Balança desregulada

No post passado eu levei tanto tempo construindo o argumento astrológico que depois não consegui chegar no que eu queria dizer, que é a questão da tomada de decisões. Todos nós, de certa forma, somos como balanças desreguladas e o grande tchans da maturidade é conhecer esses limites e saber lidar com eles. Podemos chegar a isso de uma maneira astrológica, como por exemplo dizer que a pessoa tem um Saturno que influencia fortemente a Lua, o que lhe dá pessimismo e tendência a encarar tudo como desamor; mas também é possível chegar analisando os próprios padrões e como a nossa história coloriu a lente com que olhamos o mundo. Há poucos dias eu soube de uma recém formada, filha de uma conhecida, que passou na primeira etapa de uma seleção de emprego disputadíssima. Eu a conheço e pensei: claro que passou. Eles tinham diante de si uma jovem que teve acesso não apenas ao de melhor em termos de educação e do que o dinheiro pode comprar, mas também de amor, suporte, oportunidade de errar. A quantidade de fantasmas e dores que eu (e a maioria da população) tinha quando me sentava diante de uma avaliação dessas pesava de uma maneira que os próprios contratantes não tinham noção.

Quando novos, somos todo instinto e como a situação nos parece. Tudo dizia que não era uma boa hora de falar, mas você não se segurou e foi lá e disse tudo; tudo indicava que era melhor aguardar o desenrolar dos acontecimentos, mas você vai lá e precipitou uma situação só porque não suportou a incerteza, e por aí vai. A maturidade vem quando você percebe que não é porque você está sentindo que é o certo ou a melhor coisa a se fazer. Eu diria pra pessoa de Saturno/Marte que ela sempre vai sofrer decidindo, ou seja, não é porque ela não se sente segura que está errado; diria pra pessoa Saturno/Lua que ela provavelmente está interpretando a atitude do outro de uma perspectiva mais pessimista do que real. Se você, como eu, ia nas entrevistas suada porque pegou ônibus, desconfortável porque precisou vestir algo mais caro do que o seu normal, se sentindo despreparada porque não pode fazer curso de línguas quando era criança e nem as especializações que queria, ansiosa porque cada fracasso correspondia a mais um mês de contas apertadas, ou seja, se a balança que dentro de você não têm o equilíbrio perfeito para o sucesso, a única saída para a felicidade é agir apesar de você.

vai com medo

Curtas ansiosos e fora do lugar

Passarei uma semana acordando 4:30. É exagerado e não é. É pra dar tempo de tomar banho, café tão cedo eu não consigo, andar tranquilamente, pegar os ônibus que mesmo atrasados meu levarão aonde eu preciso. Se tudo atrasar, ainda chego no horário. Quando chegar meia hora mais cedo e esperar pelos outros, é provável que me xingue pelas horas de sono perdidas. Mas no fundo eu vou saber que é o preço que pago por ser quem eu sou: uma pessoa que se cobra demais e não conta com a sorte.

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Uma vez fui num iridologista. Fui com meu então marido, que ia ficar me esperando na sala espera e o iridólogo o mandou entrar. Guardei pouquíssimo do que o sujeito me disse, lembro das fotos do meu olho bem grande numa tela de TV e ele me falando algumas coisas a respeito do meu temperamento e da minha saúde. O que guardei foi a frase: “você é uma pessoa de grandes medos e grandes coragens”. Talvez nem isso tivesse guardado se o meu ex não tivesse dito que foi a melhor definição já feita a meu respeito. De acordo com ele, nem registro o perigo de situações que fariam os mais machos recuarem, e ao mesmo tempo temo coisas tão estúpidas que ninguém imagina.

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Uma lembrança tola. Eu havia combinado de encontrar minha mãe para almoçar antes da minha aula na faculdade e no intervalo dela. Eu a buscaria e iriamos juntas, mas como atrasei ela já estava no restaurante. Eu me desculpei e disse que o ônibus atrasou. No seu silêncio, ela me disse que “claro, você sai em cima da hora. Aí, quando as coisas não dão todas certo, você diz que o ônibus atrasou”. Ou seja, eu não fui sempre assim, ansiosamente pontual.

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Outra lembrança: eu comecei minha segunda faculdade e conversava com os outros alunos mais velhos. Havia uma lá de cinquenta. Ela me falava que havia sido de movimento estudantil, que era do tipo que falava, que era isso e aquilo. Mas isso antes, quando era jovem. Com o viver, havia se tornado calada, não dizia o que pensava, tímida, não levantava a voz. E eu pensava: “então por que você não recupera aquela moça, se você tem ela aí dentro?”. Hoje eu entendo.

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Uma que dança desde criança foi parar na vida acadêmica e escreveu no seu Insta sobre o quanto lutava contra o seu sentimento de estar fora do lugar. E eu comentei: “sinto o mesmo que você, só que invertido. Na academia, eu estava no meu lugar.” Um dia houve um lugar.

livro da vida

Vai parecer ser um post político mas não é

Pensei nisso quando li sobre o SNI, Serviço Nacional de Informações. Ele foi criado (ou fortalecido. Estou fazendo o post de memória, porque é apenas uma reflexão apolítica) para combater a ameaça comunista ao recém-criado Regime Militar – que gostava de se intitular Revolução de 64, Contragolpe de 64, justamente porque era centrado na ideia de que o Brasil estava na iminência de se tornar um país comunista. Vejam bem, um órgão nacional, que centralizava informações. Tinha escuta telefônica, funcionários, polícia, fichas com biografias de vários suspeitos, espionagem. O que também quer dizer que tinha sede física, orçamento, funcionários públicos, secretárias, gente pra carimbar, gente pra ir ao banco, o escambau. Isso pra não falar do braço violento disso tudo, com os torturadores. Tudo para combater a ameaça comunista que vinha de jovens, na sua maioria universitários. Mesmo com idealismo, com ajuda soviética e com inteligência, era óbvio que o Estado ia acabar ganhando essa queda de braço. Ganhou. E quando acabaram os jovens comunistas, eles começaram a partir para cima de outras pessoas, mesmo sabendo que elas não estavam travando guerra ideológica nenhuma. Porque, veja bem, o que as pessoas esperavam? Que aquelas pessoas, funcionários, declarassem que o trabalho delas acabou, recolhessem todos os papéis, devolvessem as mesas e os imóveis e pedissem demissão?

Penso que temos diversos SNIs no cérebro. Vi um documentário que compara nossos hábitos a marcas de esqui na neve, que vão se tornando cada vez mais fundos quando alguém passa por cima, até chegar ao ponto de não conseguir se desviar dali. Você tem certeza de que cada dia é uma tristeza igual a outra ou que é realmente necessário e racional sofrer de maneira intestina a cada notícia?

ja posso ir

Feliz aniversário pra mim

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Hoje é meu aniversário, faço 42.

Alguns conceitos só começam a fazer sentido com a passagem dos anos. Porque, a curto prazo, são apenas uma porcaria: tentar a todo custo ser coerente com o que você diz, colocar a correção acima de vantagens pessoais, preferir o papel de vítima ao de algoz, suportar as injustiças, ser o mais verdadeiro possível. Todas essas ideias são um convite a não usufruir o que se apresenta no presente; elas fazem com que você se sinta um motorista que no meio de um racha resolve frear para pedestres ou dar seta antes de fazer as curvas. Só mais tarde entendemos que viver é construir uma biografia, um tiro único. A história construída com os anos será sempre carregada com você, te definirá aos olhos do mundo e não aceitará nenhuma desculpa. Ter tornado o mundo um lugar pior por medo, falta de visão ou porque precisava de dinheiro, dá tudo na mesma. O contrário também – até nossos sorrisos falsos, no final das contas, foram sorridos. O que foi feito é o que é.

Se tudo der certo, estou agora no meio do caminho, talvez um pouco mais pro lado onde a régua está menor. Se eu gosto do que vejo? Na média, sim.

Dois pitacos e meio sobre Marguerite

Marguerite, que tem no Netflix, é baseado em fatos reais. É a história de uma aristocrata que canta muito mal, e que não tem a menor noção disso.

1. Tenho pensado bastante o quanto a diferença entre ser alguém e não ser ninguém é toda diferença entre levar porrada ou não da vida. Preto e pobre leva muito, e literalmente. Há poucos dias uma muito rica fez algo completamente sem noção num grupo de pessoas. Se fosse eu a fazer aquilo, a resposta seria imediata – fariam caras, alguém me mandaria parar e me colocariam de volta à minha insignificância em poucos segundos. Como era alguém que um-dia-pode-me-dar-uma-vantagem, não apenas não falaram nada como fingiram que estava o máximo. Igualzinho Margarite. O filme mesmo faz esse contraponto, mostrando a cantora talentosa e pobrinha. Me deu vontade de mandar pra umas Marguerites que eu conheço assistirem, quem sabe se tocassem.

2. Peguei o filme para rir, mas acabei me sentindo #somostodasmarguerite. Gostamos dos grandes talentos, mas a arte se faz principalmente pelos grandes entusiasmados. Pensei em dizer que os medíocres são o adubo da terra que gera os gênios, mas aí fica parecendo que estou dizendo que medíocre é merda… O que quero dizer é que não é possível investir só no gênio; quando vemos classes inteiras de pessoas que nunca se destacarão, ou que estão lá só de passagem, parece que é dinheiro jogado fora. Que se não é pra ser Bolshoi, não vale abrir escola de balé; se não é pra ganhar Nobel, pra quê fazer pesquisa. Não é assim, é preciso criar o ambiente. É preciso uma turma, uma geração, um bando de pessoas, o ruim, o bom e o mais ou menos. As pessoas aprendem vendo umas às outras, incorporando gestos inconscientemente, disputando entre si, criam uma história. Cada apresentação feiosa e erro é importante. É um caminho que se trilha e as pessoas precisam estar juntas. Cada pequeno é um pedaço que forma uma cultura inteira. 

2,5. Levei muito tempo querendo ser a parte do gênio e não a parte do adubo – e quem não quer? Se eu fosse o gênio, tudo seria contaminado pela crença de que sou especial. Comecei a dançar tarde, persisti sem ter jeito igual a Margarite, vejo pessoas ultrapassarem rapidamente o que eu conquistei a duras penas. Mas posso dizer com sinceridade: sou do meio artístico, sou uma pessoa que convive com artistas. Uns na frente do palco, outros no fundo, todos nós no teatro. Eu não seria quem sou se eu não tivesse entrado nesse caminho. Marguerite tem razão: sonhar é muito melhor do que o conformismo.

O decurso geral da vida

carboidratos complexos

Isto não é uma louvação a Trotsky:

“Durante 43 anos de minha vida consciente fui revolucionário”, escreveu, “e durante 42 anos lutei sob a bandeira do marxismo. Se tivesse que começar tudo outra vez, tentaria evitar este ou aquele erro, mas o decurso geral da minha vida permaneceria inalterado. Morrerei sendo um revolucionário proletário, um marxista, um materialista dialético e um ateu irreconciliável. Minha fé no futuro comunista da humanidade não é hoje menos ardente (antes, mais firme) do que era nos dias de minha juventude.”

Leonardo Padura/ O homem que amava cachorros

 

Já falei aqui, acho, que tem astrólogo que diz que a pessoa já nasce com tudo o que vai fazer em vida programado, do mesmo modo que vamos ao cinema ver um Batman sabendo tudo o que vai acontecer e nem por isso deixamos de ver. É uma ideia bastante esquisita e com várias consequências, nem sei se boas. Eu acredito num determinismo social, colocar as estrelas no meio já é crer que ele não é ao acaso. Não sei. O que sei é que me parece que é como Trostky descreveu, que só os detalhes sem importância poderiam ser mudados. Estamos o tempo todo diante de decisões sem importância, como o que colocar no leite do café da manhã ou que música ouvir. As decisões realmente importantes, aquelas que mudam o curso das nossas vidas são duas ou três. Cada um sabe quais foram as suas. Quando penso nas minhas, também acho que não faria diferente. Não que eu tenha gostado de todas as consequências, não que acredite que sou a melhor versão possível de todas as escolhas possíveis, e sim porque eu sei que não poderia ter feito diferente. Não quem eu era, não da maneira como eu via o mundo, não com o que eu sentia fome de viver.

Pedras arredondadas

pedra rio

Durante muito tempo, eu considerei a minha ex-sogra como uma vilã do meu casamento. Com os anos as coisas foram anuviando, igual uma metáfora que eu vi que as pessoas que convivem são como pedrinhas numa garrafa, que de tanto se machucarem acabam ficando redondas. No final do processo de separação, eu lembro que olhei pra ela – deve ter sido no dia da assinatura do divórcio, ela estava de testemunha – e senti pena do nosso caminho juntas ter terminado. O mesmo sentimento de quando eu saí de casa para casar e sabia que dali por diante nunca mais moraria com meu irmão e minha mãe de novo. Eu mesma fiquei surpresa com o sentimento, porque nunca tive por ela o afeto de uma filha. Fiquei triste pelo ciclo que se encerrava. Fomos pedrinhas que se machucaram muito, detestaram ser encerradas na mesma garrafa, e no final se entendiam mais. Quando deixamos de conviver, eu vi que havia um tempo que faríamos parte da vida uma da outra, que teríamos algo a acrescentar à vida uma da outra, e que ele se encerrava ali para nunca mais – e eu sabia que passamos tempo demais nos detestando. Tenho certeza que com a nova nora dela, ela pegou muito mais leve e demorou bem menos para mostrar seu lado agradável; da minha parte, se um dia que voltar a ter uma sogra, cederei muito mais do que cedi com ela. Quem sabe o legado que tínhamos para deixar fosse esse. O que me tocou muito foi ver que, tivéssemos cumprido ou não o que tínhamos que cumprir, o nosso tempo havia acabado. Agimos como se as coisas fossem durar para sempre e na verdade o mais comum é que durem pouco – cinco anos, uma década, muito raramente duas décadas. Cada um segue a sua vida, esse evento único e complicado; algumas pessoas andam alguns metros do nosso lado e depois se vão. O ideal é que seja caloroso, o ideal é que sejam boas lembranças. Nós não temos obrigação de ficar, os outros têm o direito de partir.

Promessas quebradas

vaso quebrado

Tenho pensado muito – apenas pensado, sem respostas – sobre a amargura própria de quando ficamos mais velhos. Eu sempre observo, nas novelas da Globo, que a pessoa deixou de ser galã quando ela ganha papel de vilão; algumas infantilidades, manipulações e horrores não cabem em carinhas de anjo. Não é apenas porque os atores novos não sabem expressar, é porque gente nova não chegou lá. Elas ainda não descobriram que o número de pessoas que realiza integralmente os seus sonhos é pequeno. Eu vejo que a minha geração, do final dos anos 70, é especialmente ferrada. O meu pai nunca pode evitar um sentimento de superioridade diante dos filhos, porque aos quarenta ele era O Cara: conceituado na área dele, sustentava duas famílias, dava festas, viajava o Brasil inteiro. O diploma de engenharia dele rendeu pra tudo, enquanto eu e meus irmãos somos muito mais instruídos e não há perspectiva de um dia chegar perto do que meu pai conseguiu. E estamos todos da gerão 70´s assim, com um longo histórico de empresas falidas, mudanças de área de atuação, ainda precisando de ajuda financeira. Vai chegando a idade que já não somos mais bonitinhos, já não temos muito mais tempo pra errar, e parece que se não conseguimos ainda é sinal de que não conseguiremos mais. Depois de tantas tentativas frustradas, estou aqui tendo que encarar o fato de que talvez o desejado livro nunca saia e meu talento se limite a estas linhas que você está lendo. Na dança, vejo gente que amou e se dedicou intensamente e agora já está “velho”, vendo gente mais nova e talentosa surgir. Vejo a aposta de merecer um grande amor não se concretizar, a dúvida se no fim não era melhor ter ficado na relação morninha mesmo. Com a idade, chega a dura escolha do chinfrim: ficar no emprego que não é dos sonhos, o casamento que não tem paixão, as férias na CVC, os quilos a mais. O que eu me debato, na verdade, não é nada disso, porque à princípio não há nada de ruim no que eu falei. O que me mata é a amargura. O que eu tenho horror e quero fugir a todo custo, e não sei direito como, é da raiva do fracassado diante de quem está chegando agora, diante de quem tem energia e fé. Do novinho que não sabe o que nós passamos e quer que o mundo seja generoso com ele, sendo que na nossa vez ninguém foi. Não quero ser o que desacredita o talentoso e tenta puxar para baixo os que conquistaram o que eu sonhei e não consegui. A pedra no sapato, a que piora o clima, a que usa o sem importância como desculpa para humilhar. Eu não quero ser assim, tenho horror de ser assim, mas à medida que a maré tem trazido meus fracassos para a areia, a possibilidade me acena e entendo cada dia mais.

Querer

cachorro buraco da minhoca

Há anos eu li um livro que era um sujeito fazendo perguntas pra Deus, como se fosse uma entrevista. O livro começou bacana, ele fazendo as perguntas mais fundamentais. Depois vai indo, me parece que tem até o volume quatro, e só falta ele perguntar porque Deus criou as baratas. Não cheguei a tanto, li no máximo até o fim do volume dois. O que eu mais gostei do livro foi quando, no início do segundo livro, ele reclama que Deus sumiu, não ligou mais, visualizava e não respondia no Zap. Aí Deus fala que ele, o autor, é que estava sempre ocupado. O autor diz: a gente não tinha combinado de escrever livro juntos, você não perguntou se eu queria e eu disse que sim? Aí Deus falou: combinamos, eu perguntei, você disse que sim, mas aí você acorda tarde, vê Netflix, vai pra academia… Autor: Mas eu disse que sim. Deus: mas você sumiu. Autor: era só chamar. Deus: mas você… Enfim: Deus diz que não bastava falar que Sim uma vez e depois partir pra outra, que ele precisava escolher o tempo todo a mesma coisa.

Algo que para uns vem de berço, para outros é depois de uma vida inteira de luta, e vice-versa. O que eu aprendi em 2017 foi a querer, querer, querer obsessivamente, querer de todo coração, ser monotemática, querer de forma insana e repetitiva.

Un manoir à Neufchatel, ce n’est pas pour moi

Todo mundo já foi lá, então não sabiam me indicar certinho o endereço. “É uma casa na frente do Parque Barigui”. A localização não é ótima apenas por ser um parque – morar na frente do Barigui significa morar, no mínimo, numa casa muito boa. Mais provavelmente numa mansão. Aí me deram umas indicações, fica no meu caminho quando passo de bicicleta, eu apenas não sei qual delas. Voltando da aula, com minha roupa de pedalada e mochila nas costas, passei reparando e achei. Pode ser uma casa enorme que fica à esquerda ou uma mansão estonteante que fica à direita. Só vai ser meio chatinho à noite, se ninguém me der carona. Cada vida tem suas características, seus desafios, e eu percebo que a minha me faz conviver com grupos muito diferentes. Há pessoas que dizem: “não conheço ninguém que voltou na Dilma”, ou “todos meus amigos são do mundo artístico”, ou “somos um grupinho dos que estudaram no Colégio Tal”. Eu nunca, sempre foi tudo muito misturado, tão misturado que jamais poderia colocar todo mundo no mesmo ambiente. Um dia ouço uma mulher falar do período que passava fome e no outro a que reclama de ter ir a Europa de novo. Olhei para a casa que ainda conhecerei, e lembrei de um amigo que reclamou que eu não o levava junto quando tinha convite high-society. Ele queria ir mesmo sem conhecer ninguém, via como oportunidade. Em compensação, tem outra que poderia e faz questão de não ir. Olhando as mansões de bicicleta, lembrei que muitos de lá dentro tem a mesma idade que eu, de carne o osso também, quem sabe até menos qualificados. Em algum lugar, quem sabe, eu devesse desejar estar lá, lutar para isso, não perder tão feio quando sou comparada aos meus primos. Deveria não estar tão feliz apenas montada numa bicicleta, com dinheiro contado e escrevendo coisas que caem sem efeito no mundo. Mas eu realmente nunca quis, nunca fiz por onde, é como se em algum momento tivessem dado o sinal de largada e eu não ouvi. Não sei se é porque nunca quis ter filhos e não tenho que deixar um legado. Talvez seja porque a gente aprende desde cedo a não sonhar com o que está longe demais – sou de humanas, curso de humanas não enriquece. Zaz, pensei. A moça que ganhava dinheiro cantando nas ruas. A música que me soou tão adolescente. Quem sabe também me diga respeito.

Balanço

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A ninguém é dado viver tudo. Uma amiga reencontrou, depois de vinte anos, um amor de adolescência. Ambos lembraram de como eram unidos, do quanto doeu se separarem, que quiseram manter contato e a mãe dele não passou o endereço novo para ninguém, foi como se tivesse ido para outro mundo. “E se”, ela dizia, e eu lhe disse que provavelmente casariam e ficariam juntos e perguntei se ela preferia que ele tivesse sido seu único e primeiro em tudo – namorado, marido, homem, pai da sua filha. Pela cara que ela fez, acho que não.

Eu fiz muitas coisas e pra todas elas investi tempo, dedicação e sonhos. Conheci a área, seu cotidiano, as pessoas, os valores, lugares importantes, vocabulários. Só que o dinheiro – esse grande e único indicador de sucesso – não vinha e eu partia para outra, e nela investia tempo, dedicação e sonhos. A cada momento achei que lá era o meu porto e queria ficar, e teria ficado, desde a primeira escolha, se tivesse feito sucesso. Teria me casado e deixado de ver e viver tudo o que vi e vivi. Prefiro do jeito que eu fiz, muitas vidas em uma.

A segunda fileira

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Vi um documentário longo e interessante sobre a escritora Fran Lebowitz, e nele ela diz que quase todos seus amigos, ícones dos seus campos artísticos, morreram de AIDS, porque eram gays e transavam muito, e que a morte deles fez com que a segunda e a terceira fileira, pessoas que não tinham tanto talento assim, acabassem se tornando os expoentes das suas áreas. Estou no fim do Handmaid´s Tale, da qual escrevi um texto quando terminei o livro. Eu diria que a principal diferença entre a protagonista da versão filmada está na força. A da série tenta fugir, enfrenta olhares, se dá ao luxo de ser espirituosa nas suas colocações. No livro, ela chega a dizer: me envergonho de contar a história assim, de ser tão passiva. E  a autora, numa entrevista, justifica: os movimentos autoritários matam os manifestantes. Ou seja, os mais indignados e combativos, os melhores de nós, morrem primeiro. Se não morrem fisicamente, são calados, demitidos, deportados, silenciados. Será que estamos condenados, como sociedade, a ser encabeçados – quando muito – sempre pela segunda fileira?

Boemia de ar noturno

(Todo ano eu punha algo marcando meu aniversário e este ano não vi porquê. Agora lembrei: fico entretida com a data e não me dá tempo de preparar o texto. Vai um que estava guardado. Está bom mas não muito meu espírito de agora)

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Sofrer nos faz descobrir portas e janelas novos, lugares que nos acompanharão para o resto da vida, como se fôssemos nos tornando um feudo cada vez maior. Uma das janelas que eu abri foi o gosto pela noite. Eu não me permito saciar meu desejo por madrugadas, porque ele não tem nada a ver com o gosto dos boêmios: gosto de andar sozinha pela rua e ouvir apenas o som dos meus próprios passos. Gosto da companhia das estrelas que me olham com indiferença. Gosto do aspecto silencioso das construções, das cortinas baixadas, o sussurro distante dos televisores. Quando finalmente o silêncio se faz físico, sou capaz de também ficar em silêncio e olho para a minha própria vida com reverência, num estado que não é alegre e nem triste. Eu perguntei à noite porque andamos assim, tão sujos, cada vez mais sujos, acumulando pó a cada passo e nunca, jamais, ser parte de tudo o que nos assiste. Porque não amamos apenas e tão somente a quem nos é permitido amar; porque não conseguimos satisfação no nosso círculo, sem invadir o espaço do outro; porque nossas palavras não são transparentes, e ferimos. Mesmo quando certos, ainda assim pisamos errado, estragamos a flor. Ou vai ver que não estávamos certos, tínhamos apenas boas intenções. Ficamos feudamente maiores, ficamos cheios de bagagem e poeira – somos adultos. Ao mesmo tempo, agimos como crianças em loja de cristais. Gosto da noite silenciosa porque ela é indiferente a tudo isso. Ou, às vezes, parece dizer: isso também é belo, isso é muito humano.

Mais um post com Günter Grass

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Eu estava andando até o supermercado, pelo caminho único e de sempre e pensava, fascinada, no Linguado. Eu já tenho uma antiga teoria que ser judeu ou alemão ou, mais ainda, judeu alemão, já é meio caminho andado pra genialidade, e Günter Grass estava fazendo por merecer sua nacionalidade. Eu me perguntava que biografia gerava aquele tipo de bagagem cheia de mitologia, comida e história – sem dúvida uma vida com algo que a minha não tinha. Um carro passou na direção contrária, um vizinho andou pelo quintal e me senti a mais prosaica das pessoas e com o mais prosaico presente e passado. Eu ainda não sabia quase nada sobre Grass, não sabia do colega do colégio nazista que encarnava nas tarefas e no físico o ideal germânico, mas que não se cansava de decepcionar a todos porque deixa as armas caírem e dizia “nós não fazemos uma coisa dessas”. Ele foi o único, naquele gesto, a resistir e ser crítico em relação ao que estava acontecendo. Não sabia do cara que ficou com vontade de ir ao banheiro e, para que ninguém comesse a porção dele, tirou o olho de vidro e pôs em cima da comida. Jamais poderia imaginar que grande parte da paixão culinária vinha de aulas teóricas de um cozinheiro de campo de presos, porque as pessoas começaram a se organizar e dar e receber aulas para matarem o tédio. O chef dispunha apenas de giz e quadro negro, então os pratos eram feitos e a fome saciada apenas na imaginação. Não sabia que Grass tinha passado fome, se mijado de medo e dos muitos fatos biográficos que ele sem dúvida trocaria com gosto por uns mais prosaicos. Lembro de estava passando na frente do terreno da igreja, olhado para dentro e reparado na árvore cheia de folhas quando me dei conta que essa questão – da biografia insuficientemente interessante – era tão tola que não merecia ser colocada. Cada biografia é o que é, nada podemos fazer. Quanto mais recuada no tempo, ainda mais determinada por circunstâncias que fogem ao nosso controle. O que podemos fazer, o único que podemos fazer, escritores ou não, era exatamente o que eu estava fazendo naquele dia a caminho do supermercado: passar por ela todo dia, sempre, olhar, e de novo, ter certeza que conhecemos, relaxar nela, descobrirmos como floresce diferente no outono, amar e odiar, mas passando sempre, para sempre.

Borboleta

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A cada ano que passa, a lua se afasta cerca de quatro centímetros da Terra. Os movimentos da maré tem tornado o movimento de rotação alguns milésimos de segundo mais lento a cada ano, o que num efeito acumulativo fará com que no futuro o dia passe a ter um pouco mais do que 24h. A Via Láctea é muito próxima da galáxia de Andrômeda e a lenta aproximação das duas fará com que a gravidade as atraia, misture e forme outra galáxia. Quando a gente começa a ver documentários científicos, percebe que o rio nunca passa duas vezes no mesmo lugar até mesmo num sentido bem mais amplo e profundo; as medidas do universo são tão vastas que nos fazem pensar que apenas nós mudamos, que o tempo e o espaço que nos cercam continuam sempre o mesmo, o que não é verdade. A gente acha a vida da borboleta, que dura uma semana, um nada, mas nós em relação às estrelas somos ainda mais fugazes. Eu me pergunto se a borboleta no quarto dia sente que as suas asas já não são tão leves quanto no primeiro ou se entre o nascer e o pôr do sol acha que o tempo se arrasta.

Rebelde

Depois de tantos anos de poás e babados, vou confessar que fiquei cansada. Fiquei cansada da flor de lado, ou atrás. Das peinetas, das saias longas, das cores e acessórios que eu não usaria. E comecei a me rebelar, achar tudo brega demais. Se devo aprender com o flamenco a me expressar, a incorporá-lo nos meus gestos ao invés de apenas repetir gestos alheios, como fazer isso vestindo roupas que eu não apenas não usaria como acho exageradas, demais? Aí numa apresentação eu quis colocar uma blusa linda estilo oriental. Pareceu que tirei isso do além, mas no primeiro dia que vi minha professora dançar, no primeiro espetáculo de flamenco da minha vida, ela vestia uma blusa cujo desenho me pareceu muito oriental, apesar de flamenco. Lembro que isso me desagradou quando vi. Aí ela vetou. No dia, apareci com aquele arquinho de flores que agora está na moda, que tem até no snap, aquele que ficam umas flores bem na frente. Tanto desconfiava que ela ia vetar que nem comentei antes. E ali, pouco antes de subir no palco, levei um safanão e fui obrigada a colocá-lo de lado pra me adequar às normas. Há tempos já concluí que se tivesse nascido na Espanha ou em família flamenca, teria virado dentista e não Farruquito. Eu me conheço e se tivesse nascido nessa linguagem – porque flamenco é isso, uma linguagem – não seria capaz de ser a continuadora de uma tradição, e sim quereria quebrar estruturas e trazer ares novos. Digamos que eu estaria mais para Israel Galván. Não gostei dos vetos, me senti podada. Aí vi, poucas semanas depois, vi minha professora dançando com uma outra grande bailaora, uma espanhola. As duas vestiam roupas flamenquíssimas, com babados e poás enormes, a cabeça abarrotada de coisas, peinetas, brincões, o out do out. Chegaram lá e hipnotizaram, dançaram com uma força e gestos despudorados que só o flamenco tem. Absorvida pelo momento, eu me senti um bebê, uma criança, uma menina que olha pra mãe e descobre nela o que no futuro ela pode ser. Naquele momento eu entendi que elas estavam trabalhando dentro de um arquétipo, e que seus gestos nos davam permissão para gestos mais fortes e despudorados na vida. Eu é que estava errada, não é pra ter a roupa comum lá em cima, o palco mostra o além. Pensei também que pena que as mulheres de hoje perderam essa ligação com as mais velhas, fortes e sábias, que não temos mais esses arquétipos maravilhosos para nos espelhar. Mas isso é outra discussão.