Amizade a todo custo

Começou no orkut, com uma pessoa que era amiga dos meus amigos, e por isso aceitei adicionar. Tenho um problema assumido com pessoas boazinhas, e ela era uma delas. Do tipo que mandava mensagens fofas e não cansava de declarar o quanto eu era especial e divertida. Eu a respondia de maneira educada e só. Quando saí definitivamente do orkut, ela foi a única que me mandou um e-mail insistindo para que eu ficasse. Disse que o orkut não era o mesmo sem mim, que ela sentia minha falta e tal. Achei fofo, e lhe respondi que estava feliz com a minha decisão por esse e aquele motivos (nem lembro quais). Aí ela me respondeu dizendo que havia mais outro e aquele outro motivos, eu disse que outro e aquele outro motivos não eram importantes, e ela me escreveu de volta falando mais outros tantos. Tentou inclusive botar pilha de um provável ciúmes que eu teria de alguém. O que começou como fofura se transformou na mais simples insistência. Esse é um dos problemas que eu tenho com pessoas boazinhas: elas começam dizendo que querem o melhor para nós, mas estão apenas nos manipulando para fazer o que é melhor para elas. Nada contra cada um lutar pelo que é melhor para si, mas não me venha com discursos altruístas.

Eu lhe mandei um e-mail reclamando disso e esqueci que a fulana existe. Ela me mandou outro e-mail, pedindo mil perdões e aquelas declarações de afeto de sempre. Eu ignorei. Aí ela me mandou mais um, dizendo que não sabia se eu não tinha recebido o e-mail de desculpas ou se tinha ignorado, e caso fosse isso, ela me pedia desculpas de novo. Meses depois ela me mandou outro, perguntando se eu ainda estava aborrecida com ela. Apaguei todos. Quando eu estava no twitter tempo o suficiente pra esquecer que o orkut existe, ela passou a me seguir. Como seguir não é a mesma coisa de ser amigo, deixei. Só que ela não me deixava em paz, e reagia a tudo o que eu dizia – “eu também acho”, “nossa, que engraçado!”, “você é tão querida”, etc. Fui obrigada a bloqueá-la. Não contente, um dia encontrei uma solicitação de amizade dela no Facebook, acompanhada de uma mensagem privada. Nessa mensagem ela pedia pra eu lhe dar uma chance para provar que ela não é uma pessoa má e que queria ser perdoada do que sabe-se lá o que ela fez, porque ela não merece ser tratada desse jeito. Novo bloqueio.

Com as devidas proporções e liberdade poética, o seja lá o que ela me fez foi isto:

O dilema de Gilmar

Um amigo do Luiz, chamado Gilmar, vai viver pelo menos um ano em Angola, à trabalho. Sem nenhum laço que o impeça de viajar, ele aceitou na hora. “Já pensou, vou pra Angola e arranjo uma mulatona pra mim?” Aí os amigos falaram que mulatona ele não arranjaria, porque mulata é mistura de branco com negro, coisa nossa. Que o que ele pode conseguir é namorar uma bela negra. Aqui, ele não é do tipo que namore mulheronas: Gilmar é branco, cabelos e olhos castanhos escuros, baixinho e magro, um homem sem maiores traços marcantes. Eu o vi uma vez e tenho certeza de que não o reconheceria na rua. Quando penso em descrevê-lo a primeira coisa que me surge à mente é “normal”. Só que, assim que chegou em Angola, ele notou que as pessoas o viam diferente. Ele não sabe se é por ser branco num país de negros ou por algum outro motivo. O fato é que ele se viu subitamente galã. As mulheres o notam, o olham de cima abaixo, suspiram. Até chamado de gostoso na rua ele foi.

Não preciso dizer que isso tornou o país ainda mais atraente para ele. No escritório da filial angolana tem uma secretária, que logo o interessou. Bonita, inteligente, gentil, até modelo ela é. Um dia eles sairam de carro juntos, à trabalho, e o que deveria ser uma oportunidade de ficar ao lado da mulher que ele quer se transformou em decepção. Logo que ela entrou no carro, seu olhar caiu sobre suas panturrilhas e a profusão de pelos pretos lhe deu um mal estar. Em Angola, pelo que ele tem percebido, as mulheres não têm o hábito de se depilar. Ele, como homem brasileiro, não consegue ver uma mulher peluda e achar bonito. Só que ele não tinha certeza dos hábitos da sua escolhida. Na saída do carro, ela ergueu os braços e foi fatal. Nas palavras dele:

– Ela ergueu o braço e aquilo só falou fazer Béééééé! pra mim.

Agora eu pergunto: o que Gilmar fará de agora em diante? Ele se conformará e deixará de lado o senso estético que sempre guiou sua vida, para aproveitar a chance única de ser um pegador, ou continuará fiel aos seus princípios e permanecerá belo e casto? O que vale mais: ser um comum no meio de mulheres depiladas ou um galã de mulheres não depiladas?

Prendas domésticas

A minha vó sabe costurar, e acho que todas as avós, até uma certa geração, sabiam. Assim como todas as mulheres sabiam bordar, ariar panelas, fazer faxina, cozinhar e outras tarefas identificadas como femininas e domésticas. Minha vó, aprendeu quando jovem, com um alfaiate (parece que alfaiates têm seus segredos), pra ter uma profissão. Quando casou, passou anos sem precisar se preocupar com dinheiro. Quando meus tios já estavam adolescentes, o dinheiro diminuiu e a costura foi útil pra ajudar no orçamento. Saber costurar sempre deu essa liberdade para as mulheres. Só que a revolução feminista veio e as mulheres não educaram mais suas filhas pra isso. Como o nosso futuro era conquistar o mercado de trabalho, transformar o mundo em algo mais unissex, às gerações seguintes esse conhecimento não foi passado. Minha mãe e minhas tias não sabem costurar. Eu até tentei. Faço minhas coisinhas, prego botões, mas quando preciso de uma barra bem feita levo lojinha de costura de shopping. Sempre acho caro, porque é algo ridiculamente simples – leva poucos minutos, eu já vi minha vó fazer. Mas eu prefiro não arriscar e pago. E lamento muito não ter aprendido o currículo básico de toda mulher antiga.

***

Eu me orgulhava de não cozinhar. Casei sabendo fazer um arroz básico, feijão básico e purê de batatas básico. E dá pra dizer que desaprendi tudo, em favor de comer coisas mais gostosas. Do namoro ao início do casamento, eu e o Luiz engordamos bastante, porque adorávamos comer fora. A caminho de casa tem um shopping, então imaginem o estrago. Teve época que íamos lá todos os dias. Lembro de olhar pra praça da alimentação meio enjoada, porque já tinha comido de tudo. Aí quando tomamos juízo e resolvemos comer mais em casa, o Luiz é que passou a cozinhar – e ainda cozinha, quando estamos os dois. Ele é daquelas pessoas que faz um sanduichinho qualquer ficar saboroso. Tudo isso fez com que eu ficasse igual criança, que vê a geladeira cheia e fica faminta caso alguém não faça comida pra ela. Só recentemente eu passei a ter que comer em casa, sozinha, e cansei da vida de pacotes instantâneos. Passei a pesquisar receitas. Sei fazer umas sopas e umas coisinhas simples que eu gosto. Só então percebi que cozinhar dá uma liberdade incrível. Se bate uma fome repentina eu já sei o que fazer. Acho mágico pegar coisas cruas, juntar, colocar na panela e ter algo totalmente novo e quentinho. Hoje tenho o maior respeito e uma pontinha de inveja de cozinheiros.

O céu de estrelas

Na casa da esquerda tinha três crianças e eu passava mais tempo lá do que dentro da minha própria casa. A mais velha tinha a minha idade e o meu irmão mais novo brincava com o mais novo deles. Dona Ana Lúcia devia gostar muito de decorar festas infantis, porque cada uma era diferente da outra. Uma era de urso, outra era de herói, outra era sobre natureza. A mesa forrada de papel crepom, e os doces espalhados de várias maneiras. Lembro de uma árvore com docinhos pendurados que me pareceu mágica. Cada festa tinha alguma inovação. Eu nem comia direito no dia para guardar a fome. No final da tarde nós começávamos a chegar, com roupas limpas e o cabelo lambido ainda molhado. Tentávamos nos manter assim, civilizados, até a hora dos parabéns. Depois disso era um deus-nos-acuda, com todo mundo querendo provar tudo: brigadeiro, cajuzinho, cachorro-quente, pão de queijo (que lá era diferente, era um pãozinho macio com queijo ralado em cima), beijinho, coxinha, olho-de-sogra… Depois tinha as músicas, as brincadeiras, crianças correndo enlouquecidas pelo jardim. Quando todos estavam se divertindo, eu aproveitava um momento de distração pra fugir de mansinho com um copo cheio de refrigerante. Não era uma grande fuga – era só ir para frente da casa e encostar num carro estacionado. Eu ficava observando as estrelas e bebia devagarzinho meu refrigerante. O barulho da festa ao fundo e aquela solidão voluntária me davam uma sensação deliciosa.

Não demorou muito para os outros descobrirem que eu fugia e para onde fugia. Então vinham me buscar, me punham de novo nas brincadeiras. Isso só tornava aqueles minutos ainda mais preciosos.

Generosidade

Conheço quem tenha viajado para Santa Catarina na época daquela tragédia toda. Em troca da sua presença e boa vontade, ela ganhou muitas bençãos, muitos olhares agradecidos, muita emoção e a crença de que é uma pessoa melhor do que as outras, tanto dos catarinenses que ajudou como das pessoas que ouviram suas histórias. Pois eu digo que esse tipo de generosidade é a mais fácil de ser praticada. Claro que ela tem valor, ela tem muito valor, mas ainda assim ela é fácil. Não é algo abstrato como doar sangue, que vivemos apenas uma agulhada no braço e vamos embora. Olhar nos olhos de alguém que precisa muito, saber que fez diferença na vida daquela pessoa em especial é muito forte. A recompensa já está ali.

Difícil de verdade, muito difícil, é ajudar conhecidos. Não é mais alguém que você nunca verá, que só entrou na sua vida como coitadinho. O difícil é ser generoso com aqueles cujos defeitos conhecemos bem – parentes, vizinhos, colegas de trabalho. Difícil é ser generoso a ponto de ajudar quem está melhor do que você. Sim, é possível ajudar até quem está melhor, porque todo mundo tem alguma coisa a oferecer. Nem que essa coisa seja apenas uma informação. Se o outro tiver tudo o que você gostaria – casamento feliz, profissão boa, casa grande -, mas não o que você tem – você consegue doar? É difícil ser generoso com gente linda: o elogio pro bonitinho que se arrumou sai fácil, enquanto o lindo não vai ouvir pra não se achar demais. Quero ver ser generoso com gente sorridente, simpática e saudável. Até mesmo os felizes podem precisar de ajuda. Mas o gostoso é ajudar na tragédia.

Discão

Se as novas gerações não imaginam a conexão entre um lápis e uma fita cassete, imagine se eles sabem que nós ouvíamos discos infantis. Os discos infantis quase sempre eram coloridos, pequenos e contavam histórias. Ouvir discos exige um cuidado todo especial, porque a agulha precisa ser colocada com toda delicadeza. Qualquer movimento em falso – na hora de tirar da embalagem, de manusear, de trocar de faixa – pode arranhar, e um arranhão é pra sempre. Isso nos tornava dependentes dos adultos para ouvir nossas histórias. Minha mãe dizia que os discos coloridos estragavam a agulha do toca discos, que era feita de diamante, a pedra mais cara do mundo. Claro que eu não queria que ela tivesse um prejuízo tão grande de ter que comprar outra agulha, com ponta de diamante, para ouvir um disco colorido, né? Só quando conversei a respeito disso com o Luiz, e ele me disse que nunca ouviu falar de discos coloridos estragarem o toca discos, que eu comecei a desconfiar que minha mãe tinha mentido para mim…

O único disco colorido da qual eu me lembro bem é do Discão, talvez por ele ter aparecido em casa quando já não éramos tão crianças. Ele era verde. A coleção (da qual só tínhamos esse) se chamava Discão porque ele tinha o tamanho de um disco normal. Na capa havia a figura de um bebê tentando encaixá-lo numa embalagem pequena. Acho que pertenceu aos meus primos e era muito velho. A história começava com um rapaz que, sozinho, havia acampado às margens de um poço. Uns bandidos o assaltam e o jogam no poço, com barraca e tudo. Para não morrer, ele usa a barraca como pára-quedas e, à medida que foi caindo, ouve a seguinte música crescer:

Lá vem ele, vem caindo
lá vem ele, vem caindo
lá vem ele, vem caindo
lá vem ele, vem caindo
Zás trás, zás trás, cai direito meu rapaz
Zás trás, zás trás, cai direito meu rapaz

Quando cai, são e salvo, ele é recepcionado por um grupo de anões. Eles estava presos há séculos e dizia a lenda que um dia alguém os salvaria. Muitos já haviam caido, mas só ele tinha sobrevivido à queda, logo o sujeito da lenda era ele. Quem os prendia era um grupo de gigantes, que ficava perto da saída do poço o dia inteiro, jogando Escravos de Jó. O rapaz acaba salvando os anões, tal como previra a lenda: ele tem a idéia de fazerem uma bomba em formato de pedra, que foi substituída por uma das pedras dos gigantes. Tudo explode durante o jogo- pedra, porta e gigantes – e assim eles se salvam.

Um dos pontos altos do disco, para nós, era o momento que a princesa é apresentada. O rapaz não estava muito a fim de salvar ninguém. Ele muda de idéia ao saber que os anões têm uma linda princesa, que era “grande como ele”. Para conquistar seu amor que ele se propõe a ajudar os anões. A música era tão deprimente que ficava engraçada. Ela mostra de maneira clara o que é uma princesa no sentido mais tradicional: uma mulher que não faz nada, que é totalmente dependente de um homem para tirá-la da situação que se encontra.

Sou tão triste, tão sozinha
levo à vida a suspirar
esperando por alguém
que há de vir e me salvar

Eu sonhei que ele viera
e cheguei a acreditar
enganei-me, que tristeza
quem há de vir me salvar?

Minha música de fundo de poço favorita.

Silêncio significativo

Suponha que você mande, num MSN da vida, o seguinte recado

– Oi, eu estou no trabalho e estou ocupada agora. Depois nos falamos, ok?

para um amigo que acabou de puxar assunto. E que esse amigo não dissesse mais nada. Se você imagina que está tudo bem, que ele simplesmente saiu do computador ou se envolveu com outro assunto, essa é uma relação leve.

Com outros, você terá a maior impressão, ou até mesmo a certeza, de que criou um problema. Você se perguntará se o amigo não interpretou isso como uma desculpa ou como falta de consideração. Pode ser que você tenha estragado o dia de alguém. Quando algo pequeno gera tantas dúvidas e culpa é porque é uma relação pesada.

Algumas pessoas podem ser adoráveis, verdadeiras, cheias de qualidades E pesadas. Quando vão embora da nossa vida, causam mais alívio que saudade.

Sonho

Eu amava estudar piano, ou pelo menos achava que amava. O parco salário que eu recebia pelo estágio ia quase todo para isso. Mesmo inconfessável, meu sonho era ser quase uma concertista, eu queria ser profissional. Eu adorava partituras e todos os símbolos que as lembrassem; gostava de sentar na frente do piano, gostava da sensação dos meus dedos nas teclas. Eu amava – e como amava! – ser pianista. Só que as aulas, em si, me deixavam tensa. A minha professora era a dona da escola, por isso era comum aulas serem transferidas, ou depois de passar uma semana fora o meu horário não existir mais. Se fosse contar rigorosamente, ela me devia alguns meses de aula. A tensão não era porque ela fossem má, e sim porque eu ficava muito nervosa. Ficava nervosa em tocar pra alguém, com músicas novas, com Bartók, com andantes, com meu próprio desempenho, com tudo e qualquer coisa. Eu era mais feliz como pianista quando estava fora do piano.

Foi quando comecei a dançar que eu entendi o que me acontecia. Das várias que sonhavam em serem bailarinas e não gostavam das aulas, o caso mais exemplar era o da Rosana. Ela já era mãe e tinha começado a dançar na igreja. Era uma daquelas pessoas que não teve oportunidade de fazer ballet na infância. O seu perfil do orkut era cheio de fotos de bailarinas, com pernas no céu e legendas “eu chego lá”. Todas as pessoas à sua volta sabiam desse seu sonho. Quando estudamos juntas, ela pretendia fazer vestibular pra dança. Só que durante as aulas, era ruim. Pra começar, ela era bem encurtada e no ballet alongamento faz toda diferença. Assim como as suas crenças, ela tinha movimentos muito rígidos. Faltava graça, faltava dança no que ela fazia. Perceber isso a deixava frustrada – aí ela se cobrava e ficava mais rígida ainda. A escola trocou vários professores no nosso horário e ela acabou indo embora por causa disso. Porque ela sentia muita vergonha de dançar na frente de um estranho. E porque cada professor tem uma metodologia própria e ela não lidava bem com essas mudanças.

Mesmo quando familiarizada com o professor, a Rosana faltava muito. Quando voltava, era sempre um excelente motivo, coisas inescapáveis aconteciam quando ela estava a caminho no ballet. Um dia ela me falou que não foi pra aula porque precisaram da ajuda dela na igreja, pra conversar com um casal em crise. Quando já estava tarde demais pra ela vir, a pessoa ajudada disse “Puxa, você está perdendo aula pra me ajudar. Eu sei que é o seu sonho, o quanto a aula é importante pra você”. Ela respondeu modestamente que aquilo não era nada… E não era mesmo. Nem sempre nossa realidade está à altura dos nossos sonhos.

Casamento e regras

Eu adorava ouvir confidências e hoje detesto. Se for pra ouvir falar de uma relacionamento a dois, pior ainda. Porque é muito difícil não ficar com raiva. A quantidade de marido ou esposa que saí, não dá explicações, faz escândalo, trai ou prende em casa não é brincadeira. Só que raiva ainda maior é a de perceber que quem te conta isso está disposto a ficar sem explicações, conter o choro, fingir que não vê e ficar em casa. O ex-cunhado do Luiz não era do tipo que fazia extremos, mas ele tinha sua dose de machismo e não queria que minha cunhada fizesse um monte de coisas. Só que ela fazia. Quando eles se separaram, ele saiu dizendo que foi a minha sogra quem estragou o casamento deles. “Um absurdo, minha mãe sempre o tratou bem”, dizia o Luiz. Só que eu acho que foi ela estragou sim.

Ela estragou por ser um olhar de fora, que procurava dar uma voz racional e senso comum ao casamento dos dois. Hoje, no meu casamento, percebo que regras comuns não funcionam. Cada casal cria sua própria regra. Eu não sei dirigir. Só isso já é, pra muitos, o cúmulo – uma mulher em pleno séc. XXI não aprender a dirigir. Temos um carro, que apenas o Luiz dirige. Programamos as coisas de maneira e ele me dar muitas caronas. Se me perguntassem se eu acho que todas as mulheres casadas não devem dirigir e sim receber carona dos seus maridos, é claro que eu diria que não. Uma mulher não é obrigada a dirigir, nem a não dirigir. Quem o vê me esperando pode acusá-lo de machismo, dizer que ele é o tipo de homem que não deixa a mulher dar um passo sozinha. Ou eu posso ser acusada de me encostar, de fazer do meu marido um motorista particular. Independente do que possam dizer, funciona. Num casamento, absurdo ou não, machista ou não, é o que importa.

Russas malditas

Quem achou este video foi a minha amiga Viviane, e foi ela quem o apelidou de Russas Malditas. Achei totalmente apropriado. Como se não bastasse uma mulher ser lindamente russa, ainda dançar flamenco desse jeito. É coisa demais pra um ser humano só.
Elas dançam uma bulería. A bulería vem de burla, burlar e tem um caráter mais solto, de brincadeira. Os passos que elas fazem não são complicados, não há giros ou sapateados excepcionais. O que é bastante atraente é a qualidade do movimento de todas as bailarinas, seus braços e troncos precisos e femininos. São lindas. Ver esse video me faz ter vontade de aprender flamenco e… opa!

Rejuvelhecer

Eu acreditava seriamente que não envelheceria. Como se envelhecer fosse um demérito, uma maneira de encarar a vida. Eu, por ter um temperamento jovem – arrojada, aventureira, fora do convencional – deteria a marcha do tempo. Meu espírito triunfaria sobre o meu corpo e eu seria como uma Pietá de Michelangelo. Minha teoria se mostrou falha em todos os pontos – não sou eternamente jovem por dentro e nem por fora. Quando acordo, a primeira coisa que o meu rosto me diz é que não sou mais jovem. Não pela quantidade de rugas, que ainda não tenho, mas pela qualidade da pele. Na adolescência, minha pele era sempre elogida por ser luminosa, saudável, clarinha, sem manchas. Esses elogios foram rareando e hoje não os ouço mais. Surgiram olheiras que eu não tinha, nunca, a não ser se eu passasse a noite em claro. Algumas partes ficaram mais escuras, umas pintas… Antes, não fazia a menor diferença se a luz era fria, quente, cor de rosa ou hidropônica. Agora, posso ser linda ou manchada, tudo do ambiente.

Só que ao contrário do que eu esperava, não sou um espírito jovem trancado num corpo que envelhece. E não é a passagem dos anos que torna meu espírito mais sábio – é o envelhecimento do meu corpo que tem me levado à maturidade. Se meu corpo não se cansasse mais fácil, eu continuaria abusando dele. Eu continuaria comendo seis pãezinhos por dia, não obedeceria horários, pularia noites de sono, faria de tudo com a segurança de que tudo continuaria bem. Eu continuaria olhando os mais velhos – suas rugas, sua lentidão – como se eles fossem uns fracos. Eu acho que a prepotência da juventude tem tudo a ver como sua beleza, com a potência de um corpo que pode ser fortalecido e alongado, que quebra e se regenera fácil. Meu corpo começa a descer a curva e obriga minha alma a mudar também. O ritmo mais lento dele me fez frear meus impulsos, o cansaço dele me fez eleger prioridades, a fragilidade dele me fez ser cuidadosa. Não dá pra ser a mesma pessoa – ou, pelo menos, é um convite enfático a não ser a mesma pessoa. Acho que a mente sem o corpo viveria uma egotrip perpétua. É o corpo quem nos obriga a olhar para a realidade. Ouso dizer que insistir numa mente jovem é o que nos deixa doentes.

Minha culpa, minha máxima culpa

Nem culpo quem me ofende. O inimigo, chato ou invejoso declarado já fazer o maior favor possível ao deixar as coisas as claras. Mais favor do que isso, só se morresse. Então de certas pessoas você sabe que não pode esperar nada positivo. Que tudo que ela disser ou fizer pode ser dividido em dois grupos: coisas neutras ou coisas com o propósito de te magoar. E como as duas coisas estão sempre misturadas, como é fácil confundir uma com a outra, pra achar o ruim é preciso olhar e colocar na balança. E é nessa parte que eu digo que é minha culpa, minha máxima culpa. Porque não é pra ir lá olhar. Não é pra dar importância, pra passar devagarzinho mostrando que tem. Não é pra olhar de soslaio, pra mostrar como se fosse coincidência ou dar um jeito de chegar aos ouvidos. Mesmo quando só os deuses estão vendo, não é pra fuxicar o perfil da pessoa. Se fui e olhei até achar, é porque consegui o que estava procurando. Existe uma comunicação invisível entre quem odeia e quem é odiado, e todas essas coisas fazem com que o laço se mantenha. É pra amar a tranquilidade e se negar.

Peninha

Modelo sempre simbolizou, pra mim, a mais burra das profissões. Bastava ser bonita, andar e parar. O America´s Next Top Model me mostrou que até pra ser modelo é preciso empenho e talento. Se elas não sabem o que fazer, como se colocar e interpretar um personagem, a mágica não acontece. Colocam as concorrentes com bichos nojentos, sobre passarelas móveis, roupas desconfortáveis e pra todo tipo de situação elas devem transmitir beleza e segurança. No programa fica muito claro que beleza de modelo e beleza de vida real nem sempre são a mesma coisa. Poucas candidatas são mulheres que nós consideraríamos maravilhosas e que cresceram se achando bonitas. São altas, magricelas e a maioria é sem graça. A mulher pode ser feia e desengonçada na vida real e fotografar muito bem. É o caso da Ann.

Ann tem quase 1,90. Orelhas de abano. Ossos saltados. Como toda moça que cresceu complexada, anda encurvada, se escondendo, fala baixo. Ela vive falando do quanto sempre sofreu por ser muito alta, que sempre foi esquisita, que os meninos nunca olhavam para ela. Aí essa criatura vai num reality de modelos e ganha o primeiro lugar cinco vezes seguidas, a primeira (e provavelmente a única) a conseguir essa proeza. As colegas, loucas e se sentindo ameaçadas. O juri, completamente fascinado com o talento e versatilidade da moça. Só que ela não funciona se não for em fotos. Quando tem que andar, que lidar com gente, que estar ao lado de um modelo, ela desaba. Começa a chorar, fala dos complexos, do quanto sempre sofreu por ser alta, que sempre foi esquisita e aquela história toda.

Antes, eu torcia muito pela Ann. Me identificava com as inseguranças, com a dificuldade em aceitar o que estava acontecendo. Só que mais de um mês já se passou, todos já elogiaram a beleza e o talento dela, tanta coisa aconteceu, e ela continua chorando, nessas de cresci-infeliz-e-desajeitada. Apresentam a ela um mundo diferente, as oportunidades batendo à porta, e pode ser que ela perca tudo porque não abandona essa postura. Por mais que seja difícil, e que não se mude da noite para o dia, o que mais ela quer? Nessa de precisar de mais tempo, dá pra passar a vida inteira se queixando. Só que as oportunidades não esperam a vida inteira. É isso que dá raiva em quem se faz de coitado: não é que não apareçam boas oportunidades e sim que as oportunidades não se realizam porque eles preferem chorar pelo passado.

Os comuns

Toda escola acaba formando o seu grupo profissional; ou nasce a partir do trabalho de alguns, que mais tarde incorporam seus próprios alunos. Receber um convite desses é uma honra. Todo mundo quer fazer parte da Companhia, não apenas da Escola. É mais do que ser alçado à condição de profissional ou ser pago para dançar – ser da Companhia é um “cheguei lá”, um atestado de capacidade e talento. Tem a ver com o tempo de estudo – geralmente os que começam a dançar cedo já podem crescer bailarinos. Mas existem também as exceções, pessoas que se destacam com poucos anos, que desde sempre mostram uma facilidade e uma expressão fora do comum. É isso que todo iniciante ambicioso quer para si: se destacar rapidamente, queimar etapas.

Nem todos os alunos são assim. Tem quem se sinta feliz em aprender, apenas em estar lá, em se ver fazendo algo que antes não parecia ser capaz. Os que querem se destacar, em algum momento, decidiram que levariam tudo à sério. É uma decisão que muda tudo, por dentro e por fora, e se torna uma forma de vida. Viver assim é estar imerso em fúria. Leva a horas de estudos silenciosos em casa, a fazer aulas extras, à exigir mais de si mesmo. Por isso tantos estimulam esse sentimento. Ao mesmo tempo, cada colega de turma é um concorrente em potencial. Cada vez que alguém se destaca, ou ganha um elogio, ou consegue algum benefício, se torna um concorrente. Quem já viu ou já viveu isso, sabe reconhecer esses sentimentos só de olhar.

Claro que eu estou, também, falando de mim. Ou estava. As coisas adquiriram outra dimensão pra mim à medida que conheci as história de outras pessoas que dançam comigo. Um dançou num grupo que se desfez, e nessa decepção parou de dançar também. Outra dançou durante a adolescência e largou pra fazer faculdade. Teve que esperar terminar o curso, se formar, arranjar emprego e ser dona do próprio nariz pra finalmente voltar. Muitos precisam se afastar por causa dos filhos, por problemas de saúde dentro da família, ou ao entrarem em fases diferentes. Em comum, o fato de amar dançar e nem sempre ter ajuda das circunstâncias.

Foram eles que me fizeram perceber que não deixa de ser injusto esse discurso de talento. Ser destaque, o fenômeno, aquele que entra e logo vira solista, é muito fácil. É uma combinação feliz de fatores, tanto da parte pessoal como de todo universo. É ter dinheiro, tempo, transporte e saúde pra frequentar as aulas. Amor de verdade, um louco amor, possui aquele que continua sem que ninguém faça questão que ele continue. Garra mesmo tem aquele que, apesar de todas as dificuldades, sempre volta. Mesmo sem virar solista, sem nunca entrar para Companhia. Os destaques enchem os olhos, mas são os comuns que fazem o show continuar. Muitas palmas para eles.