Hoje é muito fácil ver e fazer vídeos, quando eu era criança a professora precisava solicitar o vídeo cassete à direção e íamos para uma sala especial, aonde traziam a TV, o vídeo e deixavam tudo instalando para nós. Por isso, na minha época era importante e acho que, quando mais recuamos no tempo, mais importante ainda ela era: a taxidermia. Para quem não sabe, a taxidermia era a habilidade de empalhar corpos, geralmente de animais selvagens. Íamos aos museus e tinha lobo guará, raposa de não sei onde, todos em posturas que imitavam como eles eram em vida. Eu vi em vários programas americanos que algumas pessoas empalhavam seus animais de estimação. Entrevistava o Fulano na sua sala de estar, cheia daquelas cabeças de caças, e também estava no canto o Woolf, companheiro canino que o ajudou em tudo aquilo. A lembrança me veio à mente quando a minha cadela Dúnia ficou doente e pensei que ela morreria, aí me perguntei se eu seria consolada se pudesse olhar para ela todos os dias, sem jamais perder sua presença física. A resposta é não, mas confesso que pela primeira vez percebi que não é totalmente loucura empalhar um bicho de estimação. Algo que me relaxa como poucas coisas na vida é acariciar a Dúnia, enquanto me abaixo e respiro fundo para sentir o seu cheiro.
Tentei achar um vídeo muito engraçado que vi há alguns anos que era sobre o fato de quase todas mulheres solteiras que viviam sozinhas terem gatos. Como um bom vídeo de humor, ele invertia a lógica: as mulheres não teriam gatos por serem solteiras e sim continuavam solteiras porque seus gatos boicotavam os relacionamentos. O ápice do vídeo é quando um gato escreve na cabeceira da cama, com cocô: “quer casar comigo?” apenas para o pretendente e apaga a prova do crime antes que a dona saia do banheiro. Os nossos bichinhos de estimação nunca foram tantos e tão importantes, tanto em quantidades de lares como nos gastos, no nosso investimento emocional. Há também a piada que diz que, quando os filhos entram na adolescência, é importante adotar um bicho de estimação para que a pessoa vivencie alguém demonstrar felicidade na sua volta para casa. Nossos bichos viraram nossos filhos, muitas vezes a nossa fonte primária de amor – ou até mesmo a única. Somos pessoas solteiras trancadas em apartamentos pequenos com bichos de estimação, carentes de contato e incapazes de obter isso dos nossos vizinho, também trancados nos seus pequenos apartamentos e sem amor…
Eu lembro a primeira vez que a minha mãe me contou a tradução de Eleanor Rigby . Eu gostava muito dos cellos e adivinhava que era uma música triste. Quando ouvi a história, na típica simplicidade infantil, disse que era um problema muito fácil de resolver: bastava apresentar a Eleanor ao Father McKenzie. Minha mãe não soube me explicar o porquê, apenas disse que seria bom se fosse tão simples.
Uma das coisas mais tocantes que eu já li foi a primeira história que Oliver Sacks conta no seu livro Um Antropólogo em Marte. Ele encontra uma autista que trabalha tentando reduzir o sofrimento dos animais no abate. Ela conta o seu ponto de vista, como autista: quando criança, ela tinha a sensação de que as outras crianças conheciam uma linguagem secreta que ela não, que compartilhavam algum segredo, porque ela estava sempre por fora e não conseguia entender o que era. Eram os sinais não-verbais, tão claros às outras pessoas, e que seriam sempre difíceis para ela. Ela não se sentia parte da espécie a que deveria pertencer, ela era como uma antropóloga em meio a marcianos. A criança cresceu e virou cientista, estudou seu próprio diagnóstico, encontrou estratégias para lidar com ele e tinha uma vida organizada, era uma profissional bem sucedida. Conhecemos os autistas como pessoas que têm dificuldade de contato, inclusive a falta de contato visual é uma das características mais fáceis de detectar na infância. A dificuldade em aceitar o toque pode nos fazer pensar que eles não desejam e não sentem falta de nenhum tipo de toque, que são seres completamente independentes nas suas mentes. Pois bem: ela mostrou ao Dr. Sacks que havia inventado um aparelho que lhe transmitia a sensação de um abraço. Levou muito tempo para ela ajustar a maciez, o calor e a pressão certa, mas ela conseguiu fazer uma máquina que transmitia a sensação de conforto que ela tinha dificuldade de pedir e aceitar com outras pessoas. Quando a vida estava muito árida, ela se colocava dentro do seu abraço particular e se deixava ficar ali, até se sentir melhor. No final da história, Oliver Sacks lhe dá um abraço – e termina dizendo que achou que foi correspondido.
Gosto muito de imaginar essa cena porque sei que estavam ali duas pessoas com muito afeto e pouco abraço e que fizeram, naquele momento, uma grande superação das suas próprias barreiras para demonstrar seu afeto. O Dr. Oliver Sacks, que se tornou famoso quando seu livro Tempo de Despertar foi transformado em filme (1990), era uma pessoa extremamente tímida. Eu não tinha clareza disso até ler os livros de fases mais adiantadas da sua vida, como Tio Tugstênio e o Diários de Oaxaca. As suas obras me transmitiram um afeto e uma curiosidade tão grande sobre as pessoas que eu sempre o imaginei aberto, sorridente, abraçador. Quando vi que não era, que ele é muito mais a pessoa que passa uma excursão inteira sem mal interagir com seus colegas de viagem, entendi perfeitamente, porque também sou tímida. Às vezes nós, tímidos, podemos ter muito amor e curiosidade sobre os outros e só conseguir exprimir isso por escrito. Pessoalmente são muitas as barreiras, o medo da inadequação, a incapacidade de pedir; o tempo da escrita acaba nos dando muito mais liberdade de sermos francos.
Acho que todas as religiões deístas insistem na ideia do amor divino. Deus nos ama, por isso criou o mundo, por isso o mantém, e de vez em quando manda um filho ou encarna pessoalmente para demonstrar Seu amor por nós. Cantamos canções que ressaltam esse amor, vemos os sinais dele quando coisas boas nos acontecem e em momentos inspirados conseguimos sentir e acreditar que sim, há um Deus e ele sente muito amor por mim. Mas por mais que o fiel se esforce, ainda é muito abstrato. Talvez por isso, por mais que as mesmas escrituras que falam do amor divino alertem sobre falsos profetas ou que não vai haver outra encarnação divina tão cedo, as pessoas continuam querendo acreditar que o amor divino está perto. Elas acreditam que algumas pessoas representam Deus ou que estão muito próximas Dele, e isso lhes dá a autorização de serem lideres e pedirem favores. De grandes curandeiros de renome internacional até o pastor num vilarejo, periodicamente aparecem notícias de vítimas de gente inescrupulosa (ou apenas maluca) que age em nome de Deus. Semelhantes aos golpes de homens que pegam dinheiro de mulheres solteiras maduras, parece que nenhum alerta consegue evitar que esse mal aconteça, continuamente. Eu acho fácil entender o motivo: amor divino abstrato não é nada diante de ser amado por alguém de carne e osso. Ser amado como coletivo não é nada quando comparado a ser especial a alguém.