôr do sol e depois se deitaram na areia, diante de um céu deslumbrante. Eles sabem mais ou menos onde fica, como “se perder” até ela, mas fizeram questão de não pesquisar e não saber o nome. Aquele momento, sem que ele mesmo saiba explicar o motivo, se tornou uma das suas lembranças mais tocantes. Quando começou a viajar e conseguir frequentar os lugares mais caros, Paulo se pegou com saudades de coisas pequenas, geralmente aquelas que nem se capta de forma consciente, como cheiros de ruas ou azulejos coloridos, calçadas de pedras. Mas também dizer que tanto faz, que o simples é sempre o melhor, seria hipocrisia – claro que a toalha de fio egípcio aquecida no aparador é muito mais gostosa do que a toalha barata. Quando Paulo estava procurando um lugar para morar na Europa, até um castelo lhe foi oferecido. Com os meios que tinha, ele se viu apto a morar em qualquer lugar, qualquer tipo de casa, as decorações mais caras e excêntricas possíveis. Mas aí que algo muito profundo veio à tona, como uma necessidade física, uma coisa inconsciente, e o lugar que você se sente bem não é necessariamente o mais bonito ou o que coincide com o seu gosto. Quanto maior a possibilidade de escolha, mais essa necessidade grita, a vontade que o externo reflita um lugar que existe dentro do coração – ele mesmo se surpreendeu com o que o seu coração exigiu. A atual casa de Paulo, na Suíça, está de acordo com esse princípio. Vazios, silêncio, natureza, vastidão, cheiros, almofadas, objetos com histórias dele e de Christina, foi isso que seu coração exigiu.
Quinto, Paulo não pensou que a morte dos pais teria o impacto que teve sobre ele. Ele optou por não ser pai, quem sabe por ter sido ele mesmo um filho muito difícil. Os erros que os pais cometeram com ele, vistos em perspectiva, nem mereceram perdão – perdoar implica que a outra pessoa fez algo de errado que deve merecer um gesto superior de misericórdia, e os pais dele fizeram o melhor que podiam. Paulo entendeu. Para um casal tão normal, o seu comportamento contestador parecia (e era) auto destrutivo demais. As brigas, a internação compulsória e o clima de guerra eram consequência do desespero deles em lidar com o que não entendiam. O caminho mais fácil teria sido desistir e deixado Paulo seguir seu rumo sozinho, mas seus pais não se deram essa opção e assumiram a responsabilidade. Lidar com aqueles problemas era trazer para o mundo arrumado e burguês que seus pais escolheram viver um barulho insuportável – imagina o que é não poder sentar e fazer seus próprios planos porque o filho surge de repente e lhe arranca tanto a paz de espírito como o dinheiro. Há uma necessidade inegável de se mostrar vitorioso para os seus pais e os de Paulo viveram o suficiente para isso – aquele foi um bônus que a vida lhe deu, deve ser muito triste quando não acontece. Quando sua mãe morreu – o pai tinha ido antes -, Paulo recebeu a notícia, falou com os mais chegados, cumpriu todos os ritos sem maiores dramas e achou que tudo continuaria como antes. O peso chegou com os dias, com as semanas, crises de tristeza e choro. Sem os pais nos tornamos adultos demais, ninguém acima, nenhuma autoridade, ninguém que se lembre da sua infância e conte aquelas histórias por você. Dali, talvez, tenha nascido a necessidade de registrar, com biografia, com museu.
Sexto, a fama é algo estranho. Paulo a desejou ardentemente, desde que se lembra. Ele a desejava tanto, com tanta obsessão, que era como se ela fosse um direito seu; o direito de possuir a fama lhe era tão legítimo como quem tem saudades do corpo da mulher amada. Só que quando olhava para os lados, os outros também pareciam desejar muito, talvez mais do que ele, a se julgar o que eram capazes de fazer, então a intensidade do desejo talvez não possa ser usada como medida. Mas sonhar com a fama não quer dizer que a pessoa tenha noção do que ela realmente significa – se ele soubesse, quando O Diário de um Mago começou a vender tanto e os jornalistas não paravam de procurá-lo… Não que tivesse agido diferente, quem sabe tido menos pressa, menos ansiedade. Ironicamente, já famoso de verdade, ele se pegava olhando para trás: as pessoas que gostavam dele antes, sem saber mais nada e sem querer vantagem nenhuma; a impressão que causava ao entrar anonimamente nos lugares, as reações de homens e mulheres a ele, o atendimento nos lugares comuns. A fama criou um incontornável antes e depois: as pessoas do Antes lidavam com ele de fato, enquanto as pessoas do Depois querem tantas coisas, projetam tantas fantasias. A fama era uma espécie de sombra, um perfume, que o acompanhava em quase todos os momentos. Eram poucos os que olhavam para ele e realmente o viam, quase todo mundo era atingido pela sombra primeiro. Alguns queriam ficar perto dele, como se ele fosse um mestre cuja presença inspira – embora fosse uma grande demonstração de admiração, ele não gostava de estar com elas. Aquelas poucas que conseguiam evitar os extremos, entre a admiração e inveja, eram as que o conquistavam.
Sétimo, Paulo lhe falou que no fundo duvidava da inteligência de todo aquele que um dia não pensou seriamente em se matar. Algumas vezes desejou morrer por pura depressão, mas ele também já chegou ao tema suicídio de cabeça totalmente fria: nada vai para lugar nenhum, a vida é isso aí, depois de momentos de dor tudo se acaba. Quem tem uma crença religiosa diz que a vida não se acaba, mas até onde podemos alcançar, ela acaba sim. Só que, à medida que Paulo foi envelhecendo – ou seja, chegando cada vez mais perto da morte -, o assunto parou de vir à sua mente, até que um dia ele esqueceu totalmente qualquer vontade de morrer. Querer morrer é algo jovem, imaturo; a criança pequena chora diante de qualquer queda, muito mais pela surpresa do que pela dor. Paulo lembra das muitas vezes que pensou que a vida não lhe traria mais nenhuma novidade. E depois a vida mudava de rumo, ele pensava que era definitivo daquela vez, mudava de novo… Paulo sentiu medo em todas as mudanças, mas nunca se negou ao combate e ele, por assim dizer, foi ficando. Mais do que a vontade de viver, Paulo acha que o que realmente nos mantém aqui – mesmo quando os fatos parecem indicar que não vale a pena – é a curiosidade. Nem sempre essa curiosidade é otimista, pode ser uma curiosidade maldosa, que querer ver alguém receber o que merece. Quando se é jovem, falar para agir com ética, se esforçar, ter disciplina, cultivar bons hábitos, soam sempre como moralismo, porque só a passagem do tempo mostra o verdadeiro valor das ações. O tempo, ele sozinho, já pode ser o castigo: a solidão dos que nunca se preocuparam em cultivar as amizades, as consequências do abuso do corpo, a pobreza do que torrou todo dinheiro. A conclusão que ele chegava era: viver é ótimo, mesmo quando péssimo.