Quando eu comecei a dançar…

desfocada

… aquilo pra mim era tão forte, como um chamado, que a vida universitária se tornou imediatamente insuportável. Havia nascido e me criado ali, e de repente ficar sentado tempo demais incomodava, aquele amontoado de citações não fazia sentido, ler dava preguiça. Dei as costas a um lugar onde sabia exatamente como me mover e me destacar pra entrar num mundo onde eu era inexperiente e velha ao mesmo tempo. Mas era tão forte e tão apaixonado que eu só podia ter um talento muito especial que me faria superar todos os obstáculos. Às vezes os obstáculos me pareciam ser meus próprios professores, que não superavam políticas internas para me defender e me dar o destaque que eu merecia. Demorei muito tempo para parar de me sentir injustiçada e entender que um chamado forte não quer dizer que você será um grande talento naquilo.

Eu não sei porque a vida me levou até a dança. Penso isso muitas vezes enquanto olho meus colegas, gente que chegou a menos tempo e me ultrapassa, gente que se identifica com as fotos de quando está de figurino, gente que se torna uma versão muito maior de si mesmo quando a música começa. É estranho pensar que às vezes estamos numa atividade em função de todo entorno e não da atividade em si. Perdi as contas de quantas vezes aquela aula me salvou. Eu danço porque a vida me deu esse presente, porque se eu realmente tivesse talento ele se converteria na minha obrigação. Eu acho que a vida me queria pegando aquele ônibus, aquele horário, e que encontre a cobradora que vende docinho no tubo. A vida acha que eu devo estar no meio daquelas pessoas caladas e cansadas enquanto o ônibus faz curva em ruas escuras. As ruas por onde eu ando e jamais andaria, as pessoas que eu conheço e jamais cruzariam o meu caminho. Eu visto figurino apenas para servir de mágica e conseguir assistir aos espetáculos por dentro. Foi a vida quem quis assim, só não sei o porquê.

Curtas de boi preto conhece boi preto

boi preto

A expressão que está no título me fascinou desde a primeira e única vez que a ouvi, não sei se é uma expressão comum. E, no contexto em que foi dita, também não sei se é verdade. Não sei se vocês lembram, mas tinha uma época que a Giseli Bündchen namorava o DiCaprio. E o Clodovil disse num programa que era um namoro de fachada, que o DiCaprio era gay. De onde ele tirou aquilo? Boi preto.

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Boi preto que conhece boi preto. Li o mapa astral de uma amiga que tem um Saturno muito forte. Contei pra ela todos aqueles atributos: velho, sério, lento, rigoroso, espartano e também confiável, compromissado, capaz de grandes feitos. Diagnostiquei que ela foi uma criança séria, que se dava bem com gente mais velha porque sempre se sentiu velha. Quase sem sentir, ela falou: “você também tem um Saturno forte no teu mapa, né?”. Ou seja, entendeu a beça do próprio mapa e de mim.

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Na minha família havia uma forma bem particular de fazer críticas. Digamos assim, eu estou usando um tênis feio com um vestido. Entende-se que não adianta falar que o tênis é feio, quem disse que eu tenho outro. A providência era me dar outro tênis, para que eu pudesse me livrar daquele e usar um certo. Então você recebia certos presentes e entendia o recado. Era bom e ruim ao mesmo tempo.

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Eu me toquei há pouco tempo que vááááárias vezes falei que me surpreendi em ver o quanto o pessoal da dança é convencional. Penso muito em referências de teatro. Ator entrega o corpo de uma maneira muito mais radical. Perto de um ator, ainda acho o bailarino muito vaidoso, muito com medo do ridículo. Mas, enfim, estou sendo uma chata porque só sei dizer que é pouco, eu nem ao menos saberia explicar o caminho.

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Ouvi a pergunta extremamente pertinente do porquê fazer um mapa astral. Pra auto-conhecimento. Eu, por exemplo, só tive real dimensão do quanto sou difícil com meu mapa.

Os deuses e os joões

Quero presenteá-los com um vídeo incrível e dar um pequeno pitaco sociológico.

Eu sei que é uma mulher, você também. Eu sei que ela vai pra aula, que veste jeans, que come e vai ao banheiro. Sei que escolheu esta música por um motivo bem banal, porque gostou e porque estava acessível, e que cada pedaço da coreografia foi construído aos poucos. Escolhas foram feitas durante o processo; movimentos que poderiam ficar ainda melhores não foram colocados porque ela não conseguia fazer, porque não encaixavam na música, ou apenas nem pensou neles. Apesar dela ser uma pessoa com história, nome, maquiagem, roupa encomendada, no momento que vemos o vídeo é como se ela encarnasse uma deusa. Vi inúmeras vezes e em todas eu me arrepio.

O pitaco: ganharemos mais quando as análises deixarem de se focar apenas no João da Silva. Seja o João da Silva um juiz poderoso que cometeu atos ilícitos, seja o João da Silva um segurança que cometeu um ato violento. O João da Silva é ele mesmo mas é também um grupo, uma forma de encarar, uma causa e uma consequência. O João da Silva reflete a forma que outros João da Silva agiria no mesmo lugar. Eliminar um João da Silva sem levar em conta o contexto significa apenas trocar um João da Silva por outro.

Anti-agito

black_sheep

Estávamos esperando o ensaio começar. Tem uma coreografia bem simples, mas bem simples mesmo, que todos fazem juntos. Como tem convidadas especiais, e elas têm que ficar na frente, pediram pra dois professores repassarem com elas. Eles repassaram, aí as pessoas estavam por ali perto começaram a repassar junto. De novo, outra vez, agora sem olhar no espelho. O troço foi como uma onda e estava quase todo mundo repetindo aquilo várias vezes, como se fosse aula. Eu os observava à distância, sentada. Olhei para aquela balburdia, eu imóvel, eles se mexendo, e pensei que aquilo era muito eu – a antissocial, a alien, a que não sabe se divertir em festas. Mas olhei de novo e conheço bem algumas pessoas, e sei que elas não estavam preocupadas com aquela coreografia. Comecei a me perguntar quantos ali não estavam apenas não querer ficar estranhos, e por dentro não estavam achando um saco repetir mil vezes algo simples e que bastaria colar na hora. Que poderiam estar se sentindo falsos, dentro e fora ao mesmo tempo. Exatamente como eu me sinto quando tenho que fazer de conta que estou me divertido. Meu problema com festas é principalmente a obrigação de estar sorridente e sempre em movimento, buscar constantemente um holofote imaginário. Pela primeira vez, percebi que justamente a minha recusa em fingir e ser capaz de ficar no meu canto pode ser uma das minhas grandes qualidades.

Dois pitacos e meio sobre Marguerite

Marguerite, que tem no Netflix, é baseado em fatos reais. É a história de uma aristocrata que canta muito mal, e que não tem a menor noção disso.

1. Tenho pensado bastante o quanto a diferença entre ser alguém e não ser ninguém é toda diferença entre levar porrada ou não da vida. Preto e pobre leva muito, e literalmente. Há poucos dias uma muito rica fez algo completamente sem noção num grupo de pessoas. Se fosse eu a fazer aquilo, a resposta seria imediata – fariam caras, alguém me mandaria parar e me colocariam de volta à minha insignificância em poucos segundos. Como era alguém que um-dia-pode-me-dar-uma-vantagem, não apenas não falaram nada como fingiram que estava o máximo. Igualzinho Margarite. O filme mesmo faz esse contraponto, mostrando a cantora talentosa e pobrinha. Me deu vontade de mandar pra umas Marguerites que eu conheço assistirem, quem sabe se tocassem.

2. Peguei o filme para rir, mas acabei me sentindo #somostodasmarguerite. Gostamos dos grandes talentos, mas a arte se faz principalmente pelos grandes entusiasmados. Pensei em dizer que os medíocres são o adubo da terra que gera os gênios, mas aí fica parecendo que estou dizendo que medíocre é merda… O que quero dizer é que não é possível investir só no gênio; quando vemos classes inteiras de pessoas que nunca se destacarão, ou que estão lá só de passagem, parece que é dinheiro jogado fora. Que se não é pra ser Bolshoi, não vale abrir escola de balé; se não é pra ganhar Nobel, pra quê fazer pesquisa. Não é assim, é preciso criar o ambiente. É preciso uma turma, uma geração, um bando de pessoas, o ruim, o bom e o mais ou menos. As pessoas aprendem vendo umas às outras, incorporando gestos inconscientemente, disputando entre si, criam uma história. Cada apresentação feiosa e erro é importante. É um caminho que se trilha e as pessoas precisam estar juntas. Cada pequeno é um pedaço que forma uma cultura inteira. 

2,5. Levei muito tempo querendo ser a parte do gênio e não a parte do adubo – e quem não quer? Se eu fosse o gênio, tudo seria contaminado pela crença de que sou especial. Comecei a dançar tarde, persisti sem ter jeito igual a Margarite, vejo pessoas ultrapassarem rapidamente o que eu conquistei a duras penas. Mas posso dizer com sinceridade: sou do meio artístico, sou uma pessoa que convive com artistas. Uns na frente do palco, outros no fundo, todos nós no teatro. Eu não seria quem sou se eu não tivesse entrado nesse caminho. Marguerite tem razão: sonhar é muito melhor do que o conformismo.

Da continuidade

Um bailarino acharia a dúvida ridícula – claro que a pessoa é, no palco, uma continuação de quem ela é na vida real. Inclusive, qualquer apresentação de dança é muito mais interessante quando você conhece a pessoa que está dançando, você a reconhece nos seus gestos, há movimentos que são todos seus. Mas fale para alguém que escreve que ela só será um autor interessante se for pessoalmente interessante, e como resposta receberá um silêncio. Provavelmente ofendido. Adoro qualquer entrevista com Millôr, Saramago, Suassuna ou Ubaldo Ribeiro, que comprovam minha tese. Como não amar Oliver Sacks, como não querer ligar para Susan Sontag e comentar com ela os últimos acontecimentos do dia. Mas dizem também que para estragar um artista pra você, basta conhecê-lo. Sei lá.

Castelo de areia

castelo de areia

Tive todo tipo de siricutico durante as últimas semanas por ter que dançar um solo. Nenhum problema com a coreografia ou a técnica, tudo psicológico. Minha síndrome de One Frog Evening, fazer maravilhosamente fácil sozinha e travar porque tem gente olhando, me sentir a mais feia e incompetente. Na busca de uma solução, ou quem sabe de uma justificativa, estudei loucamente o Saturno do meu mapa astral, que é especialmente forte. Pra quem não sabe nada sobre o assunto, explico: Saturno é conhecido como O Grande Maléfico, onde quer que ele apareça no mapa astral indica áreas onde a pessoa sente dificuldade. Algumas versões do meu aspecto dizem: esta pessoa nunca poderá pisar num palco. Ela pode ser diretora, cuidar da luz, dos figurinos, estar sempre no meio, mas não no palco, porque ela é incapaz de ser o centro das atenções. Já em outros lugares dizem que há alguns atores com esse aspecto, porque a pessoa vai parar no palco justamente pra ver se resolve esse problema. Nunca pensei em mim nesses termos, de alguém que peita os seus medos. No meio das pesquisas, li uma historinha para explicar o aspecto que me tocou muito:

As crianças dos planetas estão na praia. Decidem fazer castelinhos na areia. As crianças Sol, Marte e Júpiter disparam na frente. A criança Saturno fica olhando, morrendo de vontade de fazer castelinhos também. Ela se pergunta: será que eu consigo? E se eu pegar um manual sobre como construir castelos? E se eu não conseguir, se eu treinar antes, e se… Nesse meio tempo a criança de Marte já construiu o dela correndo, a de Júpiter fez um castelo enorme. Quando finalmente a criança Saturno decide que ela quer sim fazer o seu castelo, as outras já correram pra água.

Dia desses voltava de um ensaio e não sei se é a propensão à ficar melancólico quando se está sentado ao lado na janela com a testa apoiada no vidro, mas pensei em castelos de areia e chorei por debaixo dos óculos. O que eu precisava fazer, já que não consigo evitar o movimento de parar, me cobrar, achar que não sou capaz e fazer com medo, é sentar sozinha e fazer meu castelinho. Que bom para as outras crianças, que já fizeram e estão na água. O meu sai devagar, miúdo, modesto, mas é o meu, é o que eu posso. Amar o grandioso é fácil, difícil é fazer do pequenininho o seu lar.

Capela Sistina

Hoje em dia se vai na Capela Sistina pra olhar o teto, mas quando Michelangelo recebeu a encomenda, ele não ficou nada feliz. Ficou ofendido, na verdade. Os maiores pintores da época foram convidados para preencher as paredes e quando chega a vez dele, tem que pintar justamente o pior lugar, sem importância, o que ninguém olha.

Vi por causa de outros umas fotos do Festival de Joinville e tinha lá a do cara que deu um curso longo que fiz e que no final a gente montava um espetáculo. Nem vou resgatar. Meus amigos me disseram na época que ficavam divididos com meus textos de dança, que eram agridoces. E eram. Foi naquele curso que eu descobri que o pessoal que dança à sério mesmo não é legal, que eles concorrem e se matam como em qualquer outra área. Vejo que é uma ilusão comum pra quem é diletante, achar que quem trabalha com arte respira ares superiores e o convívio é bom. Que nada, os meios artísticos no geral são os mais duros, onde a vaidade fala mais alto.

Começar a dançar pra mim foi nunca mais ser preferida, nunca mais ser a melhor, nunca mais ser considerada promissora. Mas me dá um prazer tão imenso e essencial, é como ler com o corpo. Depois de ver todo mundo fazer solo, finalmente chegou a minha vez e escolhi uma coreografia de nível mais básico, pra ser fácil e chegar no palco à vontade. Péssima decisão: não me lembrava nada e foi como se tivesse me proposto a aprender uma coreografia nova em duas semanas. Tenho ensaiado tanto que em mim tudo dói, minha casa está uma bagunça e me arrasto entre os compromissos. Mas! Coloquei uns detalhes muito legais nela, umas coisas muito minhas e muito soltas, porque uma das poucas coisas que aprendi na vida depois de uma série de pancadas foi a me levar um pouquinho menos a sério. Acho que vai ser bom. Tô querendo fazer desse solo meu momento Capela Sistina.

Encontrar a sua Drag

Em primeiro lugar: Ru Paul´s Drag Race é o máximo. Netflix.

Antes eu pensava que o objetivo de toda drag era ser uma grande diva. De certa forma é, mas não dá forma que eu imaginava. Não é escolher Cher ou Beyonce ou qualquer outra e querer ser igual a ela. Para algumas é realmente ficar o mais parecida o possível com uma modelo, com as impressionantes drags deste (meio desatualizado) vídeo – a número 1 é linda num nível de dar ódio. Mas existem físicos de todos os tipos por detrás das drags, assim como personalidades e gostos. Nem todas ficariam bem tentando enganar que nasceram mulheres e o que vejo nas Drags é um profundo conhecimento de si mesmas. Têm as que amam glamour da Hollywood dos anos 50, têm as que gostam de algo meio creepy, as engraçadas, as nerds, as fashionistas… E a graça do programa é que, mesmo não se montando, a gente se identifica tanto com elas. Eu vejo essa busca da “minha drag” muito clara dançando, porque depois de algum tempo a gente percebe que não basta ver um vídeo e escolher a sua bailaora preferida, que há uma maneira própria de cada um se mover e o que é preciso é achar a maneira mais bela de fazer o que você já faz – e ficar pelo menos aceitável no que você não faz. E mais pra baixo do dançando, vejo isso como mulher, quando procuro a maneira de ser mais bonita com o físico que tenho, com o que desejo que os outros vejam em mim, com a minha vida e quem eu sou. Pras drags é uma jornada descobrir as suas divas, como dar tridimensionalidade na hora de se maquiar, como andar de salto, que cabelo fica melhor… e pra nós também.  E como pessoa, me pergunto: o que eu tenho, o que me torna única? No meio dessa mistura de experiências, temperamento, objetivos, visão de mundo, defeitos, qual sabor prevalece, para onde caminhar, para que lado fica mais memorávellegendário?

Abaixo a minha drag preferida: a poderosa e hilária Bianca del Rio.

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Consulta

dias-tristes

Somos como velhos amigos. Pepe joga os búzios na minha frente e começa a descrever o que me trouxe ali:

-Você anda meio triste, desanimada, se sentindo muito só, sem rumo. Tem sentido falta de muitas coisas. Tudo está em indefinido – a parte amorosa, a profissional… já a dança vai bem.

É, realmente a dança vai bem. Pela primeira vez eu dançarei na frente. E nas duas coreografias.

 

Rigor

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Eu vi que tenho que me controlar, senão acabo virando fiscal de colegas de flamenco. Fico doida quando tem férias: somos avisados semanas de antecedência, por todos os meios possíveis; somos avisados durante as férias; somos avisados dias antes; somos avisados no dia. E todo ano aparece uma: Nossa, não sabia que tinha aula hoje, saí de casa despreparada, já marquei compromisso, etc. Ou tem aqueles que simplesmente faltam. Eu sou daquelas loucas que nunca falta, que se atrasa alguns minutos todo mundo acha que morreu, porque não é possível. Além de ser uma das minhas muitas características TOCs, é lição aprendida nos tempos de dureza. Eu fazia faculdade e tive que deixar inúmeros cursos interessantes passarem porque não tinha dinheiro. Os que tinham que viajar e pagar mensalidade, claro que nem pensar; o mais triste é quando o curso era gratuito e eu não tinha dinheiro para ônibus e lanche. Quem sempre teve grana acaba não tendo noção disso, que o gasto de transporte e comida, somado a outros, pesa. Então eu sei que nem sempre conseguimos unir tempo, dinheiro e possibilidade para fazer algo. Quando posso, quero aproveitar ao máximo – e me irrita quando as pessoas não têm noção do que estão desperdiçando.

Errada, eu?

estou errada

Já dizia Freud que um dos perfis difíceis de paciente é o inteligente demais. Desculpem voltar ao assunto – os posts sobre dança são dos mais impopulares do blog – mas foi difícil me convencer de que eu não dançava bem. Poxa, a mais frequente, que pegava os passos primeiro, aquela que as pessoas consultam pra saber da coreografia e eu não danço bem? Não aceitava. Via os meus videos e me enchia de desgosto, mas quem não se sente desgostoso ao se ver em vídeo ou com a voz gravada? Até que um dia eu pensei numa metáfora perfeita, digamos assim, aí eu nunca mais duvidei. Não apenas não duvidei como me aquietei. Ok, a vida é assim, a dança é meu hobbie e não meu metier. A citação a Freud foi porque como pessoa inteligente e teimosa, precisava de alguém que chegasse ao ponto na argumentação e ninguém soube direito. Eu sou como aquela pessoa que escreve muito bem, com coerência, bom português, raciocínio linear, frases curtas e tal, mas chaaaaata. Escrever (ou dançar) certo não é sinônimo de gostoso.

Academia, triathlon e escrita

Runner athlete running on road

Não faz muito tempo esse negócio de frequentar academia não tinha a legitimidade que tem hoje e, dependendo do meio, dava até vergoinha de falar. Dizer que você fazia academia era se confessar fútil. Lembro de um dos meus professores da faculdade, um que era especialmente gato, dizendo com o maior desprezo que frequentar academia era tão oposto a ele. Que ano isso, século passado, quarenta anos? Não, já estávamos na primeira década do século XXI. Quando eu comecei a frequentar academia, foi uma descoberta pra mim: como era legal, como todas as aulas eram divertidas, como a gente sai energizado! Tive época de ficar internada lá dentro. Depois fiquei seletiva, e só gostava de poucas aulas, os professores mais mais… agora não suporto nem passar na frente. Hoje conheço um povo que faz triathlon e lembro que uma época tinha vontade de fazer. Eles treinam, sabem seus tempos, comem certinho, sonham com Iron Man. Olho para eles e acho que entendo perfeitamente, que é a mesma euforia que vivi assim que comecei a fazer exercícios e, mais tarde, assim que comecei a dançar. A gente quer ser o melhor, começa a se ver como alguém que “se eu tivesse começado na idade certa, hoje seria…” Acho que essa é a energia que faz movimentar todos os esportes: o entusiasmo de muitos, que um dia sonharam em ser profissionais e se tornam grandes admiradores.

ACHO que eu terminei de escrever o que estava escrevendo. E me vejo sem o ímpeto de publicar que um dia tive. Ser lenta para escrever, demorar tanto e isso se converter em tão poucas linhas e ter sempre algo mais para olhar e nunca ficar bom… tudo isso foi me mudando com o tempo. Talvez eu seja mais uma entusiasta, talvez os únicos que lerão as coisas que eu escrevo são os poucos amigos-vítimas que recebem o arquivo. O mundo não precisa e não sente falta do que eu escrevo. Se um dia eu produzir um único livro bom, isso também não faz diferença. Nossa vaidade quer produção de padaria, um livro ótimo atrás do outro – mas de quantos autores conhecemos apenas um livro, um grande livro, e ele nos preenche por toda vida? Enquanto encontrava as pessoas e elas achavam que eu estou sempre sem novidades, eu sabia que estava cheia delas, cheia de mudanças e planos, vivendo uma vida paralela ao escrever. É um amor e um ganho pessoal difícil de explicar. Publicar e que os outros gostem, não vou negar que deve ter o seu sabor. Mas o processo, ah, que processo!

Não sou

Temos que fazer uma pequena coreografia, nossa, para a próxima apresentação. O mesmo número de compassos, a estrutura básica, mas cada um cria a sua, do seu jeito, o que lhe convém. Dentro do flamenco existem diversos estilos de bailaores, e La Lupi tem um dos estilos que eu mais gosto – adoro quem dança de forma escrachada, divertida. Aí uma colega, que também adora La Lupi, fez o óbvio: viu videos e se inspirou. Ficou ótimo. Nela.

Não sei que nome dar ao que direi agora. Pode ser cansaço, desistência, assim como também pode ser uma forma de autoconhecimento e sabedoria. Não me inspirarei em La Lupi porque me conheço o suficiente para saber que o gestual dela não tem nada a ver comigo. Talvez ame e admire tanto justamente por isso. Eu sou brincalhona, tento não me levar à sério, mas de outra forma. Gestos expansivos: já quis, já tentei, até já me iludi pensando que conseguia. Não rolou. Além de não tentar ser La Lupi, não estou me propondo a dançar nada difícil. Antes eu tentaria mostrar nesses poucos minutos tudo o que sei, tentaria trazer o público pra mim. Para minha surpresa, farei o básico do básico do básico. Ao invés de complicar, eu simplifiquei todos os gestos, todos os sons, é praticamente um Tangos Minimalista.

Isso é bom, é ruim? Não sei, apenas é.

Mais humor, por favor

Uma decepção insuperável que eu tive com o mundo da dança foi perceber que, mesmo lá, as pessoas se levam à sério demais. Pra mim, todo mundo que subia no palco era meio “povo do teatro”, e como povo do teatro – só falta os próprios também não serem assim! – eu entendia que era um pessoal diferente, que via a si mesmo e ao seu corpo como um instrumento de trabalho a ser modelado, superado, um brinquedo. Eu achava que ser capaz de subir num palco de roupa coladinha dava licença pra tudo. Mas não, por incrível que pareça. No balé e no flamenco existem as fórmulas, que embora possam parecer radicais à primeira vista, protegem. É roupa justinha sim, é rebolada sim, mas a pessoa diz pra si mesma que “é assim que essa dança é dançada” e com isso se protege. Aí a quebra que poderia acontecer não acontece – “faço, mas é no contexto, continuo sendo pessoa direita”. Uma pena! Tente propor algo novo, uma fala, uma história, uma teatralização, pra você ver as caras fechadas. “É que isso não é (insira aqui o nome da dança)”. Eta mundão de continuadores. Amamos a inovação sim, desde que aconteça lá longe, de preferência em outra modalidade artística.

 

Fiquei refrescada quando vi isso daqui (presente da Luciana). Pelo pouco que conheço de atletas, pode multiplicar as travas do pessoal de dança por dois.

Mais curtas sobre timidez

A bibliotecária do colégio onde cursei o segundo grau era tudo aquilo que não se espera de uma bibliotecária. Eu gostava de ficar lá durante os recreios, e me deliciava com uns livros de arqueologia que ninguém nunca havia emprestado. Ela achava aquilo o cúmulo, e se eu não me engano chegou a dizer na minha cara que eu precisava de terapia. Onde já se viu, na minha idade, ser tão quieta, ter poucos amigos, passar o tempo todo lendo. Problemática, não precisa nem perguntar. Aí um dia ela me viu com o Como fazer amigos e influenciar as pessoas e isso a convenceu de vez, passei a ser olhada com pena. O livro – ela deve ter concluído – não servia pra nada, porque continuei tão pouco amigável e influente quanto antes. O que eu não poderia explicar era que o que me fascinava no livro é saber que havia regras perfeitamente racionais que geravam atitudes de afeto e acolhimento se aplicadas a quaisquer pessoas. Não soa bem behaviorista? Não era terapia que eu queria, e sim ser terapeuta.
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A atividade consistia em andar pela sala, e ao encontrar uma outra pessoa, num cruzar de olhares, perceber que ela queria interagir com você e fazerem juntas um movimento espontâneo. A banca de três professoras e mais uma pianista nos observavam. Eram três grupos, fui chamada no segundo grupo e estávamos em número ímpar. A música começou a tocar, andamos pela sala, etc. Minha lembrança mais forte daquela atividade foi estar andando sozinha com a banca à minha esquerda e, à minha direita, todos as outras de collant-sapatilha-meiacalça pareciam estar num bacanal, interagindo loucamente sem ter tempo nem de pensar. Eu estava tranquila, pois na minha concepção a atividade previa momentos de simplesmente andar pela sala. Só depois que saiu o resultado  – e eu não passei – que me dei conta de que isso para a banca pode ter parecido falta de iniciativa, dificuldade de relacionamento, sei lá. Eu havia esquecido a hostilidade do mundo para com os tímidos, especialmente na dança.