Ah, essas novas gerações…

O fato de não ter filhos retira da minha vida questões que pais sempre enfrentam. Lembro de acompanhar de perto o convívio de uma amiga com a filha e minha idade ficava justamente no meio das duas, e me identificava com as duas. No início da idade adulta – que fica cada vez mais tarde – ainda somos crianças o suficiente para achar que nossos pais devem nos dar tudo – inclusive as coisas intangíveis como a liberdade -, e fazemos o jogo de sempre pedir várias coisas na esperança de obter algumas. Então o filho diz: me dê dinheiro, me dê roupa, me deixe sair e voltar a hora que quero, me deixe me trancar com o namorado no quarto. Já os pais estão cansados deste papel, mas também não podem e não sabem como dar aos filhos a liberdade plena de um adulto. Então: eu te dou dinheiro para cortar o cabelo, mas não pode fazer loucura com ele, eu te busco na balada e tenho de aprovar (a)o candidato(a) a genro(nora).

Mas por estar sempre em contato com a geração mais velha – imagina se adolescente vai querer ser meu amigo -, o que eu mais ouço são as queixas dos pais. Um dos momentos que eu considero mais interessantes é quando falamos de coisas que na nossa infância eram consideradas sem riscos e hoje são impensáveis: com menos de dez anos pegávamos ônibus sozinhos até a escola, éramos colocados no porta malas durante viagens longas pela estrada, ficávamos apenas com outras crianças o dia inteiro sem que ninguém soubesse aonde estávamos e por onde havíamos andado. Fatalmente a conversa termina com: como é mole essa nova geração dos nossos filhos. São uns mimados, não têm metade da nossa força, não têm iniciativa, não são capazes de nada. A grande culpa costuma ser jogada sobre a tecnologia: “Eu digo pro meu filho, a vida é muito mais do que ficar o dia inteiro com o celular na mão”. Mas há também o reconhecimento em dizer: eu sei que eu protejo demais. É puro conflito, um conflito que – dizem! – nossos avós não tinham, filho não tinha voz e pronto.

Eu tenderia a concordar, os jovens adultos de hoje também me impacientam. Mas o fato de sempre ter andado com pessoas mais velhas me fez viver a experiência de ter vinte e poucos e conviver com uma mulher de sessenta. Isso foi na época que eu era escultora, nós nos conhecemos no atelier e ela via em mim um grande talento e queria me ajudar. No fim nada deu certo, mas a tentativa nos levou a conviver muito. Eu me lembro como ela me achava sem força, sem iniciativa e incapaz quando comparada com ela, que na minha idade já advogava, já tinha se separado e sustentava sozinha os dois filhos, etc.

Os mesmos pais que reclamam da inutilidade dos filhos os deixam na porta do vestibular e ficam mais de quatro horas trancados nos carros esperando eles voltarem (moro perto de um local de prova, via isso todos os anos). Eles não conseguem evitar. Dizem que os ônibus são perigosos, que o prejuízo de perder uma prova dessas vale mais do que uma possível lição sobre responsabilidade, enfim, que a vida é dura. E nisso eles têm muita razão. Eu lembro que meu pai achou que o certo, depois que eu me formasse, era ir pra uma cidade de interior e aceitar um estágio qualquer numa clínica com a esperança de subir de cargo. Talvez na época dele tivesse funcionado, mas na minha não funcionava assim e sem dúvida hoje está muito pior: a melhor maneira de conseguir emprego “começando de baixo” de hoje requer graduação, pós, segundo e terceiro idioma, carro próprio e disponibilidade de horário. Com esses requisitos, é possível ter um emprego ruim e crescer, sendo que a outra alternativa é simplesmente ganhar mal. Perder um ano porque perdeu um vestibular hoje pesa muito mais do que antes e quem quer se arriscar a usar um momento desses para fortalecer caráter de adolescente?…

Quem acompanha este blog há mais tempo, antes dele ficar tão sério, sabe que sempre fui uma grande usuária de ônibus, diria até uma apaixonada. Sempre tentei mostrar que pegar ônibus não é esse desastre e perigo que se atribui. Usar ou não transporte coletivo, descobri, faz parte de uma ampla discussão (da área de Arquitetura e Urbanismo) sobre a ocupação do espaço urbano. Quando as pessoas desocupam o espaço público, ele se torna perigoso – sendo que as pessoas o abandonaram alegando que era perigoso, num círculo vicioso cada vez mais difícil de romper. Se as pessoas param de andar nas ruas, não veem mais o lixo no chão, a lâmpada queimada e a falta de lugares para sentar, a rua se torna um lugar cada vez mais hostil e só as pessoas que não têm opção vão passar ali. O que salva o espaço público é gente passando, descansando nos bancos, passeando com os cachorros, fumando cigarrinho enquanto conversa com os amigos. Na minha infância, o sistema de transporte de ônibus de Curitiba era motivo de orgulho e muito utilizado pela classe média, que preferia deixar o carro na garagem porque andar de ônibus era mais fácil. Hoje é comum as pessoas acharem que bastou cair a tarde e fica perigosíssimo estar dentro de um ônibus. Perigoso, eu digo, é estar sozinha num carro em movimento dirigido por um desconhecido que tem seu endereço.

O que fica muito claro pra mim é que ninguém está educando os filhos como quer. Mesmo que um pai desses resolvesse sair desse conflito e apenas aplicar com os filhos a pedagogia tal como fomos criados, o Conselho Tutelar iria bater na sua porta – onde já se viu, deixar uma criança de dez anos exposta, sozinha, aos perigos das ruas? O mundo apressado, violento, desigual e hipersexualizado que estamos vivendo faz com que apenas os desprotegidos socialmente não prolonguem o infantilismo dos seus filhos pra lá dos seus vinte anos. Porque nós sabemos que não é a pura acomodação que faz com que o jovem de hoje saia de casa cada vez mais tarde, e sim os salários baixos e a total falta de perspectiva. Com a necessidade de conviver com um adulto em casa cheio de hormônios, as relações entre pais e filhos foram se modificando, as regras ficaram mais tolerantes e ficar na casa dos pais se tornou sim mais livre do que era antes. Mas quando fazem isso, os pais se culpam por estarem atrasando ainda mais o ingresso dos filhos na idade adulta, sendo que “na idade dele eu já estava casado, trabalhava, tinha um filho, etc.” Dizem que os filhos são criados para o mundo, e eles são também o mundo. Os filhos trazem para dentro de casa o mundo tal como ele é hoje – um mundo que não se parece com o nosso e está bem longe de ser como gostaríamos que fosse. Entre nossas pequenas ideias e lembranças de como uma educação deve ser, o que acaba prevalecendo é a força do coletivo, fazer mais ou menos como todos os outros pais estão fazendo, o que possibilita aos nossos descendentes uma base para construir o futuro.

Pitacos grosseiros sobre pedagogia

Lembro que uma das minhas professoras de psicologia, que também estava começando a carreira docente, fez uma pesquisa antes de assumir a disciplina e nós, alunos, nos queixamos do cansaço, do formato convencional das aulas, da impossibilidade de digerir tanto conteúdo na nossa carga horária. Ela decidiu fazer algo a respeito e, bem… Devo dizer que nós achamos admirável que ela não se conformasse em apenas ler o conteúdo da matéria e escrever no quadro, vimos que ela se esforçou. Lembro de chegar em uma aula, ver vários grupos sentados em círculo e um quebra cabeças, semelhante a um cubo mágico, com cada um. Fiquei cansada só de pensar que passaríamos por aquilo de novo, semanas e mais semanas de discussões em roda sobre algum brinquedo. O resto do grupo estava com tanta má vontade quanto eu. Sabem o que é alguém te dar um balão, você ter que discutir com o grupo e a partir daí chegar ao pensamento Construtivista? Era isso o que ela tentava fazer.

Eu me lembrei do causo porque finalmente decidi não apenas ler sobre Paulo Freire e sim ter a minha própria impressão de Paulo Freire. Me dou ao direito de ser piegas: estou achando lindo. É daquelas leituras que nos fazem vislumbrar um mundo melhor e querer caminhar até lá. Mas eu me perguntei o que eu faria, se fosse professora, impactada pelo Pedagogia do Oprimido, para mudar minha pedagogia no dia a dia. Eu não poderia fazer uma pesquisa de campo e, baseada na realidade dos meus alunos, construir com eles o que seria ofertado como disciplina naquele ano. É o velho problema entre teoria x prática, curto prazo x longo prazo; Paulo Freire propõe uma reforma ampla, uma política de Estado. Talvez aquela minha professora de psicologia tenha sido leitora de Paulo Freire. Depois de semanas desastrosas, ela acabou desistindo das aulas “desconstruídas” e se queixou de ter tentado nos ajudar – nós havíamos nos queixado do formato tradicional, mas, quando tivemos chance, não aderimos ao novo. Lembro que nós sentíamos que o que ela propôs não estava dando certo, mas tampouco éramos capazes de dizer aonde estava o erro, o que poderia funcionar. Nenhum de nós – professora e alunos – tinha no seu repertório a vivência de construir o conhecimento juntos, como Paulo Freire propunha. A boa intenção foi vencida pela ignorância.

Meses antes do início da pandemia, eu arrumei um emprego temporário como aplicadora de prova. Era uma prova parecida com um vestibular, que servia para avaliar a escola e decidir sobre futura distribuição de verbas. Embora os alunos recebessem todas as questões num só caderno, eram quatro provas e pra cada uma havia um tempo estipulado, que era meio longo. Na maioria dos colégios tudo foi bem; o tempo sobrava, os alunos começavam a ficar impacientes, rolavam umas conversinhas e eu chamava atenção, nada sério. Até que na última escola deu tudo errado. Quando comentei do trabalho, que iria para escolas públicas, cheguei a ouvir que corria o risco de levar navalhada na cara, e as oito aplicações que havia feito contrariam os esteriótipos com louvor. Naquela última sexta-feira fui parar numa turma F, de repetentes. O combinado entre as escolas e a Secretaria de Educação era que nos corredores, enquanto a prova fosse aplicada, haveria um funcionário para escoltar o aluno que pedisse para ir ao banheiro e ajudar o aplicador a acalmar a turma, caso fosse necessário. Justamente nesta escola não havia ninguém. Apesar dos meus avisos, os alunos fizeram as quatro provas de uma vez, e por consequência sobraram duas horas antes que eu pudesse liberá-los. Foram muito longas duas horas trancada com eles, sem o menor controle sobre a turma, sem ter pra quem pedir ajuda ou pelo menos poder propor alguma atividade. Lembro que um chegou a comentar: “se foi moleza assim essa, imagina no vestibular” e eu pensei – “no vestibular, você mal vai olhar pro lado e o fiscal vai te expulsar da sala sem apelação, e você vai tempo, dinheiro e um ano de estudo”.

Quando finalmente a porta abriu, eles saíram como se eu já não existisse e eu os odiava. Eu pensei nos professores que lidavam com eles todos os dias, como deve ser abrir os olhos de manhã e lembrar que era dia de entrar na turma F. Agora, depois de ler Paulo Freire, penso nas distorções que o nosso modelo “bancário” de educação – onde o conhecimento é apenas depositado no aluno – causa no convívio entre as pessoas. Se por um lado, o que oferta o conhecimento detém todo poder, por outro ser o que recebe coloca a pessoa numa posição onde ela não se responsabiliza em nada pelo processo. Se o professor se sente frustrado porque não conseguiu dar aula, se estar em certas turmas destrói vocações, se quase todo tempo é gasto em pedidos de atenção, o aluno acha que não tem nada a ver com isso. Eu lembro do meu tempo de aluna, de como me soavam mimizentos os professores que reclamavam de nós – eles que deveriam saber nos controlar, eles que deveriam entender as sutilezas que faziam com que alguns tivessem autoridade e outros não, era normal agir de forma que fosse conveniente apenas para nós.

Aquele mesmo aluno barbado de quase dois metros de altura, que se queixou que tinha problema de saúde e a mãe dele viria fazer um escândalo se eu não o deixasse ir no banheiro i.me.di.a.ta.men.te, dependendo da situação da sua família, naquele momento poderia estar num emprego. E, estando num emprego, ia ter que segurar o xixi e o tom de voz, porque por muito menos o chefe o mandaria embora sem hesitar. O contraste entre uma situação e outra é muito grande e, na fase da vida que ele estava, ainda não sabemos o quão frágil somos, o quanto uma queda de status pode ser repentina. Num dia se é aluno e tudo é permitido, no outro o mundo do trabalho se dá ao direito de legislar sobre coisas ínfimas e punir à vontade. Um tom de voz, um superior que não vá com a sua cara, uma mudança na economia e a pessoa pode se ver na rua, sem condições de comprar comida. Por isso que ninguém quer ser adulto, por isso que todos querem ser cliente! Adulto engole sapos, cliente tem sempre razão. Ao que é servido, porque está pagando, damos o direito a tudo; o ônus do equilíbrio, maturidade, comprometimento e auto-controle fica inteiramente nas mãos de quem serve.

Quem sabe se o conhecimento fosse algo construído nas escolas, também aprenderíamos a ter relações mais maduras, que não alternássemos os papéis de oprimido x opressor o tempo todo. No Educação como prática da liberdade, Paulo Freire relaciona a maneira como fomos colonizados à verticalização extrema das nossas relações, onde poucos tudo possuem e tudo podem sobre uma maioria ignorante. Nós sabemos que algumas profissões (por exemplo, o telemarketing) são verdadeiros moedores de carne, elas adoecem a todos, não existe vocação ou temperamento que resista a tantos maus tratos. Outras, como ser um professor, não deveria ser, mas muitas vezes acaba se tornando também um moedor de carne, porque o que o professor menos faz é se preocupar com o conteúdo das aulas, de tantos problemas que ele enfrenta. A única compensação que surge quando se fala de tais profissões é um possível aumento de salário, confirmando que realmente se crê que qualquer coisa está à venda, que tudo pode ser compensado financeiramente. O mundo que Paulo Freire me faz vislumbrar e querer chegar lá é um onde não há extremos entre tudo pode x nada pode; quando as pessoas não se eximem das suas responsabilidades e são capazes de enxergar o outro, talvez não seja mais necessário ou aceitável pensar que alguns precisam adoecer ao servir, tudo para garantir sua própria subsistência.