Um tiquinho de Don Draper

Jon Hamm, de Mad Men, junto com Christina Hendricks, foram indicados algumas vezes ao Emmy de melhor ator e atriz e nunca ganharam. Eles fazem um trabalho excelente e minha teoria é que eles nunca ganharam e talvez nunca ganhem nada por serem escandalosamente lindos. É duro dar mais presentes a quem já foi intensamente agraciado pela natureza.

Num dado momento, um dos funcionários acusa Don Draper de não ser um gênio, de ter tudo o que tem ser apenas por ser handsome. E, pelamor, como ele tem e como ele é. Vemos Draper sujo, insone, doidão, louco e por mais que ele faça e tente jogar tudo pro alto, as mulheres e o dinheiro o perseguem. Ele não precisa nem se dar ao trabalho de conquistar uma mulher, basta olhar pra ela e voilá. Ele é mimado e desagradável com empregadores e clientes, mas aí tem uma ideia brilhante e todos relevam, porque Draper é Draper. Eu comecei a me perguntar como poderíamos amar tanto um personagem destestavelmente afortunado. Ou alguém aqui pode se dar ao luxo de sumir sem avisar e na volta ter casa, emprego e milhões de dólares à espera?

Aí eu vi uma cena, nessa última temporada, que me mostrou porque amamos Don Draper. Ele estava numa reunião cheia de gente, todo mundo igual, o cara falando um monte de besteiras, e ele olha pela janela e vê um ponto solitário no céu. Ele está mais rico, é um cliente importante, estar lá representa um incremento na carreira dele, mas e daí. Seu orgulho está ferido, ele vendeu sua independência, ele se sente mais um e não gosta de se sentir assim. Ele está no meio de tanta gente e se sente só. Ele gostaria de estar tão livre e no meio do nada como aquele ponto no céu. Quando Don se sente assim, ele se levanta, vai embora, começa a fazer merda. Ou seja, #somostodosDonDraper. Ou não: gostaríamos de levantar e fazer merda e não fazemos. Ficamos lá, tentando nos ajustar à reunião. Draper vai lá e faz a merda que não podemos.

Draper em crise tem o rosto brilhante de quem não tomou banho, não dormiu, ficou em lugares fechados e fumacentos. Draper em crise cura ressaca bebendo mais em cima. Draper em crise desperdiça dinheiro. Draper em crise se envolve com mulheres emocionalmente mais quebradas do que ele e investe na relação. Draper em crise se mete em cada confusão que você se pergunta como é que ele foi parar ali. Ele não encontra nenhuma solução ou moral nos lugares onde vai, simplesmente uma hora passa. Eu te pergunto, eu me pergunto, o que mais é possível fazer quando se está em crise? Diminuir os danos, só isso.

Dois curtas sobre dois

O Inter 2 (Ligeirinho) funciona que é uma beleza, já a linha Interbairros 2 (Convencional), quando atrasa, atrasa muito. Aquele aviso dos horários de ônibus fica parecendo político em campanha. Você chega lá e diz que o próximo ônibus chega em cinco minutos. Quando passa os cinco minutos, aquele horário sumiu e o próximo chega em quinze. E quinze minutos depois, some e chega em vinte. Os horários vão sumindo tanto que é comum ele pular uns quatro ônibus e a gente ficar lá mais de quarenta minutos esperando. Desculpe se estraguei os sonhos de vocês com relação ao sistema de transporte de primeiro mundo de Curitiba. Já foi.

 

Eu vou psicologicamente preparada. Já saio cedo de casa e com livro. Se o ônibus atrasa, leio no ponto; se adianta, leio antes da aula. Outras vezes opto por não ler nada e sim pensar na vida. Mas por mais que eu me prepare, não esteja cansada, não me atrase com o atraso do ônibus, seja tranquila e ame a minha vida, não consigo ficar imune. O ponto vai enchendo, todo mundo suspirando de raiva, as pessoas olhando para os horários, os relógios. É físico, dá pra sentir a irritação preenchendo o ar. Quando o ônibus chega, já estamos todos fartos, com vontade de matar a mãe do motorista. Isso é apenas a contaminação num ponto de ônibus. Pense nisso em relação à vida.

 

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Não vou contar quem ou em que série, para não ter que colocar um alerta de spoiler aqui. Contando apenas o que interessa, a cena era assim: ela estava no trabalho, esperando um cliente. Um homem surge na porta e ela já vai se apresentando: “Oi, Sr. Fulano, eu sou Fulana, Beltrano está atrasado para a reunião mas podemos começar sem ele, etc”. Aí surge Beltrano, com o verdadeiro cliente, e só aí ela percebe que o Homem que entrou pela porta não é quem ela esperava. Aí começa um diálogo onde ela diz que ele que a enganou, ele lhe responde que não poderia se negar a conversar com uma mulher daquelas e lhe convida para sair, comentários, sorrisos, brincadeiras, saída e amor. Uma graça de cena, um verdadeiro balé: cada um respondeu da maneira que sentia que deveria responder momento, e que foi sem querer a melhor resposta para gerar no outro também sua melhor resposta de aproximação. Aí de um encontro curto, que tinha tudo para não gerar nada, as coisas foram crescendo em progressão geométrica de afeto.

 

Saudades disso, desse balé, dessa naturalidade. O oposto disso é conhecer alguém muito bem e ter sempre a sensação de andar sobre o gelo. Querer muito e não conseguir expressar, ou expressar da maneira inadequada. Os gestos ficam por fazer, o outro lhe diz o que te deixa mais inseguro, e você quando responde parece também gerar o que há de pior. Tudo para dar certo e as coisas não andam. Não andam e nem devem andar.

Leitora

Depois de ler o fantástico Labirinto dos Caminhos que se Bifurcam, de Borges, primeiro eu tive que parar um pouco, atordoada de maravilhamento. Depois tive aquela vontade de mostrar pra todo mundo, enfiar o livro na mão dos que eu gosto e mandar ler. Mas antes disso, enquanto estava lendo, eu me deliciei com uma frase em particular e… São muitos maravilhamentos, mas eu quis uma frase porque eu estava lendo em público, perto de uma amiga, e achei que ler trechos inteiros seria tedioso, então a gente fica em busca de algo curtinho mas lindo o suficiente. Li para ela: “Pensei que um homem pode ser inimigo de outros homens, de outros momentos de outros homens, mas não de um país, não de vaga-lumes, palavras, jardins, cursos de água, poentes.” Quando entraram os vaga-lumes, a cara dela foi para “Hã!?” e me deu vontade de não ler mais nada. Ah, as pequenas solidões! Ela, uma artista, que seria capaz de cair no choro com uma dança ou uma música, não entendeu os vaga-lumes, não se sentiu transportada para o concreto, não captou a beleza do trecho, de sentir um país de modo cinestésico e não como um conceito. Enfim, não vou explicar.
Já li brincadeiras sobre os prêmios literários procurarem os livros mais complicados e ilegíveis, que se é complicadíssimo e ninguém entendeu, é porque só pode ser bom. Eu rio, e acho que de um lado procede. Mas de outro, há o lado de que todo mundo fica mais exigente quando degusta demais de uma mesma coisa. Um dia cheguei em Salvador e comi um acarajé qualquer, achando uma delícia estar comendo acarajé. Depois soube que meu irmão não tinha conseguido comer nem a metade, que acarajé horroroso. Apresenta alguém para um coral ou orquestra pela primeira vez e o sujeito vai achar tudo lindo. Mas vai ouvir aquela música várias vezes e em vários lugares diferentes para não começar a sacar que não é tudo igual, que tem melhores e piores, maneiras diferentes no mesmo trecho. Ler é como tudo, a gente vai percebendo mais e ficando exigente.
Mas as solidões são tão pequenas perto da companhia. Há dias em que chego em casa tão cansada – ou que eu não saio de casa e passo o tempo todo sem ter com quem conversar. Ou que me acontecem solidões banais, como esperar demais o ônibus, estar encasacada num dia que esquentou e com os pés apertados num calçado desconfortável. Ou a solidão por ter dito tchau quando se tinha vontade de pedir pra ficar. São dias que a gente precisa de um presente, um elogio, uma boa notícia. Pra mim, ter um bom livro à espera pode ser tudo isso. Para outros, os livros não significam nada. Eles estão do lado de uma piscina e não sabem nadar, têm fome e não gostam daquele prato. É uma pena.

Dois poemas lidos por Marco D’ Almeida ou Eu mudei

Teve um “sarau poético” no Facebook, em que a gente devia publicar poesias durante quatro dias e indicar quatro amigos. Iniciativa simpática, que faz a gente conhecer poemas novos e reler alguns para postar pros amigos. Com isso, relembrei o Cântico Negro, da qual já falei aqui algumas vezes. O Alessandro foi o primeiro que me mostrou, e conhecia a versão da minha orixá preferida, Bethânia. Depois conheci a versão também muito boa de um ator português, Marco D´Almeida.
Não quis postar, achei que não combinava com meu humor em nenhum dos quatro dias. Me toca pensar que um tal de José Régio, de quem nada sei e me parece que seja português, tenha sentido com intensidade algo tão meu. Ou que me parecia tão meu. Ao rever o vídeo, me dei conta do quanto ele me lembrava uma amiga, e quis presenteá-la com ele – porque foi assim que me senti, quando o vi pela primeira vez. Ela gostou, ficou emocionada e, naquele instante, eu senti como se tivesse dado a ela o “meu” poema.

 

Hoje me vejo menos Cântico Negro. Talvez por ter me afastado ou perdoado muita coisa, não sei. Meu momento hoje é muito Mário Cesariny, que postei no terceiro dia do sarau poético:

Curtas sobre menos, muito menos

Não adianta ter os lindos cabelos sedosos, olhos azuis, cintura boa de pegar e até mesmo ter uma sintonia incrível na cama. Você não é irresistível. É, no máximo… uma preferência? Porque existem outros cabelos, olhos e cinturas, que são até de outras cores e formatos, porque a variedade também é atraente. O elemento que torna uma pessoa sexualmente irresistível não está no físico, e sim no coração. Somente a paixão torna uma pessoa única. Sem paixão, basta dizer tchau. O problema é ter culhões pra ouvir do outro lado: tchau.

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Tentar forçar que o outro nos elogie é sempre ruim, mas tem um método que é particularmente muito ruim: o de se desmerecer. Quando a outra pessoa saca, ele é tão chato e óbvio que não dá vontade de elogiar. O silêncio constrangido grita: Carente! Mas às vezes o outro não saca e acaba comprando a ideia, e ao invés de ganhar um elogio a pessoa ganha um complexo novo. Assim: “Eu sempre uso o cabelo comprido porque acho as minhas orelhas feias, elas são meio de abano”. “Sabe que agora que você falou…”

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Eu continuo, e acho cada vez mais, que a vida é leela. Um lacaniano diria: o ser humano está sempre atrás do gozo. O problema é que algumas formas de gozo nos parecem muito bizarras, incompreensíveis. Há gozo no aparente sofrimento, na manutenção de situações difíceis. Quando a pessoa não quer, quando a situação não lhe dá algum tipo de ganho secundário (pra usar um termo psi), ela sai dali o mais rápido que pode. Se a vida, em leela, é um grande parque de diversões, o que fazer se tem quem goste de ficar o tempo todo no trem fantasma.

Agora eu realmente entendi

Vou colar aqui um dos meus posts antigos, de 14/julho de 2011:

 

Coração 


De acordo com o Livro dos Mortos do Antigo Egito, a pessoa que morria passava numa prova para testar sua pureza. Seu coração era colocado numa balança, e na bandeja oposta uma pena. Somente aqueles com o coração mais leve do que de uma pena poderiam usufruir do paraíso. Apesar de nunca termos falado disso, foi uma rosacruz que trouxe essa história de volta à minha lembrança. Quando a conheci, ela já era uma vovó. Essa senhora me falava muito do seu ex-marido, de quase trinta anos atrás, um viúvo que tinha o dobro da idade dela. “Nunca case com um viúvo. Viúvo é resto de defunto”. Ele era um médico importante e ela começou a fazer medicina para estar com ele. O grande amor da vida desse homem tinha sido a sua primeira mulher – eles eram vizinhos, cresceram querendo se casar e ainda crianças escalavam o muro para se desejarem bom dia. Pelas coisas que aquela senhora me dizia, esse médico foi uma das grandes personalidades da sua época, dessas que a história não guardou: inteligente, empreendedor, bondoso, grande especialista na sua área, admirado por todos. Ela o amava, o admirava e se sentia perfeitamente feliz ao lado dele. Ele dava aulas, viajava, coordenava um monte de coisas e era um homem ocupado. Ela, muito compreensiva, nunca viu nada de mau nas ausências do marido. Até que – quando ela estava no final da gravidez – a levaram para conhecer a amante dele. A mulher lhe falou tudo, quem era e o que sabia da intimidade de ambos, mas ela não acreditou. Ela só conseguiu aceitar a verdade quando a mulher lhe mostrou todos os presentes que havia recebido. O marido sempre comprava presentes iguais para as duas. Ela saiu de casa para nunca mais voltar. Quando o filho nasceu, irritada com a demora do ex-marido em registrar a criança, ela pediu ajuda a um amigo e o registrou com o nome dele. 


Eu não entendia como ela podia falar desse homem com tanto carinho. Era um canalha. Por esse grande homem ela nunca mais se casou, não aceitou mais ninguém ao seu lado. Sua maneira de ver a situação me remetia ao Livro dos Mortos: “Quando a gente pesa o nosso coração numa balança, e coloca lado a lado tudo o que de bom e ruim que alguém nos fez, se a parte boa ficar um tantinho assim maior do que a ruim, essa pessoa já é alguém para se lembrar com carinho”. Ela guardou a maneira como ele sorria, como a punha no colo e a acalmava, como dedilhava um sambinha no violão.

 

Eu escrevi essa história por ela ser muito bonita, mas na época não havia realmente entendido como era possível que ela amasse tanto um homem que a traiu. Há muitas mulheres que amam e relevam homens que as atraíram, mas se aquele não era o caso dela, como era possível que tivesse essa saudade. Hoje, só hoje, eu a entendo. É um olhar para trás e ser grato pelo que viveu. É entender o papel que cabe a cada um nas alegrias e nas culpas. É saber que o desentendimento de hoje não invalida o carinho de ontem. É, enfim, é saber olhar com mais amor na nossa própria história.

Lembrando de uma tetra antiga

Nessas alturas, as feministas já desistiram de mim e eu delas. Mas quando eu surgi, digamos assim, umas bem intencionadas me convidavam pra participar de algumas coisas, frequentar os seus blogs. Numa dessas, parei no blog de uma. Hoje não sei e não quero saber o que continua escrevendo, me parece que continua. Naquela época, as postagens seguiam o seguinte moto perpetuo: ela conhecia um homem. Eles iam pra cama. Iam pra cama de novo, num modo mais sexualmente interessante ainda – aparecia de madrugava, puxava cabelo, agarrava ela no banheiro, etc. Pouco tempo depois ou ela ficava doente, ou carente, ou aparecia num bar quando ele estava com os amigos e, pra surpresa dela, ele não se mostrava disposto a fazer chá, ficar somente conversando, largar a namorada ou assumi-la em público. Aí ela ficava down. Postagens e mais postagens reclamando dos homens machistas e da vida. Ela melhorava, arranjava outro e o ciclo recomeçava. O blog se resumia a isso. Ela não falava de rotina, da família, do trabalho, da ida a padaria, de mais nada.

 

Depois de infinitos posts iguais, um dia ela comentou que estava lendo um livro. E esse livro fez com que ela repensasse suas atitudes. Que ela vinha se envolvendo em situações destrutivas, se machucando e que queria parar de fazer isso. Ela queria parar de se envolver com esses homens que não viam o valor que ela tinha. Disse que queria ajuda, que quem sabe procurasse um psicólogo. Nos comentários eu, muito ingenuamente, apoiei. Disse que nada melhor do que descobrir o que estamos fazendo de errado, que esse é o primeiro passo para mudança, que estava torcendo, etc.

 

Dias depois um post neste tom: “um dia desses eu estava mal, e fiz um post muito depressivo. Aí uma pessoa que vocês acham que é esclarecida, que posa de feminista, veio tripudiar em cima de mim, veio me criticar, dizer que eu estava errada, veio toda moralista dizer que não devo me envolver com os homens da forma livre como me envolvo”. E daí pra baixo. Nem preciso dizer o quanto fiquei feliz – feliz em deixar de seguir e esquecer que a criatura existe. Sobre o meu moralismo, mantenho e sustento: quem se sente bem com suas escolhas não precisa reclamar delas o tempo todo.

Ética própria

Eu não me arrisco a responder. Sério, inveja de vocês que sabem das coisas. Eu não sei. Mal sei de mim mesma, das minhas motivações, o que farei no dia seguinte. Quanto mais ter resposta para mistérios da vida – o que é real, o que não é. Vou para giras de umbanda e todo mundo ao meu lado sente chamados, tonteia, é tomado por uma atmosfera diferente. Eu, tal como os mais puros ateus, não sinto nada. Até gostaria de dizer que sinto, mas não me dá nem coceirinha. Minha impressão é mesma de quem vai a uma festa e só assiste à festa – muito diferente de quem sabe quem brigou com quem, quem comeu quem, quem falou algo pra alguém remetendo a uma história anterior. Ou seja, aproveito uns dez por cento. Eu vejo o que está lá e pronto. Também não sei dizer que estranho papel é esse que ocupo, mesmo os envolvidos não sabem. Não sou assistência, não sou médium, não sou parte da corrente. Mas posso ir lá dentro. No início, tudo era porque conhecia os pais de santo. Aí, passei a ter relação com os guias deles. E com outros médiuns. E com os guias desses médiuns. Ou seja, já tô ficando íntima da casa. Existe essa separação, entre a pessoa e o guia? Para quem crê, existe. Eu poderia ser muita amiga de um e não de outro, e vice-versa. Para quem não crê, uma coisa necessariamente levaria a outra, ou seja, óbvio que sendo amiga dos pais de santo eu acabaria tendo privilégios. Como disse, não sei. Eu não sei da permanência da alma, não sei da relação entre espírito e matéria, não sei de facetas de personalidade e de inconsciente. O que eu sei, o que eu vejo, é a sinceridade dos envolvidos. Do tempo que dispõem, da dedicação. Eles oferecem – para mim e para os que freqüentam – o que eles têm de mais importante e sagrado. De onde eu percebo que minha incapacidade – e até falta de vontade – de decidir o que eu acho me leva a uma ética muito própria: o que me é ofertado com sinceridade e carinho eu aceito com sinceridade e carinho.

Algo melhor

Eu estava esperando o segundo ônibus da noite. Eu sabia que ele demoraria porque quando cheguei no terminal, a bordo do primeiro ônibus, vi meu outro saindo. Como quase sempre, tinha ganhado carona até um pedaço e vim conversando. Aí corri e peguei o primeiro ônibus. Quando sentei e me vi sozinha, meu primeiro pensamento foi para macarrão pronto na geladeira e fiquei feliz. Geralmente não tenho sobras e toda volta pra casa é a mesma coisa, de ter que me virar com alguma coisa. Não pude deixar de pensar que isso mostrava o quanto eu estava adaptada à minha vida solitária, ficar feliz por saber que teria uma janta quentinha. À minha esquerda lá no terminal, já à espera do segundo ônibus, um casal de adolescentes arrulhava. Ele brincava com ela, que dizia a todo instante “ah, não faz isso comigo!”, e depois se abraçavam. Nada melhor do que um abraço numa noite fria. Eu não tenho mais abraços disponíveis, mas eu estava bem agasalhada. O que me incomodava era o collant. Nunca visto aquele collant e fui resolver testar justamente no dia que iria emendar duas aulas de flamenco. A pressão do elástico na minha virilha estava me matando. Primeira providência ao chegar em casa: trocar de roupa. Segunda: macarrão. O ônibus surgiu no horizonte e as pessoas se aproximaram. Aí na minha frente surgiu um homem. Ele usava fones de ouvido, barba, umas roupas moderninhas. Devia ter a minha idade ou menos. Meu condicionamento já tende a eliminar esse tipo de homem; desde que me entendo por gente, sempre me relaciono com os mais velhos. Ali, de canto de olho, ele me pareceu bonito. E quando aquele homem bonito, moderninho, mais ou menos da minha idade ficou perto de mim, eu desejei. Não foi um desejo racional, foi algo que surgiu do fundo da minha alma, quase uma prece. Eu desejei algo melhor. Desejei o mesmo arrulhar daquele casal adolescente, porque sinto em mim uma capacidade de amar adolescente. Desejei um homem que estivesse disposto a amar o flamenco porque eu amo o flamenco, que visse a beleza que isso é na minha vida. Desejei que esse homem fosse leve e colorido, tal como aquele na minha frente, que tentasse não se levar tão à sério, porque eu não me levo tão à sério. Que ele não visse tantas coisas que eu conquistei – a capacidade de fazer amigos, o amor à cultura e a arte, o carinho e a solidão – como um empecilho. É tão cansativo lidar com a insegurança dos outros. Eu desejei superar meus padrões e não mais escolher baseada nas minhas inseguranças. Eu desejei amar e ser amada. Sem joguinhos, disputas, gelos, cabos de guerra. Desejei que ele tivesse pressa de estar ao meu lado; achar que as coisas estarão sempre disponíveis é uma ilusão. A vida anda em FF e amanhã pode ser tarde demais. Enfim, eu desejei algo melhor. Mais, muito mais do que me oferecem.

Jateamento

Nós tínhamos uma exposição em poucos dias e costumávamos lixar as peças pra fazer acabamento. Lixa d´água, aumentando gradualmente a numeração até dar um aspecto liso.(Pra quem não sabe, eu já fui escultora).  Só que lixar é uma praga. Você vai lixando e aparecem buracos, aí você tampa, lixa de novo, aparecem buracos em lugares diferentes. Isso sem falar nos detalhes, que ou você estraga ou não alcança nunca. Aí nos recomendaram jatear as peças, porque o jateamento não deixa de ser uma forma de lixar. Ela, Luzia, levou só uma peça pequena pra teste. Já eu levei uma grande e pesada, mais de oitenta centímetros de largura, porque ela era a menos detalhada das que eu tinha. Deixamos lá. Quando voltamos, o cara veio trazer a peça de volta. Olhei, e dava pra ver claramente onde a areia havia passado. A superfície que eu queria deixar lisa ficou com listras desorganizadas. “Aquela era hora dela xingar o cara, dizer que ele tinha feito merda, que havia estragado a escultura” – disse a Luzia, contando o episódio – “Mas ela (eu, no caso) olhou para aquele horror e não disse nada. Aí que eu entendi como ela é”.

 

Eu jamais entendi o que ela havia entendido da minha atitude. Como briguenta e extrovertida, super carioca orgulhosa que era, a Luzia deve ter visto nisso fraqueza. Não sei se essa cena me define, nem ao menos sei o que ela diz a meu respeito. O que eu vi naquela hora foi um homem simples chegando com a minha peça. Horrorosa, sim. Mas ele estava orgulhoso. Todo dia ele fazia vidros e coisas comerciais, era a primeira vez que ele punha as mãos em algo de Arte. Ele contou que naquele trabalho havia se empenhado especialmente. Ele trouxe minha peça apoiada nos dois braços, e a pousou na mesa com a delicadeza de quem se sentia co-autor. De carinho à explosão de fúria é um caminho tão longo. Ele não entenderia nada, se surpreenderia, ficaria triste. A boa vontade dele me comoveu. Depois eu penei pra consertar a peça. Mas mesmo hoje não teria conseguido reagir diferente.

Eu sei

Já me contaram e eu já percebi que as coisas não são como eram quando eu saí do mercado por casar. Ou talvez até já fossem, mas passar um período casada pra dez anos depois estar solteira é como dormir adolescente e acordar quarentona. Eu sei que o mundo está assim, que ninguém é de ninguém, que a palavra namoro soa forte demais, soa mofo, soa compromisso, soa alianças e estamos já tão desapegados, quase um filme de ficção científica. Que velha sou, por favor, que eu guarde pra mim todo meu romantismo, minha paixão pelo cheiro de quem eu gosto, minha necessidade de abraçar, sexualmente e principalmente não sexualmente, apenas por gostar do calor e todo carinho que estar no meio dos braços de alguém transmite. Ontem fui parar num concerto de jazz, e digo que fui parar porque só fui porque a Adri insistiu, e a Adri só existe porque um dia nos apresentaram, e no dia seguinte estávamos juntas numa festa dos amigos dela e eu não conhecia ninguém, e falamos de nossas vidas complicadas. É como se tudo tivesse ficado mais intenso e inesperado desde que me separei. Agora nada me impede de falar com estranhos, de aparecer em festas, de assistir espetáculos de jazz. Porque ele sim era uma pessoa mais normal, que não se apegava facilmente, que tinha vergonha na cara pra não ir assim na casa dos outros e, principalmente, detestava jazz. Ela me deu carona, mas eu não teria problema nenhum em voltar de ônibus, porque me tornei amiga da noite, das ruas escuras e dos ônibus noturnos. Em uma semana comi dois hamburgueres vegetarianos iguais no Dom Corleone, o primeiro porque vários amigos foram lá e não deixamos ninguém conversar direito com as nossas risadas e o segundo porque eu estava na fossa, e se bebesse teria enchido a cara naquele dia. Foi a primeira vez na vida que mobilizei as pessoas em torno da minha dor de amor. Mas, veja só, como são inocentes meus novos programas, minhas fossas, minhas dores. Eu sei que poderia muito mais, eu sei que poderia começar agora. Assim como agora eu sei que o que ele me oferecia nem era tão pouco assim, em comparação com o tão pouco que hoje se cobra. Um telefonema, uma trepada mensal, arranjar vários pra evitar de se apaixonar por um, ou se apaixonar por todos e desejar que algum deles fique. Eu ouço minhas músicas, eu danço pela sala, eu ando no sol e me pergunto se mais ninguém sente as coisas que eu sinto, como eu sinto. Eu sei que eu sou adulta, eu sei que ele vai voltar, eu sei que o jazz é problema meu, eu sei que seria tão bom crescer, eu sei que o mundo é assim, eu sei que não me custaria nada. Um pouco de prazer, meu bem, entre amigos. Mas o que fazer se meu peito começou a doer, igualzinho quando eu me separei. Igualzinho. O mesmo medo e desamor. Então por mais que eu saiba, que eu concorde, que eu queria, que eu seja adulta, que eu aceite e ache tudo muito funcional, não vai dar. Meu peito dói.

Se até a Dúnia, que é cachorro…

Acho que não demora pra perceber que eu observo e aprendo muito com a Dúnia. Comentei com uma amiga do post sobre puxar a Dúnia, e tive que ouvir como se cuida do cão com amor, porque ela logo imaginou que eu era violenta. Muito pelo contrário, a metáfora é sobre puxar com suavidade uma parte de si a ser protegida, porque há tanto amor e conhecimento envolvidos. Na maioria das vezes o puxar nem é um puxão, apenas parar.
A lógica de observar a Dúnia, pra mim, é que se ela faz, é porque é legítimo, orgânico, biológico. Atuar o contrário que é contra o natural, coisa de nossas mentes adestradas. Se até a Dúnia, que é cachorro
* se arrasta quando tem que acordar cedo e
* fica deprimida em dias de chuva;
É porque é normal. Mas isso é básico. Tem os mais avançados, olha: Se até a Dúnia, que é cachorro
* tem antipatias gratuitas;
* volta e meia tentar sair da linha e testa autoridade;
* tenta manipular…
Opa! Ou seja, nem precisa ser tão inteligente assim pra fazer essas coisas. Outra forma de dizer é que até os puros selecionam, testam e se protegem. E tem uma última coisa, que descobri quando ela veio da castração. Aquela barriga cheia de pontos era uma judiação, me dói só de lembrar. Na primeira semana, ela choramingava na cozinha (na época ela dormia dentro de casa), eu descia, dava carinho, dali a pouco ela rosnava pra mim, se escondia, eu ia embora, ela chorava de novo e a cena se repetia. Se até a Dúnia, que é cachorro
* não sabe direito o que quer e o que fazer quando está com dor…

Segura a chave de fenda!

Eu ouvi uma vez a história de um cara que foi fazer um conserto, e tinha um pirralho pentelho do lado que queria “ajudar”. Aí ele deu uma chave de fenda pro menino: Preciso que você seguro essa chave de fenda pra mim. Ela é muito importante, segure bem, não pode deixar cair, não pode perder ela de vista! Aí enquanto o moleque se concentrava na importante missão de segurar a chave de fenda, ele pode realizar o seu trabalho.
O que eu mais gostaria é de achar uma chave de fenda dessas pra minha mente ansiosa.

My heart is broken in a million pieces

Ligia,

Naquele dia, quando nos encontramos, eu já estava retomando o fôlego para, mais uma vez, me esquivar do assunto separação. Eu tinha enfrentado duas semanas de fugas, e antes disso enfrentei tantas outras. Meus amigos vinham, pessoalmente e por mensagem, dispostos a ouvir. Que eu reclamasse, que eu chorasse, que dissesse tudo. E eu me recusava. Quando estou triste, minha vontade não é a de falar, e sim de voltar para o meu casulo. Posso te dar várias explicações pra isso, que vão desde não gostar de ser vista como uma pessoa pesada, como achar que falar aumenta ao invés de diminuir as dores, da minha criação…há pouco ouvi até uma explicação astrológica, a de que nós, os geminianos, somos assim. O fato é que eu já não gosto, e para o nosso primeiro encontro, de uma amiga virtual que nem era tão próxima assim, eu estava pronta, para mais uma vez, vestir a máscara da conversa social.

 

Assim que me encontrou, você disse que havia descoberto há pouco tempo que eu havia me separado, porque eu demorei a dizer isso com todas as letras no blog. E antes mesmo que eu tivesse tempo de desviar do assunto, você começou a me contar da tua separação. Uma vez nós quase nos encontramos em Curitiba, nós duas ainda casadas, mas eu estava com viagem marcada para o Festival de Joinville e aquele acabou sendo um mau momento e não nos vimos. Pelos meus cálculos, não foi muito depois do nosso quase-encontro que você se separou. E que foram justamente esses anos de instabilidade e luta pessoal que fizeram com que você às vezes emergisse e submergisse entre os meus contatos, de maneira que a nossa amizade não encontrava meios de se aprofundar.

 

Você me encontrou com distância o suficiente de quem havia superado aquele mesmo inferno, mas não tão longe a ponto de não se lembrar. Eu vestia um casaco que minha tia havia me dado de presente, porque não havia levado roupa o suficiente pra São Paulo. Era uma parca verde escura em estilo militar, uma combinação de três itens – parca, cor verde, estilo militar – que não tem nada a ver comigo. Mas eu a usava sem preconceito nenhum, porque eu apenas carregava as roupas como se fosse um cabide ambulante. E você sabia como era isso. Naquele dia te achei tão linda, e nada parecia denunciar que você também andara por aí feito zumbi. Meu rosto estava chupado, minhas calças despencavam, eu havia emagrecido uns cinco quilos no espaço de alguns dias. Comer não passava de uma obrigação. Você me contou que também havia perdido o sabor dos alimentos no começo. E que quando o prazer de comer voltou, deu até uma engordada.

 

Eu já te agradeci por essa conversa, lembra? Eu já te falei o quanto ela foi importante para mim. Você me contou das tuas muitas paixões pós-separação, todas enlouquecidas, todas frustrantes, todas desproporcionais. Que você sofria pelo fim delas e também pelo fim do casamento, que ao invés de curar as dores, os novos relacionamentos cavavam buracos maiores. E no meio a tanta coisa, tantas idas e vindas, tantos choros, homens complicados, falta de esperança e não saber onde colocar o amor, foram uns dois anos para finalmente conseguir um equilíbrio, um relacionamento bacana. Coincidência ou não, minha terapeuta me deu um prazo semelhante: dois anos. Dois anos pra realmente estar recuperada e conseguir ser inteira antes de me relacionar com alguém.

 

Retomo agora nossa conversa porque me vejo, novamente, como você descreveu. Decidi por um fim a um relacionamento que vem me sugando há semanas. Nem vou te falar dele; ele é um homem sem rosto, tal como o marido do Lanternas Vermelhas. Ele é alguém em quem projetei coisas. Ele é um homem que apesar de me conhecer bem, e de ter todos os elementos pra me achar uma mulher maravilhosa, não acha. E eu estava tentando provar que sim. Consegue imaginar coisa mais triste? Ainda não tenho clareza o suficiente para descrever onde começa a loucura de quem, o fato é que estava doendo. Antes dessa história, eu vinha me sentindo tão ótima, tão recuperada, tão pronta pra tudo – até mesmo para coisas de que nunca fui capaz, como me envolver sem me envolver. Aí vem essa história e me diz: lembre-se da Ligia.
Hoje penso novamente em você e novamente me sinto grata. Lembro de você tão linda e tão bem, me falando do teu longo caminho, que também seria um pouco do meu caminho. Você me deu perspectiva. Me falou das feridas e da cura pela homeopatia do tempo. Essa minha recentíssima ex-relação era algo que eu precisava viver para aflorar alguns medos que, graças à você, tenho certeza de que são normais e que vão passar. “Não faz nem um ano que eu me separei!”, digo a mim mesma, “está tudo bem”. Há menos de um ano, meu coração estava partido em um milhão de pedaços. Como um soldado levando os companheiros nos ombros, eu consegui juntar os caquinhos e passar por coisas quem olha não adivinha. Mas ainda tenho mais trabalho pela frente. Ainda tem mais o que limpar, ainda tem mais o que aprender, ainda tem mais o que acolher.