Se não dá é porque não dá

Agora deu uma parada, mas minha popularidade me levou a receber muitos convites de viagem ao exterior. Queriam ir comigo para o México, conhecer a casa da Frida pessoalmente. Querem ainda que eu vá para a Feria de Sevilla e fazer aula de flamenco lá na fonte. Isso sem falar em conhecer a Europa inteira. Claro que quem me convidou pra essas coisas só disse “Vamos!” e não quer me pagar nada. Ou seja, me deram a idéia e eu que me vire com todos os outros gastos. Aí quando eu digo que não tenho como, nego não acredita. Que eu faça em vezes, que venda meus produtos (portas-castanholas de quinze reais?) e economize. Gosto da maneira como a minha vida parece simples aos olhos dos outros. Como não sou obrigada a confessar meus gastos e mostrar minhas contas, agora eu só concordo. Se cada um só ouve o que quer, ano que vem vou a Portugal visitar a Borboleta, passarei na Espanha para comprar sapato, de lá sigo para Paris…

Quase mesária

Eu tirei o título aos dezoito, e nem sabia que quem tirava o título estava na lista negra de ser mesário. Recebi a INTIMAÇÃO de letras garrafais com surpresa. Lembro que ela começava com meu nome e dizia que eu estava intimada a ser mesária nas próximas eleições e que se eu não comparecesse eu sofreria uma série de consequencias. Eu não poderia fazer concurso público, tirar passaporte, seria maltratada se entrasse no SUS e não me entregariam o prêmio caso eu acertasse na megasena. Eu não pretendia fazer nenhuma das coisas listadas, mas vai que. Pedir pra minha tia que trabalhava no TRE mexer os pauzinhos pra mim estava fora de cogitação. Minha única saída era atender.

Eu tinha uns vinte dias pra ir ao TRE. Um amigo advogado disse pra eu chegar lá e me recusar. Eu deveria dizer que tenho mãe doente, que sou arrimo de família, fazer um cena. Aí eu fiquei com dois problemas, a intimação em si e ter que fazer algo contra a minha natureza. Não conseguia me imaginar chegando numa repartição pública e fazendo escândalo por algo que nem era verdade. A coisa me atormentava de tal maneira e era tão sem saída que me enrolei o quanto pude. Fui no TRE no último dia, quase no fim do expediente. Pelo caminho já dava pra perceber o clima, com jovens de passos duros, pessoas no elevador reclamando que não aceitavam atestados de chefes ou de médicos, queixas de que eles eram inflexíveis. 

Depois desse prenúncio, cheguei lá e mostrei quem é que manda: sentei na minha cadeira, entreguei meus documentos e fiquei quieta. A moça procurou o número da minha zona eleitoral e soltou alguma interjeição que eu não entendi o que era.

– O que foi, algum problema?
– É que nós já preenchemos a sua zona. Você vai ser reserva, caso alguém falte a gente te chama.
Depois daquelas ameaças todas? Duvido.

– Então quer dizer que eu não vou trabalhar? Que alívio, já estava pronta pra chorar minhas pitangas pra vocês.

O funcionário que estava em outra mesa falou:

– Minha filha, isso daqui é o muro das lamentações. (para a funcionária) Sabe aquela gordinha arrogante que acabou de sair daqui? Coloca ela, eu faço questão.

Camaleões

Eu tenho medo de gente que se adapta ao jeito dos outros para se aproximar. Perto de festeiros, são festeiros também, e as conversas giram em torno de baladas e aventuras. Quando perto de pessoas reservadas, se mostram anti-sociais e não sentem o menor desejo de ter outros amigos. Acho que na maioria das vezes eles nem fazem isso de maneira consciente, acham que estão apenas entrando no assunto em pauta. Só que é mais do que isso, é como se essas pessoas se transformassem, como camaleões. Eu tive um namorado que uma vez me disse que aprendeu muita coisa com as mulheres sobre conquista. Pedi pra ele me explicar e ele deu um exemplo mais ou menos assim: “se sei que a mulher gosta de Meg Ryan, já sei que ela é do tipo mais romântica, então levo pra ver um filme, um programa calmo. Se ela admira a Madonna, concluo que ela é mais radical e levo pra uma balada, um show de rock…” 

Tudo muito razoável e racional, até mesmo lógico, vocês dirão. Só que minha experiência com pessoas camaleônicas é de um belo dia, muitos anos de amizade depois, flagrar a criatura agindo de maneira totalmente o contrária a tudo o que a gente conversou. É como ter um desagradável momento de iluminação – tudo o que eu pensava a respeito dela, todas as afinidades e posturas diante da vida que eu achei que compartilhávamos podem ter sido mentiras, um espelho do que eu gostaria de ouvir. O pior é que depois dessa decepção e o esfriamento da amizade, eu não encontro uma explicação razoável pra dar. Não tem como dizer “quando você espalhou aquele segredo eu me dei conta de que você não é quem eu achava que você era”. Porque na verdade é algo profundo, simbólico, difícil de explicar. Não é o gesto em si, e sim o que há na essência dele. Por falar em não ser, anos depois vi meu ex no orkut, aquele que se adaptava na conquista. Foi só quando ele escreveu no mural de alguém: “mate a minha curiosidade: ser tão burro dói?” que eu descobri que aquele homem idealista e extremamente gentil era apenas a maneira como ele me espelhava.

Namorado

Era a época da lambada. Tinha uma academia no bairro e às sextas a filha ia lá. Ela tinha treze anos mas já era alta, uma mulher feita, e passava tranquilamente por dezesseis. Um dia ela voltou da aula de lambada namorando o professor. Só que o professor tinha vinte e cinco. Diziam que ele era um cara legal, amigo de todo mundo, mas o que importa – ela só tinha treze anos! Os pais passaram a noite em claro, discutindo o que fazer. A vontade era proibir, mas como evitar que a menina namorasse escondido? Eles não tinham como controlar cada saída do colégio, cada ida ao shopping com as amigas. Pior ainda: a emoção de namorar escondido, de contrariar os pais. Pediram para conhecer o cujo. Ele foi e prometeu respeitar a filha deles, aquela coisa toda. A solução foi dar à filha uma overdose de namorado. Ele era convidado para cada almoço, ida ao cinema, jantar, festa de família. De tanto torná-lo da casa, eles acabaram se apegando a ele, que realmente era um cara legal. Quem não gostou foi a filha, que se viu subitamente casada. Eles perceberam que ela começou a se enrolar antes dos encontros ou tentava envolver as amigas. Um mês depois dessa campanha intensa, o namoro terminou. Uma pena.

Sono

Esse negócio de tomar café com coca-cola pra varar a noite estudando nunca deu certo comigo. Quando me dava sono eu tinha que largar as coisas do jeito que estavam e dormir. Eu não conseguia me concentrar, as letras embaralhavam, no dia seguinte eu não tinha guardado nada. Insônia é um dos problemas que eu não tenho. Em compensação, preciso de muitas horas de sono, e posso passar dias a fio sonolenta como punição por uma madrugada acordada. Não precisa ser bom de conta pra saber que se fosse possível viver sem dormir, ou dormindo muito pouco, o dia renderia muito mais. Eu nem ao menos tentei, mas já soube do caso de gente que decidiu que passaria a dormir 4 ou 6 horas por noite. Se eu não me engano, Chico Anysio dormia mais ou menos isso. Ele não sentia necessidade de dormir mais. Aí você começa a ficar com inveja, e achar que o te impede de escrever livro, estrear peça e viajar para Nova York ao mesmo tempo são as horas perdidas inconsciente na cama.

Conheci dois casos de decididos a dormir menos. Eles partiam do mesmo método – a cada noite diminuíam uma hora de sono. Funcionava bem no primeiro dia, ficavam ótimos. No segundo, normal. No terceiro, quem sabe, ainda produtivos. Só que a partir do quarto eles começavam a ter problemas de concentração. As olheiras ficavam profundas, ficavam irritadiços, a cabeça pesava. Os amigos mandavam dormir um pouco e eles insistiam com a idéia de que estavam ótimos. No dois casos, o experimento terminou em uma semana, quando eles sentaram pra fazer alguma coisa e simplesmente apagaram. Só que um deles não estava sozinho – ele estava viajando com outros professores, hospedado num hotel, e num determinado momento pediu pra ir rapidinho até o quarto pegar um casaco, ou um livro. Ele acordou na cadeira mais de doze horas depois, sem ter a menor idéia de como foi parar lá. Os professores, depois de passarem horas esperando e ninguém atender ao telefone no quarto, ficaram convencidos de que aquele foi algum tipo de ofensa e não falaram mais com ele.

Medos infantis

A Rita e a Tina começaram numas de listar os medos infantis e comecei a pensar no assunto. Lembrei do meu pai acordando cedo para fazer a feira. Eu ainda ficava no colo. O final do trajeto era a ida ao açougue e nesse momento eu sempre ficava trancada no carro, porque tinha medo de entrar lá. O cheiro, as carnes penduradas, adivinhar que parte de um ser vivo é aquela… Com o tempo, o medo se transformou em desconforto, que tenho até hoje. Quando minha mãe tentou me fazer aprender a cozinhar os meus pratos carnívoros preferidos, a visão da carne e sentir ela gelada sempre me davam tal horror que eu era incapaz de comer depois. Isso me faz pensar que deixar de comer carne se tornasse uma necessidade, e não uma escolha, se eu tivesse esperado mais tempo.

Na minha infância o Globo Repórter não era esse programa chato que passa coisas sobre bichos e dicas de saúde. Ele tinha grandes reportagens, coisas fortes, denúncias, o mundo cão. Na chamada sempre apareciam coisas do tipo e eu desenvolvi um certo medo da musiquinha do programa. Bastava tocar a musiquinha pra eu ter que sair da sala. Um outro medo televisivo foi gerado pelos programas que falavam das Profecias de Nostradamus. Eles provavam por A mais B que naquelas coisas sem sentido ele havia predito a morte de reis, Hitler (chamado de Hister, algo assim), a energia atômica e até mesmo a violação do próprio túmulo! E Nostradamus dizia que o mundo acabaria em breve, antes mesmo de eu virar adulta. Quem sabe o mundo no futuro fosse igual Mad Max. Hoje Nostradamus está fora de moda, mas coloquemos no seu lugar o Calendário Maia, o Código da Bíblia, as mudanças astronômicas de 2012 e não vai parecer tão sem sentido assim. 

Tem um outro medo datado, que é um medo literário. Eu tinha medo de dar ponta numa piscina e ficar paralítica. Tudo por causa do Feliz Ano Velho, do Marcelo Rubens Paiva, que foi lançado naquela época. Eu nem ao mesmo li o livro, foi minha mãe que me contou. Assim como também foi ela que disse que eu poderia quebrar o pescoço se desse cambalhotas e também poderia ficar paralítica. O engraçado é que não fiz essas coisas quando era criança e fui obrigada a aprender depois de adulta – cambalhotas por causa de um espetáculo e pular na piscina por causa da natação. Mas a verdade é que falamos dos medos infantis porque é mais fácil. E o que dizer dos muitos medos que a gente tem quando adulto? Eu nunca sei se desenvolvi certos medos ou se eles sempre estiveram lá. O medo de altura, por exemplo. Mas isso já é outro assunto…

História curtinha de ingratidão canina

Estava frio e chovendo quando eu cheguei em casa. Esse inverno culminou de ter dias que já amanheciam assim. Eu estava de guarda-chuva, capa de chuva e ainda assim estava molhada. E cansada. E faminta. A Dúnia, como sempre, ficou na parte coberta da garagem me esperando. Além de não gostar de chuva ela tem medo de guarda-chuva. Eu abri o cadeado de cima, me agachei equilibrando bolsa e guarda-chuva pra abrir o cadeado debaixo, abri o portão, entrei, fechei o cadeado de cima e o cadeado de baixo, fui pra garagem fazer carinho nela. Meu desejo era entrar em casa e me livrar de todo aquele peso e roupa molhada, ir no banheiro e comer alguma coisa. Ao invés disso, peguei o potinho de água da Dúnia que estava vazio e fui até a torneira que fica junto do portão. Enquanto eu estava lá, de capa, de guarda-chuva e de potinho debaixo da torneira, a Dúnia lá da garagem começou a uivar pra mim, de impaciência. Foi por muito pouco que eu não peguei aquela água e derrubei todinha nela.

As velhinhas da hidro

Um amigo uma vez disse:

– Eu decidi parar de andar com gente velha. Quando você anda com gente velha, quando vê está trocando dica de cardiologista. Eu não quero dica de médico, quero que me digam onde comprar o melhor tênis.

Lembro dele cada vez que saiu da minha aula e encontro as velhinhas da hidro. Eu me troco no curto espaço de tempo que elas ficam no banheiro esperando o horário da aula delas. Uma delas, inclusive, está sempre sentada embaixo da porta do meu armário quando eu saio do banho. Os papos das velhinhas, na grande maioria das vezes, parecem pautas do programa Bem Estar – um dia o tema é joelho, outro dia é coração, noutro elas falam sobre articulações… Guardarei para sempre a informação de que quem tem diverticulite não pode comer gergelim. Infelizmente pouco do que elas dizem renderia um post interessante. Não tem sabedoria dos mais velhos, não tem receitas caseiras e nem informações do tempo do guaraná de rolha. Quando não estão falando de doença, grande parte da conversa gira em torno dos netos. Elas vivem se avisando mutuamente que enviaram e-mails, o que é meio engraçado. Outra coisa que agora eu sei só por estar no banheiro com elas, é como matar gatos de maneira infalível e natural. Claro que não contarei aqui e nem ao mesmo testarei a eficiência do método.

Apesar dos papos intermináveis sobre doenças, elas me fizeram descobrir qual o grande barato da terceira idade: a teimosia. Pra quem lida com idosos isso é muito difícil, mas pra quem é idoso deve ser uma delícia. Descobri que é impossível obrigar gente mais velha a fazer qualquer coisa que ela não queria de coração. Nem que seja agradar outras pessoas mais velhas. Uma vez elas estavam tentando organizar um encontro, numa quinta à tarde. A novela se arrastou durante mais de um mês. Elas se falavam no banheiro e sempre tinha alguém que não estava, sempre era preciso repetir. Aí organizaram uma lista de e-mails, mas nem todo mundo lia o e-mail. No meio do caminho surgiu a vaquinha para o presente da professora, que iria também. Então fizeram um comunicado e distribuíram entre todas. Quando estavam todas comunicadas, algumas implicaram com a idéia de pagar presente e encontro. Sem falar das que disseram que não iam porque não sabiam chegar lá. Novas discussões. No fim devem ter aparecido umas três velhinhas. As que não queriam não foram nem com promessa de carona.

Esperem só quando eu chegar na terceira idade. Estou doida para usufruir da teimosia que me cabe. Tenho vontade até andar com bengala, só pra poder usá-la como arma.

Sofrimento

Quando meu irmão sofreu o acidente, e eu fiquei meses indo ao hospital, eu me conscientizei do importante trabalho de médicos e enfermeiras, da quantidade de pessoas que são internadas todos os dias, o sofrimento da própria pessoa e da família. Quando acontece uma coisa dessas com quem a gente ama, nossa primeira vontade é passar por cima do mundo pra que ele seja atendido. Só que estar em corredores de hospital faz com que você ouça muito mais histórias, de pessoas que estão há mais tempo, que sofreram mais, que têm mais sequelas e menos recursos. Aí o nosso sofrimento, embora grande, parece mais um sofrimento no mar de sofrimento. Naquela época eu me propus a não perder o vínculo com o hospital que o atendeu – Hospital Evangélico – e queria ser voluntária. Pra que mesmo com o meu irmão já restabelecido, eu não perdesse a lembrança daquele sofrimento.

Não foi o que eu fiz. Cheguei a fazer o curso de voluntária e não continuei por dois grandes motivos. O primeiro eu não conseguiria disfarçar a minha falta de adesão às crenças cristãs – o que me impediria de ser voluntária num hospital evangélico mas que poderia me levar a ser voluntária em outros hospitais. O outro motivo é a maneira como o sofrimento do hospital me afeta. Sou impressionável com sangue, com dor, com tudo. Quem trabalha na área de saúde precisa fazer a separação saudável do que vê no trabalho e do que é a sua vida. Quando quis mergulhar no sofrimento para nunca esquecê-lo, me dei conta de que é preciso deixá-lo de lado. Sabemos que a morte pode vir a qualquer momento, mas é um inferno estar sempre ciente disso. A felicidade tem a ver com uma certa ilusão. Estar com o sofrimento sempre diante de mim apenas tornaria a minha vida mais pesada e o mundo não precisa de mais gente infeliz. É preciso lidar com o sofrimento, mas também é preciso viver o outro lado.

Quem manda

Eu estava naquelas reuniões que tem gente casada, descasada, ajuntada e solteira. Por um motivo que eu não lembro surgiu a história de ser a mulher quem manda em casa. As mulheres falando “quem manda em casa sou eu”, os maridos falando “eu nem me meto”, todo mundo brincando. Só que um desses casais era um daqueles casais tão complicados e doentios que todo mundo nota, e quando surgiu o assunto o cara fez questão de dizer “ela pensa que manda, mas quem manda em casa sou eu”. Ele quis dar uma de fodão, quis dizer que ela não mandava nele pra nada. Tive vontade de dizer que não é em todos os casamentos que a mulher manda em casa, só nos felizes. Deixei pra lá porque aquilo já é uma guerra à dois complicada demais.

Antes que vocês me achem machista, deixa eu explicar a frase. A construção é referência à frase de Nelson Rodrigues: “nem todas as mulheres gostam de apanhar, só as normais”. Não concordo com ela, assim como não concordo com a idéia de que o lar é o reino da mulher, lugar onde ela deve mandar por ser seu lugar, etc. O que eu teria querido dizer é que nos casamentos felizes alguém sempre manda em alguma coisa. E não é sempre o mesmo alguém. A graça de ser um casal é justamente ser uma dupla, de ter um outro que você pode confiar e que é melhor do que você em algumas coisas. Então, nessas coisas, você deixa que ele mande. O que tem mais bom gosto cuida da decoração, o que tem mais jeito com matemática cuida das finanças, o que cozinha melhor cuida da cozinha, e por aí vai. É um voto de confiança e uma maneira de otimizar o dia a dia. Se é cada um por si, ou pior, se um tem que cuidar de si e do outro, não sei qual a graça. Como diria a Fal, não entendo pra quê essas pessoas casam.

Novo horizonte

Nem precisava pensar muito pra saber que a melhor vista da minha casa é a da janela do escritório:

Uma vez fui ao apartamento de uma amiga, e da cozinha ela me mostrou a janela da área de serviço, que dava pra um monte de prédios e no meio deles tinha uma árvore, e dessa árvore dava pra ouvir um passarinho. Ela me apontou o fato como um dos privilégios que ela tinha por morar lá. Na época eu morava num prédio cercado de prédios e aquilo não me disse nada. Depois, quando mudei pra cá, achei tão pobrinho alguém ficar feliz com uma árvore sendo que ter quase uma floresta era muito melhor.

Eu não sabia ao certo porque boa parte da quadra onde eu moro é cheia de árvores. Eu não pensava no assunto – coisas boas são assim, a gente simplesmente as aceita. Sabia que havia uma casa com um terreno grande, que pertencia a uma velhinha, e que depois que ela morreu muita gente passou por lá, fez pequenas modificações e foi embora. Na verdade, todo o terreno pertencia à casa da velhinha. Ela instalou a casinha dela e deixou o resto ao natural. Assim tem sido durante os quase dez anos (como passa rápido!) que eu moro aqui. Eu olho pras árvores todos os dias, então elas são um pouco minhas também. Quando não estou olhando para elas, ouço os passarinhos cantarem – exatamente o que está acontecendo agora. Estou acostumada a olhar para o céu à noite e ver suas sombras, a consultar as folhas pra saber se está ventando e ter uma casa silenciosa grande parte do dia. Meu amor pela minha casa está em grande parte ligado àquelas árvores.

Mesmo sabendo que a expansão do bairro não deixaria um terreno vazio impunemente, eu quis me iludir que ninguém tiraria isso de mim. Ou que seria lento. Estava preparada para o aparecimento gradual de novas casinhas, porque aqui é um bairro de casas. Só que soube que construirão um conjunto de prédios nesse terreno. Ou seja, é uma questão de tempo até arrancarem tudo, sumirem os passarinhos, surgirem as máquinas, um monte de trabalhadores. E quando a maldita construção terminar, centenas de janelas com pessoas e seus carros barulhentos. Meu coração está partido. Agora entendo essas associações de vizinhos retrógradas que se opõem a obras que modernizam os bairros. Não tô nem aí pra novas moradias e progresso, eu quero as minhas árvores. Eu queria poder comprar o terreno pra deixá-lo sempre do jeito que está, igual a velhinha. 

O budismo diz que o que nos causa sofrimento é viver no passado e projetar o futuro, sendo que um não existe mais e o outro não chegou. Tenho que ser grata por ter tido a companhia dessas árvores durante quase dez anos, e não tornar a sua falta um problema. Como as tais obras nem começaram, estou sofrendo com elas aqui, por uma perda que não chegou. Só que saber não é o mesmo que colocar em prática…

Oportunidade

Quando eu era pequena, sonhava em ser nadadora. Meu pai contava com orgulho que na minha primeira aula na piscina, todas as outras crianças pulavam direto para os braços da professora. Quando chegou a minha vez, eu pulei e já saí nadando. Minha relação com a água sempre foi mesmo de muita confiança e muito prazer. Eu deveria ter uns três ou quatro anos quando essa aula aconteceu e meus pais se separaram quando eu tinha cinco. Ser nadadora foi uma vontade que carreguei até o início da adolescência e depois esqueci. Quando ia a Salvador fazia algumas aulas, pegava onda, só que eu moro em Curitiba, então nunca ficou sério. Ora por dinheiro, ora por falta de empenho das outras partes, eu tenho uma lista de coisas que eu desejei e nunca fiz: desenhava e não pude fazer curso de desenho, queria fazer curso de línguas e nem numa turminha de inglês me puseram, morria pra tocar algum instrumento musical. Tem quem lamente que eu não tenha feito ballet na época certa, porque acha que eu teria me saído muito bem. Conhecendo minha história, jamais lamentei a parte do ballet porque sei que seria totalmente fora de cogitação – se não me levaram pra cursos de uma ou duas vezes por semana, imagine algo que exige gasto e presença diária. Na época da faculdade quis fazer especialização em neuropsicologia, em psicologia reichana, em psicodrama, quis ir a vários congressos, e só pude fazer o que era de graça e meio perto de casa. Nessa época, entre um estágio e outro, pude pagar o meu próprio curso de piano, mas a impossibilidade de comprar um piano acabou pesando. Depois de uns cinco anos tive que encarar a realidade e largar.

Não vejo esses cursos que não fiz como um lamento. Os anos de vontades não satisfeitas geraram em mim uma característica que poucos entendem: eu agarro as coisas que quero com unhas e dentes. Não há pessoa mais dedicada do que eu. Eu sou aquela que nunca falta, que assiste a própria aula e a dos outros, que estuda o quanto for preciso até conseguir. Sou faminta. Porque eu sei que ter tempo, dinheiro, saúde e professor juntos na mesma época é uma grande oportunidade, é algo que deve ser aproveitado. Acho um tremendo desperdício quem paga e não aparece. Tenho vontade de pedir que dê a vez dela pra mim, porque eu vou aproveitar de verdade. Só entendo essa situação ao pensar que aquilo não é algo realmente importante ou é uma atividade que ela nem gosta. Exemplo: quem paga academia pra se forçar a ir. O que eu realmente não me passa pela cabeça, o que me tira do sério, é: quem diz que ama e não se dedica. Na dança tem de monte. Diz que ama e some, compra as roupas (ou seja, curte o glamour) mas não estuda, diz pra si e pros outros que aquele é seu sonho e não abre mão de nada. Isso é tudo menos amor.

Canina

Faz parte da minha rotina chegar em casa e cumprimentar as duas cadelas que me esperam: a Dúnia e a Laika, a minha e a vira-lata da vizinha. Ainda mais agora, que sei que é uma questão de dias pra eles se mudarem e eu nunca mais vou ver a bichinha de novo. A Dúnia não gosta e nunca vai gostar dessa história. A Laika fica até gemendo de ansiedade no portão à espera do meu carinho. Tento apresentar as duas, a Laika tenta se aproximar da Dúnia, mas nem olha na cara, chega ao cúmulo de sentar de costas pra outra.

Dia desses estava chegando em casa normalmente, e como de praxe a Laika correu para o portão quando me ouviu chegar. Só que a Dúnia, ao invés de vir também, ficou meio escondida. Eu a chamava e ela parecia querer não vir, ficou se enrolando. Aí eu fiquei preocupada. Quem tem cachorro sabe que eles se escondem quando ficam doentes. Eu já havia visto uma falha de pelo com casquinha no dia anterior. Com muito custo ela veio, de cabeça baixa, e já me deu as costas de novo. Preocupada, eu fechei o portão e fui logo atrás dela. Quando a Dúnia viu que eu fechei o portão e vim atrás dela, ou seja, que não ia mais voltar pra fazer carinho na outra, ficou saltitante como se nada tivesse acontecido.

Até cães podem ser manipuladores.

Entrevista do Rafinha Bastos

Tenho sentimentos ambiguos com relação ao Rafinha Bastos. Eu vi o stand up dele poucas semanas antes da estréia do CQC. Eu ri tanto que às vezes dava vontade de pedir pra ele dar um tempo, pra poder curtir mais as piadas e até respirar. Depois, com mais visibilidade, discordei de muitas posturas e passei a achá-lo arrogante. Ao mesmo tempo, ele sabe se justificar. Não sou uma fã, mas definitivamente não o odeio. Acho que ele fez muita piada sem graça que não merecia a repercussão que teve, em nenhum sentido. Quem sabe eu me interesse pelo que sai sobre ele justamente pra tentar entender o que ele significa.

Na entrevista do Roda Viva falaram muito sobre o episódio da Wanessa, e a grande questão com relação a isso é o porquê dele não ter voltado atrás. Porquê ele não retirou o que disse, porquê ele pediu desculpas ao marido por e-mail mas não em público, porquê ele quis manter algo que provavelmente foi dito impulsivamente. E ele diz que não se arrepende, que achou importante. Danilo Gentilli agora tem talk show, Marco Luque virou garoto propaganda da Claro e ele foi demonizado e demitido. É difícil não achar que ele fez um péssimo negócio. A explicação que Rafinha tem a nos oferecer é: ele achou que era o certo e não conseguiria ficar em paz consigo mesmo se tivesse feito diferente.
Isso eu admiro. Não com relação a essa piada específica, mas com relação à vida. Admiro não agir sempre pelo que é mais conveniente. Penso na professora que pediu demissão pra poder depor a favor da menina que sofreu racismo. Colocar tudo na ponta do lápis, no que é bom para a minha carreira ou no que não me compromete, aponta para soluções tão seguras quanto pobres. De um lado, não dá pra exigir que as pessoas larguem seus empregos em nome do que acreditam; ao mesmo tempo, que coisa mais triste é pensar que manter um emprego justifica tudo. Nem estou falando em ganhar programas de TV ou contratos milionários; na maioria dos casos, nem em perder emprego. Ás vezes o preço é apenas ficar em baixa. O respeito por si e acreditar em algo estão valendo muito pouco hoje. E quando trazem prejuízo material parecem apenas burrice.