No creo em brujas, pero…

Por mais que se sinta a morte de alguém, estar num funeral nos conscientiza da impossibilidade até física de passar o tempo todo no luto. O corpo cansa. A gente cansa de chorar, de sentir pena, de lembrar. E cansa também de ficar sentado ou de ficar de pé. E sente fome. Depois de comer precisa ir no banheiro. Não temos queixas do serviço que ofereceram ao meu sogro. A funerária fica num prédio novo, bonito, de três andares. Cada andar tem um ou dois salões, ou seja, pode ter vários funerais ao mesmo tempo. Naquela madrugada fomos apenas nós, no térreo. Meu sogro ficou numa capela simples, que era sem luxos mas bastante confortável: a antessala tinha chão de porcelanato, sofás de couro branco, mesinha de café, lugar para colocar as bolsas. Na recepção, há pelo menos funcionário disponível 24h. Há até a possibilidade da família solicitar um banheiro onde possa tomar banho. O banheiro comum, que fica no andar, é limpo. Lá tem dois reservados, uma pia, sabonete líquido e papéis para secar a mão, que saem naqueles negócios com sensor de movimento.
Fiquei boa parte da tarde e da noite lá, mas o Luiz não quis ficar de madrugada e voltamos para casa. A intenção era descansar depois de um dia inteiro de correria, mas a verdade é que a gente quase não conseguiu dormir. Pelo menos ficamos quentinhos – meu sogro morreu num dos fins de semana mais frios e chuvosos do ano, o que deu ao seu funeral uma cara ainda mais triste. Minha cunhada e minha sogra ficaram lá a noite toda, assim como alguns outros parentes. No meio dessa madrugada insone, lá pelas 3h, minha cunhada precisou ir ao banheiro. Saiu da capela, passou pela recepção e foi ao banheiro. Tudo silencioso e vazio. Enquanto estava no reservado, ouviu um barulho. Era o sensor de papel, liberando dois papéis toalhas. “Que estranho”, ela pensou, “quem será que entrou aqui só pra pegar papel toalha?”. Sem dizer que ela não havia ouvido o som da porta. Quando saiu do banheiro, não havia ninguém, só as toalhas liberadas. Lavou as mãos, secou com as toalhas que estavam ali e perguntou na recepção se alguém fora no banheiro depois dela. Ninguém. Ou alguém.

Exílio

Seria ótimo pensar que o que eu estou vivendo agora é uma espécie de exílio. Pra ter sido exilada, em primeiro lugar, um dia eu fui importante. Eu cresci com um sentimento de importância. No meu passado, eu me sentia tão confiante, tão destinada às grandes realizações, eu não era todo mundo. Mais de dez anos depois, eu me pergunto onde tudo foi parar. Pensar que virei à esquerda quando deveria ter seguido em frente é uma explicação muito madura e banal. Estou falando aqui do que eu gostaria, então me deixem. Quero crer que eu ainda sou aquela que eu me sentia antes, que era tudo verdade: forte, especial, capaz de qualquer coisa a que me propusesse, especial. Especial não por ter nascido com algum sobrenome ou dinheiro, coisas que eu realmente não tive, e sim por ser uma pessoa diferente. Alguém com muita contribuição para dar ao mundo. Pra eu brilhar, era apenas uma questão de tempo.
Se nada disso aconteceu, a culpa foi da bruxa má que me soltou um feitiço. Não, melhor: como no Ramayana, minhas atitudes nobres e a necessidade de salvar o equilíbrio do universo me fizeram abrir mão do meu destino, mas só temporariamente. Por um longo período de anos, aceitei me vestir de pessoa comum e parti em busca da sabedoria. Fui para o exílio. Exílios bons, exílios de raiz, são sempre longos, por isso a impressão de que eu fracassei. As pessoas são assim, elas não enxergam a verdade, elas esquecem. A própria palavra exílio já mostra o quão temporária a minha situação é: só pode ir quem um dia esteve, só pode voltar que um dia se foi. Essa que vocês estão vendo é uma versão exilada, eu sou muito mais, eu garanto…
Pena que o meu exílio não é na floresta. Não há uma plaquinha que indique, não há sinal externo. Já estraguei o sapatinho de cristal, usei o manto real como coberta e todas as jóias se foram para comprar comida. Da minha origem, tenho apenas as minhas lembranças. Ou seriam minhas fantasias? Se pudesse, andaria pelas sombras e cantos, evitaria todos os conhecidos. Ando pelas ruas longe das minhas glórias e de mim mesma.

No lugar errado

Eu entrei naquele grupo de estudos unicamente porque meu orientador havia me obrigado. Eu tentava marcar com ele para discutirmos o meu trabalho e ele dizia que conversaríamos sobre o assunto depois da reunião. Isso apenas me obrigava a ir nas reuniões, porque discutir o trabalho comigo que é bom ele não fez. Depois de tudo terminado e defendido, ainda fiquei no grupo mais um ano, só que me sentia uma intrusa: todos com sede de títulos, artigos e trabalhos, doidos para incrementarem seus Lattes, enquanto eu só queria ser deixada em paz. Estava exausta e nem um pouco disposta a emendar um doutorado. Aí eu saí, fui dançar, conheci o mundo da dança profundamente, perdi as esperanças de ser boa e remunerada dentro dele, voltei com o rabinho entre as pernas. Eu não encontrava prazer na vida acadêmica mas havia sido treinada para ela a minha vida inteira, então poderia dar certo. Numa dessas reuniões do grupo, durante a minha volta, meu orientador pergunta:

– Alguém aqui viu o filme A Partida?
– Eu vi. É lindo!

E estava quase dizendo que havia me emocionado e chorado muito com o filme. Antes que o fizesse, meu ex e futuro (ex) orientador começou a discorrer dos aspectos simbólicos, imaginários, questões tocadas pelo filme, etc. A diferença entre o discurso dele e o que eu quase estava por dizer era um sinal tão tão claro: eu estava no lugar errado.

Não sei ainda qual o meu lugar, só sei que não era aquele.

Nunca seremos

Eu tive um amigo. Era uma dessas amizades que só quem vive intensamente no mundo virtual sabe como é: nós morávamos em cidades diferentes e éramos muito próximos. Durante uma época conversávamos todos os dias, depois ficamos um tempo afastados, e quando voltamos a conversar mais ele tinha revolucionado a vida dele e estava se casando de novo. A futura esposa dele e eu tínhamos amigos em comum, eu a conhecia por foto, mas nada além disso. Depois de muita dificuldade, os dois finalmente conseguiram ficar juntos e, para minha surpresa, eu e ele deixamos de ser amigos. De um dia para o outro, ele passou a ignorar minhas mensagens, eu senti o afastamento e nunca mais nos falamos. Foi tão inesperado e tão coincidente com o casamento, que eu não tive outra saída senão concluir que foi ela quem pediu isso. Assim como eu a conhecia de perfil e foto, ela certamente também sabia quem eu era. Não sei o que ele falava a meu respeito, não sei o que ela ouviu falar de mim. Da minha parte, fiquei com a impressão de que ela ouviu muito mais do que era, porque eu nunca senti nada por ele. Não era uma dessas amizades com climas, conversas sacanas ou expectativas amorosas – era apenas amizade, mesmo. Vai ver que ela é dessas que quando gosta muito de um homem, acha que todas as mulheres enxergam nele o mesmo que ela. Sei lá. O fato é que uma vez que ele se tornou “dela”, ele deixou de ser “meu”.
Nós nunca seremos amigas. Ela me vê como algum tipo de ameaça ao homem dela. Justo eu, que jamais fiz nada nesse sentido. Ela foi sacana comigo sem que eu nunca tivesse feito nada que a prejudicasse. Seremos, para sempre, uma coisa negativa uma para a outra. Só que, como eu já disse, nós temos amigos em comum. E através do que eles falam, ou do que leio e de coisas que ela escreve, sei que ela é uma pessoa muito legal. Ela é divertida, inteligente, interessante, fora do comum, amiga dos amigos. Se tivéssemos entrado na vida uma da outra de forma diferente, nós duas facilmente teríamos virado amigas. É estranho falar dela desse jeito, eu sei. A vida tem dessas coisas: nos coloca em campos opostos, nos faz admirar os “inimigos”. E por mais que a gente saiba que tudo isso – campos opostos, inimigos – é meramente circunstancial, não conseguimos superar.

Padaria

Se fosse para usar alguma metáfora para descrever o que este blog é, diria que é uma padaria. Os posts precisam sair igual pãozinho quente. Há dias que escrevo textos bacanas e tenho vontade de não colocar mais nada durante dias, pra curti-los mesmo. Deixaria na tela inicial com a proposta de que vocês apreciassem a reflexão e o cuidado que há por detrás. Mas não há tempo pra isso – quem vem aqui quer mais, quer outra fornada. E mesmo que naquele dia a temperatura não estivesse adequada, os ingredientes certos não foram encontrados, não havia nada de bom no estoque, é preciso repor, deixar as prateleiras cheias. Então eu venho aqui e escrevo, só pra que vocês voltem. Voltem.

Na superfície

Da fabulosa entrevista do Dr. Drauzio no Roda Viva
(Sim, vejo os programas com atraso. Roda Viva on line: melhor coisa pra quando você tem muito tempo livre pra ficar na net.

– O senhor gosta desse ambiente (presídio)? Por que não fazer outra coisa, ir ao cinema, sei lá?

– Porque eu acho que é um ambiente muito rico. Eu acho que isso me deu uma visão, não só da vida, da organização da sociedade brasileira, mas acho que da complexidade da alma humana muito mais profunda da que eu tinha e da que eu teria se não tivesse frequentado esse mundo. Eu acho que é ao contrário, cada vez eu tento penetrar mais fundo, porque é um mundo muito rico. E você hoje na vida moderna, se você bobeia um pouco, você começa a conviver com pessoas que são idênticas a você o tempo inteiro. Pessoas que pensam mais ou menos como você pensa, que usam mais ou menos as mesmas roupas, frequentam os mesmos lugares… isso empobrece muito a visão do mundo. Eu acredito que a vida seja uma só e que no decorrer dela você tenha que ter a experiência mais profunda possível, a mais abrangente que você conseguir.

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Estou em aula. O prof. Bodê lança para a turma a pergunta sobre como a questão da doação de orgãos tinha repercutido nas pessoas, as novas carteiras de identidade que tinha recém surgido, onde era possível discriminar a informação de não ser doador. Eu levanto a mão:
– O porteiro lá do prédio da minha mãe veio me mostrar a carteira nova dele, que ele tirou só para colocar que não era doador. Ele estava feliz. O que ele me disse era que essa doação compulsória era para salvar os filhos dos ricos. Que se ele, pobre, fosse parar no hospital, poderiam matá-lo para dar os orgãos para os outros. Com a carteira nova, ele garantia sua sobrevivência.

Silêncio na sala. A turma há muito me era hostil e tive a certeza de que meu comentário não tinha soado bem quando uma das CDFs líderes ergue o braço e mal esperou a permissão do professor para falar num tom muito irritado, como quem não se continha diante de tanta burrice.
– Claro que não é isso. A questão da doação de orgãos levantou toda a problemática social do imaginário da morte e… [insira aqui uma explicação altamente erudita]

Depois de ouvir a aluna com muita paciência, prof. Bodê delicadamente disse que não sabia dizer a posição das pessoas com relação ao imaginário da morte, mas o que ele tinha sentido era exatamente o que eu disse, que as pessoas tinham medo dos seus orgãos serem retirados em prol dos mais ricos…

Idade

Somos três. Luiz é quatro anos mais velho do que eu e mora em Salvador. André é um ano mais novo do que eu e mora aqui em Curitiba mesmo, num apartamento no centro. Parece que foi ontem a época que seis horas de vôo separavam as duas cidades e nós dele. Naquela época a Varig existia, tinha travesseiros de pena, o lanche era servido numa linda maletinha de plástico e tinha talheres de metal com logomarca. Nessa época eu e o Luiz tínhamos brigas sempre homéricas e as pessoas achavam que eu e o André éramos gêmeos. A distância em quilômetros continua a mesma, mas antes não apenas não havia celular, como as ligações custavam muito caro. Pra ligar pra longe a gente tinha que esperar pra depois das 22h; se pudesse esperar pra depois das 24h era melhor ainda. Viajar de avião era coisa de rico – mas, olha, desde que eu me entendo por gente os vôos atrasam e eles nos deixam mofando nos aeroportos sem a menor dó. O mundo ficou mas perto só que a gente acaba esquecendo disso. No dia dos pais, Luiz resolveu arriscar o meu número de celular e deu certo. Os deuses foram favoráveis e foi a ligação mais clara que a TIM me proporcionou até hoje. Conversa vai, conversa vem, entramos no assunto colesterol. Herdamos, nós dois, o colesterol de papai; já o André herdou a tendência ao diabetes. Recebi do meu irmão a recomendação de comprar óleo de linhaça dourada e passar a usar no lugar da manteiga. O colesterol dele havia baixado dez pontos com esse óleo e o fim da batata frita.

– Luiz, que coisa mais de velho. Quem diria que um dia trocaríamos dicas para baixar o colesterol.

– É mesmo. Isso porque estou conversando com você. Se estivesse conversando com o André, falaríamos sobre calvície. E exame de próstata.

Arrume três

Quando eu ainda morava com a minha mãe, e o meu quarto estava muito bagunçado, eu criei um método de arrumar três coisas de cada vez. É que quando a bagunça é demais, a gente nem sabe por onde começar e acaba nem começando, porque daria trabalho demais e consumiria muito tempo. O que eu fazia era me propor a arruma apenas três coisas. Cada vez que eu passava no quarto, arrumava as três coisas e pronto. Em pouco tempo, o meu quarto ficava arrumado sem que eu tivesse feito muito esforço. Hoje uso isso na minha casa. Sempre penso que, se fosse para ficar rica, deveria transformar essa ideia simples numa daquelas regras de sucesso. Ao invés de explicar o que eu faço em cinco linhas, eu deveria enrolar em mais de cem e escrever um livro. O meu livro, Arrume Três, seria uma proposta para revolucionar a vida dos leitores. Na capa, eu estaria de terninho e mostrando três dedos. Do insight genial no meu quarto, eu estenderia esse exemplo para o resto da minha vida e provaria por A + B o quanto aplicar o Arrume Três melhora para sempre as nossas relações no emprego, com os amigos, no amor, na família. Atribuiria o meu sucesso (ninguém precisa verificar se sou ou não) a isso. Arranjaria citações místicas e pesquisas duvidosas para justificar a escolha do número três. Criaria metáforas vergonhosamente óbvias entre bagunça e vida, não teria o menor escrúpulo em dizer o que as pessoas devem fazer. Contaria exemplos de vidas que foram revolucionadas por essa simples mudança de atitude. Venderia minha palestra a empresas, e nelas convidaria as pessoas a escreverem três problemas em três pedras e jogarem elas fora. O Arrume Três me faria rica e famosa.

Pra começar tudo isso eu só preciso de três trouxas. Alguém se oferece?

Desarrumada

Todo mundo sabe que existe uma Lei de Murphy relativa ao vestuário e encontros. Quando você sai de casa linda, perfumada, cabelo perfeito, com aquela roupa que lhe cai especialmente bem, você não encontra ninguém. Você pode tentar aproveitar o momento e desfilar por aí desse jeito, andando por todos os lugares, sentada no sofá mais visível como quem espera, passar em frente à janela – a mesma coisa, ninguém. Agora experimente ir até à esquina, só para comprar um pãozinho, vestindo um chinelo de dedo com meia ou uma camisa de futebol por debaixo do moletom surrado. Ah, pode ter certeza de que surgirá do nada o seu pretendido mais desejado, o genro que mamãe pediu a deus, e ele não apenas te verá como é capaz de puxar um papo. E você lá, sendo mentalmente fotografada na pior look da sua vida.
Estava eu aqui pensando, lembrando de uma história, de um sujeito que fiquei uma vez… e me dei conta que é como se o nosso encontro tivesse sido um encontro-de-chinelo-de-dedo-na-padaria um pouco mais prolongado. Eu havia acabado de me formar e minha cabeça estava uma bagunça. Estava procurando emprego, chateada pelos muitos nãos, confusa sobre o que eu queria, entrando com o pé esquerdo no mundo adulto. Ele apareceu bem naquele momento, dizia gostar de mim. Mas tudo era tão difícil. Por ter me conhecido quando me conheceu, ele ficou com a impressão de que eu era sensível e instável daquela maneira. Minha vontade era de dizer, o tempo todo: Essa não sou eu, releve o que eu acabei de fazer! porque aquela não era eu. Não a eu que eu normalmente sou, e sim uma eu enfraquecida, confusa, deprimida. Se tudo desse certo, em poucos meses eu já não seria mais assim, e sim muito mais leve. Ele não esteve tanto tempo na minha vida para comprovar. Achei uma pena, na época, porque não era daquele jeito que eu queria ser vista. Só que foi o que pude mostrar. Eu estava desarrumada – por dentro.

Uma fuga dissociativa

Existe um fenômeno no campo da psiquiatria chamado fuga dissociativa. Lembro que o meu professor brincava dizendo que pobre tem fuga dissociativa até Ijuí e rico tem fuga dissociativa em Moçambique. É quando o sujeito, sem qualquer propósito, sem malas, planos ou avisos, larga tudo e vai pra bem longe. A família, claro, fica desesperada. Dias ou semanas depois que o sujeito é encontrado ou volta, como quem desperta de um sonho. Durante esse tempo, ele não sabia quem era ou o que tinha feito. Por isso que eu disse que é do campo da psiquiatria, é como um mini ataque de loucura.

 

Pela primeira vez na minha vida, esse ano, eu olhei para a fuga dissociativa e disse – “Hummm, sabe que não deve ser ruim?”. Há ocasiões que precisamos ficar sozinhos. Mas há fases em que toda solidão parece insuficiente e queremos uma pausa da nossa vida. Na vida toda, em todas as referências, em tudo o que construímos. Fiquei muito a fim. Sei até para onde iria. Nessa pausa tão profunda eu não falaria com ninguém, ninguém, deixaria de lado o que amo e o que não amo, passaria alguns dias tolamente sobrevivendo. Sem acesso à internet, sem flamenco, sem família, sem quaisquer obrigações a não ser dormir e comer. Uma vontade tão grande de sumir e todos os motivos de sumir e a fiadamãe da fuga não me atinge. É um saco isso, ser profundamente normal, racional, pés no chão.

 

Lembro de uma tirinha e uma charge. Na tirinha, um funcionário perguntava para o gerente: “Por que você nunca tira férias?” “Por dois motivos. Se eu tirar férias, as vendas podem cair””E o outro motivo?””Elas podem subir…”. Na charge, um Pernalongas está segurando uma pilha de papéis e diz: “Eu só não jogo tudo pro alto porque vou ter que catar tudo depois”. É por isso que não me dou uma fuga dissociativa de presente. Os espaços que tenho na minha vida, ainda que pequenos, ainda que insatisfatórios, só se mantém assim porque todos os dias estou lá, abrindo à golpes de foice. Se eu for embora, o mato invade tudo.

Dois medos

Tenho notado uma tendência de certas mulheres solteironas ficarem meio loucas. É provável que os homens também fiquem; mas os homens assim que se veem solteiros logo procuram uma mulher pra colocar do lado, qualquer mulher. Sem dizer que as mulheres vivem mais. Vejo essas mulheres meio loucas, e me pergunto se são loucas porque estão sozinhas ou se estão sozinhas porque são loucas. Chamo de loucura mas é muito mais uma aguda incapacidade de negociar, uma tendência a serem monotemáticas, um certo descompasso no trato com o outro. E isso aumenta sua solidão. Tenho medo justamente porque tenho tendência a me isolar e entendo perfeitamente a recusa com o mundo. Vejo que facilmente poderia (ou poderei) me isolar no meu apartamentinho, com minhas violetas e uns gatos. Nos um ou dois compromissos fora de casa, seria tão intratável que os outros me olhariam com pena. Ou – não adianta argumentar com ela, é louca.

 

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Tenho um medo flamenco. No meu caso é flamenco porque eu amo o flamenco, mas acontece em qualquer área. Não encontrei um termo que defina isso. Meu medo é chegar um ponto onde eu pare de evoluir. Pare de aprender, de me desafiar, de crescer. Existe tanto a ser aprendido e não quero de repente sentir que bati com a cabeça no teto, que dali eu não passo. Seria muito triste, porque seria um teto bem baixo. Só que aí, por amar demais, por ter investido demais na ideia de ser bailaora, não me conformaria. Buscaria subterfúgios, viveria de glórias passadas, repetiria sempre os mesmos passos na ilusão de que assim estou enganando alguém e de que ainda sou boa. Tenho horror à possibilidade de viver de pose, de símbolos, de ilusões. Ser daquelas pessoas que precisam sempre dos iniciantes por perto, porque uma pessoa com olhos mais treinados logo vê que dali não há mais nada para sair. Quando vejo fazerem isso, me pergunto porque não se retiram com dignidade ao invés de montar esse teatro. Mas comigo, ah!, não sei o que farei se não conseguir aprender mais nada.

Os melhores

– “Filho”, eu diria, num daqueles vídeos ou relatos que a pessoa decide fazer para sua prole, ainda pequena, sobre como é a vida, depois que descobre que pode ser que não esteja mais aqui para passar para ele sua sabedoria banal sobre fatos do dia a dia- “deixa eu te transmitir uma verdade fundamental e infalível sobre os serviços. Os melhores profissionais que eu encontrei até hoje, sejam eles dentistas, acupunturistas, confeiteiros, esteticistas, pedreiros, astrólogos, lambedores de selos ou carpinteiros, não são os mais afamados. Nunca são aqueles que têm prédios de três andares só para si, com secretária de salto agulha numa recepção de mármore, não são os que usam turbante na cabeça e terno Armani, jamais serão o que precisam de meia hora de concentração e salamaleques antes de começar a fazer. Os melhores sempre são aqueles que um amigo indica, dizendo que faz muito bem feito. Nunca é o amigo das estrelas, o queridinho da alta sociedade, não procure por lá. Chegar ao sujeito realmente bom é por indicação, é quase como fazer parte de um clube fechado. Você contata o profissional com facilidade. Ele te atenderá normalmente, num lugar limpo e comum. Cobrará um preço honesto e fará seu trabalho. Tudo rápido e eficiente. A consciência do quanto aquele trabalho é bom vem depois, quando você ouve o quanto as pessoas pagam tão mais caro por serviços ruins, do quanto as coisas poderiam ter dado errado e não deram. E essas pessoas vão preferir continuar pagando caro, porque adoram os picaretas. Elas precisam dos prédios, do mármore e do Armani. Os picaretas fazem com que lhes paguem com gosto porque algumas pessoas são incapazes de aceitar que qualidade e simplicidade andem juntas.”

Uma pequena amostra de arrogância

Eu fui no correio buscar uma encomenda que foi taxada pela Receita Federal. Milagrosamente, cheguei lá e não tinha ninguém. Fui para o balcão do canto e a moça saiu para buscar meu pacote. No balcão ao lado, outra funcionária tinha dois catálogos, cheios de produtos de beleza, coisas para casa, livros, etc. Vejo a cena e penso comigo:
– Esses catálogos servem mesmo às classes emergentes, ou pessoas de outras gerações. A minha geração já está mais habituada com sites e com o tempo essas revistas se tornarão obsoletas. Os catálogos ainda são produzidos para pessoas que como ela não tem intimidade com a internet, ou ainda têm receio de fazer compras on line. Com o tempo, todos serão como eu e deixarão de ver essas revistinhas porque…
Nisso, volta a funcionária com o meu pacote. Ela se vira para a amiga e diz:
– Você já entrou no Ali Express? Cada coisa! Tudo muito barato, tem de tudo. Eu já encomendei uma bolsa com a Fulana. Disse pra ela só pedir duas, pra a Receita não achar que é pra vender e taxar.
Minha cara foi parar na chón.

Dinheiro, muito dinheiro

Desde minha adolescência, minha mãe cisma que eu deveria ter estudado Direito. A insistência dela me fez pensar um pouco no assunto, ler o currículo do curso, mas a área toda tem tão pouco a ver comigo que não precisei pensar muito pra saber que não, de jeito nenhum, nem um pedaço do meu ser combina com tal curso e profissão. Eu seria mais feliz capando boi do que de terninho no fórum.

 

Sexta fui visitar a casa de uma advogada, uma dessas pessoas que o destino coloca por acidente no nosso caminho. Sinto que há algo de errado, como se fosse um erro de continuidade dos filmes, quando conheço alguém de uma classe muito diferente da minha. A distância entre as classes sociais é tão poderosa que não é preciso proibir o contato, como no caso das castas. As classes diferentes raramente se encontram, não na mesma mesa. No máximo, como patrões e empregados, como quem ser e quem é servido. Assim que paramos no portão da casa, pensei – não sabia que era um condomínio fechado. Não era, o murão era de uma única casa, uma mansão. Não tenho nem como descrever o tamanho e o luxo. Da entrada até a mesa onde foi servido o café já era uma distância maior do que o terreno da minha casa. Tudo lindo, dourado e luminoso. No fim daquele café, jogando conversa fora, uma das presentes diz que a filha tinha se separado, a filha advogada. A anfitriã vira pra ela e pergunta:

– A tua filha está empregada?
– Está.

– Que pena, senão eu diria pra ela vir falar comigo. Estamos precisando de uma advogada da área X lá no escritório e sei que é a área dela.

 

Aí, pela primeira vez na minha vida, eu tive vontade de ter feito Direito. Só pra dizer – Opa, peraí, tem eu! e ganhar um emprego assim, num café. Só por estar no lugar certo e na hora certa, só porque dinheiro chama dinheiro. Mas ninguém nunca precisa dessa maneira de sociólogos ou alguém que saiba escrever direitinho. Ninguém nunca me trará para esse mundo no meio do café. Mas, também, sociologia e escrita não leva ninguém à mansões.

 

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Já entrei em mais casas ricas e inacessíveis do que achei que entraria, nessa minha curta vida. A primeira reação, ao voltar para casa, é sempre a de me sentir meio pobre. Mesmo que eu pudesse aplicar na minha casa tudo o que sonhei para ela, tudo o que o orçamento não tem me permitido nesses dez anos, jamais seria tão luxuoso. Essa minha casa, minha pequena casa, já me aprisiona nela muito mais do que eu gostaria. Se saio, me preocupo com ladrão, se viajo, tenho que ver hotel pra cachorro, também tem o problema das plantas. Sou casada com isso daqui. Nem faxineira eu gosto, não gosto de mandar, não gosto de estranhos mexendo nas minhas coisas. Um apartamento, percebo, dá mais liberdade, ainda mais se for alugado. Se um dia viesse parar na minha mão todo o dinheiro necessário para ter uma mansão, ele jamais se transformaria numa mansão. Eu gastaria tudo, provavelmente viajando. E distribuiria. Até conheço o caminho pra me relacionar com pessoas importantes e que poderiam me render contatos, mas fazer amigos com esse fim é contra a minha natureza. Lugares e pessoas cheios de status me entendiam e irritam. A maioria das formas de ganhar dinheiro esbarra com meus valores. O dinheiro teria que vir até mim, oferecido, igual uma propaganda genial que teve anos atrás de um velhinho que bate na casa do sujeito e diz que é o tio-rico rejeitado e deixou todo o dinheiro para ele. Concluo que não tenho vocação para a riqueza.

Resposta. Ou melhor, não importa

Tenho me torturado faz tempo com a pergunta sobre ter talento. O que é o talento, o que é esse mistério que torna a mesma coisa diferente de uma maneira definitiva, que faz com que um seja comum e outro, do mesmo tema e material, ser inesquecível? Seria o talento inato, construído, melhorável, conquistável? É possível ter mais de um talento, amar sem ter talento, ter talento naquilo que não é a nossa vocação? Devemos fazer aquilo em que somos bons ou aquilo que amamos – e se o amor não vier acompanhado de talento? Qual a fronteira entre ser apenas bom ou ter talento? Posso formular perguntas desse tipo ad eternum, e é o que tenho feito. Meu cérebro é excelente perguntador, pena que não consegue resolver um décimo. Pessoa insegura que sou, temi muito pela minha falta de talento. Temi pela dança, por ter começado tarde. Há um mundo de ritmos, movimentos e expressões na minha frente. É a sensação de começar uma corrida quando seus companheiros já estão vinte voltas na sua frente. Temi por gostar de escrever e vocês, que me lêem, serem poucos e não me renderem nenhuma grana. Já pensei muitas vezes em postar aqui – “olha, vocês não me pagam e eu vou embora. Se tiver alguém aí que pode me contratar, faça logo senão não tem mais!” E não fiz porque sei que um amigo ou outro viria me pedir para não interromper o blog, que me amam e tal. Mas reconhecimento e dinheiro que é bom, que fazer. Não é assim que se conquista leitores, com base na chantagem emocional.

Aí você fica mal. Os dias de chuva te deprimem, os dias ensolarados são insuficientes e os problemas alheios batem no peito com tanta força como se fossem nossos. O noticiário se torna insuportável, os funerais de novela também, nos filmes repetidos você sai da sala no momento dramático pra só voltar quando tudo ficou bem de novo. Eu clamo – uma boa notícia, por favor, uma boa notícia! e isso tem o mesmo sucesso do sábio que percorria o mundo com uma lanterna à procura de um bom homem. Quando tudo parece uma merda, apenas duas coisas são capazes de impedir que eu me afunde: as aulas de flamenco e escrever. Então, já pouco me importa que eu nunca vá me tornar uma grande bailaora, que o meu tacón direito não soe e eu não consiga bater palmas sincopadas. Já não importa que eu não escreva nada permanente, nada que se destaque, nada que convença alguém a me pagar. Eu simplesmente faço. Minha existência é nula se não o faço. A conta é simples: se faço me sinto bem, se não faço morro. Se me dizem hoje que não tenho o menor talento para ambas as coisas, continuarei igual. Mais triste, mas continuarei. Que se dane. Quem sabe um dia eu acerto, quem sabe um dia eu fique boa, quem sabe um dia me paguem. Senão, continuo pagando eu.