Querer

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Há anos eu li um livro que era um sujeito fazendo perguntas pra Deus, como se fosse uma entrevista. O livro começou bacana, ele fazendo as perguntas mais fundamentais. Depois vai indo, me parece que tem até o volume quatro, e só falta ele perguntar porque Deus criou as baratas. Não cheguei a tanto, li no máximo até o fim do volume dois. O que eu mais gostei do livro foi quando, no início do segundo livro, ele reclama que Deus sumiu, não ligou mais, visualizava e não respondia no Zap. Aí Deus fala que ele, o autor, é que estava sempre ocupado. O autor diz: a gente não tinha combinado de escrever livro juntos, você não perguntou se eu queria e eu disse que sim? Aí Deus falou: combinamos, eu perguntei, você disse que sim, mas aí você acorda tarde, vê Netflix, vai pra academia… Autor: Mas eu disse que sim. Deus: mas você sumiu. Autor: era só chamar. Deus: mas você… Enfim: Deus diz que não bastava falar que Sim uma vez e depois partir pra outra, que ele precisava escolher o tempo todo a mesma coisa.

Algo que para uns vem de berço, para outros é depois de uma vida inteira de luta, e vice-versa. O que eu aprendi em 2017 foi a querer, querer, querer obsessivamente, querer de todo coração, ser monotemática, querer de forma insana e repetitiva.

O novo calendário

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A humanidade finalmente consegue explorar o universo e descobre que não apenas não está sozinha como há organizações interplanetárias. Ao fazer parte disso, ela precisa se adaptar a uma padronização básica e o ano deixa de ser solar, com o nosso sol, e passa a ter uma medida que para nós corresponde a dois anos, ou seja, o novo calendário tem 430 dias. No início, as pessoas apenas duplicam o ano, contam o ano novo como se fosse um e outro que mudou mas se diz que é o mesmo, usam calendários com as duas medidas, sentem que trocam de ano no meio do ano. Mas o tempo e o desuso faz com que se confundam, esqueçam, as medidas antigas perdem a importância. As pessoas passam a levar 400 dias para se sentirem cansadas, pelo menos 70 dias a mais, pra só então achar que um novo ciclo se reinicia, cheio de esperança e novas possibilidades. Com o ano mais longo e numa contagem dos anos de vida mais curta, será que a humanidade se tornaria mais intensa?

Curitiba toda dominada

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Eu não sei se com os anos mudei eu ou mudou Curitiba, mas tive durante muito tempo uma relação de amor e ódio com a cidade que foi acalmando e a vontade de ir embora passou. Tem um post antigo meu que recebia recorde de comentários sobre o tema, e no início era até divertido de ler – Desvantagens de morar em Curitiba. Este post me fez ajudar dois estrangeiros a se decidirem sobre vir para cá ou não. Como tudo o que se escreve, ele reflete o que eu pensava na época e mudou, e era bastante estranho ser xingada por algo que não refletia mais a minha opinião, mas a internet tem dessas coisas. Hoje tenho consciência que é muito importante para mim poder me deslocar a pé. Alguns lugares tem uma distribuição de ruas estranhas demais para o meu precário senso de localização; outras são violentas demais; outras são machistas demais; tem as que são quentes demais ou as que exigem dinheiro demais. Uma vez estava no ônibus e ouvi uma conversa que achei muito interessante, de dois rapazes que contavam os lugares mais longe que já foram de ônibus, levando em conta onde moravam. Eu já tinha ido para os mais longe dos dois e mais adiante. Já devo realmente ter rodado essa cidade para todos os pontos cardeais, nenhum lugar me é totalmente estranho. Sem dizer que, no Centro, tenho a intimidade que só os anos são capazes. Um dia estava na XV e precisava comprar uma cartolina preta e soube exatamente onde havia uma livraria pequena e bem especializada em papéis especiais. Meus três itens essenciais numa cidade e que Curitiba me dá com folga: me perder e voltar sem riscos, decidir um longo trajeto à pé e ir resolvendo coisas no caminho, ter a cidade inteira acessível por transporte público.

Um amor maduro

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Passávamos de carro pela Avenida Batel, um dos endereços mais caros de Curitiba. Aquela região, em especial, era cheia das antigas mansões dos barões de café, hoje todas transformadas em estabelecimentos comerciais. Ela me apontou uma casa de esquina, que naquele momento era uma das clínicas do meu plano de saúde. “Minha mãe vivia aqui, com seu segundo marido”. Minha amiga estava, conforme sua própria definição, na idade do sexo – sex agenária. Estava grande, vestia sempre roupas largas e desleixadas, enquanto a mãe se mantinha magra, era vaidosa, num daqueles casos clássicos que a mão parece ter menos idade do que a filha. O primeiro casamento, com o pai da minha amiga, havia sido um desses longos, de bodas que cobriam todas as pedras preciosas, e a mãe ainda passou muitos anos sozinha, de maneira que nesse segundo casamento a mãe dela já estava na terceira idade e o marido tinha pra lá de oitenta. Ela me mostrou de carro: todo final de tarde, a mãe e o marido trancavam a casa, passavam o cadeado pelo portão, e andavam de mãos dadas por toda avenida, tranquilamente, até chegarem no supermercado (que também não existia mais). Lá compravam um frango congelado, porque uma das especialidades da mãe dela era frango recheado.

-Que bonito, murmurei.

-Você achou bonito? Bonito nada, era uma porcaria! Você não imagina a quantidade de frango que os dois compraram em quatro anos de casamento, parecia um holocausto de frango. Eu pedia pros dois pararem de comprar frango, eram freezers e freezers, impossível comer tudo aquilo. Até hoje eu não suporto ver frango na minha frente!

As mãos

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Nunca simpatizei muito com quiromancia. Pra variar, sei o básico: os planetas nos montes, as principais linhas. O fato de eu ter linha do casamento partida e isso significar separação. Mas, principalmente, me irrita ter as linhas tão finas que é quase como se não tivesse nada lá. Aí uma amiga começou a ler, aquela coisa toda, voltei a olhar para elas e querer saber qual das mãos levo em conta: a esquerda, que tem uma linha do destino fraca mas que chega até em cima, ou a direita com a sua linha do destino bifurcada no início, profunda, mas que se interrompe exatamente junto à do coração? Qual das linhas da cabeça representa a minha inteligência: a da esquerda que termina entre o mindinho e o anular ou a da direita, que desce até o monte da lua? Pesquiso na internet e lá diz que a mão esquerda é o potencial quando nascemos e a direita é aquilo que é. Continuo sem saber de nada, mas me consolo com a crença, a ligeira impressão, de que fiz o melhor com o que me deram. Porque, no fim, é isto: todos nascemos e vivemos profundamente desiguais. O único possível é fazer o melhor com o que se tem.

Os finais felizes das outras

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Eu tinha um crush. Quando eu comecei a stalkear, ele estava sozinho. Aí ele jantou romanticamente com uma mulher. Quando a vi, quis morrer, ela era linda. O problema é que não era uma linda por ter nascido apenas com traços bonitos, era linda no sentido de investir muito na sua aparência e personificar tudo o que se espera de uma mulher, do cabelo às unhas, dos gestos ao modo de se vestir. Vi ali que não tinha a menor chance, o tipo dele era boneca. Fui investigar e descobri que era um namoro de anos, desses que balança e nunca termina. As fotos de cervejada com os amigos foram substituídas por vida noturna, roupas da moda, outros casais e muita família. Ela era a candidata da sogra, aposto que frequentam os mesmos salões e lojas. Ele perto dela é um bebezão. Ela sem ele trabalha e sai com as amigas; ele sem ela surta e não sabe o que fazer do seu tempo livre. Quando me dei conta, estava torcendo por eles, ou melhor, por ela. Parecia que desta vez ia, pra todo mundo. Mas aí ele resolveu sumir numa longa viagem, foi solteiro, aproveitou muito, e nos últimos dias começou a “snif, snif, eu a amo!”. Fiquei torcendo pra ela não cair na conversinha mole dele. Caiu, eu vi a foto. Mas romperam de novo. Ele está caçando. E ela postou, há pouco, uma foto num paraíso tropical, radiante ao lado de um homem mais maduro. You go, girl!

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Foi dos momentos de crueldade involuntária que vai me doer o resto da vida. Uma vez uma parenta me contou, rindo, que quando contou pro seu irmão dos chifres do namorado, ele lhe disse para abrir uma fabrica de botões, e fez um gesto de cortar chifres imaginários. Então, quando minha amiga que o recém ex-marido lhe colocou chifres demais ao longo dos anos, fiz aquele comentário. Eu sei, como eu sou idiota. Era um casamento com idas e vindas, e na verdade me parece que ela não ligava muito pros chifres. Mas aí o marido, no dia dos namorados, comunicou que ele e uma fulana, também casada, que fazia parte do mesmo grupo de amigos, decidiram ficar juntos. E deixou para trás mais de dez anos de casamento. Quando ela me mostrou a foto da tal fulaninha traidora, eu fiquei sem fala: uma moça linda, com seus vinte anos. Não entendi pra quê largar tudo pra ficar com aquele cinquentão feio, pobre e grosso. Minha amiga se mudou, ficou sem cachorro, arranjou novos amigos – os antigos não cansavam de encher a tl dela com fotos do novo casal – e passou a ser figura fácil na noite curitibana. Adora samba e negão. Dois anos depois, a fulaninha foi embora e ele está devastado porque a mãe está doente. Pra quem ele liga? Ela atende, porque gostava da sogra, mas só se não está ocupada.

Monástica

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Ele – que me fez lamentar muito nunca ter ensinado pra Dúnia alguma palavra de ataque em alemão ou algo do gênero, que cometeu uma quantidade absurda de bolas-fora por minuto, que nos primeiros 30 segundos de conversa só faltou me dizer quanto tem na poupança – me acenou com uma relação onde a casa estaria cheia de gente, o pagode tocaria no fundo, eu serviria as visitas com os coraçõezinhos e traria mais cerveja gelada.  Nada de novo ou nada de estranho para quase ninguém. Voltei, abri o portão, soltei a Dúnia da corrente e voltei pra minha casa monásticamente silenciosa. E relembrei, caso em algum momento tenha me esquecido, o quanto a amo.

Você também deveria frequentar o Inter 2

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Eu tinha uma confraternização às 19:30, longe. Quis chegar atrasada, pra dar tempo dos outros chegarem antes mas não a ponto de atrasar todo mundo. Só que eu esqueci de comprar o refrigerante, me enrolei, passei na padaria. Quando cheguei no terminal, vi o tubo vazio e logo chegou o Inter 2, sinal de que o outro provavelmente tinha acabado de sair, coisa bem comum assim que desafoga o rush. Entrei no ônibus vazio e sentei perto da janela, naquelas bancos duplos. O motorista desligou o motor e saiu. De acordo com a TVzinha que tinha no ônibus, já eram 19:30, o que me provavelmente me faria chegar mais atrasada do que o desejável. Ainda mais se o café ou xixi ou cigarro do motorista fosse longo. Entrou alguém que foi para o fundo do ônibus falando no celular. Entrou uma mulher cheia de pacotes e sentou na minha frente. Entrou outra mulher com celular e sentou à esquerda. Entrou um homem baixinho e sentou do meu lado, o que  me irritou porque contraria totalmente o Protocolo de Kioto, que proíbe as pessoas de ficarem perto quando tem outros lugares vagos. De rabo de olho percebi que ele usava jaqueta de couro e fiquei antecipadamente angustiada com a ideia dele estar cheirando suor – mais de vinte e cinco graus, pelamor. Mas não estava. A mulher do celular à esquerda disse para a pessoa do outro lado da linha que saiu mais cedo porque tinha amigo secreto. O cara da jaqueta de couro também saca um celular. Olho pela janela e parece que todos no mundo estão usando celulares. Estou com o refri apoiado na bolsa, para não me gelar. O motorista não está à vista. Começo a ouvir um som vindo de longe, meio baixo, uma música. Acho que é algum celular tocando mas ele persiste. Tento identificar de onde vem e concluo que é do cara com a jaqueta de couro. É uma versão em saxofone de Então é Natal.

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Quando o ônibus já estava à caminho, duas mulheres conversando atrás de mim:

-Falei pra você que eu fui num retiro? Fui sexta-feira passada, melhor coisa. Eu estava tão estressada que você não imagina. Numa chácara bem longe, da minha igreja. Eu estava num nível de stress que disse pra minha filha que nem conseguir pensar direito eu estava. Fomos eu e meu marido. Foi a melhor coisa, foram dias só comendo e chorando.

Lanchinho

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Uma vez eu conheci um ex-blogueiro, que me disse que comeu muita mulher por causa do blog – o que logo de início de conversa me deixou bem complexada, porque nunca tive um encontro amoroso por causa do blog. Ele já não escrevia há anos e, com alguma resistência, me mandou o link. Foi interessante, porque também me vi com vontade de procurá-lo, marcar um encontro, ver no que ia dar. Só que o que ia dar, no caso dele, era sempre transformar a moça em lanchinho. Ninguém, nunca, há anos, era mais do que lanchinho. Pude ver o contraste e imaginei a frustração de algumas daquelas mulheres. O blog mostrava um homem muito amoroso. Havia textos emocionantes sobre os pais, proximidade e orgulho dos filhos, como foi levar a primeira filha para o altar. O que a gente queria, quando lia os textos, não era exatamente dar pra ele – o bom seria fazer parte daquela vida, daquela família, de todo aquele amor. Que ele também lesse nos meus gestos coisas que ninguém nota, que sentisse saudades. Mas só com o convívio a gente descobria que o amor descrito no blog era apenas e tão somente para aqueles familiares, ele não deixava entrar mais ninguém. Mulher, só lanchinho. Convicto, feliz, sexo sem vínculo. Por isso que a gente diz, e repete, e tenta de novo, precisa ser relembrado: escrita é sempre mentirosa, mesmo quando a pessoa fala a verdade.

Uma vantagem linguística na matemática

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Li recentemente um livro fantástico, chamado Outliers. Ainda estou tentando organizar na minha cabeça para escrever uma crítica à altura no outro blog. Há um pedaço que fala de matemática que certamente vai ficar fora da crítica, porque é apenas parte do raciocínio, mas achei tão massa que tenho que dividir com o mundo:

Existe também uma grande diferença em como os sistemas de nomeação de números das línguas ocidentais e asiáticas são estruturados. No nosso sistema, dizemos dezesseis, dezessete, dezoito e dezenove. Seria de esperar, portanto, que disséssemos “dezeum”, “dezedois”, “dezetrês”, etc. Mas não fazemos isso, usamos uma forma distinta: onze, doze, treze… Na maioria dos números a dezena vem primeiro e a unidade depois: dez(e)sete, vinte e sete, trinta e sete, porém os números de onze a quinze não seguem a mesma lógica. Não é estranho? Isso não acontece na China, no Japão e na Coréia. Eles dispõem de um sistema de contagem lógico: onze é “dez-um”, doze é “dez-dois”, vinte e quatro é “dois dez quatro”, e assim por diante.

Essa diferença proporciona às crianças asiáticas duas vantagens. A primeira é que elas aprendem a contar com muito mais rapidez. As crianças chinesas de quatro anos sabem contar, em média, até 40, enquanto as americanas nessa idade contam apenas até 15 e só chegam aos 40 aos cinco anos. Ou seja, as crianças americanas de cinco anos já estão um ano atrás das asiáticas na habilidade matemática mais elementar.

A regularidade de seu sistema numérico também permite às crianças asiáticas realizar funções básicas, como a soma, com mais facilidade. Peça a uma criança ocidental de sete anos que some, de cabeça, trinta e sete mais vinte e dois. Ela terá que converter as palavras em números (37 = 22), para depois cuidar da matemática: 2 + 7 = 9 e 30 + 20 = 50, o que perfaz 59. Peça a uma criança asiática que some três-dez-sete e dois-dez-dois. A equação está implícita na frase. Não é preciso converter nada: cinco-dez-nove. (Parte II, Capítulo 8: Arrozais e testes de matemática)

Antes desse trecho havia a relação entre a língua e a memorização dos números e depois há da influência dessa confusão linguística na relação das crianças com a matemática. Sério, que livro massa.

O (acho que) rato

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Era de noite, a porta dos fundos estava aberta como sempre e eu ouvi um barulho esquisito que vinha de fora. Apurei o ouvido e vinha do sifão, da parte debaixo. Durante o dia eu tinha usado o tanque e a água esparramou toda, o sifão estava desencaixado. Encaixei de volta e achei que era apenas porque estava ressecado. Ao ouvir aquele barulho, entendi que um bicho havia tirado ele do lugar e que estava tentando fazer de novo, naquele instante. Abri a torneira e deixei a água correr, o barulho parou. No dia seguinte tudo bem, mesmo assim joguei uma água sanitária antes de dormir, para dar o recado. Na manhã seguinte, o sifão todo para fora de novo. Pego uma imensa pedra redonda de jardim e coloco em cima do buraco, ou seja, fico sem tanque o dia todo. Estou bem tranquila à noite fazendo sopa e quando olho para o tanque a pedra estava longe. Foi aquela sensação de filme de terror, o bicho além de persistente é grande. Coloco a pedra de novo, agora com o reforço de enciclopédias (!!) para prendê-la à parede. Tenho medo de ter prendido o rato pra fora – ou para dentro, dependendo do ponto de vista – , mas como é que eu vou saber se ele foi e já voltou? Me desconcentro, não leio mais, não faço mais nada direito. Estou no sofá ouvindo a única trilha possível no momento – Life is Hard – e penso em não postar. Tem um ratão em algum lugar, lá embaixo.

Astrologia e tudo mais

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Dia desses estava num bate papo animado on line, o assunto foi para signos e comecei a dar uns pitacos nos mapas das pessoas. Olhava o desenho e falava o que havia me chamado atenção. Foi a primeira vez na vida que li o mapa de outra pessoa – tudo o que sei de astrologia tenho usado para consumo próprio. Aqueles cujo mapa eu li se impressionaram com minha precisão e mesmo quem não foi analisado achou que sei muito. Uma me perguntou, reservadamente, se eu conhecia algum curso on line de astrologia. Eu lhe indiquei o livro que li a vida toda – Curso Básico de Astrologia. Em casa chamávamos de O Livro Rosa. Os aspectos de cada um estavam marcados com uma bola colorida no canto. Até hoje, quando releio, percebo que sei os trechos de cor. A pessoa que queria curso me perguntou, eu respondi, ela me agradeceu e o assunto encerrou. Mas o que eu teria a dizer, sobre qualquer livro ou curso, sobre astrologia ou misticismo, ou escrever, ou o que minha professora de flamenco fala sobre flamenco, ou quem sabe mais o que na vida e o que há sob o céu: a coisa vem com o tempo. Cresce com você, se mistura com quem você é, amadurece com a sua maturidade. Há o que você leu e só entende profundamente depois, há o que não está escrito e nunca estará escrito e vem, como uma verdade que se revela. Quando a gente descobre isso, deixa de sofrer e até mesmo gosta do que não vem de primeira.

Venha, sol!

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Li em algum lugar, acho que dito por Jung, de uma tribo que acreditava que toda manhã precisava pedir para o sol nascer e assim a vida prosseguir. Que de primeira ele achou idiota, depois achou bonito se colocar num lugar tão atuante com o mundo, uma afirmação diária de que o dia merecia amanhecer. Eu desenvolvi ao longo dos anos uma insônia que não me permite dormir sem ter postado. Criei uma disciplina pra um blog não remunerado e de pouco acesso e escrevo 1h da manhã sem que ninguém mande. Será que um dia um desses que precisa acordar o sol não perdeu o horário e quando viu o sol já estava lá e descobriu que o sol não se importava?

Curtas de etiqueta

Passei na loja no dia e horário mais agitado, e pretendia comprar meu produto escondida e sair correndo. O dono me viu e achei que ele colaboraria com meu intento, com a justificativa perfeita de que havia muita gente. Mas aí ele me acenou animado, como nos velhos tempos, me perguntou o que eu queria, pegou pessoalmente, terminou de me atender. Acho que lhe desejei Feliz Ano Novo, e ele disse que era muito cedo, eu não voltaria lá em um mês? Disse que provavelmente não, que… Então ele deu a volta no balcão e “então pra não correr o risco me dê agora o abraço” e lhe dei um abraço que me deixou com o perfume dele impregnado na roupa. Tive vontade de perguntar se ele enlouqueceu, se ele se lembrava do quanto foi frio nas últimas muitas vezes que passei lá. Vai ver que ele decidiu que depois de três anos eu não merecia mais ser punida pela separação. Vai ver o ex passou lá com a noiva. Vai ver que queria se mostrar pra alguém. Sei lá.

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Sigo por princípio esta citação de Hamlet:

Se fosseis tratar todas as pessoas de acordo com o merecimento de cada uma, quem escaparia da chibata? Tratais deles de acordo com vossa honra e dignidade. (ato II, cena II)

… e tenho confundido as pessoas nesses nossos tempos rudes. Eu gosto de tratar bem, ouvir confidências, tenho uma memória de elefante a respeito do que as pessoas me contam, gosto que minhas interações sejam o mais leves e agradáveis para ambos. Aí quem reserva seu lado agradável apenas para quem ama, interpreta minhas atitudes como declaração de amor. Só se for amor pela humanidade.

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Sou uma fã nova de Bob Dylan, nova e solitária, porque passei a gostar sozinha lendo um livro. Então eu não sei se, como fã, eu tenho que gostar mais dele cantando do que qualquer outra pessoa. Se tenho, jamais serei alçada ao clube. Este desconhecido, por exemplo, que adorável!

Mimizenta

Bhishma and Arjuna in battle / miniature

Como começou quando eu me separei, posso afirmar com toda certeza que foi uma estratégia para lidar com a solidão, a falta de ter com quem falar. Você pode dizer que eu poderia ligar para um amigo, ou pro CVV, mas ligar é muito diferente de ter alguém. Porque quando se é casado ou mora com alguém, é só virar do lado e falar, num gesto impensado que quando percebe já foi. E um dos motivos mais frequentes de queixa era justamente esse,  o de estar sozinha. Na falta de ter com que reclamar eu reclamava falando pro alto e apontando, reclamava com Deus. Nunca achei que devesse ter qualquer pudor na hora de falar com Ele. Tenho ao meu favor toda literatura indiana: o hinduísmo considera de extrema importância o pensamento que se tem na hora da morte, que ele é determinante para a próxima encarnação. Os hare-krishna não cantam o dia inteiro para fazer banco de horas do bem ou obter favores, como os cristãos. A intenção deles é manter a mente disciplinada para que na hora derradeira eles pensem em Krishna e isso automaticamente os libertará. Pensar em Krishna é o que importa – mesmo os inimigos de Krishna, que morreram nas mãos dele e com ódio dele, foram parar em mundos superiores. A má administração Dele, o rigor, a extensão dos meus sofrimentos, tudo que eu achasse que merecesse queixa era devidamente reportado – “Tá vendo o que você fez? Não, não tá, nitidamente não tá vendo, ou não liga a mínima!”.  Até que um dia – crentes dirão que foi uma Luz – me bateu uma vergonha, não sei explicar. Percebi que quando parece que algo demora a chegar é porque não estou gostando do agora. Senão pediria para o tempo ser congelado. Ou estaria pedindo outra coisa, porque estaria em outro agora. Mas como ainda estava com um problema, olhei pra cima, perguntei se Ele viu e suspirei. “Continuo achando que do outro jeito seria mais fácil, Deus. Facilita aí”.