O abismo olha para você

Você nunca mais é o mesmo uma vez que descobre que não há eu que não desmorone.

Andrew Solomon

Quem olhasse para mim subindo uma BR sete horas da manhã, de bicicleta, diria que sou o próprio retrato da saúde e disposição. Acharia que sou o tipo de pessoa que ama acordar cedo, ainda mais se eu dissesse que estava indo arrancar mato de uma casa que nem vivo mais, mas que preciso cuidar. No meio de caminho, enquanto subia, pensei que talvez muitos do que, como eu, estavam acordados àquela hora fazendo algum tipo de exercício tivessem a mesma motivação: não cair no buraco da depressão frente aos primeiros sinais. Eu acordei com a angústia característica quando o alarme tocou e sabia que, se dormisse um pouco mais, não seria capaz de mais nada e teria um dia miserável pela frente. Eu moro só e não teria uma única pessoa para perceber e me ajudar a sair do buraco. Então fiz o que sabia que injetaria ânimo no meu organismo para mais um dia. No dia seguinte, teria que fazer outra coisa. E assim é desde que meu organismo descobriu o buraco da destruição do meu Eu, um conhecimento da qual nunca se volta atrás, uma porta que nunca mais conseguimos fechar por completo.

Estou lendo e gostaria muito de recomendar a todos que um dia já foram quebrados, O Demônio do Meio Dia: Uma Anatomia da DepressãoAndrew Solomon. Por ser um escritor e ter vivenciado a depressão, ele traz insights e descreve maneiras de sentir que nenhum manual de psiquiatria consegue alcançar ou até mesmo nenhuma outra pessoa que já viveu uma depressão consegue dividir com você. Ele fala do peso que situações comuns adquirem, da humilhação de precisar de ajuda e não conseguir evitar, o pesadelo de estar preso num presente doloroso sem conseguir sentir como verdadeira nenhuma possibilidade de melhora ou felicidade futuras. Eu estava como livro me esperando há muito tempo e temia que os relatos me fizessem mal, mas o efeito foi contrário: a normalidade da minha anormalidade me consolou. Como o autor mesmo descreve, a depressão tem um equilíbrio complicado de orgânico e psíquico; você não pode deixar de lutar, mas ao mesmo tempo precisa ter paciência. A bioquímica de um deprimido necessariamente está uma bagunça. O primeiro episódio depressivo geralmente vêm de um stress muito forte, o segundo também de uma situação estressante, e do terceiro em diante pode não ter algo tão grave, pois o organismo ficou fragilizado. Eu imagino como um braço quebrado, que mesmo que façamos tudo o que é preciso – colocar no lugar, imobilizar, andar com gesso -, ainda leva meses para se fortalecer.

Eu tive um ano muito difícil e tive meu “braço” quebrado. Por fora, agi como era preciso, fui adulta e continuei funcional, mantive as contas em dia e tomei as providências. Chorando todos os dias, reagindo mal à dificuldades comuns, mas fiz. Tenho lamentado todas as manhãs o quanto a vida é longa e que pena que eu acordei. Lembro claramente do último dia que me senti alegre: eu havia marcado um exame e estava preocupada de me atrasar, no fim deu tudo certo e saí correndo pela rua. Lembro de estar feliz apenas por parecer uma doida, por correr segurando a bolsa, recuperando o fôlego entre sinais vermelhos. Há meses não sei mais quem é essa pessoa. O nosso tempo psíquico raramente é rápido o suficiente para o mundo e vinha me sentindo cobrada (por quem? Talvez apenas por mim mesma) de estar feliz e entusiasmada com o novo caminho que se abre à minha frente. Não sei de nada novo e legal, meu sentimento é de estar fugindo. Cumpro a tarefa ao manter rotinas para tentar fazer a depressão parar na porta. Busquei vários tipos de ajuda e Andrew Solomon tem sido uma delas.

Não existe orgulho que resista à dor: religião, terapia, remédios, companhia, videos de gatinhos, reativar vínculos, não apenas tudo é válido como geralmente fazemos tudo ao mesmo tempo. Lembro de uma amiga que fez um comentário que me doeu muito quando eu me separei: “você está super magra, quem fica deprimido engorda comendo salgadinho vendo TV”. Ela não sabia que era tão insuportável pra mim estar dentro de casa que eu passava facilmente cinco horas andando, inventava trajetos loucos a pé, tudo para chegar exausta demais para conseguir ficar acordada. Como já me fiz entender, exercícios me ajudam a me manter de pé e funcional, nem sei se estou bonita ou não, talvez emagreça até demais. Não importa qual a estratégia, o importante é ter uma e se agarrar para tentar atravessar a floresta o mais rápido que der – rapidez que parecerá lenta, porque os dias depressivos são muito longos.

O único adendo que eu faria do livro – e vou fazer isso muito rapidamente porque estou pisando em terreno que não é o meu – são os muitos estudos que ele cita sobre o efeito de medicação no cérebro. Tenho a impressão de que as pesquisas agora estão se voltando para o intestino, que seria responsável por quase toda dopamina do nosso corpo. Basta procurar “intestino segundo cérebro” no Google para achar bastante coisa, deixo aqui a recomendação desta série de vídeos. Então, quando ele fala do quanto a depressão vai piorando durante a vida, eu me pergunto se também não é porque raramente nosso intestino vai ficando mais saudável durante os anos.