Um sonho muito simples

una vida chiquitita y normal

Eu estava conversando com um amigo e ele me contou que tinha uma vontade muito grande de andar naqueles carrinhos com motor no supermercado. Aqueles exclusivos para pessoas muito idosas e/ou com problemas de locomoção. Era mais do que uma vontade qualquer, era um sonho. Mas com seus vinte e poucos, alto, forte e super saudável, jamais iriam deixá-lo fazer isso. “Você quer mesmo andar naquele carrinho, muito, é importante pra você?” Sim, ele respondeu. Eu me senti dentro de um livro do Sidney Sheldon. Como a história do carrinho é pequena, vou contar do livro: a personagem era uma mulher ambiciosa e sedutora, e pretendia ajudar um homem a fugir do país. Acho que era judeu, na época da guerra. Mas ela não sabia como fazer. Aí, numa festa, encontrou um escritor e disse que estava escrevendo um livro e empacou, não sabia como salvar o personagem. Ela contou para ele a sua situação como se fosse um livro. O escritor inventou na hora a saída: colocar o judeu no porta-malas enquanto a mocinha fazia um figurão nazista levá-la para um passeio, atravessando a fronteira. Assim ela fez e salvou o judeu.

Voltando ao caso do supermercado. Eu sugeri ao meu amigo chegar no supermercado mancando, dizer pro funcionário que havia acabado de se machucar no caminho e se poderia, se não fosse muito incômodo, fazer suas compras com um daqueles carrinhos elétricos. Deu certo.

Da continuidade

Um bailarino acharia a dúvida ridícula – claro que a pessoa é, no palco, uma continuação de quem ela é na vida real. Inclusive, qualquer apresentação de dança é muito mais interessante quando você conhece a pessoa que está dançando, você a reconhece nos seus gestos, há movimentos que são todos seus. Mas fale para alguém que escreve que ela só será um autor interessante se for pessoalmente interessante, e como resposta receberá um silêncio. Provavelmente ofendido. Adoro qualquer entrevista com Millôr, Saramago, Suassuna ou Ubaldo Ribeiro, que comprovam minha tese. Como não amar Oliver Sacks, como não querer ligar para Susan Sontag e comentar com ela os últimos acontecimentos do dia. Mas dizem também que para estragar um artista pra você, basta conhecê-lo. Sei lá.

Socão na parede

vizinha

Numa noite dessas eu estava ouvindo música e meu vizinho – dos vizinhos loucos – bateu na parede. Era pouco antes das 23h. A acústica aqui é terrível e eu estava ouvindo Chopin num Motorola, deixo a cada um julgar o quanto isso pode ser alto ou não. O que me surpreendeu foi a intensidade. Foram tantos socos e dados com tanta raiva que o sujeito deve ter machucado a mão. Se eu batesse com toda minha força não soaria daquela forma. Pensei em mandar o sujeito socar a mãe ou dar uns minutos de cu pra ver se relaxa, tascar uma música realmente irritante e deixar o celular ali e ir dormir. Mas não. Na penumbra da minha casa tranquila, fiquei pensando no estado de espírito da pessoa. Em todo esse ódio. Que se uma situação tão pequena leva àquilo, como é a pessoa no trabalho, no transito, em situações realmente estressantes. Como diz aquele meme, acho que ele é infeliz ou algo assim. Pra mim isso é doença, desequilíbrio mental grave. Por isso tanto eleitor de candidato que prega ódio, linchamento, gente presa no poste. Parecem normais, mas uma contrariedade e perdem totalmente a proporção, viram animais sedentos de sangue.

A curva

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Eu tive um professor na faculdade que é um sujeito importante na área dele, e por coincidência ele foi orientador de pós-graduação do meu ex. Por causa disso, ao longo dos anos, de vez em quando eu encontrava com ele. Sempre que eu o reencontrava, me dava aquela sensação de “como está velho, da última vez…” . Eu sabia que a cada reencontro eu não estava pior. Um dia, numa aula de dança, a professora falou algo que fica meio óbvio depois que alguém explica: existe uma curva no nosso corpo, que sobe até os trinta anos, fica pouco tempo estacionada ali e cai lentamente até o fim da vida. Eu estava subindo a curva e meu professor descendo. Agora que estou do outro lado da curva, sei que a cada reencontro meus amigos novinhos se surpreenderão em ver como estou cada dia mais velha, da última vez…

Agora pensem comigo: se a curva sobe apenas até os trinta e o resto é queda, e a expectativa de vida a cada dia que passa torna mais fácil ultrapassar os oitenta, mais da metade da nossa vida será na queda. Não estamos mais na Idade Média, a vida está longa. Achar que só o corpo jovem é bonito, que só as características jovens são qualidades, valorizar a mão de obra apenas do jovem… bem. No mínimo não é muito esperto. Da minha parte, acho que deveríamos aprender a gostar de rugas e corpos mais pesados. Junte-se a mim.

Planetinha azul

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A astrologia assume uma posição antropocêntrica mesmo sabendo que a terra não é o centro. Ela vê o universo tendo a Terra como referência, como quem está sentado na sua cadeira e olha para os lados: Sol e Lua são planetas; quando os planetas passam por detrás estão retrógrados; quando na curva, estacionados; quando ocultos por passarem atrás do sol, queimados por ele. Então eu imagino como seria o mapa astral feito num outro planeta, digamos Júpiter. Um mapa jupiterocêntrico, o que o universo influenciou o momento que a pequena criança jupiteriana deu o seu primeiro sopro. A quantidade de luas que seria analisada! Só com as luas já dava para calcular e atribuir bastante coisa. E como seria, no mapa astral do jupiteriano, a influência da Terra? Ou melhor, daquele planetinha azul de trânsito rápido, eixo inclinado, cheio de carbono. Se somos uma experiência tão única, como o desenho dela parece tão diferente dos outros, quem sabe quisesse dizer uma esquisitice, ser do jeito que mais ninguém é. Ser avis rara, ser belo, relaxante, cordato. Eu me inclino a pensar que seria considerada uma influência maléfica, um deuzolivre ter aquele planeta num ponto importante do mapa. Poderia indicar que o sujeito deixa crescer em si coisas destrutivas e incontroláveis. Problemas com auto-imagem, ser inimigo de si mesmo, o desvalor dos próprios dons. O rumo ao desastre, a impossibilidade de manejar o próprio destino, o conhecimento que chega tarde demais ou que é insuficiente para mudar a rota. Perder-se em picuinhas e sobrar pouca energia para o que realmente importa. Poder nas mãos de crianças, a necessidade de crescer antes que seja tarde.

Não sei brincar disso

Mortadelas e Coxinhas da Política Nacional

Eu fico em silêncio e não sei o quanto todos já notaram o que eu calo, pelo menos uma pessoa já notou. “Você fica quietinha, né?”, já me disseram em meio às discussões políticas inevitáveis. Eu gosto muito do conceito de posição de classe. Não é por acaso que a opino política não é um fato isolado, que dá pra dizer quem vota em quem com vários recortes diferentes: nível de escolaridade, bairro onde mora, antecedentes culturais, orientação sexual. Então eu vejo que nossos recortes são tão diferentes e que vejo o mundo de acordo com o meu e elas vêm com os delas. Que eu vejo através das janelas de ônibus e elas de carros, eu com amigos gays e elas vêem homossexuais nas novelas, eu com a certeza de que não teria ninguém pra me salvar caso me prendessem e elas com parentescos importantes. No meio de uma das muitas falas que eu não respondo, surgiu a questão da ditadura, que só teria torturado gente boa, que na família dela ninguém foi torturado, então está tudo bem e o Brasil era um paraíso. Aí eu vi que se quisesse realmente vencer aquela discussão, tiraria rapidamente algumas informações da manga, e que seriam o confronto de uma pessoa jovem e bem informada contra uma senhora de mais de oitenta anos, com pessoa invalida em casa, e que minhas colocações seriam não apenas jogar o lado podre do passado do Brasil na roda de discussão como na própria sala de estar dela, na família, no passado, nas crenças, no pão que a alimenta. Eu não fiz. Não fiz não apenas porque ganhar uma discussão não é nada e talvez criasse uma situação insustentável depois. Não, foi mais básico do que isso, esses pensamentos só vieram depois – não fiz porque faço o possível para evitar ser agente de sofrimento. Por preferir ser a magoada a magoar. Por não me sentir no direito de impor verdades, por achar que cada um busca sua felicidade como pode. Paradoxalmente, a mesma posição diante da vida e que reflete nas minhas opiniões políticas é que me fez calar. Viva o direito à livre expressão, mesmo daqueles que nos irritam, mesmo daqueles que não nos representam ou nos ignoram.

Os dentes

ouro

Eu estava indo pro salão, cortar o cabelo. Eu me sentei no ônibus, num daqueles bancos duplos, perto da porta. À frente, outros bancos duplos. Uma mulher conversava com as duas outras mulheres que estavam atrás dela. Pra isso, ela se virava constantemente, se sentava quase de lado. Meu olhar foi atraído para ela por uma estranha cintilância no seu sorriso. Os dentes eram de ouro. Eu já havia ouvido falar, havia visto um ou outro dente brilhante, mas jamais vi alguém que tivesse todos os dentes visíveis de cima abaixo dourados. Passei a viagem inteira olhando para ela. Suas roupas eram comuns, mas reparei nos seus braços cheios de pulseiras e tatuagens o desenho de uma roda de carroça, símbolo do povo cigano.

Cheguei no salão, esperei, falei o que queria no cabelo, fomos para o lavatório.

-Hoje eu vi uma mulher com dentes de ouro no ônibus.

-Nossa, que coisa.

-Será que interfere no PH da boca?

-Não deve ser ouro de verdade, apenas revestido.

-Mesmo assim, será que interfere? É um metal.

Pela reação desinteressada à questão do PH, concluí que sou mesmo uma mala que se pergunta coisas que ninguém liga. De qualquer forma, vou perguntar pro meu dentista.

Curtas workaholics

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Há poucos dias eu descobri minha droga. As drogas que tinham chegado perto de mim até agora foram álcool, cigarro e maconha, e nenhum deles tinha feito a minha cabeça, nem para experimentar. Apenas agora entendi o motivo: elas são sociais e te deixam relaxado. Não estou nem aí para grupos, pouco me importa. Também não gosto da ideia de ficar muito louca, eufórica, perder o controle. Tomei um ginseng limpinho de farmácia e adorei a sensação de passar o dia inteiro produtiva. Eu pensava e fazia, concentrada, sem me arrastar durante meu período improdutivo à tarde. Como boa workaholic, o que me seduz é produzir sem parar. Minha droga seria anfetamina.

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Eu devo ter visto todo material sobre o Seinfeld na Netflix, e quanto mais conheço o lado não gostável dele, mais eu gosto. Eu fala várias vezes que ele não era popular e nem foi fazer amigos. Que não pensa em se aposentar, que ele é como um castor – lance do castor é fazer diques, então ele faz diques ad infinitum. Num dos documentários ele conta que, na adolescência, ele queria ser um comediante e escrevia as piadas de vez em quando, de acordo com a inspiração. Um dia, viu uns trabalhadores de construção civil voltarem ao trabalho depois do almoço. Claro que não dava vontade de voltar. Mas se eles, que estavam trabalhando por necessidade voltavam, quem pretendia trabalhar naquilo que ama também precisava se dedicar. Então ele passou a escrever todo dia.

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Estou dormindo bem, com a casa em ordem, as atividades em ordem, toda vitaminada. Agora tenho mais vitalidade para atender um telefonema demorado, posso passar no supermercado que fica longe, escolher com mais critério o que visto e bolar novas combinações. Terminei alguns livros, readquiri a capacidade de ver uma série sem interromper minuto à minuto. Realizei umas proezas físicas. A lista de tarefas a se fazer, que parecia interminável, agora está em dia. O tempo fora de casa não é mais meu inimigo e posso me dar ao luxo de fazer aos poucos. Mas que vazio imenso é não estar envolvida com nenhum grande projeto de escrita.

Castelo de areia

castelo de areia

Tive todo tipo de siricutico durante as últimas semanas por ter que dançar um solo. Nenhum problema com a coreografia ou a técnica, tudo psicológico. Minha síndrome de One Frog Evening, fazer maravilhosamente fácil sozinha e travar porque tem gente olhando, me sentir a mais feia e incompetente. Na busca de uma solução, ou quem sabe de uma justificativa, estudei loucamente o Saturno do meu mapa astral, que é especialmente forte. Pra quem não sabe nada sobre o assunto, explico: Saturno é conhecido como O Grande Maléfico, onde quer que ele apareça no mapa astral indica áreas onde a pessoa sente dificuldade. Algumas versões do meu aspecto dizem: esta pessoa nunca poderá pisar num palco. Ela pode ser diretora, cuidar da luz, dos figurinos, estar sempre no meio, mas não no palco, porque ela é incapaz de ser o centro das atenções. Já em outros lugares dizem que há alguns atores com esse aspecto, porque a pessoa vai parar no palco justamente pra ver se resolve esse problema. Nunca pensei em mim nesses termos, de alguém que peita os seus medos. No meio das pesquisas, li uma historinha para explicar o aspecto que me tocou muito:

As crianças dos planetas estão na praia. Decidem fazer castelinhos na areia. As crianças Sol, Marte e Júpiter disparam na frente. A criança Saturno fica olhando, morrendo de vontade de fazer castelinhos também. Ela se pergunta: será que eu consigo? E se eu pegar um manual sobre como construir castelos? E se eu não conseguir, se eu treinar antes, e se… Nesse meio tempo a criança de Marte já construiu o dela correndo, a de Júpiter fez um castelo enorme. Quando finalmente a criança Saturno decide que ela quer sim fazer o seu castelo, as outras já correram pra água.

Dia desses voltava de um ensaio e não sei se é a propensão à ficar melancólico quando se está sentado ao lado na janela com a testa apoiada no vidro, mas pensei em castelos de areia e chorei por debaixo dos óculos. O que eu precisava fazer, já que não consigo evitar o movimento de parar, me cobrar, achar que não sou capaz e fazer com medo, é sentar sozinha e fazer meu castelinho. Que bom para as outras crianças, que já fizeram e estão na água. O meu sai devagar, miúdo, modesto, mas é o meu, é o que eu posso. Amar o grandioso é fácil, difícil é fazer do pequenininho o seu lar.

Uma conversa entre tubos

estações tubo

Centro de Curitiba, à noite. A cobradora da estação tubo onde eu estou conversa – cada qual gritando do seu lugar – com o cobrador do tubo da frente:

-O Sabiá trouxe pizza pra você ontem?

-Não.

-Mentiroso. Ele disse que trouxe pizza e te deu ontem, porque ele vive me prometendo pizza e eu não estava.

-Ele trouxe pizza, mas não foi ontem, foi anteontem.

-Olhaí, era a minha pizza que ele prometeu, você comeu minha pizza!

-Mas você disse que era ontem, ontem ele não trouxe nada, foi anteontem, você não estava aí…

-Ontem, anteontem… você acha que o Sabiá sabe a diferença? Ele é cracolândia, pra ele é tudo igual.

(Pra mim) Sacanagem, o cara me promete pizza há um ano e quando ele finalmente resolve trazer eu não estou.

(Eu) Ainda mais num horário desses, uma pizza quentinha cai bem…

-Nem me fale…

(Cobrador) Eram dois pedaços gelados, duros, não tava bom não…

-Mas era minha pizza, você comeu!

Personagens noturnos

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A cobradora do tubo à tempos não passa desconforto lá. Sempre está vendo algum programa pelo celular e ri muito, já direto na tomada. Agora, o seu senso de oportunidade me surpreendeu: ela está vendendo casquinha de chocolate com brigadeiro dentro, de vários sabores. A gente vai pagar e estão eles na nossa cara, por 3,50. Eu, que estava sem jantar e levaria mais de uma hora até jantar, não pude resistir.

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Tem o cara que pega ônibus no tubo logo em seguida. Descemos no terminal e pegamos o mesmo ônibus. Eu desço antes, ele vai até outro terminal e pega mais um ônibus. Não sei a profissão dele, é algo que envolve plantão. Sei que ele gosta de corrida, participa de maratonas, etc. E quando se senta no ônibus, dorme. Mas faz tempo que não nos vemos, tenho saído mais tarde. Já teve uma época que ganhei muitas caronas até em casa e, quando nos reencontramos, ele comentou que eu estava sumida.

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Eu aprendi uma nova linha de ônibus, paro mais perto de casa. Em comparação com a outra, nem me economiza tanto tempo, porque ela dá muitas voltas, mas o trajeto à pé é menor. Dos passageiros, os que têm crachá e uniforme são homens e descem antes. Param muitas mulheres perto dos motéis, acho que são recepcionistas. Uma vizinha, que há anos foi gentil e me deu carona até a biblioteca, também pega e me ensinou a descer direitinho, falando com o motorista. São só dois, daqui há pouco nem precisarei mais falar.

Rebordosa

rebordosa

Apesar de ser caretíssima, de botar o pé na jaca com chocolate e coca-cola, vejo livros e documentários sobre drogas e me impressiono com a ingenuidade das pessoas. Com a Carmen Miranda e todos na época dela, que achavam que podiam manter o corpo ligado e que isso não fazia mal à saúde. No quanto o pico, qualquer tipo de pico, tem uma descida orgânica depois, e ela é muito difícil. Eu, louca e obsessiva que sou, faço isso sozinha com trabalho. Engatei meses trabalhando mais de dez horas por dia, sem desligar. Eu funciono muito por tarefas, de colocar um objetivo e não me importar em me matar até ver aquilo concluído. Foi assim que cursei uma faculdade e um mestrado ao mesmo tempo, sem me importar em estar morrendo e ter crises constantes de choro, porque estabeleci que só pararia com os dois diplomas em mão, e foi o que fiz. Agora estou vivendo outro rebote desses. Como, durmo, choro, dou ao corpo o que ele precisa, torcendo para que ele não precise de mais. A descida, a rebordosa, é sempre aquele momento que você não gostaria de estar lá para viver.

Retrato

lucian freud

Eu sempre ficava imaginando uma pessoa que ia ingenuamente pedir pro grande artista Lucian Freud um retrato, ou que fosse convidado por ele a posar. Na minha imaginação, essa pessoa não faria qualquer pesquisa prévia e se veria na obra apenas depois de pronta. Duvido alguma reação que não seja de choque num primeiro momento, um abalo na auto-estima. De se sentir reduzido e retratado da forma mais cruel possível. Eu me sinto nessa situação, como um Lucian Freud, quando alguém tem a expectativa de ser descrito por mim. Eu sou boazinha, vocês dirão. Mas talvez seja ainda pior. Aquele que descreve o bizarro e acaba com a pessoa de cima abaixo, acaba ficando caricato e tudo o que dizer é cortado pela metade. Eu não. O ego é uma coisa frágil, e no meio a uma cascata de adjetivos, pode escapar um ruim. Pior: eles podem ser neutros demais, de maneira que a pessoa se descobre banal – antes ser vilão do que banal! Aí o efeito seria Lucien Freud. O que eu poderia dizer para quem conhece pessoas que escrevem: não queriam ser retratados, tenham medo de ser retratados.

Um dia sem cachorro

banho e tosa

Em si, o banho da Dúnia já leva umas duas horas. Ela tem pêlo grosso, daqueles que fica difícil encontrar a raiz. Mas eu tenho um acordo com a pet, que a busca cedo e a deixa em casa na última entrega do dia, para que eu tenha um dia inteiro sem ela. É o dia da grande limpeza. Foi a solução que eu encontrei para não ter que deixar a Dúnia presa na corrente durante horas, pra depois acabar pisando numa pocinha mínima de água e deixar tudo com marca de patas. Atualmente ela possui quatro folhas de tapetinho de yoga e três enormes travesseiros com fronhas pretas dentro da casinha. Tudo vai pro sol, tiro os pêlos, lavo a casinha, as tigelas, as manchas no azulejo, esfrego o chão, tudo o que se possa imaginar. Só quando ela está fora, eu percebo o quanto a minha rotina leva a Dúnia em conta – de olhar sempre para fora para ver o que ela está fazendo, de colocar uma música quando trabalho na sala para que ela não pense que vamos sair, ter que fazer correndo outra coisa quando percebo que dei um alarme falso que vamos sair, estar sempre consultando o relógio para não perder o horário dela. Eu me sinto como aqueles pais com folga dos filhos. É dia de deixar a porta da sala aberta, não me interromper pra sair, fazer tudo em silêncio e na hora que eu quero. Mas, tal como os pais com folga dos filhos, só tem graça porque é rapidinho. No final do dia ela chega perfumada e cansada, e eu me derreto porque ela está de lacinho.

Sistema cérebro espinhal

cerebro espinhal

O ideal seria não se importar com nada. Olha para a transitoriedade das coisas e não se magoar. Ser indiferente à solidão ou ao estar acompanhado, abrir e fechar empresa com como se estivesse com a vida ganha. Mas se eu conseguisse tudo isso, seria Buda e o que estaria fazendo na frente deste computador. Não sou feliz o tempo todo, mas já vi que qualquer postagem deprimida me incomoda, como se reforçasse, por isso evito. Mesmo com tudo muito hard, não tomei remédio, não faltei um único compromisso e não estourei nenhuma conta; o que ouvi foram queixas de que não me deixava ser ajudada porque não me abria. É verdade, sou muito mais a que ouve os problemas – não gosto do efeito Panic Button da maioria das pessoas ao ouvir confidências. Já tive que deixar claro pra amiga que não é que esconda coisas dela e sim que não dou importância, deixo pra lá e não permito minha mente ir pro assunto. Sou como o sistema cérebro espinhal: quase todos os assuntos são recuperáveis e negociáveis, menos LÁ. Restringi meu eu a poucas relevâncias, o que na maior parte do tempo é ótimo. Posso dizer que meu estado de espírito preferido é o estável. Mas aí recebi um e-mail, quase por engano, que passou raspando, e entrei em colapso, frágil como um castelo de cartas.