Exibir ou não mostrar

Um ex uma vez me disse que eu tinha “preconceito contra meu próprio corpo”. Ele partia daquela máxima de “o que é bonito deve ser mostrado” e eu nunca tive esse objetivo. Ele nem sabia que eu passei a infância brincando com meninos e era campeã em dar rasteira. Na adolescência, meu visual andrógeno (cabelo curtíssimo e roupas largadas) fizeram recair sobre mim a suspeita de que era ou seria lésbica. Pessoalmente, eu achava que seria Morrisey – as meninas me entediavam e os meninos não me interessavam. É, eu fazia tudo ao contrário do que uma mulher faz para ser bonita; apesar disso, alguns loucos que se interessaram por mim e eu por eles. Os encantos (e masoquismo) da vaidade feminina demoraram mais tempo do que a média pra me conquistar. Lembro que só na faculdade realmente comecei a usar batom. Em meu favor, posso dizer que minha vontade de ser feminina cresceu muito depois que conheci o Luiz; quem sabe serei uma velhinha cheia de bijoux douradas e legging de onça. Mas mesmo o casamento – que me deixou mais segura em todos os sentidos – e a dança – com todos os benefícios físicos, psicológicos e desenvoltura que ela traz – não fizeram com que eu deixasse de merecer aquela… acusação? Eu continuo desconfortável com o desejo de anônimos, continuo preferindo me esconder a recebê-los demais. Nunca entendi mulheres que seduzem seus amigos ou que se tornam pessoas diferentes quando um homem está por perto. Pra falar a verdade, sempre que estou cercada de siliconadas e cachorras, sinto uma tranquilidade que só o anonimato consegue dar. Acho perfeito eles quererem ver e elas mostrar, basta deixar de fora quem não está lá pra isso. Não sei se esse negócio de “preconceito contra o próprio corpo” é só papo de homem pra ver mais pele ou se sou mal-resolvida e nem estou sabendo.

2010, um ano de expectativas

Depois de uma vida jogando em situações precárias, por puro amor à camisa, uma dia apareceu aquela oportunidade que todo mundo sonha: um contrato com um grande clube. Era daqueles contratos de sonho, com direito a morar em outro país, regalias, fama, dinheiro. A oportunidade apareceu quando as coisas já tinham começado, então eu teria que esperar até o ano que vem para assinar. A mim restava apenas ter paciência, continuar jogando quietinha, fazer o meu trabalho. Ao longo dos meses, a coisa ia tomando forma e já me sentia praticamente lá. Fazia planos com o dinheiro, as viagens e todas as coisas boas que isso iria trazer para minha vida. A parte chata era ficar em silêncio. Outras oportunidades menores apareceram, e eu não podia me negar e nem contar que estava esperando algo maior. Devem ter pensado que eu sou louca ou muito acomodada.

Tudo corria bem, ou parecia. Fiz a minha parte. Até que na penúltima partida do campeonato eu estava com a bola dominada na pequena área e recebi um carrinho por trás. Não vi mais nada – o estrago foi tão grande que eu perdi aquela bola, a partida, o campeonato, o contrato. E é provável que nunca mais jogue. Fim.

***

Fora isso foi um bom ano. Que venha 2011.

A falácia do panetone

Quando digo que durante os dez anos de casados meus pais moraram em onze lugares diferentes, as pessoas perguntam se meu pai é militar. Não é. Eles se mudaram tanto porque ele tinha algum tipo de inquietação, que o fazia mandar currículo mesmo bem empregado e atender aos chamados de novos empregos, mesmo que em outras cidades. Isso numa época em que as pessoas trabalhavam na mesma empresa durante a vida inteira. Nunca vi alguém conseguir variar tanto um simples curso de engenharia química. Na minha cabeça, essa faculdade ensinava a pessoa coisas mais diversas, de eletrônica a marcenaria, passando por banho de cachorro. Porque meu pai sempre foi faz tudo, mexia em tudo e tinha trabalhado com um pouco de tudo. Por causa dele nós sabíamos que as empresas de sabão em pó colocam um produto para tornar a água mais turva, ou seja, mais escura. Quem aqui nunca colocou uma roupa de molho e ficou impressionado com a cor escura da água, porque não imaginava que a roupa estivesse tão suja? Pois é.

Com base nessa eclética experiência profissional, minha mãe sempre comprou panetones baratos. Aqueles produzidos pela padaria do próprio supermercado, os mais simples de todos. Ela dizia que meu pai tinha trabalhado numa empresa que fazia panetone, e que tinha visto que os panetones que iam para as latas eram os mesmo que iam para as embalagens simples. Por isso, era a mesma coisa comprar um panetone caro de lata ou comprar o panetone que só vem num saco plástico. Sempre acreditei piamente nessa história e confesso que até olhava com desprezo quem comprava panetone em lata. Uns iludidos, todos eles. Foi apenas a vontade de ter uma lata daquelas que me fez comprar um Chocotone Bauduco assim que eu casei.

Foi como uma revelação. Não era o mesmo gosto coisa nenhuma. Foi como seu eu tivesse provado panetone pela primeira vez na minha vida. Eu, que até então era meio indiferente a essa iguaria, quase comi o panetone sozinha. Era fresco, molhadinho, cheiroso, delicioso. É a melhor coisa do natal, o que me faz esperar por essa data o ano inteiro. Isso sem falar que a lata é uma gracinha.

Até hoje minha mãe nega a verdade.

Desculpa

A melhor maneira de mostrar arrependimento e pedir desculpas é dizer: desculpa. Quando minha mãe exagerava nas broncas, depois ela voltava do trabalho com guloseimas. Quando eu fui reclamar com a vizinha sobre os cachorros dela terem atacado a Dúnia, ela acusou a Dúnia de já ter atacado o filho dela, crente que eu ficaria na dúvida porque quase todos os cães da vizinhança vivem soltos. Quando eu estava prestes a fazer intercâmbio e meu namoradinho não pôde passar o último fim de semana comigo, ele mandou um e-mail coletivo de piadas, cujo título era “Ficarei fora no fim de semana. Eu sei que não era o que vocês estavam esperando mas é o que eu posso fazer no momento”. Quando meu ex-orientador puxou meu tapete, depois de mais de um mês de silêncio, ele voltou a me incluir na lista do grupo de estudos e recebi notícias aleatórias. Quando a Lis, minha colega de faculdade, pisava na bola, logo depois ela vinha me perguntar algo totalmente dispensável e o fato de eu responder a convencia de que estava tudo bem. Quando meu (até então) melhor amigo de orkut me ofendeu e eu pedi pra ele se explicar, recebi como resposta um monte de brincadeiras – porque ele era assim, brincava com tudo. Todas essas coisas só me deixaram ainda mais irritada. A melhor maneira de mostrar arrependimento e pedir desculpas é dizer: desculpa.

É você é que mal passado e que não vê

Já dei as costas à várias coisas ao longo dos anos. Nos primeiros sinais de que as coisas não estão bem, eu saio. Não espero o clima ficar insuportável. Claro que às vezes bate uma insegurança, de que talvez eu não tenha tomado a decisão certa. Por isso é muito bom revisitar um lugar onde já estive e comprovar que partir foi uma excelente decisão. Foi assim há poucas semanas – vi o espetáculo da escola onde eu fazia dança moderna.

A Escola foi um lugar importante para mim. Antes disso eu fazia dança num pequeno e sem apresentação. Era uma clima de amizade e tolerância que não corresponde ao mundo real. Na dança moderna, pela primeira vez que frequentei realmente o meio da dança. Lá entendi seus valores de biotipo, juventude e beleza e vivi as dores e alegrias de fazer parte de um grande espetáculo. Todos acreditavam que eu voltaria no ano seguinte, tanto pelos bons motivos – minha dedicação, uma boa base de ballet clássico e ter recebido um bom papel na apresentação – como pelas minhas limitações – o fato de ser mais velha e não ter o físico de bailarina. Pessoalmente, eu não me sentia segura. No ano seguinte, tanto poderiam me convidar para fazer parte da Companhia como ser rebaixada uma turma (esta opção era mais provável). Porque todo ano eles elegiam poucos favoritos – geralmente magérrimos e lindos -que mal entravam na Escola e se tornavam solistas, eram elogiados publicamente, recebiam todos as atenções. Se você não ganhava um solo assim que entrasse, nunca mais ganharia. Como eu não ganhei um solo, comigo poderia acontecer qualquer coisa. Eu fazia parte da massa que morria de medo do diretor – ele era capaz de tirar um bailarino de um bom lugar semanas antes de espetáculo porque o outro é mais loiro. Ou porque discutiu com ele. Ou porque engordou.

Quando fiz o teste, com 29 anos, esse mesmo diretor me disse que eu teria 3 anos de palco pela frente. A sensação de ser velha e estar gorda enquanto dancei lá (e fiz ballet) jamais me abandonou. Por mais que tentasse, eu não conseguia ser tão magra quanto as professoras, ou tão magra como se tivesse 15 anos. Essas coisas me faziam sentir medo de não ser aceita em outro lugar, me faziam crer que ali era minha única opção. Ao mesmo tempo, olhava para aquele clima de disputa, as injustiças, a necessidade constante de tentar se informar, de ler os sinais, de querer desesperadamente que os únicos dias de espetáculo no fim do ano realmente valessem a pena… Eu, que no início chegava na escola mais de uma hora antes da aula, passei a andar sem rumo e ficar sentada na praça, sem vontade de entrar. Fui perdendo minha alegria. O pior de tudo era pensar que, se fizesse tudo certo, entraria numa Companhia onde os bailarinos estão sempre possuídos, vomitando ou sofrendo no palco. Concluí que desse jeito era melhor nem dançar.

Eu fui embora mas algumas amizades permanecem. Em nome disso fui lá prestigiar o espetáculo deste ano. Só de olhar adivinhei quem fez as coreografias. Senti a falta de pessoas muito boas, e sei que eles mesmos comentam que a escola não tem conseguido preservar seus talentos. Vi quem foi “promovido” e quem só aparece no palco porque eles são obrigados. Conheci a nova estrela e as outras eleitas – algumas de sempre, muita gente nova, mais beleza física do que artística na grande maioria. Adivinhei o quanto eu pareceria grande com alguns figurinos – ou que simplesmente não ganharia alguns papéis por causa disso. Era como se eu estivesse lá de novo; os anos correm aqui fora, lá dentro tudo é sempre igual. Quando o espetáculo acabou, não sei se por educação ou por ignorar o mundo generoso onde danço hoje, me perguntaram – “Gostou? Vai voltar pra escola no ano que vem?”

DEUZULIVRE.

Pregui

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia patanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Se o incitavam a falar, exclamava:

– Ai que preguiça!…
e não dizia mais nada.

Macunaíma/ Mário de Andrade
Essa sou eu, há algum tempo. Já fui de colocar os pingos nos iis, já fui de não levar desaforo pra casa, já fui vingativa. Hoje me retiro assim que posso. No mundo real, infelizmente, raramente é possível. Muita coisa só funciona no grito e eu grito. Já na internet… ah, minha gente, na internet o papo é outro! Vida virtual pra mim é for fun. Se começa a me aborrecer perde seu propósito. Pouco adianta me chamar de Covarde e dar fama de intolerante, radical e/ou mimada. Me viro para o lado e ajeito melhor o travesseiro. Porque eu já briguei tanto que já sei onde tudo isso vai dar: em nada. Ninguém vai mudar de idéia porque eu argumentei melhor, ninguém vai reconhecer que me ofendeu primeiro. Isso sem falar na máxima de Murphy, na qual acredito plenamente, que diz “nunca discuta com um idiota. As pessoas podem não saber quem é quem”. A única coisa que eu conseguirei é tornar meus dias um pouco mais pesados. Que bom que por aqui existem pessoas que acreditam e defendem as grandes causas – mulheres que protestam contra o machismo, ateístas que não se permitem serem acusados de causar violência, pessoas cultas contra a bundalização da cultura brasileira. Têm meu apoio. Vão lá, estarei aqui nas cobertas torcendo por vocês.

Só na humildade

Acredito que a Fernanda deve ser uma das instrutoras de krav-magá mais jovens do Brasil. Ela começou a praticar krav-magá cedo, porque seu pai foi o responsável por trazer o krav-magá para Curitiba.

Um colega de faculdade soube que ela era instrutora e quis ter mais informações:

– Se eu começar a praticar krav-magá agora, em quanto tempo eu viro mestre?
(Minha vontade seria terminar o texto aqui, mas eu sei que vocês querem saber o que ela respondeu – “Que tal a vida inteira?”)

Festas de Fim de Ano

Fiz um daqueles testes bobos do Facebook sobre quem sou eu nas festas de Natal. O resultado não poderia ser mais exato:

Não sei de espírito natalino que precisa ser resgatado. Meu espírito natalino se resume a comer panetone e ganhar presentes. Nunca tive e não estou nem aí pra uma confraternização verdadeira, espírito de renovação ou seja lá como deveria ser. Talvez isso se deva ao fato de eu nunca ter sido criada dentro do catolicismo; ao contrário, eu amo odiar a igreja católica. E de tudo o que se refere ao catolicismo, minha maior rejeição sempre foi à figura de Cristo. Por isso que em geral eu digo que não sou cristã, o que elimina um monte de denominações. Foi com muita resistência que, ao crescer, acabei reconhecendo que a história de Cristo tem idéias interessantes. Tenho simpatia à figura de Maria, gosto de alguns santos e sou até capaz de usar um ou outro símbolo católico. Mas Cristo não desce, não adianta. Uma vez minha sogra – que vai à missa todo domingo – me deu um Cristo na manjedoura. Queria pintá-lo de azul, para parecer um Krishna. Como não pude, ele acabou morrendo decaptado…

Já do reveillon eu gosto, muito. Gosto da idéia de passagem, do ciclo que se fecha, de fazer retrospectiva e acreditar que tudo será diferente. Valorizo muito o primeiro minuto e nesse momento gosto de dar um abraço sincero em quem amo. Quem se casa sabe: festas de fim de ano se tornam mais um problema, um momento em se dividir entre as famílias. Por causa disso, tenho optado em estar com a família do Luiz na virada do natal. Não me importo (tanto) de abraça-los nesse momento. Sei que serei medida de cima a baixo – se estiver bem vestida é porque sou perdulária e estou torrando o dinheiro do Luiz; se mal vestida ou mais gorda, minha sogra e cunhada ficarão felizes em pensar que estão melhores do que eu. Tudo isso pra, no fim da noite, receber presentes que demonstram um esforço deliberado em me diminuir. Antes do ano acabar, já terei me livrado de tudo. No reveillon faço tanta questão de ficar à vontade e feliz que não vamos à casa de ninguém. Já tentamos reunir amigos, mas todo mundo sempre precisa prestar contas à suas próprias famílias. Então, passo com a minha, com os que realmente me importam: o Luiz e a Dúnia.

Hélio Leites II

(Começa aqui)

Nunca me esquecerei. Estavamos no sofá e em cadeiras, em umas cinco pessoas. Logo a frente, uma mesa e um caixilho de porta que mais parecia um teatro. Sem cerimônias, Hélio Leites abriu a bolsa cheia de miniaturas e começou a contar a história de cada uma delas. O sonho da casa própria, o discurso de Santo Antônio aos peixes, bailarinas, remédios, metáforas. Uma história puxava a outra e a cada caixinha ele acrescentava um verso, uma observação inteligente, um jogo de palavras, uma piada. Tudo articulado, tudo caprichado. Até o boné que ele estava usando tinha uns bonequinhos e ele nos mostrou que mantém o cabelo curto com uma enorme franja grisalha, que também serve como elemento cênico. No final dessa meio hora ou mais, eu estava com as bochechas doendo de tanto sorrir e rir. Saí de lá tão feliz, tão leve, como se tivesse recebido uma boa notícia.

Eu mudei muito entre nossos dois encontros. Gênio para alguns e louco para a maioria, Hélio Leites continua fazendo o de sempre: oferecendo seu trabalho e suas histórias a quem estiver passando. Pouco importa quem ouve e como ouve; você pode admirá-lo ou considerar o sujeito um palhaço (no pior sentido) qualquer, mas de qualquer forma sairá feliz. É preciso ser muito grande e muito artista pra se oferecer dessa maneira. Uma vez estava num casamento e uma amiga declarou o quanto era bom que nós, ali sentados, éramos medíocres, e que essa mediocridade nos permitia frequentar a sociedade. Havia todo um contexto, mas não consegui deixar de me sentir ofendida. Quis protestar, mas não achei argumentos que provassem que eu não sou mediocre. Alguém que te conhece, lê teu blog, sabe das tuas pretenções artísticas e te inclui na mediocridade, como um elogio – que dizer? Eu nunca tinha ouvido alguém defender daquele jeito a mediocridade; eu pensava que ninguém, em qualquer circunstância, poderia achar bom ser medíocre. Sempre vi a mediocridade como um acidente ou uma incapacidade. Vejo as pessoas buscarem a autenticidade, mas sem disposição de pagar o preço; querem uma coisa autorizada e convencional. Não sei se é possível ser autêntico desse jeito. E eu sou uma pessoa de hábitos muito convencionais.

Eu não sou o Museu Casa do Botão.
O Museu Casa do Botão é isto aqui.
É o menor museu da América Latina, só perdendo para o Museu das Pulgas de Bucareste.

Como todo museu que se preze, o nosso também está a um palmo do nosso nariz, colado em nossa pele e no qual pegamos (tocamos) em média 37 vezes por dia. Por estar tão próximos de nós, nada sabemos a seu respeito, muitas vezes nem quantos furinhos ele têm. Mas nos interessamos muito pelas coisas que estão longe de nós, assim como manchas solares que estão à 300 bilhões de quilometros da Terra; rabos de cometas e esquecemos o nosso. Discos voadores; vidas em outros planetas; nos preocupamos com todas essas coisas e esquecemos o que está perto de nós. Perto de nós está nossa família, que muitas vezes não conseguimos enxergar. A proposta da Museu do Botão é tentar acordar nas pessoas o real sentido da vida, esquecido pelas dificuldades enfrentadas na sobrevivência do dia a dia. Assim como o Botão junta partes da roupa, acreditamos que ele pode também juntar as pessoas e, por conseguinte, idéias. Todo mundo se abotoa igual, mas não pensa igual, por isso é que cada um tem o seu próprio botão.
Hélio Leites
retirado do livro Pequenas Grandezas: miniaturas de Hélio Leites p.56
Eu não sairia vestida de miniaturas, cabelo desgrenhado, trabalhando com sucata, contando histórias. Tampouco convivo com alguém parecido. Mas isso fala apenas quem eu sou e não quem ele é. Ele, Hélio Leites, button-maker-performer-graphic-designer-multidiaman, um homem que encontrou seu caminho. Eu não sou a medida de todas as coisas; ser o que eu não sou ou entendo não quer dizer que algo é ruim, indesejável, ridículo. É justamente isso o que o discurso da normalidade – e seu orgulho – diz. Acho de uma pobreza de espírito imensa. Se não tenho como me defender quando sou chamada de medíocre, que pelo menos eu tenha sensibilidade para valorizar quem não é.

Hélio Leites I

Talvez ele fosse até bancário naquela época e eu sem dúvida não sonhava em esculpir. Um dia estava andando na Feirinha do Largo da Ordem com a minha mãe e numa barraca estava um cara alto, esquisito, desgrenhado, que não parava de falar enquanto mostrava umas miniaturas que até eram bonitinhas. Ouvimos uma ou duas histórias, perguntamos o preço e achamos caro pra coisas claramente feitas de sucata – sapato velho, muitas caixinhas de fósforo, botões, palitos de sorvete. Não soubemos como reagir, não esperavamos que alguém que não batia bem soubesse cobrar bem. Nos afastamos rápido, com aquele medo que a gente sente perto de alguém vendendo o que não estamos dispostos a pagar.

Uma eternidade de águas se passaram. Talvez entre um encontro e outro tenha mais de dez anos. Eu era como todo mundo, facinha de entender. Até tinha umas tendências estranhas, mas estava disposta a deixar tudo pra sempre numa gaveta em troca de um emprego respeitável que me permitisse pagar as contas. Todos os sonhos burgueses eram os meus sonhos, tudo o que a minha família valorizava era o que eu também queria. Será que as nuvens podem escolher, afinal, se pertencerão a um ou outro grupo de tempestade? Se carregarão eletricidade negativa ou positiva?* Eu não sei dizer como, onde e quando comecei a me tornar uma estrangeira, a me afastar do que me foi traçado. Eu brinco dizendo que deveria colocar umas tatuagens, piercing no lábio, roupas esquisitas e outros sinais que exteriorizem que algo se quebrou. Olho para o que deveria ser importante e duvido, assisto como um expectador cínico minhas próprias batalhas.

Em dezembro, meu único amigo escultor sempre faz uma reunião na casa dele. O Luiz não entendia o quanto eu adoro o Hamilton até conhecê-lo. O Hamilton é um gigante com coração de criança. Um homem com quase dois metros e idade indeterminada, que se derrama em risos à menor provocação. Quando nos encontramos, ele me dá daqueles abraços que me tiram do chão e balançam meus pés do ar. Aí ele me conta, com muito entusiasmo, algum dos muitos projetos artísticos que ele está elaborando. Sempre tentando juntas as pessoas, fazer diferença, reunir artistas e levar beleza a populações que não frequentam galerias. Aonde quer que more, ele sempre reúne um quantidade enorme de trecos, obras de arte, cachorros e amigos dos mais variados tipos. Ao lado dele, o único momento aborrecido (para ambos) é quando digo que não sou mais escultora…

A personalidade fantástica do Hamilton me impede de recusar qualquer convite dele. Deixo meu lado antissocial de lado e vou visitá-lo sempre que ele me chama. Mesmo correndo o risco de descobrir que naquele mesmo dia tem uma festa (as pessoas começam a chegar, chegar…), que era pra trazer alguma comida (muito chato não levar nada e comer de tudo) e que o aniversariante é o próprio Hamilton (me salvei liberando-o do compromisso de devolver o Cartas a Theo). A pior parte é o fato de nunca conhecer os convidados. É um pessoal que trabalha junto, que frequenta ou frequentou a Faculdade de Belas Artes, vai nas mesmas vernissages e eu sou apenas uma amiga do anfitrião, de um passado tão distante que nem faculdade de escultura ele tinha feito. As duas amigas dele importantonas no meio artístico- que poderiam me fornecer contatos interessantes – não vão com a minha cara e nem eu com as delas. O melhor da festa sempre é a companhia dos cachorros. Na reunião do ano passado, eu e o Luiz já estavamos levantando do sofá para ir embora quando surgiu Hélio Leites. Ele já foi adesivando quem surgia pela frente, convidando todos a entrarem numa associação de botões.

(continua aqui)

* É bem verdade que os homens não são nuvens. Enquanto indivíduos, fazemos parte de um todo que constitui a humanidade. Nesta humanidade há partidos. Até que ponto é a vontade própria, até que ponto é a fatalidade das circunstâncias, que fazem com quem pertençamos a um ou outro partido?
Van Gogh/ Cartas a Theo, p. 141

Unfollow é o novo preto

Eu li e concordei com muita coisa que Bauman escreveu sobre as mudanças da modernidade : velocidade, mudanças descartáveis, consumo exacerbado, incertezas, relações superficiais. Ao ler o livro, é inevitável ficar meio pessimista e achar que perdemos muito de alguma coisa que só tempos mais calmos nos traziam. Que, quem sabe, fosse bom colocar uma pitada de lentidão no que é tão rápido, ser mais tolerante.

Aí eu encontro por acaso uma pessoa a quem dei unfollow no twitter. Foi assim: eu fiz uma brincadeira que ninguém na timeline deu bola; pra minha surpresa, ela me respondeu com um comentário grosso. Sabe daquelas pessoas que te seguem e você nem sabe se realmente te lê, por que nunca te dizem nada? Era dessas; só fui descobrir era lida com a patada. Unfollow e nunca mais pensei no assunto. Meses depois, a encontro por acaso e fui cumprimentar. “Achei que você tinha me dado unfollow”, foi a resposta irritada. Não sei se eu é que sou louca, mas pra mim deixar de seguir uma pessoa no twitter quer dizer apenas que eu não desejo mais lê-la, e não quero que ela morra de maneira lenta e dolorosa. Ela perguntou se levou unfollow “apenas” por causa do comentário e me fez explicar meus motivos. Eu no meu tom normal e ela cada vez mais agressiva. Teve um “nossa, então mil desculpas se você ficou ofendida com aquilo” (aka, “você é uma completa idiota por ter se importado com o comentário doce e inocente que eu fiz”) e terminou com um “é uma pena então” (aka “você jogou fora nossa amizade fora por um motivo idiota”).

Quando acabou, saí querendo respirar um pouco e até receber um passe. Bauman querido, o problema não é dar unfollow no twitter – o problema é não poder dar unfollows na vida.

Escultura e o falecido

Quando eu esculpia, era típico as pessoas verem alguma foto parecida com esta

e me trazerem, por acharem a pose linda e que daria uma escultura maravilhosa. Eu agradecia e guardava a foto, porque era difícil demais explicar que o que é belo numa foto nem sempre funciona numa escultura. Porque o raciocínio da escultura é muito diferente de pintura ou fotografia. Na maior parte das vezes as fotos mostravam figuras soltas no ar, o que simplesmente não dá. Um escultor precisa pensar onde colocar a base, se a peça tem sustentação o suficiente, por onde o material será derramado, como molde será feito. Além de todos esses problemas, eu pessoalmente não me interesso por corpos jovens e longilíneos. Nunca gostei de esculpir corpos perfeitos em poses acrobáticas. Não acho expressivo, acho lugar comum. O que me atraía era a idéia de eternizar o comum, o empático. Eu me inspirava com as pessoas nos ônibus com ar cansado, ou rindo de maneira solta, ou rostos enrugados cheios de história. Queria ser capaz de mostrar que isso também é belo, quem sabe muito mais belo.

Outro enorme problema nessa história de querer esculpir fotos é a tridimensionalidade. Foto mostra apenas um ângulo. Se fosse esculpir a moça do exemplo acima, começaria a me perguntar como estarão os músculos das costas, de que forma as flutuantes se abrem nessa posição, o quanto e quais vértebras se dobram, se as veias do rosto estão saltadas e milhares de outras dúvidas que a foto não apenas não revela como procura esconder. Nunca tive a chance de trabalhar com modelos vivos. Se você observarem no filme Camille Claudel, Rodin possuia uma grande torno, onde o modelo podia ser girado (0:36) sem desfazer a pose. Os artistas comuns tentam descobrir essas coisas olhando para seu próprio corpo, pedem poses para os que estão próximos, utilizam livros de anatomia para artistas e revistas comuns com pessoas nuas.

Muito bem. Tudo isso foi para explicar o porquê de estarmos quatro mulheres trabalhando num atelier de escultura e uma delas tinha levado uma pilha de revistas com homens nus. Claro que eram revistas gays, e eles eram fortes, jovens, musculosos, eretos, aquela estética toda. Eu era a mais nova das quatro, mal saída da faculdade; a dona das revistas tinha cerca de quarenta anos, carioca, casada e com duas filhas adolescentes. A outra era cinquentona, também casada, meio louca, com um marido riquíssimo que estava sempre viajando. A mais velha era uma promotora aposentada, mais de sessenta anos, viúva, com filhos e netos. Cada uma estava desenvolvendo seus próprios projetos – Cirque du Soleil, um corpo feminino cheio de batons e não lembro o que eu estava fazendo. A viúva gostava de coisas mais clássicas, e estava fazendo um dorso masculino no feitio das esculturas (tal como chegaram até nós) gregas: sem braços, sem cabeça e apenas o início do quadril. Ela começou ter dúvidas de como esculpir uma região do quadril. A dona das revistas quis ajudar:

– Noêmia, eu tenho aqui umas revistas, deixa eu ver… Olha, eu acho que essa foto mostra bem o músculo que você não está conseguindo fazer.

A Noêmia colocou seus óculos de leitura e quando foi olhar a foto, arregalou os olhos e a imediatamente encostou a revista no peito. Depois olhou de novo. Nova exclamação de surpresa. Escondeu de novo, como quem faz uma travessura.

– Mas, Noêmia, o que é que foi?

A Noêmia finalmente olhou fixamente para a figura e teve um ataque de riso. Era um riso de vergonha e nervoso. Ela começou a folhear aquela e todas as outras as revistas. Entre lágrimas, ela só conseguia dizer:

– TADINHO DO FALECIDO!

Nós rimos tanto que em pouco tempo o responsável pelo atelier veio nos repreender. Ninguém conseguia trabalhar, dava pra ouvir a bagunça lá de fora. Riamos como adolescentes descontroladas.

Toque de Midas

Pessoas, humanos, gente. Chame do que quiser, até de unidades carbono. Uma coisa é certa: eles sempre estragam tudo.

Não tudo, na verdade. Apenas o que interessa, apenas o que é mais importante. Uma pessoa conhece alguém com idéias parecidas e conversa interessante. Se convence de que este alguém é um amigo muito especial, o melhor de todos os amigos. A partir daí desse dia a amizade perde um pouco o sabor. A pessoa começa a ter ciúmes quando esse amigo não quer estar o tempo todo junto, quando omite alguma informação, quando demonstra outros interesses. Espera do outro um grau de compreensão e desapego maior – ele está proibido de fazer coisas que outros fazem sem causar nenhum transtorno pra relação. O que fazia bem a ambos passa a ser um cabo de guerra, onde um luta para manter uma posição imaginária e o outro tenta manter seu espaço. O mesmo acontece quando surge o emprego dos sonhos, ou a descoberta de um talento; quando uma coisa passa a fazer parte da definição que tem de si. O prazer que ela sentia antes é obscurecido com a preocupação de ser o melhor, com a demora do reconhecimento, com a concorrência. Mais: ela se torna inimiga em potencial de todos que demonstrem as mesmas aspirações que ela. Idem para casamentos sufocantes, relações familiares, colegas de trabalho e até mesmo aquele grupinho que se reúne pra fazer crochê.

É um toque de Midas, só que ao contrário. Tudo que um humano dá importância se estraga.

Quero ser interessante

Vi esse título no Milton e achei fantástico. Quem não quer ser interessante? O problema é como, o que destaca alguém dessa forma. Quando era solteira, eu me via como uma Elizabeth Bennet. Uma das maneiras mais clássicas de uma mulher chamar atenção de um homem é pelo seus atributos físicos; mas eu era pudica, envergonhada e insegura demais pra contar com eles. Os outros atributos de ser delicada e frágil também não combinavam comigo, que fui criada entre meninos e não tinha paciência com essas frescuras. O que eu tinha? Eu era inteligente e muito culta. Pra despertar interesse eu tentava dizer algo que ninguém esperava; em cada sentença, procurava ser ao mesmo tempo espirituosa, inteligente, irônica e observadora. O homem que me despertava interesse era rapidamente bombardeado com as minhas tiradas. Era uma tática realmente marcante, dado o índice quase absoluto de fracasso. As sentenças espirituosas tinham o mesmo efeito de água benta em vampiros. Se tivesse me fingido de muda minha vida sexual teria sido outra. Ninguém tinha me avisado que o homem é dos bichos mais inseguros que existem…

Assim como outras questões ligadas à auto-estima, me sentir interessante varia conforme o humor, o dia, as pessoas à minha volta. No geral, me sinto desinteressantíssima em lugares cheios de gente, música alta, desconhecidos e os que fazem de tudo para chamar atenção. Em ambientes assim, sou aquela que está tentando se camuflar de parede. O que já não me incomoda. Aos que desprezam a minha timidez, lanço o mesmo olhar por só conseguirem enxergar o que é gritante de tão óbvio. Sei que alguns se interessarão justamente por isso; a admiração de pessoas que não têm os mesmos valores que eu não me interessa. Ser interessante passa por muitas coisas, tanto de quem desperta como de quem é alvo de interesse. Penso na Frida Kahlo, uma mulher considerada interessante para uns e simplesmente feia para outros. Eu pertenço ao primeiro time; meu interesse se encaminha ao que é autêntico e raro, qualidades que tantos buscam e poucos realmente conseguem. É como aquele paradoxo zen: quando você procura, não consegue encontrar.

Escrever bem é sempre uma vantagem para se fazer interessante. Não adianta saber que escrita não reflete a totalidade da pessoa, que alguns são interessantes por escrito e apenas por escrito – nós queremos conferir, acreditamos mesmo que um bom texto gerará uma boa conversa. Quem escreve tem um quê de controlador, de antecipador, e isso é ainda mais provável quanto mais a escrita soa fluida – o que só acontece com inúmeras correções. Ou seja, cuidado. Tem um ditado (acho que japonês) que diz quando você admira muito um artista jamais deve conhecê-lo justamente para continuar gostando dele. Eu já fiz grandes amizades virtuais, assim como me decepcionei, por isso posso afirmar que no real as coisas são diferentes. Às vezes a única coisa que o outro tem pra oferecer é um conjunto de frases de efeito, que nem são engraçadas pessoalmente. Antigamente, quando via um perfil chato e textos sem sal, logo concluia que a pessoa era chata e sem sal. Hoje desconfio que ela somente não gosta de perder tempo na net e prefere manter relações com o mundo a sua volta.

Presente

É até chato reclamar disso, porque é uma coisa que as pessoas fazem com a melhor das intenções. É o seguinte: eu não gosto de presentear uma pessoa e que ela logo depois faça o mesmo por mim. Um exemplo: vi uma coisa que era a cara de uma amiga, comprei e dei de presente pra ela. Assim que ela recebeu, disse: “Seu aniversário já passou e eu ainda não te dei presente”. No dia seguinte, ela apareceu com um par de brincos. Outra: vi um filme sobre canto que me lembrou uma amiga cantora. Gravei um DVD e dei pra ela. Dois dias depois ela me apareceu com o DVD de um filme qualquer, que ela nem tinha visto, e me deu. Não precisa ser um objeto; pode ser quando você elogia uma pessoa e ela te elogia logo em seguida. Ou cita uma pessoa no blog e ela te cita no blog dela na postagem seguinte. Enfim, quando a pessoa parece ficar desconfortável e tem pressa de retribuir algo que a gente fez de coração. O que ela nos faz fica totalmente sem valor, insincero, com a maior cara de troca.