Uma leitura bem torta de Gurdjieff

“A dança é uma forma de meditação muito poderosa”. Ouvi isso apenas uma vez e concordei, mas na verdade eu nunca havia lido nada a respeito e nem relacionado uma coisa com a outra. Mas a frase ficou martelando no inconsciente e um dia estava sem ter o que fazer e decidi buscar no Google alguma linha de pensamento que relacionasse dança com meditação. Cheguei nas Danças Sagradas de Gurdjieff. Adorei a parte teórica – a dança como uma forma de quebrar padrões de movimento, lidar com o controle e a frustração são coisas que vivi muito desde que me embrenhei nesse caminho. De um lado, começar a dançar desde cedo dá uma riqueza muito grande, mas de outro, começar tarde acaba servindo como uma forma de luta e autoconhecimento que eu também considero bonita. Mas nem tudo é perfeito: a execução das Danças Sagradas, pelo menos nos vídeos que eu vi, me pareceu bem decepcionante. São chatas e quadradas.

 

Uma coisa leva à outra e comecei a me interessar por Gurdjieff e querer ler suas teorias. Gostei muito dele; eu e Gugu (ou Gudigudi?) já somos íntimos. Como toda teoria mística, tem coisas que não tem como comprovar e não fazem sentido (com o que vivemos no dia a dia), aí ou você acredita ou desacredita. Acho que sou meio louca, porque quanto mais duro o autor, mais eu gosto. Os que falam de amor e dão lições de moral me enchem de tédio, gosto dos que dizem que o universo é matemático. Gugu e Krishnamurti jogam nós, as pessoas comum, na lama. Pra Krishnamurti, a gente fica o tempo todo com os pensamentos ao léu, perde o momento do que está vivendo, dispersa toda energia em besteiras e com isso perde a iluminação. Para Gurdjieff, somos máquinas loucas, que fazem tudo no automático e “dormimos” o tempo todo. No fundo, me parece que eles falam da mesma coisa.

 

Agora vem a parte da leitura torta: perguntaram para Gurdjieff sobre o livre arbítrio, se existia. Ele disse que sim e não. Que existe, mas não pra nós. Existe para o homem desenvolvido no pleno uso das suas faculdades, pro sujeito que encontrou a iluminação. Para nós, não. É possível dizer que um trem ou uma máquina de lavar têm livre arbítrio? Porque é isso que nós somos, pura e tão somente máquinas, totalmente determinados pelos nossos condicionamentos. Sem a capacidade de formar um Eu constante que realmente escolha para onde ir, as coisas aparecem e nos atingem, nos levam de um lado ao outro, nos decidem. É uma vida regida pelos acidentes. O homem comum não têm a menor influência sobre o seu destino.

 

Quer dizer que eu não tenho a menor influência sobre o meu destino? Nada, nadinha de nada? Tudo que me acontece vai me acontecer e pronto?

 

Então tá liberado relaxar e aproveitar a viagem.

Cantareira

Li sobre o problema da Cantareira: ó, se chover o correspondente à dez metros, não quer dizer que o nível da água lá vai subir dez metros. Secou muito. Então, as primeiras águas que caírem vão pra terra que está seca, umidificar, molhar as plantas, serem sugadas… Depois que chover bastante, molhar bastante, a terra ficar saturada de água, aí sim vai começar a subir. De dez metros de repente só vai aparecer um, todo resto foi pra forrar a base.

 

Quando me dá uns piripaques, lembro da Cantareira. Porque tenho feito tudo tão direitinho, tenho dado para mim todo o colo e tempo, todas as mensagens positivas, proteínas, vitaminas e sais minerais, e ainda assim a sensação ao acordar raramente é boa. Levanto, faço minhas coisas, luto pra caramba pra ficar felizinha, e dia seguinte é a mesma coisa. Parece que todo esse esforço está indo pra lugar nenhum. Está, está, está, só não é visível ainda.

Tarde demais pra ser sozinho

“O que você está fazendo comigo?”, eu me queixo. Me queixo das longas caminhadas, do livro na bolsa, dos cafés solitários, da programação esdrúxula dos cinemas, de falar com estranhos. A agenda em branco que aceita qualquer anotação. Ganho as ruas sozinha na ilusão de que ninguém me vê, mas estou mais para um rei que pensa estar nu. Eu não deveria estar lá, em nenhum desses lugares, mas estou. Sou uma desabrigada no meu coração e atraída pra qualquer lugar com calor e luz. Subo a gola do casaco, escondo os braços nas mangas longas para esconder as chagas, sorrio. Alguns homens são tão bonitos e seus carinhos tão distantes. Aperto a minha própria mão e comento comigo mesma o que me agrada. Tudo me emociona e dói e choro de maravilhamento, de medo, de Mônica Salmaso, de surpresa, de agradecimento. Não suporto olhar pro passado, não consigo pensar no futuro. Será que um dia alguém voltará a me amar, com todas essas cicatrizes? Olho para o horizonte e as árvores que já estavam lá quando nasci e continuarão depois que eu morrer. Os dias se tornaram longos e os meus sentimentos imprevisíveis. “Odeio tudo isso: os estranhos, as mudanças, as caminhadas, tudo”. Mas eu continuo, eu preciso.

Reserva um (1) lugar

* Eu recebo um informativo de um grupo que passa filmes cabeça. Taí um povo que tem uma vida sexual pior do que a minha, porque no mínimo são três por semana. Tentei companhia duas vezes e ninguém quis ir. E nessas duas vezes, eu pensei como foi bom não ter ninguém lá comigo, porque possivelmente a pessoa me xingaria muito. Não é todo mundo que guenta ver filme de duas horas e meia em carteira de faculdade, um frio do caramba e o sujeito sendo chamado de pai pela própria mãe porque ela achava que o filho era a reencarnação do pai, que era bailarino e tinha longos cabelos loiros.

 

* Sento elegantemente na padaria e peço um café e um pão com queijo minas. Meu pedido chega e interrompo a leitura do Murakami. Aí, bato com o cotovelo na borda do livro, que bate no pires e quase derruba a xícara, espalhando café pela mesa, pelo pão, pelo próprio livro. Assim fica difícil tentar ter glamour.

 

* Me inscrevo num evento com apresentação de guitarra espanhola e degustação de empanadillas. A única coisa que precisa é reservar lugar. Tento dois amigos, que não podem. Decido não partir para a tática desesperada de convidar qualquer um e vou sozinha, pra variar. Não tenho nem palavras pra descrever o quanto foi legal. Estava eu sentada no chão, de frente ao guitarrista, que estava sentado diante da frase “júntate a los buenos y serás uno de ellos”, com uma recém-amiga ao lado e meus olhos se encheram de lágrimas. Existem universos lá fora.

 

* O Teatro Guaíra já foi meu caminho de todo dia, e naquela época só de passar na frente eu sabia dos principais shows. Acessei o site porque me deu aquele estalo de retomar o antiquíssimo hábito de ver as apresentações da orquestra no fim de semana. Com o que me deparo? Show da Salmaso no próximo domingo! Os melhores lugares, claro, já estavam ocupados, mas é muito fácil comprar lugar quando precisamos de apenas um ingresso. Vocês não têm noção do que foi esse presentão que me dei. Minha dúvida não é nem se vou chorar quando ela pisar no palco e sim se não sou capaz de chorar no caminho, dentro do ônibus.

Devagarim

Tem toda razão quem me aconselha a entrar no Tinder. Toda. Concordo. Recomendo. Acho prático e razoável. Só não pra mim, não agora.

 

Poderia levantar vários motivos. Falar do quanto ainda me sinto desequilibrada. Da falta de paciência com as conversas-relatório inevitáveis. Da idade, da geração, da criação, da descrença, da resistência, de mil coisas. Do quanto sempre fui difícil sem querer por ser lenta. Dos tortuosos caminhos da atração física. Deixa pra lá. Acho que vou cansar e ainda beberei dessa água. Não agora.

Meu ideal é isto aqui, que uma amiga colocou em palavras pra mim:

– O legal é quando você frequenta o mesmo ambiente que a pessoa, por ter o mesmo círculo de amigos, por fazerem um curso juntos, alguma coisa que leve a encontros frequentes. Vocês se veem bastante, em vários contextos, em várias conversas, com a turma. Aí você vê o outro falar e fazer um monte de coisas, sem ter você como objetivo. E, aos poucos, um chama a atenção do outro e surge um interesse.

Peço muito?

É...

Aos meus amigos

“Ela não é muito de contato físico, mas gente assim é só tímida. A gente pega ela e abraça do mesmo jeito!”. Ela, no caso, era eu. Muitos anos se passaram desde que ouvi isso da Hermelina, uma colega de faculdade. Até então, eu não sabia que era uma pessoa de pouco contato físico. Meu referencial era a minha casa, onde vivíamos eu, minha mãe e meu irmão. E a gente realmente não se tocava. Aí eu chegava na aula e elas realmente me abraçavam, com gosto. E eu realmente não era capaz de tomar a iniciativa mas gostava dos abraços delas.

 

Muitos anos me separam daquela que não conseguia tomar iniciativa pros abraços. Eu penso, filosoficamente, que a graça de ser Deus seria viver possibilidades infinitas na vida humana. E para todo lado que eu olho, as experiências são tão diferentes. Estamos todos vivendo na Terra na mesma época, no mesmo país, na mesma cidade, vamos aos mesmos ambientes… e não me vejo vivendo nada parecido com qualquer pessoa que convive comigo. E posso dizer o mesmo delas em relação a mim e aos outros. Tudo é único. E nessa unicidade da minha existência, eu levei uma vida para conseguir o que para os outros parece acontecer naturalmente: criar laços, fazer amigos. Este blog é testemunha dessa dificuldade; os textos dos primeiros anos falavam muito de cortes, problemas com limites, exageros. Uma vez até me esfregaram esses textos na cara, como prova de que a complicada era eu. E quem disse que não? Admito que joguei fora o bebê com a água do banho muitas vezes. Complicada, injusta, exagerada, cheia de pontos sensíveis. Humana.

 

Não sei dizer exatamente o que eu fiz, o que mudou. Sei que as queixas foram diminuindo e encontro cada vez mais prazer nas minhas amizades. Que me apaixono pelo jeito de ser de algumas pessoas em poucos minutos, e gosto delas sem ter nem por onde expressar. E quando percebo que elas também vão com a minha cara de graça, é uma surpresa tão boa, é mágico! É uma honra ser parte do círculo de confiança de algumas pessoas, de verdade. Alguns amigos são, UAU, anos luz acima de mim. Pessoas que eu amo tanto, que me ensinam tanto, que eu admiro tanto. E, ao mesmo tempo, um carinho e uma compressão que precisam de muito pouco para serem expressos. Tem gente que me faz tão bem, que nunca na vida encontro meios de retribuir. Pela minha incapacidade de retribuir para elas, desisto e escolho retribuir a outros, sem esperar deles qualquer retribuição.

 

Eu acredito que a vida humana tem um sentido, até mesmo para os que não acreditam em nada. Seja lá qual for a direção, não devemos sair dela da mesma forma como entramos. Que algo mude, que algo se aprenda. Eu aprendi a aprender com os outros.

Feliz dia do amigo! (20/07)

Salvador e Salvador

Eu geralmente saio pelos fundos, porque é mais perto. Mas por acaso, naquele dia, saí pela frente. E encontrei um colega de turma, que também nunca encontrei saindo. Chovia muito. Eu estava de guarda-chuva e capa, porque nesses dias não para de chover, mas era daquele tipo de chuva que proteção nenhuma salva. Ele me perguntou se eu queria carona. Falei que não, que pretendia ir a pé. E pretendia mesmo, pelo menos até certo trecho, para comprar umas coisinhas. Ele achou que aquilo era desculpa e insistiu. Acabei aceitando porque até pra mim aquilo soou como desculpa. E também achei meio destino eu sair pelo lado que eu nunca saio e encontrar uma pessoa que eu nunca encontro num dia de muita chuva. Aceitei, e fomos para fora juntos no meu guarda-chuva até o estacionamento. Eu sem fazer a menor ideia de que carro era e onde estava.

Pena que não sei marca de carro pra poder contar aqui. Sei que era um carrão, nos dois sentidos do termo. Preto, alto, espaçoso, todo equipado, daquele tipo que parece abraçar a gente quando entra. Eu já esperava algo assim, já havia visto e ouvido o suficiente para saber que temos alguns degraus de distância na pirâmide social. Começamos a conversar, o assunto recaiu sobre minha viagem, eu disse que meu pai mora sem Salvador e que nunca morri de amores pela cidade. Aí ele me fez entender que já foi, quem sabe mais de uma vez, porque tem uma opinião bem definida sobre lá: que é uma cidade bacana, que tem lugares bonitos, excelentes restaurantes…

Aí bateu aquela certeza da realidade que nos separa. Como se o carro, eu costureira, ele indo para o escritório e muitos outros detalhes já não gritassem a verdade. Verdade esta que é sempre muito mais clara para quem está embaixo do que em cima. Como eu poderia explicar a ele que vamos a cidades diferentes quando visitamos Salvador? Tentei por alto, quando disse que não vou como turista e que o Sul e o Nordeste são culturas diferentes. Ele concordou, claro, mas é que… A Salvador que eu conheço é a do ponto de ônibus, do acarajé baratinho e refrigerante no isopor, ruas estreitas e chinelo de dedo. Deve mesmo ser muito legal essa cidade que ele conhece, a Salvador dos bons restaurantes e serviços, com tinta fresca sobre a maresia e ar condicionado. Como já me disseram (foi em Jaguarari, inclusive), as cidades podem ser melhores ou piores dependendo do nível de vida que você terá nelas. Lá, no centrinho de Itapoã, o restaurante que meu pai frequenta é o Dimenor.

Desejo

Você está louca, não aguenta mais de desejo, quer ligar pro Fulano. Ok, podemos ligar. Ele pode até estranhar, talvez pergunte se eu tenho mesmo certeza, mas ele não vai se recusar. Ele vai achar ótimo. E se você quer sexo, só sexo, você sabe que vai ser ótimo. Ele chegará rápido, vai estacionar o carro lá na frente, pode até colocar na garagem. Um carrão, a vizinhança vai botar olho. Ele vai sorrir, te dar um abraço, quem sabe uma conversinha no sofá e todo resto você já sabe. E vai ser bom, sempre foi bom. Se é isso o que você quer, um sexo bom, então vá em frente e peça. Mas só se for só sexo. Porque você sabe que ele vai embora. Você até poderia pedir pra ele passar a noite com você, e quem sabe ele até passasse, mas na manhã seguinte ele iria embora. E você sabe o que o ir embora dele significa. Depois de sair pela porta, o que aconteceu será apagado da memória dele. Ele viverá a vida dele, mais relaxado e tal, mas sem se sentir nem um pouco mais ligado a você. Para ele, tudo continuará na mesma, um sexo consensual entre adultos – e para você? Porque se vê-lo atravessar aquela porta for doloroso, se você estiver esperando que os sentimentos ou a relação de vocês mude depois, não é só sexo que você quer. Você quer algo mais. Você está pensando no sexo como um meio e não como um fim. Esse algo mais ele não é capaz de te dar. Ele não quer te dar e ponto final. Quem sabe outro dia, em outro momento, com outra mulher… mas isso não vem ao caso. Não esta noite, não com você. Então é melhor ficar quietinha. Não é só sexo.

Em resumo

Passou. Não sei como é para os outros, mas para mim é tão clara a diferença da tristeza e a depressão. Há a incapacidade de sentir prazer, um peso constante que mina tudo. A vontade é de morrer, o tempo não passa nunca. Mas a vida continua e desta vez eu já conhecia o roteiro. Me arrastando eu levantei da cama, tomei banho, saí, fiz minhas aulas, visitei pessoas, cuidei da casa, trabalhei, li, escrevi… Tentei ao máximo levar a vida como se estivesse tudo bem, por mais que doesse. Depois me dei conta de que a vida, na verdade, é isso: fazer o que precisa ser feito, sempre, apesar dos pesares.

Leitora em multidões

Escrevi a um amigo pedindo que, por favor, fizéssemos alguma coisa juntos no fim de semana. Eu acho que ele não notou que quando escrevo assim, querendo para já qualquer programa junto com ele, é porque costumo estar meio desesperada, mas tudo bem – quem é que vai adivinhar que uma pessoa que mal pediu ajuda quando tudo explodiu, está tendo crises depressivas um ano depois? Mesmo problema que eu digo para as pessoas que querem fazer a dieta Dukan: enquanto você está emagrecendo, as pessoas dão o maior apoio que você tenha cardápios restritivos. Mas quando você está na fase de manutenção, meses depois e magra, ninguém aceita que você abra mão de uma batata frita. Eu também acho que não tenho nada que me deprimir um ano depois, que merda. Mas diz isso pro meu organismo. Ao meu apelo, meu amigo me respondeu enviando um evento do Facebook, uma festa julina que aconteceria numa igreja ortodoxa nas Mercês.

 

Entendi e fui, sozinha. Esses eventos de Facebook nunca nos fazem ter muita noção do que é. No cartaz dizia que era uma festa tradicional, de muitos anos, então já imaginei multidões, música junina por toda quadra, pessoas com roupa de prenda e dentes pintados (coisa que não tem no nordeste e muito me surpreendeu). Chegando lá, oh não! Era uma festa pequena, bem família. Foi colocar os pés pra entender que todo mundo lá era da paróquia e se conhecia. E todo mundo com biotipo árabe. As músicas também eram árabes. Desculpem a ignorância, mas nunca pensei que veria pessoas com aquele biotipo numa igreja católica ortodoxa. Levantaram a hipótese de serem gregos, mas devo confessar que não conheço o biotipo grego, então será que eram? Enfim, era um pessoal bonito, morenos de olhos claros e narizes grandes. Deu vontade de sair correndo. Comprei um doce de amêndoas (enjoativo) e mandei mensagem pro meu amigo, na esperança de que ele me encontrasse lá. Por hábito, estava com um livro na bolsa. Deixei o celular à mostra e saquei meu livro, no maior clima de “não sou uma louca que veio sozinha, daqui há pouco meus amigos chegam”. Ele não veio, mas foi gostoso pra caramba ler ali. Lia um pouquinho, olhava as pessoas, lia mais um pouquinho. Depois conheci a igreja. Foi um bom passeio, fez o meu dia. Se estivesse em casa, provavelmente estaria muito mal e isso me impediria de ler. Minhas crises fazem com que o estar sozinha seja ruim, mas elas já não são estão intensas a ponto de precisar que as pessoas me deem atenção. Estar entre seres humanos parece que já é suficiente. O que é ótimo, e dá mais independência e não preciso tanto da boa vontade dos amigos – todo mundo tem suas vidas pra cuidar.

 

Eu me lembrei da moça do quadro de Renoir, aquela que discutem no filme Amelie Poulain. Eu me tornei ela, só que com um livro na mão. Eu diria: A moça do copo d´água não suporta estar fisicamente só. Ela fica no meio dos outros para ficar em paz.

 

Amélie – Sabe a garota do copo de água?
Pintor – Sei.
Amélie – Se ela parece distante, talvez seja porque está pensando em alguém.
Pintor – Em alguém do quadro?
Amélie – Não, um garoto com quem cruzou em algum lugar e sentiu que eram parecidos.
Pintor – Em outros termos, ela prefere imaginar uma relação com alguém ausente que criar laços com os que estão presentes.
Amélie – Ao contrário, talvez tente arrumar a bagunça da vida dos outros.
Pintor – E ela? E a bagunça na vida dela? Quem vai pôr ordem?

Controle-Descontrole

Eu desejei morrer e bendisse estar viva. Eu chorei, me senti péssima, mas também achei que tudo está da melhor forma que pode estar. Eu fugi e ao mesmo tempo produzi como nunca. Eu novamente carreguei as outras partes, as doentes, nas costas. Teve uma causa muito específica e ao mesmo tempo não teve causa nenhuma. A imagem que me vem quando me dá o que chamo de rebordosa orgânica – cada vez menos frequente, cada vez menos funda, mas nem por isso agradável – é esta:

O velho Chico e o psiquismo

Atravessando o rio São Francisco num barquinho igual.
Nunca foi por realmente me ver como paulistana que em qualquer conversa sobre curitibanos chatos eu me safo com um “eu sou paulistana”. Não tenho lembranças de infância lá. Minha mãe saiu grávida de Manaus, ficou em Curitiba durante quase toda a gravidez, e depois meus pais foram pra São Paulo e ficaram tempo o suficiente pra nascer meu outro irmão, um ano mais novo. Não foi um desses nascimentos quando a pessoa está de passagem, mas foi quase. Vim morar em Curitiba aos cinco anos, então realmente sempre me vi como curitibana, por mais que tenha ouvido a vida inteira: Você não é daqui, né? Eu me lembrei disso quando estava em Juazeiro, cidade onde um amigo meu nasceu e foi embora com um ano. “Fotografa o rio pra mim!” e eu nem sabia que rio era, não fazia ideia do quanto o rio São Francisco é lindo. 

Ir pra Salvador sempre mexe muito comigo. Passei grande parte da minha vida odiando a cidade com todas as minhas forças, atribuindo à baianidade toda infelicidade que já senti, renegando qualquer traço, influência e parentesco com aquele lugar. Mas eu chego lá e é aquela festa sensorial: o cheiro do mar, a areia fina no chinelo, o acarajé feito nas ruas, a maresia nas paredes, a sonoridade do sotaque, os rostos. Tudo familiar, tudo sempre esteve ali. Pra renegar é preciso conhecer, é preciso ter experimentado. Então, por mais que eu não tenha gostado, também sou eu. Como eu um dia pude pensar o contrário? Salvador faz parte das minhas lembranças e da minha história, está em mim de alguma maneira. Minhas células reconhecem a cidade e vibram diferente quando coloco os pés ali. E eu não seria quem sou sem ter vivido isso.

Lembrei do meu amigo porque comecei a pensar numa psicologia ambiental, quem sabe ecológica. De que é impossível que todos esses cheiros e sons diferentes das cidades não nos influenciem. Que alguém que lembra dos surubins nadando em volta de si enquanto está no colo da mãe, não pode ter dentro de si a mesma coisa de quem esteve no céu cinza de São Paulo ou comeu pinhões na infância. Que não somos só um pouco dos nossos parentes, mas também somos um pouco da nossa cidade, dos seus mares ou rios ou montanhas ou ventos ou chuvas.

Craca

Eu havia lido uma entrevista que o João Gordo diz que, antes de casar, passava dias sem tomar banho. Estava em casa sozinho mesmo, sem comer ninguém e tals. Lembro de ter achado aquilo um nojo e injustificável. Sem dizer que tomar banho é um prazer, então eu jamais deixaria isso de lado, certo? Errado. Não cheguei ao extremo de ficar dias sem tomar banho, mas…

 

Foi quando eu estava deprimida. Acho sempre estranho dizer “estava deprimida”. Na maior parte das vezes, falo desse passado recente com pessoas que estavam ao meu lado, e elas nem sempre faziam ideia do que estava acontecendo. Sabiam em teoria, mas não sabiam o tamanho do buraco. Como me disse uma amiga: “Olhando assim parece que faz tanto tempo, você parece tão bem! Mas há dores que só o nosso travesseiro conhece”. Outra questão é que o estava parece dar a impressão de que tudo passou. Algo como: fiquei deprimida até dia 10 de janeiro de 2015 às 11h. A depressão, sinto ainda, é como uma porta que agora eu conheço e só fica encostada. Quando acordei e não tive mais a necessidade de saltar da cama pra fugir dos meus pensamentos, ou quando fui capaz de passar uma noite sozinha sem querer morrer, soube que o pior havia passado. É essa fase que chamo de “estava” deprimida, mas nem sei dizer direito o que estou. Quero muito crer que existe um estado mais feliz e equilibrado do que o de hoje. Mas, voltemos ao banho.

 

Eu faço aula do flamenco à noite. Deve ter algum regulamento na Confederação Internacional de Flamenco (brinks, não existe nada parecido) que manda que as salas de aula de flamenco sejam todas quentes. Eu achava a da escola anterior quente, e as da nova escola são apenas um forno sem janelas. Some-se isso ao sapateado. Eu punha a minha roupa suada, pegava ônibus e voltava pra casa. Tarde da noite, eu cansada e faminta. Estar em casa não me causava nenhuma alegria e dormir cedo fazia com que o dia terminasse mais depressa. Verificava as coisas na internet, comia e ia pra cama do jeito que estava. Danese banho, ninguém estava dormindo do meu lado pra sentir. E trocar os lençóis com regularidade pra quê, também? Até economiza. Assim fiquei durante alguns meses. Aí uma certa noite – que não me dei ao trabalho de marcar – eu me deitei e senti um cheiro ruim. Era eu. E os lençóis. E, apesar do que acabei de dizer, eu os havia trocado há pouco tempo. A culpa era minha mesmo, que deitava suja. Já estava tarde e fiquei com preguiça de levantar e refazer a cama, mas deveria ter levantado porque até dormi mal. Foi aí que decidi moralizar o troço e voltar a tomar banho. Mesmo sem ter ninguém do meu lado.

Julho chegou e com ele…

… o frio. A conta de luz. A fatura de um cartão de crédito que eu já cancelei. A necessidade de ligar pra Net e cancelar a HBO.

 

* Eu vi e vivi tantas coisas nessa última viagem que precisarei de alguns anos pra digerir tudo.

 

* Sou do tipo que chega de viagem e desfaz a mala imediatamente. E, ainda assim, estou há dias tentando colocar as coisas no lugar. De onde surgiu tanto papel a ser anotado e arquivado, tanta roupa pra lavar, tanto objeto sem lugares definidos e tanta decisão pra se tomar?

* Sobre o Fulano: não sei.

* Tenho amiga que já trocou muitas vezes de atividade, e depois se culpa por ter trocado. Ela diz que admira minha persistência com o flamenco. Aí eu digo pra ela: é que tem períodos de mais e menos entusiasmo. Períodos que, de certa forma, eu larguei internamente mas continuo indo. Agora, por exemplo.

 

* Escrever é estar sempre em atraso. Eu falando sobre como era engatinhar e a vida no terceiro emprego. A escrita infantil, edípica, fálica e na vida tudo já foi sublimado faz tempo.

 

* Cada vez mais eu me convenço que a gente muda muito pouco, se é que muda. O que a gente aprende é a se administrar.

Abordagem baiana direta

Quando fui a Salvador no ano passado, e estava passeando na areia da praia e fui abordado por um novinho que achou que eu estava emaconhada quando disse a minha idade, bastou meia hora de respostas lacônicas para ele me dizer:

– Quer fazer sexo comigo?

Minha primeira reação foi cair na risada, de tão surreal que a situação me pareceu. Eu respondi que não e ele foi propondo: vamos fazer um amor gostoso, vamos transar na areia, vamos transar no mar, quero fazer sexo com você, por que você não quer, você me achou feio?

A abordagem baiana é assim, direta. Isso porque eu não dei bola pra ele. Mas também não cortei da maneira explícita. De acordo com meu irmão, o jeito de fazer um baiano se afastar é dizendo com todas as letras: não quero não, você está me incomodando, vai embora daqui. Pra mim, por mais que eu saiba, é muito difícil falar assim. Isso seria o grau máximo de rudeza, daquele que eu só uso quando perco a calma. São momentos como esse que me faziam sentir a própria Leite Quente quando vou a Salvador.
(Percebam que falo apenas de Salvador. Não sei dizer se o resto do nordeste é assim.)
“Doentio mesmo são aqueles anúncios de prostitutas no orelhão. Aquilo sim é chocante”, defendeu meu irmão. Na primeira vez que ele disse isso, eu defendi os papeizinhos. Disse que em São Paulo também tinha, que era normal. Que anormal mesmo era propor sexo pra uma estranha na lata. Agora já tendo a concordar com ele. Talvez seja melhor assim, às claras, assumindo o próprio desejo. E como não conseguimos fazer isso cá embaixo, ficamos mais escondidos e o que deixa de ver a luz do dia acaba adquirindo contornos bizarros, com fotos de bundas enquanto você telefona.

A casa que eu fiquei tinha um rádio ligado o dia inteiro, às vezes concorrendo com a música que vinha da rua. É muito baiano isso, de qualquer reuniãozinha, às vezes de duas pessoas, ser motivo pra colocar um som no último volume. Coisa que aqui já nos faz chamar a polícia. Cada vez que tocava uma música dessas, eu ria. As letras são muito diretas. É muito eles, é muito baiano. Talvez justamente por isso não consiga chegar aqui.