Eu tenho uma amiga que tenta há vários anos passar num desses concursos públicos muito disputados. A cada fracasso, ela me confessou ficar chateada não apenas por ela mesma, mas também por ter que admitir diante das pessoas que, mais uma vez, seus esforços deram em nada. Ela me disse que, para quem está de fora, é apenas uma sucessão de nadas, enquanto que para ela cada prova tem circunstâncias, histórias, progressos e regressos. Eu disse que sabia exatamente como ela se sentia, que escrever trazia o mesmo problema pra minha vida. Falei com sinceridade e só depois lembrei que ela era uma dessas pessoas que me falou que poderia escrever um livro ótimo sobre as muitas histórias amorosas que ela conhece, que basta um dia ela colocar se sentar diante do computador e colocar pra fora. Este “basta” é o que mata todo aspirante a escritor. Só quem tentou de verdade sabe que este “basta” contém tudo, e que quem acha que “basta” é porque nunca enfrentou o problema e nunca enfrentará. E por isso sempre olhará para o aspirante a escritor como um fracassado, porque como é possível existirem tantas histórias boas para serem contadas, que basta escrever, e diz você ter produzido muitas delas e ninguém quis publicar? Sinal de que o que você tem pra contar não é tão interessante assim, já no meu caso apenas bastaria que…
O penúltimo livro da série Minha Luta, de Karl Ove Knausgaard, A Descoberta da Escrita é, sem dúvida, o mais interessante para qualquer um que sonhe em escrever. Ele me fez lembrar de outro livro: Do que eu falo quando falo de corrida, de Haruki Murakami. O próprio Murakami não é o caso do que citarei a seguir, porque ele pulou da vida de dono de bar de Jazz para escritor logo na sua primeira tentativa, que ocorreu quando ele tinha quarenta e dois anos. Depois de discorrer sobre a importância da disciplina necessárias para ser corredor e/ou escritor, Murakami diz que para alguns o talento é um lugar difícil de alcançar, e esse tipo de escritor é premiado pela sua persistência: depois de cavar muito, ele finalmente encontra o “petróleo” do próprio talento e a escrita fluir. O Karl Ove que conhecemos no Descoberta da Escrita é alguém que deseja desde sempre escrever e durante mais de dez anos é um sabido aspirante a escritor para todos o que o conhecem, desde a família até vizinhos. Ele até entra até num conceituado curso superior com outros escritores, todos pessoas maduras que já escrevem. O privilégio de estar cercado de tais pessoas acaba sendo muito doloroso, porque deixava claro o quanto ele era limitado. Karl Ove lê muito, aprende a teoria, passa fases da vida em que se dedica full time à escrita, noutras vira apenas um trabalhador comum, e no final nos confessa que levava dois anos pra produzir cerca de quatro páginas. Páginas lindas, revisadas, belamente escritas, mas apenas quatro trabalhosas e paridas à forceps páginas. Juntar um número suficiente de folhas para conseguir material para enviar para publicação era difícil, como vocês podem imaginar. E não dava certo.
Mas, claro, estou falando do incensado Karl Ove, e da série auto-biográfica que é considerada o novo Em busca do tempo perdido, o que mostra que no fim ele conseguiu superar tudo e o final é feliz. Quando, depois de dez anos de tentativas, ele finalmente consegue publicar, Karl Ove fica nas nuvens e liga pro irmão pra contar a novidade. A reação do outro lado da linha não é a festa e a surpresa que esperava, e o irmão responde algo como: “é que era meio óbvio que acabaria acontecendo, né?” NÃO ERA NÃO! – respondeu ele, respondo eu, responde a Cíntia, e tantos outros aspirantes a escritores pelo mundo afora.
Do lado de cá, tentamos arranjar falsas simetrias: há esperanças pra mim porque, como Karl Ove, eu levo anos pra produzir poucas páginas de qualidade, eu ainda acharei a minha fonte! Ou: eu acabarei me tornando uma grande escritora porque minha vida tem se tornado cada vez mais reduzida à vida interior, tal como aconteceu com Borges… Ou: sou um anônimo num emprego comum, como Bolaño; tenho a religiosidade de Tolstói; a feiura de Sartre; os tormentos de Virgínia Woolf; a timidez de Veríssimo, infelicidade no amor de Oscar Wilde; a dependência econômica de Marx… Queremos crer que a nossa infelicidade, impopularidade e limitações faz com que a vida nos deva, e queremos como pagamento que pelo menos ela nos permita a vaidade de ser um autor. Mas e os bonitões como Camus e Casares que faziam muito sucesso com as mulheres? Capote frequentou a alta sociedade, Suassuna era interessantíssimo, Jorge Amado tomava chopp com os amigos na praia, Voltaire era nobre, Vargas Llosa quase virou presidente. Ou seja, aquela minha amiga do concurso – que me disse aquilo em meio a uma das muitas caronas, porque ela tem carro e eu nem ao menos dirijo – pode um dia realmente sentar na frente do computador e sair dali um livro interessantíssimo. Ela pode passar no concurso e ganhar melhor ainda do que já ganha, publicar livro, trocar de carro, casar, e isso se somaria ao fato dela ser popular, bonita, inteligente, culta e viajada – e eu posso continuar na mesma. Procurar garantia na vida dos outros pra ver se vai dar certo na nossa é como aquelas estatísticas de futebol que dizem que o “time ganhou 69,5% das vezes que jogou em casa com o primeiro uniforme no inverno”, ou seja, não dá em nada. Daria pra terminar este texto aqui com uma constatação muito profunda e acertada: a vida é injusta.
Eu me pergunto o que seria de mim e de outros frust… aspirantes se fôssemos noruegueses ou até mesmo argentinos. Um dos nossos grandes problemas – e começo aqui a explicar o que há de tão difícil que as pessoas não entendem – é o fato de morarmos num país onde poucas pessoas leem. Publicar é uma atividade tão pouco lucrativa que o escritor brasileiro precisa ser ainda melhor para ser publicado, a seleção é extremamente difícil. As editoras precisam lucrar e para elas é mais garantido publicar autores como J. K. Rowling ou Elena Ferrante, ou atores globais, do que investir num desconhecido. Já é difícil para o brasileiro entrar numa livraria para comprar um livro clássico, quanto mais ver um João da Silva na capa e decidir levar. Existe também o regime de participação, onde o escritor banca uma boa porcentagem do custo da publicação. Na prática, todos os que fazem isso os fazem apenas para realizar seu desejo, porque é um investimento sem retorno – não vende o suficiente pra recuperar o dinheiro e ainda fica atravancando a casa. Por isso que quem escreve, seja em editora grande ou pequena, sempre se empenha na propaganda e acaba apelando para os amigos.
Existe também o problema da escrita em si, daquele diabo do Talento. Não existe nenhuma história que não tenha sido contada e recontada muitas vezes; se você acha que existe algo inédito a ser dito, e ainda por cima esse algo inédito está em você, lamento dizer mas isso é tão somente ignorância, falta de cultura. Existe livro sobre tudo que já existe, existiu ou existirá, tenha certeza. O grande segredo é a maneira de contar, a mágica de transformar algo muitas vezes banal numa narrativa que te faça abrir mão de tempo de vida para descobrir aonde aquela sequencia de palavras vai te levar. Que interesse poderia haver em ler as opiniões de um tuberculoso amargo que desprezava todos à sua volta como Thomas Bernhard, ou até o próprio Karl Ove, com seu padrão estúpido de estragar tudo com álcool e sexo? Por isso a lógica de vender livros de celebridades ou para amigos, porque metade do caminho é se interessar em saber o que o outro quer dizer. Mas a boa literatura é aquela que consegue gerar o desejo do zero, que um nome completamente desconhecido – de quem podemos ignorar a origem, que época viveu, até mesmo se é homem ou mulher – nos entusiasme apenas pelo que escreveu. Franz Lebowitz, na série sobre ela na Netflix (Faz de conta que NY é uma cidade) faz a definição perfeita do que seria um livro ruim: era aquele que ela começado a ler e, depois de ser interrompida com alguma tarefa banal, esquecia de retomar. E completa: “é muito pior do que fechar o livro, furiosa”. Saber escrever direitinho, com início-meio-fim, com frases que obedecem as regras gramaticais, enredo e personagens é apenas o muito básico. Pode ter certeza que todos nós que temos livros na gaveta sabemos fazer isso, não precisa nos recomendar livros de Como escrever uma história, Escrita criativa e afins. Não é pelo básico que as editoras nos rejeitam e sim pelo que escapa do controle: que o que escrevemos pareça fresco como algo que nunca foi dito e instigue o leitor.
Chego no final deste texto como Virgílio deixando Dante às portas do Paraíso. Pensei em falar da loucura que é querer tanto publicar um livro, sendo que isso não é sinônimo de vender e ser lido, menos ainda de se tornar uma pessoa relevante pra literatura. Quem sabe seja igual fazer aquele belo corte de cabelo e descobrir minutos depois que não estamos mais sedutoras e confiantes. Já imaginei várias vezes como seria receber o e-mail ou telefonema que diria que meu manuscrito foi aceito, pensei em lista de agradecimento e dedicatória, me perguntei se passaria a me apresentar como escritora cada vez que preenchesse uma ficha. Mesmo ignorada pelo mundo, imagino que algo dentro de mim realmente seria curado, tamanho poder simbólico que o meu próprio livro teria pra mim – mas aí já estou entrando em terreno desconhecido. Você chegou até aqui, mesmo sem se interessar em publicar? Então muito obrigada, porque é isso que eu busco o tempo todo.
Você precisa fazer login para comentar.