Os piores conselhos possíveis

Um dos muitos motivos que me levou a abandonar a psicologia foi por achar que eu não teria paciência para entender o longo processo que é acordar para o que se tenta negar. O insight tem a característica de ser súbito e extraordinário, mas a verdade é que ele costuma ser o fim de um processo, uma busca cheia de idas e vindas, uma tatear na parte clara, igual o cara da metáfora que perdeu as lentes de contato longe do poste, mas procurava ali porque era aonde tinha luz. Para quem está de fora a decisão mais saudável pode parecer cristalina, resumível em uma frase, mas de nada adianta apenas dizer, o sujeito tem que chegar nela por si só. Enquanto não chega, ele arranjará substitutos, motivos, falsas soluções, doenças, respostas criativas e ridículas, tudo para não encarar o que lhe parece ser uma dor insuportável demais para ser enfrentada. Um bom psicólogo deve ter equilíbrio para entender o processo e não tentar apressar o que não pode ser apressado. Mas às vezes pode ser angustiante demais esperar e a assistir o outro se debater na sua incapacidade. Então, que bom que euzinha não tenho obrigação nenhuma com relação ao aconselhar.

Eu já fui partidária da verdade a todo custo, no chorar todas as dores, em colocar os podres na mesa. Aconteceu comigo o que acontece com todos idealistas: eu virei adulta e descobri que só funciona nos filmes. Abrem-se buracos ainda maiores, as mágoas vão atingindo histórias do passado que não tem mais fim, as palavras possuem significados pessoais tão diversos que fica impossível controlar o que chega do outro lado. Pensar que dizer o que nos atinge para alguém na esperança de que isso despertará o seu senso crítico é quase como esperar que políticos não sejam corruptos. É fácil entender: nós mesmos não somos lá muito auto-críticos. Mesmo quando achamos que somos, quando praticamos constantemente o olhar sobre o que fazemos, criticamos sempre os temas que nos são caros, não conseguimos sair da mesma lógica. Eu me preocupo em tratar bem as pessoas e estou constantemente me vigiando, julgo quem hierarquiza, avalio os outros pela maneira como eles lidam com estranhos ou com quem os serve, e assim me sinto uma boa pessoa. Alguém que diga que muito mais importante do que tratar bem estranhos é tratar primeiro os que nos são mais próximos, ou seja, a nossa família, já joga por terra tudo o que eu faço e me coloca no hall das pessoas ruins.

Lembro de uma época que estava tentando vender meu trabalho artístico e encontrei um site ligado ao banco. Era uma proposta de vendas que teria uma grande visibilidade e seria internacional, mas deve ter sido um desses projetos experimentais e sem apoio dentro da própria instituição, porque no fim era apenas uma página feia visitada pelas próprias pessoas que se filiaram nela. Eu tinha uma amiga mais ou menos na mesma situação que a minha – artista sem visibilidade -, e indiquei o site a ela. Era uma pessoa de quem eu gostava e aquela indicação nos afastou. Embora fosse uma filiação gratuita e sem nada a perder, essa amiga passou a me perguntar diariamente se eu garantia, se era bom mesmo, se estava dando certo, que ela queria ter certeza. Pra mim aquela tentativa dentro do site já era algo pesado pois, assim como ela, eu também tinha um histórico de fracassos e de nunca alcançar visibilidade. Eu só quis ajudar e arranjei alguém que me cobrava diariamente por algo que eu não tinha controle.

Nunca esqueci esse episódio porque ele talvez seja o mais comum quando tentamos ajudar. Mais de uma vez quis saber o que certos amigos ouvem em terapia, porque de longe me parece muito claro que eles estão andando em círculos e a terapia me parece tão ineficiente quanto tentar se alimentar de luz. Tenho a fantasia que alguns deles decidem conversar a sério comigo, pagando uma sessão e dando a mim o status de sua psicóloga, e posso uma única vez lhes dizer o que penso, para o que eles não acordaram, o que devem fazer, e a partir daí eles vão conseguir ajeitar suas vidas e não serei obrigada a vê-los sofrendo de maneira repetitiva – se é pra sofrer, que pelo menos sofram com novos temas. Mas a verdade é que eu não lhes diria o que penso e agiria como as psis deles agem. O que tenho em mente nas minhas fantasias são Os Piores Conselhos Possíveis. São conselhos selvagens, conselhos que jogam para um ideal que nada tem a ver com o que eles conseguem e sim com o que poderia ser. Nessa fantasia, eu os estimularia a serem corajosos, diria que quem tem razão é Guimarães Rosa, citado na posse da Dilma, citação que ganha uma grandeza ainda maior se levarmos em conta o que aquela mulher viveu e aonde ela chegou: “o correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

Num vídeo recente, um astrólogo chamado José Millán disse num de seus videos algo mais ou menos assim: “Viver é menos sobre buscar a felicidade e mais sobre tentar tornar essa experiência algo interessante”. Eu fiquei surpresa em alguém colocar em palavras algo que eu achava que era muito meu. Assim como meus Piores Conselhos Possíveis, eu também sou campeã das Piores Decisões Possíveis e me encontrar, aos meus quarenta, solitária e iniciante em tantos níveis. Se ninguém olha para mim e deseja ser como eu, também não posso ser alguém que diga aos outros o que fazer – percebi isso bem claramente pela maneira como meus conselhos amorosos são totalmente desprezados. Sem dizer que eu desconfio que haja também na questão dos conselhos uma diferença geracional, o tal do “essas novas gerações não suportam nada”. Uma conjunção de fatores muito difícil de mapear tornou as novas gerações menos aptas ao sofrimento, isso é fato. Na minha era comum dizer: “se você tem como se sustentar, separa desse canalha e pronto”. Nós sabíamos – ou achávamos que sabíamos – que no começo seria difícil e que depois tudo se ajeitava, valeria a pena. A verdade é hoje que dá medo aconselhar. Parece que com qualquer conselho mais corajoso, se seguido, quebraremos a pessoa em mil pedaços, ela vai estar deitada numa cama e cheia de remédios, sem conseguir sobreviver e repetindo que foi tudo culpa nossa, por ter lhe dado o Pior Conselho Possível. O mais fácil é deixar a pessoa ficar na sua roda de hamster.

Quantas bocas a cidade vai abrir pruma alma de artista se entregar

Eu fui ver a exposição Os Gêmeos – Segredos no Museu do Olho e fiquei bastante tocada. Eu já conhecia o trabalho deles e achava bonitinho, reconheceria aquela figura em qualquer lugar. Como toda exposição badalada, as fotos começaram a aparecer nas minhas TLs e eu achei que já sabia o que veria. Não sei como a exposição fica montada em outras cidades, mas aqui é preciso subir alguns lances de escada para chegar nas obras, e nesse percurso vamos conhecendo o próprio percurso dos dois. Eu sou TOC demais para passar por tanto material sem parar diante dele e ver, mas confesso que fiz isso com uma certa impaciência; há desenhos de infância, anotações, fotos de pichações, coisas que só pais muito zelosos – ou certos da genialidade dos filhos – são capazes de guardar. Mas aquele material foi me informando sobre os dois de uma forma que fui me sentindo familiar, como se fossem vizinhos meus: dois irmãos tão inseparáveis que são até colocados em salas diferentes para aprenderem a interagir com os outros, crianças que amam desenhar e se dedicam mais a rabiscar seus cadernos do que fazer as lições, adolescentes que vão pras ruas, dançam, picham, somem pelos becos sujos, andam entre os trilhos e parecem que nunca serão ninguém na vida. E os desenhos persistem, e como qualquer atividade com uma dedicação insana de horas, eles vão se tornando bons, até que chega um momento que tudo parece se encaixar. Depois de tantos desenhos bonitos e feios, chega uma hora que falamos: opa, chegaram Os Gêmeos. E quando subimos no Olho, na exposição das obras propriamente ditas, vemos a biografia deles em cada detalhe. Eles são os meninos com a camiseta cobrindo o rosto, eles estão parados em turma fazendo pose para foto, são eles encostados no muro, eles abrem os braços pro céu cinza e respiram fundo o óleo diesel dos carros. É sempre a mesma coisa – o personagem amarelo, na cidade, em muros e metrôs, roupas estampas, fundos coloridos – e sempre se renova, cada obra consegue acrescentar outra informação e despertar nosso interesse. Olhar o trabalho deles foi como estar diante de uma árvore frutífera em plena saúde.

Não devo ter sido a única pessoa que já soube de psicólogo (ou pedagoga) tentando criar o filho para ter altas habilidades. Em escolas de música, também aparecem pais que querem colocar crianças muito pequenas, que mal têm coordenação motora, para aprenderem algum instrumento. Quando se diz a criança não atingiu a idade mínima, eles não querem obedecer, porque o objetivo é justamente que a criança “saia na frente” das outras. Cada área possui informações sobre o que torna um indivíduo excepcional e é claro ter informações privilegiadas nos faz querer aplicar. No caso de ter altas habilidades, o segredo está no papel do estímulo e as janelas de oportunidade do cérebro da criança ainda muito pequena. O meio artístico também tem suas fórmulas. Na minha curta carreira como escultora, eu recebia como reprimenda não ter foco. Eu produzia muito, mas a cada escultura eu tentava algo diferente, e as pessoas diziam que assim meu trabalho não se tornaria marcante. O grande artista necessariamente tem um estilo característico, uma constante que permeia seu trabalho. Ao longo da minha vida convivendo com a busca (minha e dos que me cercam) pelo “grande talento”, já vi pessoas abraçarem as ideias mais esdruxulas na tentativa de ter esse “quê”, algo apenas seu. Era essa a pressão que eu sofria, de ter alguma marca muito específica, qualquer que fosse – e como foi uma carreira fracassada, quem sou eu para dizer que não estavam certos. Nos Gêmeos há temas claros: urbano, periferia, hip hop. Mas, quando vemos a trajetória deles refletida em inúmeros registros ao longo da vida, todos aqueles desenhos de infância, não me parece que eles tenham tido a preocupação de escolher e focar, e sim que eles estavam ocupados vivendo. Eles viviam e desenhavam. Outra coisa dos Gêmeos é que às vezes dá a impressão de que apenas se pinçou uns pichadores e se colocou holofotes sobre eles, tamanha a representatividade do trabalho. Essa é outra característica de grandes artistas: conseguirem expressar uma época.

Lendo a biografia de músicos, escritores, artistas plásticos e dançarinos, é raro que os grandes de uma época não estejam todos nos mesmos lugares e festas, sempre parece haver algum Bloomsbury Club. Artistas que conseguem se manter relevantes durante décadas parecem ser sempre aqueles que incorporam o novo do seu trabalho. Pode ser algo orgânico, como me pareceu ter sido o interesse dos Beatles na literatura e na arte – mesmo porque foram eles uns dos primeiros a inaugurarem a fama mundial. Pode ser também uma necessidade, justamente porque o precedente já foi criado. Numa série ótima sobre o Frank Sinatra, que já saiu do catálogo Netflix, vemos que aparecer ao lado de Elvis na TV foi uma escolha totalmente mercadológica, Sinatra detestava rock. Ele também se vestiu mariachi, dançou quando a dancinha estava na moda, fez o que foi preciso para continuar sendo relevante. Ou seja: se você quiser ser grande, foque. Mas também desfoque.

Eu sempre penso numa moça, filha de um cantor de uma dupla sertaneja famosa, que passou anos tentando ser cantora também. Ela teve os melhores professores de canto, o melhor look, o melhor repertório e a melhor publicidade que o dinheiro era capaz de comprar, mas nunca deslanchou. Numa maneira mais cínica de olhar o assunto, poderíamos dizer que são as roubadas, as dúvidas, os bares sujos, os trabalhos mal remunerados e o convívio com o fracasso que realmente forjam o artista. Mas Chico Buarque (Vinicius de Morais, Jorge Amado, etc.) nasceu muito bem, teve acesso a tudo e conheceu o sucesso muito jovem, então também não é necessariamente por aí. Lembro de uma descrição do livro “O burlador de Sevilla” (2000), de João Gabriel de Lima que dizia mais ou menos assim a respeito de uma personagem: ela é uma dessas pessoas que tem uma vocação artística, mas é algo difuso, então ela passeia por diversos tipos de arte, sempre sendo boa, mas nunca excepcional. Acho essa descrição uma facada, de tão maldosa e precisa. Foi apenas quando eu me apaixonei por balé, toda velha e toda fora do biotipo, pagando pra ter aula e subitamente apaixonada por todos aqueles acessórios cor de rosa e desenho de sapatilha, que eu entendi que o artista excepcional é o topo de uma piramide – centenas de milhares de apaixonados, com graus diferentes de mediocridade, que fazem com que aquela arte não morra porque a financia e assiste. É justamente a nossa incapacidade que nos faz dimensão do quanto eles conseguiram de especial. A grande arte é algo que passa pelo incontrolável, ela precisa despertar paixão. Como se desperta uma paixão? Podemos nos fazer bonitos, arranjar um lugar romântico, falar as palavras mais agradáveis… e mesmo assim pode não acontecer.