2020 para mulheres

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Não vou listar as últimas novidades de um dia nas redes sociais, que incluem balarorixá estuprador e homem indo ao cinema com onze mulheres. Terminei recentemente a série sobre a vida de Luís Miguel (Netflix) e chama muito atenção a relação entre os pais dele, a maneira como a mãe foi esmagada pelo marido. Eu fui uma menina criada entre meninos, apenas com irmãos, então nunca soube o que era ter do meu lado uma irmã para discutir vestidos, paqueras, dicas de maquiagem. Em compensação, era eu a mais apta a dizer para as minhas amigas o ponto de vista deles, que lhes parecia tão misterioso. No excelente “Que co#o está pasando?” (Netflix), citam que atualmente os meninos já acessam pornografia com oito anos de idade, enquanto as nossas meninas sonham em ser princesas – não precisa ser nenhum gênio para concluir que há um abismo aí. Eu entendo perfeitamente a decepção de muitos homens com aquelas (eu no conjunto) que cortam o cabelo bem curto, “cabelo de homem”; os cabelos longos são um símbolo tão feminino, uma vaidade que dava um trabalho imenso para a mulher e que eles desfrutavam tanto. O cabelo que “não tem onde pegar” pode lhes apontar mais do que uma falta de vaidade, pode ser a recusa de ser levar para dentro da vida deles um universo de delicadezas que, como homens, eles não estão autorizados a acessarem sozinhos.

Mas o que realmente me vem forte neste fim de ano é a constatação da fragilidade das mulheres. Da temerária tendência a confiar, abrir mão e ceder. A dificuldade de ouvir o próprio corpo gritando de insatisfação, a vontade de ir embora, a confiança nos próprios instintos. Será possível criar com cor de rosa, vestidos e constantes elogios à aparência e ao mesmo tempo essa menina ser capaz de levantar a voz, gritar por ajuda, ser grossa quando não há ninguém ao lado para apoiar? Mais do que fora de moda, a feminilidade tradicional nos tem colocado em risco;. quando vejo uma mulher boazinha demais, temo por ela.

Curtas sobre fragilidade

É sempre a mesma coisa: eu nado há anos e nado bem. Aí aparece um homem na turma, que nada mas não está acostumado com o ritmo puxado da aula. Começa uma série, digamos que dez tiros de cem metros. Além de conhecer o meu ritmo, as séries de resistência são as minhas preferidas, o meu desempenho vai melhorando com o esforço. No primeiro tiro, eu nado mais rápido do que o tal aluno novo. Do segundo em diante, o sujeito faz de tudo pra ganhar de mim. Eu chego na raia tranquila e ele está com os pulmões pra fora. Até que ele não consegue manter mais e nos últimos tiros está quase uma piscina inteira atrás de mim. Por que tudo isso? Porque eu sou apenas uma mulher, eles precisam ganhar de mim.

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Aplicativo de karaokê: quase todas as letras de música são cantadas numa primeira pessoa do sexo masculino. Eu canto a letra tal como ela é, todas as mulheres que eu ouvi cantando fazem a mesma coisa. Só que de vez em quando, muito raramente, aparece uma letra com uma primeira pessoa no feminino. Dá pra perceber: o sujeito vai cantando normalmente, aí chega na parte feminina – “estou apaixonadA”, “estou sentidA” ou “você é meu queridO” – , e o sujeito tem um mini ataque de pânico. A palavra sai atrasada, num tom diferente – e no masculino. Vai que uma pessoa o ouve interpretar uma música num aplicativo, de nickname irreconhecível, e conclui que se ele canta música de mulher no feminino é porque gostaria de ser uma? Sempre lembro deste vídeo:

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Já comentei o caso aqui. Eu ia na loja quando era casada e o dono ficava conversando com o ex. Fui na loja recém-separada e o dono passou a me virar a cara. Depois, inesperadamente, me tratou bem. Pediu abraço de fim de ano e até aí ok. Na vez seguinte foi mais explícito na cantada – se eu percebi é porque só faltou a pessoa anunciar em carro de som. Não fiz nada, apenas na vez seguinte fui para as prateleiras; se tivesse interessada, teria ido falar com ele. Ele me cumprimentou, entendeu, tudo muito sutil. Pois bem. Voltei. O sujeito me deu um sorriso tão agressivo que foi como se eu tivesse corneado o sujeito e voltado na loja pedir produto de graça? Minha vontade foi dizer pra ele: Percebe que você criou uma história sozinho, que EU NUNCA TE FIZ NADA?

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Estou espalhando esta raiva por aí. LINK DA NOTÍCIAUma mulher ultrapassou homens que partiram 10 min antes de bicicleta e decidiram para-la e todas as outras mulheres por sete minutos – tudo para que os pudessem recuperar a vantagem e os seus egos não sofressem danos permanentes. É uma metáfora tão clara sobre o que é ser mulher. Feliz dia. Reclamemos.

O sol, a praia e a filha

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Naquela época não se falava de efeito estufa e câncer de pele. As mulheres estendiam as cangas na areia, se besuntavam de bronzeadores e ficavam horas deitadas. Primeiro de um lado, depois de outro, depois volta, deita de bruços e desata o cordãozinho do biquíni. As meninas, ao lado das mães ou com suas próprias cangas e ao lado de outras meninas, faziam a mesma coisa. A areia escaldante da praia era um mar de gente, de mulheres ao sol, homens protegidos por guarda-sóis ou nas barracas, vendedores ambulantes de comida, mais bronzeadores, picolés. Meu pai, que sempre quis ser pai de muitas meninas, só teve a mim, e olha que foram cinco tentativas no total. A praia era o seu quintal, seu ponto turístico, seu restaurante, o local de reunião com os amigos, nunca vi alguém gostar tanto de praia. Sem exagero, meu pai passava tranquilamente dez horas por dia na praia no fim de semana. Aí a filha dele vinha e se recusava a deitar na areia. Eu juro que tentei, mas ficar deitada no sol me dava aflição, ficava entediada em poucos minutos, como alguém podia gostar de sentir tanto calor ao invés de ir pra sombra. Eu ia para a praia porque amava o mar, amava pegar onda e almoçar acarajé. Ele tentou me obrigar ao ritual da areia, apreendia a prancha, me fazia me estender e cronometrava o tempo. Se todas as mulheres se adaptavam e diziam adorar tostar ao sol, por que eu não? Ele via que minha aflição de ficar deitada era verdadeira. Não que eu voltasse das férias branquinha, de jeito nenhum, eu pegava tanto sol que descascava por cima do descascado, não conseguia dormir por causa das queimaduras. Só que eu me bronzeava muito de ficar na água, ficava com a marca camiseta que me protegia quando pegava onda pra lá da arrebentação. Talvez a raiz fosse a falta de vaidade, a maldita falta de vaidade, a mania de me misturar com os moleques pra brincar na rua. Quando ele tentava me fazer ficar amiga das crianças mais frescas da vizinhança, as filhas dos amigos dele, ficava pior, eu as detestava. Mas pelo menos eu ia à praia, ele tinha que reconhecer que eu era a que mais gostava de praia, como nenhum dos outros filhos, tudo por causa do mar. Talvez se o destino tivesse permitido que o meu pai tivesse tido outra filha, qualquer outra filha, ela seria um tiquinho mais vaidosa, teria gostado de pegar sol. A outra voltaria pra casa cedo, pra tomar banho e vestir roupa bonitinha, andar calmamente, orgulhosa do cabelo bonito e da atenção dos meninos. Com outra filha ele não teria brigado tanto, uma guerra que às vezes era aos gritos, mas que na maior parte do tempo era um jogo de forças: ele querendo que eu fosse o que uma mulher devia ser, eu querendo ser quem eu era, independente da concepção dele de mulher. Não foi fácil pra ele ser meu pai, não era nisso que ele pensava quando dizia querer ter filhas. Mas tenho certeza nenhuma outra teria mostrado a ele, com tanta intensidade, que força e teimosia também são características femininas.

Os finais felizes das outras

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Eu tinha um crush. Quando eu comecei a stalkear, ele estava sozinho. Aí ele jantou romanticamente com uma mulher. Quando a vi, quis morrer, ela era linda. O problema é que não era uma linda por ter nascido apenas com traços bonitos, era linda no sentido de investir muito na sua aparência e personificar tudo o que se espera de uma mulher, do cabelo às unhas, dos gestos ao modo de se vestir. Vi ali que não tinha a menor chance, o tipo dele era boneca. Fui investigar e descobri que era um namoro de anos, desses que balança e nunca termina. As fotos de cervejada com os amigos foram substituídas por vida noturna, roupas da moda, outros casais e muita família. Ela era a candidata da sogra, aposto que frequentam os mesmos salões e lojas. Ele perto dela é um bebezão. Ela sem ele trabalha e sai com as amigas; ele sem ela surta e não sabe o que fazer do seu tempo livre. Quando me dei conta, estava torcendo por eles, ou melhor, por ela. Parecia que desta vez ia, pra todo mundo. Mas aí ele resolveu sumir numa longa viagem, foi solteiro, aproveitou muito, e nos últimos dias começou a “snif, snif, eu a amo!”. Fiquei torcendo pra ela não cair na conversinha mole dele. Caiu, eu vi a foto. Mas romperam de novo. Ele está caçando. E ela postou, há pouco, uma foto num paraíso tropical, radiante ao lado de um homem mais maduro. You go, girl!

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Foi dos momentos de crueldade involuntária que vai me doer o resto da vida. Uma vez uma parenta me contou, rindo, que quando contou pro seu irmão dos chifres do namorado, ele lhe disse para abrir uma fabrica de botões, e fez um gesto de cortar chifres imaginários. Então, quando minha amiga que o recém ex-marido lhe colocou chifres demais ao longo dos anos, fiz aquele comentário. Eu sei, como eu sou idiota. Era um casamento com idas e vindas, e na verdade me parece que ela não ligava muito pros chifres. Mas aí o marido, no dia dos namorados, comunicou que ele e uma fulana, também casada, que fazia parte do mesmo grupo de amigos, decidiram ficar juntos. E deixou para trás mais de dez anos de casamento. Quando ela me mostrou a foto da tal fulaninha traidora, eu fiquei sem fala: uma moça linda, com seus vinte anos. Não entendi pra quê largar tudo pra ficar com aquele cinquentão feio, pobre e grosso. Minha amiga se mudou, ficou sem cachorro, arranjou novos amigos – os antigos não cansavam de encher a tl dela com fotos do novo casal – e passou a ser figura fácil na noite curitibana. Adora samba e negão. Dois anos depois, a fulaninha foi embora e ele está devastado porque a mãe está doente. Pra quem ele liga? Ela atende, porque gostava da sogra, mas só se não está ocupada.

Uma mulher para empurrar

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No filme sobre Gonzagão, ele fala para o filho, Gonzaguinha, algo como “mulher é como batida de automóvel, ela que empurra o homem para frente”. No caso de ambos, uma excelente administradora para a carreira de um e uma péssima madrasta para outro.

“Meu filho teve uma fase que só namorava mulherão”, ela me contou. O mais bonito de uma prole bonita, sempre chamou muita atenção, e escolhia as mais mais. Um vizinho morria de inveja, dizia que era desfile. “Não serviam para nada, apenas para serem bonitas”. A mãe alertou que ele não iria para lugar nenhum com aquele tipo de mulher. Ele amadureceu e parou.

“Eu tive um amigo que tinha uma noiva que tinha sido capa da Capricho. Sofreu um acidente de carro e foi parar na U.T.I. Ela nunca o visitou. E pensar que eu ia casar com ela, ele me disse”.

Além desse caso do amigo, eu poderia falar sobre aquela que é a pior união que eu conheço, a que fez a frase do Gonzagão fazer todo sentido para mim, só que no sentido negativo. Mas era pessoal demais pro horário.

Uma sombra masculina

 

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Eu desço pela porta da frente do ônibus. Está escuro e a rua é uma descida. Viro na primeira esquina à direita, onde a inclinação é tão grande que vou devagar, com passos miudinhos. É raro que alguém desça ali, e mais raro ainda que dobre naquela rua residencial. Às vezes um homem desce o ônibus comigo e nem sempre consigo deixar que ele me ultrapasse. Aí olho de novo para trás quando viro a rua, olho quando tento atravessar, olho fingindo atravessar, ando cada vez mais rápido. Ele sem dúvida percebe o meu medo, minha desconfiança provavelmente injusta porque ele entrou naquele ônibus e desceu naquele ponto por motivos próprios e não para me seguir. O homem que está lá atrás pode ser tão sensível e bacana quanto qualquer amigo meu – eu nunca saberei, e se ele tentasse me dizer alguma coisa ela soaria como um prenúncio de violência. Carros passam indiferentes, os som das minhas botas ecoa entre as árvores. Ele é um homem e eu tenho medo. Ele sabe. De longe, o homem caminha devagar, deixa que eu me afaste cada vez mais, que corra, que sua figura fique bem pequenininha para que eu possa voltar a me sentir segura.

Ser um homem, observado com atenção por mulheres. Isso deve ser inteiramente estranho. Tê-las observando-o o tempo todo. Tê-las se encolhendo quando ele se move, mesmo se for um movimento bastante inofensivo, estender a mão para pegar um cinzeiro, talvez. Tê-las medindo-o, avaliando-o. Tê-las pensando, ele não pode, ele não é capaz de fazê-lo, ele não serve, ele terá de servir, este último como se fosse uma peça de vestuário, fora de moda ou ordinária, que deve não obstante ser vestida porque não há mais nada disponível.

Tê-las enganando-o, testando-o, provocando-o, experimentando-o, enquanto ele se enfia nelas para o ato sexual como se enfia uma meia no pé, até a base de seu próprio toco, aquele polegar adicional e sensível, seu tentáculo, seu olho de lesma de talo delicado, que se saliente, se expele, se expande, recua, e murcha encolhendo-se de volta para dentro de si mesmo quando tocado de maneira errada, cresce tornando-se grande de novo, fazendo um ligeiro bojo na ponta, viajando para frente como se ao longo de uma folha, para penetrar nelas, ávido por uma visão. Alcançar a visão dessa maneira, essa jornada para o interior de uma escuridão que é composta de mulheres, uma mulher, que pode ver na escuridão enquanto ele próprio se esforça cegamente para frente.

Margaret Atwood/ O conto de aia, parte IV cap.15

A cobradora

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Foi por pura falta de opção que eu me sentei no lugar que fica colado na cobradora. Não sei se é da linha Interbairros 2, mas sempre fico impressionada do quanto conversam esses cobradores. Fico uns 20min no ônibus e tem papo do início ao fim. Aí calculo que o povo conversa a viagem inteira todos os dias e concluo que deve ser muito estressante ser cobrador de ônibus, é falação, história e social o tempo inteiro. Além do intercâmbio normal da cobradora e o motorista, ela estava com uma amiga sentada na frente dela, ou seja, à minha esquerda. Algumas vezes pareciam amigas de longa data e outras vezes não, uma descobrindo e tirando onda com o bairro que a outra mora naquele momento,os  dois violentos, um em Curitiba e outro na região metropolitana. De qualquer forma, a cobradora dominou a conversa. Por volta dos seus trinta anos, cabelo preso, o rosto alegre e sem maquiagem, a camisa do uniforme por cima de uma longa saia estampada me fizeram pensar que era crente. Depois soube que estava grávida, quem sabe a saia fosse por isso. De qualquer forma, a achei, na falta de uma expressão melhor, “bela, recatada e do lar”. Não que não seja, é que… Ainda mais que ela contou que o namorado arranjou ingressos pra um evento gratuito do Atlético e ela ia com as duas filhas, à tarde, e logo de manhã na linha perto do estádio já tinha mulher de micro-shorts e adolescente com tubão (refrigerante batizado com álcool) e ela avisou pras filhas que não iriam mais. E que nunca vai nesses eventos baratos de um real ou quarenta reais, que só dá nóia e mulher de boné virado pro lado.Que foi num evento com os três filhos, o filho queria levar o celular e ela impediu porque seria roubado, e só nóia, as filhas querendo chegar perto do DJ porque eram fãs e elas mesmas ficaram com medo e quiseram ir embora. Enfim, uma mulher tranquila que cuidava da família. Bem, não que não cuide da família, é que…

Quando eu já estava nas curvas finais, quase descendo, a cobradora contou de um bailão que foi com uma amiga. Do nada uma mulher ficou encarando ela. Ela virou pra mulher e apontou pra própria cara e fez gesto com as mãos, naquele típico “qualé?”. A mulher disse pra ela que ela estava encarando, que se continuasse olhando ia ter briga. A cobradora falou algo como “então bate aqui” e deu uns tapinhas no próprio rosto. Dali há pouco, a mulher veio com um copo de cerveja na mão e derrubou inteirinho no tênis dela, que era novo. Ela não fez nada. Depois a cobradora disse que tinha que ir ao banheiro, a amiga até se ofereceu pra ir junto, ela disse que não precisava. No banheiro, chega a tal mulher de novo. Pergunta, cheia de veneno, se o tênis tinha ficado muito molhado. Com uma cara de pouco caso a cobradora respondeu que não. “A gente pode resolver isso lá fora”, disse a mulher. A cobradora: “A gente pode resolver aqui dentro mesmo” e agarrou a mulher por detrás da cabeça, pelos cabelos, e bateu com a cabeça da dita cuja com toda força na parede. E saiu. Não teve testemunhas. Depois ouviu chamarem uma ambulância, porque tinha uma mulher desacordada no banheiro…

Dois comentários para a cabra

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A caixa do supermercado, pra mim:”Eu digo pra meninas que aqui no caixa rápido é só os filé. Os homens feios vão todos pra fila dos carrinhos”

(E minha resposta-teoria: “É que aqui é só gente solteira. Quem faz compra mensal tem família, eles são todos pais e já não ligam mais pra aparência.”)

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Duas empregadas conversando no tubo: “Meu patrão tinha uma festa e veio todo bonito, perfumado e desfilou pra mim, perguntou se estava bonito. Eu disse sim, muito elegante. Imagina, aquele homem desfilando pra mim! Se eu pego ele de jeito, jogo numa cama e…”

Mulheres sentadas em círculo

Eu tenho uma amiga que trabalha como terapeuta de mulheres e faz uns workshops que só de olhar os títulos me arrepia. Workshop de utero. Sim, útero. Aí vejo as fotos e tem um monte de mulheres sentadas em círculos. Piora: ela faz vários, então senta em círculos várias vezes. Sempre achei o horror dos horrores, até o dia que tive uma epifania quando vi minha professora de flamenco dançar. Já havia visto muitas vezes, mas naquela vez eu havia me desentendido com ela a respeito de uma flor e andava sacuda com essa fidelidade ao flamenco de raiz, queria inovar em flor, figurino, etc. Naquele dia, entendi que a tradição diz coisas muito profundas, trabalha com arquétipos, nos faz economizar caminhos. Que minha amiga tem razão, que as mulheres sentadas em círculo dizem umas para as outras coisas que de outra forma não obteríamos. Mulheres juntas, mulheres se apoiando, isso não deveria ser antigo. São coisas que a gente não deixou de lado porque se modernizou e sim porque se perdeu. Sim, tradição não é só lixo, às vezes é pura perda.

Por incrível que pareça, quem me fez pensar em tudo isso foi a Madonna. Sempre a vi como uma espécie de deusa invencível, e vem ela dizer que sentiu falta de apoio. Madonna precisou sentar com mulheres em círculo e a gente nem sabia.

Fêmea

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Do mesmo modo que quando somos jovens a gente olha pros velhos e acha que nunca será daquele jeito, que até lá a ciência vai estar evoluída, que não teremos que fazer escolhas como tomar ou não estrogêneo, que de certa forma aquelas pessoas se entregaram, que com a gente vai ser diferente, que o vigor da nossa alma impedirá o corpo de envelhecer; desse mesmo modo, eu fui uma menina que olhava para as mulheres mais frágeis e, antes de saber que existia algo chamado adolescência e seus hormônios, achava que de certa forma as mulheres se entregavam, se deixavam ser mais fracas do que os homens. A psicanálise me indignou logo no começo da faculdade, e me recusei a estudar como se fosse sério que um homem, por ter um órgão reprodutor externo, podia ser tão mais do que nós. Eu fui indignada e auto-determinada o quanto pude; quanto mais os anos passam, mais vejo o gênero determinando minhas escolhas, minha conduta, minhas inseguranças. Sim, eles têm o falo. Não acho que seja físico e inevitável, mas reconheço que essa construção é poderosa demais. Não tenho grandes provas teóricas pra oferecer, penso na auto-confiança inabalável de todos os homens que eu vi no teste prático do DETRAN, que quanto mais provocados pelos instrutores mais faziam direito pra mostrar pro fdp, enquanto as mulheres iam condenadas, se arrastando e desmoronavam à menor insinuação. Uma amiga minha define com “chega o cara velho, horroroso, caído, da mau hálito e vem te cantar na maior autoconfiança, num estado que se fosse uma mulher nem ao menos sairia de casa”. Me vejo assim, me percebo assim, precisando de aprovações, estudando o ambiente, pisando com cuidado, passos que homens não hesitariam em dar. Já ouvi que escrevendo como eu, Fulano faria um estrago. Faria mesmo, Fulano e qualquer outro Fulano, desde que homem, desde que com seu falo mágico. Falos que amam outros falos, porque sabem ser tão auto-confiantes e viris, fazer o que se mulheres coincidentemente são menos talentosas? Falo que lhes permite centrar nos seus desejos em busca do próprio prazer, enquanto as criaturas sem falo se perdem ao analisar tudo o que as cercam antes de pisar no chão. Aí tem que fazer, como fazia uma amiga quando trabalhava num meio masculino: visual impecável, tudo no lugar, tarefa de casa estudada, estatísticas, meia calça extra na bolsa. Não por vaidade, e sim para não ter com que se preocupar, para a partir daí ter voz. Fêmeas, fêmeas. É como se a nossa linha de largada estivesse metros atrás.

Solitária

Não precisava saber de tudo, como eu sei, pra adivinhar que ela tem passado os dias deprimida. A cara, as roupas, os gestos, o sumiço, tudo denuncia que as últimas semanas não foram fáceis. Há um certo momento que dizemos para nós mesmos que não dá, que é preciso fazer as coisas, então voltamos a fazer as coisas. Mas isso não quer dizer que estamos felizes, é apenas uma desistência da própria vontade de sumir. Era nesse momento que ela estava. Eu tento poupá-la da obrigação de ser gentil comigo e me dar carona e não consigo. Ela é gentil demais para se negar e eu diria até que esse é um dos seus problemas. Eu sei até o que ela acha que não sabe, porque as informações acabam chegando nos meus ouvidos sem que eu mesma busque. Durante todo trajeto, completo os silêncios: falo do meu telhado, das minhas vendas, dos meus projetos, minha da última apresentação… Céus, como as pessoas me suportam? Antigamente quem sabe que lhe dissesse para pararmos em algum lugar e que ela falasse. Mas atualmente, diante das minhas amigas que sofrem por amor, me sinto como ouvi de um estudante de medicina: “Eu detestava plantão de pronto socorro. Chega uma pessoa que sofreu acidente de carro e ela está tão quebrada, mas tão quebrada, que você não sabe o que fazer primeiro. Do dente ao dedinho do pé. Você não sabe que trata da perfuração do pulmão, da fratura exposta no fêmur, da parada cardíaca…”. Eu não sei o que dizer, não sei como reagir diante de minhas amigas com mais de trinta e que nunca namoraram. Não sou dessa geração de amores líquidos, a minha variava menos. Eu poderia arriscar uma lista de “defeitos” que atrapalham a vida amorosa delas mas, ao mesmo tempo, também não acho que quem está namorando seja tão mais perfeito. Sem dizer que eu acho que ninguém ouviria conselhos amorosos de alguém que não tem se mostrado hábil para arranjar alguém. Mas a minha solidão é diferente, ela não me dói. Não sei se por eu ter a segurança de um dia ter sido a escolha de alguém ou se por me ver sozinha há pouco tempo – o que quereria dizer que o desespero não me bateu por pura questão de tempo. Talvez não haja o que dizer. Se estivesse nas minhas mãos, eu lhes jogaria namorados como confetes, até todas ficarem felizes. Ao invés disso, penso em Eleanor Rigby.

Camille

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Quem é fã de Camille Claudel geralmente detesta Rodin. Do ponto de vista de quem a adora, inclusive pelas acusações da própria, ele foi um monstro que sugou o seu talento. Não consigo ver a coisa dessa forma. Primeiro porque ela tinha esquizofrenia, o que é muito sério. Assim como não dá pra encarar a depressão como tristezinha que basta lavar uma louça, qualquer visão romântica sobre esquizofrenia cai por terra nos primeiros cinco minutos dentro de uma instituição psiquiátrica. Isso, por si só, já é bastante forte. Outro ponto importante é o fato dela ser uma mulher apaixonada. Levanto aqui todas as críticas ao modelo de feminilidade que arduamente construído, incucado na nossa cabeça, tão útil a eles e tão difícil para nós – falo da tendência feminina de largar tudo em prol do seu macho. Noto essa tendência em mim, nas minhas amigas, em todas as mulheres apaixonadas. O sujeito sabe muito bem o que quer, quais são seus desejos, seus objetivos, seu norte. A gente, fêmea pessimamente condicionada, também sabe, ou não sabe, ou sabe marromeno e nesse plano existe uma suíte bem bonita com um neon piscando Amor. Ele tem o dele e não abre mão; como a gente sente que ele vai e vai mesmo, acaba sendo o lado que cede o que for possível para manter a relação. Aí o que nos acontece? Camille.

Mais prazer

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Todo mundo sabe que pra manter o cachorro comendo ração, nunca devemos dar comida normal para ele. Baste que prove uma vez a comida cozida pra que ele nunca mais se contente com aquelas bolotas secas e de sabor uniforme. Do mesmo modo que você pode se mudar de um apartamento pra uma casa grande com quintal, nunca o contrário, sob o risco de matar o cachorro de depressão. Na escala humana isso corresponde a empobrecer – nossas escolhas ficam limitadas ao dinheiro e um universo de coisas passam a existir apenas para os outros, embora ainda as desejemos. A mulher tinha que ser virgem antes de casar pra não ficar “estragada” e esse estragar nada mais é do que saber um pouco mais do seu corpo e do que ele pede. À mulher que não sabia de nada disso, o marido poderia oferecer o que quiser que estava bom; com a mulher experiente, é arriscado e é preciso se empenhar mais. Envelhecer nos retira potência e olhares; quanto mais isso foi importante, mais dói, mais a pessoa se recusa. Grandes leitores são difíceis de agradar, cada vez mais conhecedores dos mecanismos de escrita, cada vez mais famintos por mecanismos sofisticados. Até mesmo quem tem acesso a um grande professor, quando o deixa, fica na situação difícil de não conseguir ser mais aluno de ninguém. Quem experimenta o amor, aquele grande e marcante, nunca mais quer um mais ou menos. O prazer é a grande força que nos tira da caverna e transforma em sombra tudo o que não faz parte dele.

Maestria

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Laura Ingalls é tããão legal, vocês realmente deveriam ler. Ela é aquele típico caso de autor que parece muito simples, mas faz justamente o mais difícil -ela descreve o rotineiro, o costume, a passagem dos dias. Suas histórias não tem nada de mirabolante e descrevem o estabelecimento da família Ingalls nos EUA. No Anos Felizes, de certa forma o último da série, Laura já está mocinha e namorandinho seu futuro marido. A rápida mudança que a tecnologia fez na vida torna certos detalhes deliciosos: a máquina de costura está surgindo, sete casinhas durante milhas já é uma cidade grande, as estações do ano governam a vida, etc. É outro mundo; Laura se casa de preto, porque muito mais importante do que um vestido branco era ter um vestido novo, e ela acaba não tendo tempo. Naquela época, a família comprava o tecido e se fazia O Vestido de Verão – aqueles com anquinha e tudo – e ele deveria durar muitos anos.

Este trecho é maravilhoso. Como já disse no outro post sobre a Ingalls, Almanzo era um partidão e sua colega de escola Nellie Oleson  queria muito subir no carrinho dele. Almanzo se interessou por Laura muito antes dela por ele, mas a proximidade do terreno dele com o da família Oleson a preocupava. Um dia, num dos passeios de domingo, ele aparece com Leslie. Acho esse trecho delicioso porque ele tem toda irritação, ciúmes e maldade que qualquer mulher sentiria nessa situação sem que a autora precise explicitar qualquer uma dessas palavras:

Quando partiram, Nellie começou a falar. Admirava o carrinho; deixava escapar exclamações sobre os potros; elogiava o modo de guiar de Almanzo; e se excedeu quanto às roupas de Laura.

-Oh! – exclamou – Laura, seu chapeuzinho é simplesmente notável.

E não esperou resposta. Desejava tanto ver os lagos Henry e Thompson; ouvira falar muito deles; achava que o tempo estava simplesmente notável e que a região era linda; naturalmente sem igualar o Estado de Nova York, mas não se poderia esperar tanto no oeste, não era verdade?

-Por que está tão calada, Laura? – perguntou e sem parar prosseguiu, rindo muito: – Minha língua não foi feita para estar quieta, foi feita para tagarelar!

Laura sentia dor de cabeça; seus ouvidos vibravam com o contínuo falatório e estava furiosa. Almanzo parecia apreciar o passeio. Pelo menos, parecia divertido.

Foram até os lagos Henry e Thompson. Passaram a estreita língua de terra que o separava. Nellie achava que os lagos eram simplesmente notáveis; gostava de lagos; gostava da água; gostava das árvores e trepadeiras e simplesmente adorava andar de carro nas tardes de domingo; achava que era positivamente notável.

O sol estava baixo quando voltaram e como a casa de Laura era a mais próxima, pararam ali primeiro.

-Voltarei domingo, disse Almanzo, ajudando-a a descer e, antes que Laura pudessem responder, Nellie chilreou:

-Oh, sim! Viremos buscá-la. Não foi tão bom? Como foi divertido! Até domingo, então. Não se esqueça, estaremos aqui. Adeus, Laura, adeus!

O brilho secreto

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Quando aquele cara que eu considerava meio louco – e não no bom sentido – me falou com muita seriedade que disseram que ele tinha um tipo de mediunidade especial, que ele não é qualquer um, não pude deixar de sorrir por dentro. Acho que todo mundo já ouviu, de alguma fonte fidedigna, que somos especiais. Não digo aquele amplo, no sentido que todo mundo é filho de Deus, e sim um “VOCÊ, apenas você é assim”. Num caso muito angustiante que eu conheço, Ela desde sempre foi criada numa redoma, com mimos fora da  sua realidade e que claramente terminariam no início da vida adulta. Todo mundo tentou fazer alguma coisa, alertaram e ofereceram caminhos, mas ela nunca aceitou. Minha teoria é que, no fundo, Ela achou que seria salva – tudo aquilo era ela, lhe pertencia por direito, jamais lhe seria tirado. De uma maneira ou de outra, daria certo. Quem sabe um dia, andando por aí, ela conhecesse um homem rico e… Acho que é a união da crença do brilho secreto com a cultura do casamento que que torna as mulheres tão vulneráveis aos cafas: quando um homem no primeiro encontro já declara amor eterno, um lado diz que é impossível, rápido demais – mas o outro lado pensa: “quem disse que não é possível? Não é possível para os outros. Ele está dizendo isso porque me olhou por dentro, como ninguém nunca olhou, e o que tem lá é único e especial mesmo”. No início do documentário sobre Vivien Mayer, surge a pergunta: por que uma fotógrafa tão talentosa não correu atrás e não mostrou seu trabalho ao mundo? Eu acho que justamente por se saber tão boa é que ela não correu tanto atrás. O trabalho dela falaria por si. Eu tive essa ilusão quando esculpia. Todo mundo crê no brilho secreto, uns mais, outros menos – e talvez seja melhor fazer parte do time do menos, porque eles ficam inseguros e se mexem. Senão, ficamos na esperança de que um dia seremos descobertos e essa outra alma sensível vai nos tirar daqui – através de casamento, emprego ou galeria -, no meio desse lugar medíocre onde estamos por puro acidente.

Trinta

Trinta homens. Uma moça.

trinta

 

Por Marina Ferreira, no Facebook.

“Se ela estivesse estudando isso não aconteceria!”
Menina estuprada em escola de São Paulo reconhece agressores:http://glo.bo/1TZ6Ej0

“Se ela estivesse na igreja isso não aconteceria!”
Jovem é estuprada dentro de secretaria de igreja em Brasília:http://bit.ly/1NQpoVc

“Se ela estivesse em casa isso não aconteceria!”
Morre jovem encontrada com sinais de estupro dentro de casa na Zona Norte:http://bit.ly/1qMl4Lu

“Se ela estivesse trabalhando isso não aconteceria!”
Jovem é atacada e estuprada a caminho do trabalho: http://bit.ly/1P19Wpq

“Se ela tivesse um namorado fixo isso não aconteceria!”
‘Meu namorado me estuprou por um ano enquanto eu dormia’:http://bbc.in/27UhJvG

“Se ela fosse mais família isso não aconteceria!”
Adolescente com deficiência física é estuprada pelo tio em RR:http://glo.bo/1THnB47

“Se ela fosse menos ‘puta’ isso não aconteceria!”
Menina (de 1 ano e meio) morta em igreja foi violentada: http://bit.ly/1Z3LEM4

“Se ela tivesse mais cuidado isso não aconteceria!”
Jovem é estuprada em estação do Metrô de São Paulo: http://bit.ly/1WnjCgw