De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse

Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha
de alta classe
De dourado eu lhe vestia pra que
o povo admirasse
Eu não sei bem com certeza porque
foi que um belo dia
Quem brincava de princesa acostumou na fantasia

Chico Buarque/ Quem Te Viu, Quem Te Vê

Será que já aconteceu de um dia uma dessas mulheres que sabem se maquiar, andam de salto agulha e se sentem à vontade de blusa de seda no dia a dia dizerem para si mesmas: “acho que este tipo de roupa não me mostra do jeito que eu quero ser vista, gostaria de ser mais básica e não consigo!”. Porque eu sei que o contrário, da mulher básica se cobrar porque gostaria de ser mais elegante e feminina, acontece o tempo todo.

Comigo o “queria me vestir de maneira mais feminina” é uma crise recorrente. Já tentei mudar minha forma de vestir muitas vezes e somente quando, há poucos meses, fui testemunha da crise de uma amiga minha, me dei conta de que não é um problema exclusivamente meu. Minha amiga trabalha sozinha a e está quase se aposentando. Eu a conheci na academia, então achava normal vê-la sempre de roupas de ginástica. Depois comecei a perceber que ela também estava de legging e camisetas dry-fit no supermercado, na concessionária, no trabalho… Ela se arruma nas poucas vezes por ano que precisa ir a algum evento noturno, e vê-la de vestido, jóias, salto e cabelo de salão acaba sendo estranho. Há poucos meses, em meio à mudanças de vida, ela decidiu que não queria mais ser tão básica, que iria usar “um monte de roupas bonitas mofando”. Ela tirou saias e vestidos do armário, tentou novas combinações, usou de forma diferente o que já tinha… Só que, mais algumas semanas sem encontrá-la (pandemia, folks), e vejo foto dela no Facebook com a legging e a camiseta dry-fit de sempre…

O que me frusta nessa história não é o vestir-se em si e sim a questão do livre-arbítrio. Se não conseguimos mudar algo tão simples como a nossa maneira de vestir, o que dizer do resto? Como acreditar em se tornar uma pessoa melhor, descobrir em si um desajuste e tentar arrumar, ter vindo de um lar desequilibrado e tentar ser saudável apesar disso, abrir-se para um mundo novo de possibilidades? Comecei a pensar sobre a questão da roupa, do porquê parecer simples e na prática não ser, o que o tal fracasso revela.

O modelo de mulher vestida de roupas femininas exige tempo e dinheiro pra conhecer as maquiagens, as modas, as diversas opções de combinações, os cortes mais adequados à nosso tipo físico, que roupa vestir em que ocasião. São roupas que têm cortes mais elaborados e feitas de tecidos amassam, puxam fios, duram pouco ou precisam ir pra lavanderia. E existe aquele ideal que vai além da mera combinação adequada de todos esses elementos chamada “ter estilo”… A crise sobre como se vestir não acontecer com a mulher saia-salto-agulha e ser comum pá nóis – que andamos de transporte público e compramos na C&A em vezes – é bem revelador. Esta crise pode revelar uma incapacidade de geral de mulheres com determinados perfis (de renda, de idade, de cotidiano, etc) em se ajustar a um modelo elitizado. Ou seja: é pra ser caro, pouco acessível e nos deixar em crise mesmo. O ser “básica” é o fazemos mais naturalmente, as roupas que são mais fáceis de comprar e combinar, o que é confortável, o que dá pra vestir sem ter muito dinheiro ou passar muito tempo na frente do espelho. O tênis não machuca o pé, enfrenta qualquer tipo de chão, dá pra correr com ele; a mulher de salto praticamente só pode andar devagar porque é o único que dá pra fazer.

Uma curiosidade: sabem que os pés pequenos das chinesas não eram exatamente um fetiche por pés, né? Eles ficavam quase todo tempo enfaixados, porque doíam. A graça estava no fato da mulher ficar com pouco equilíbrio e ter um andar mais ondulante. Quando deu a revolução cultural, as mulheres com pés pequenos nem ao menos puderam tentar fugir, não dava. Nossa versão ocidental tampouco era confortável: os espartilhos não apertavam apenas a cintura como espremiam as costelas e tornavam a respiração superficial. Não é à toa que as mocinhas desmaiam com tanta facilidade e existem tantos quadros com mulheres languidamente deitadas em chaises-longue. Interessante pensar que tornar a mobilidade feminina algo difícil – tanto literalmente quanto figurativamente – seja um atributo que torne as mulheres mais atraentes aos homens.

Às vezes as pessoas tentam aproveitar uma grande mudança na vida para melhorar o resto. Por exemplo: muda de emprego e já aproveita pra chegar no lugar novo com outro corte de cabelo e uma nova forma de vestir. Tenho uma amiga que aproveitou uma mudança de cidade para chegar como alguém que bebe álcool, porque ela vinha de um meio místico que considerava isso errado e a olhavam feio se bebia um vinho. Os novos amigos já a conheceram agnóstica e não tinham nada contra bebida alcoólica. Tudo porque o convívio faz com que as pessoas tenham um julgamento fechado a seu respeito, e contrariá-lo sempre provoca alguma reação. Os “olha que bonita que ela está hoje”, “pra onde é que você vai desse jeito”, “está toda arrumada, deve estar querendo impressionar alguém” não têm nenhuma intenção consciente de punir ou fazer a pessoa voltar ao que era, mas muitas vezes acabam soando como uma reprimenda por não se estar do jeito como sempre esteve. Para alguns, chegar novo num lugar, sem saberem quem somos e nenhuma ideia preconcebida do que gostamos é uma grande oportunidade. Se hoje podemos desejar ser estrangeiros em algum momento das nossas vidas, nas histórias antigas era comum o estrangeiro ser recebido com desconfiança, porque ele era potencialmente mau e sedutor.

Ser estrangeiro era estar numa posição delicada, que exigia prudência por parte do estrangeiro e cautela por parte de quem recebia. Os locais se perguntavam: ele pode ter saído do país dele porque fez algo de errado e fugiu, ele pode seduzir as mocinhas do lugar e ir embora de novo, como saber o que ele está pensando? Então “quando um homem está viajando e é, portanto, estrangeiro, deve evitar ser rude ou arrogante. Ele não dispõe de um grande círculo de relações e não deve, portanto, se vangloriar.” (Hexagrama 56 do I Ching, O Viajante) Não saber como classificar alguém, não ter como puxar um histórico que permita prever o comportamento, pode gerar ansiedade – mesmo que seja apenas Juliette Binoche chegando na cidade pra fazer Chocolate. O estrangeiro pode até ser visto como alguém sem amarras, mas ele sabe o que carrega dentro de si. Será que o estrangeiro que saiu fugido consegue realmente chegar numa terra nova e se estabelecer em novas bases? Ou será que recairá no seu antigo comportamento e quem sabe tenha que fugir de novo? Pensando nas roupas: será que conseguiremos escolher o novo e transformaremos nosso estilo ou pouco a pouco iremos repetir tudo o que fazíamos antes, usando tudo o que já usávamos, recomprando aquilo da qual nos livramos?

Foram as grandes cidades que, de certa forma, nos transformaram a todos em estrangeiros. Esta sempre foi uma das vantagens das cidades e o que as tornavam atraentes: a impossibilidade de conhecer todos leva a não se conhecer nem os vizinhos, então cada um pode ser o que quiser. Cidades como NY se tornaram lendárias, sinônimos de vanguarda, porque todos os que se sentiam sufocados nos seus lugares de origem podiam ir pra lá e sair do seu armário sexual, comportamental ou artístico. Ao contrário do raciocínio que se poderia ter hoje, a uma criada de uma sociedade tradicional de nada serviria tentar usar as roupas lindas de uma dama. Houve época que as roupas eram estritamente ligadas a posições sociais – um nobre se vestia como um nobre, um servo se vestia como um servo. Tentar usar uma roupa que não pertencesse à sua classe soaria apenas absurdo – a quem se poderia enganar se todos conheciam seus lugares na sociedade? A mensagem que a roupa passava e a maneira como cada um deveria se vestir já era muito clara, então não havia muito o que se discutir. Querer que a roupa manifeste algo profundo e pessoal é uma maneira bastante nova de olhar para o assunto, possível pela união de pelo menos dois fatores: flexibilidade dos papéis sociais e uma concepção de um Eu como ser independente. Então, hoje temos uma inquietação com roupas que não existe na humanidade desde sempre; nós achamos que há um diálogo entre a nossa maneira de vestir e a nossa essência.

Essência? Não vou nem entrar nessa questão se há ou não essência, do caminho que foi construído ao longo da história para que hoje seja senso comum acreditar que cada ser humano tem uma, vou apenas soltar que somos – independente do que se acredite em termos de individualidade – um conjunto de hábitos bastante estabelecidos. Antes do hábito é preciso aprender, e para aprender é preciso vivenciar e repetir. Há quem diga que são pelo menos umas dez mil horas de prática para que se possa realmente ter domínio de alguma arte. Talvez quase todas as tentativas de mudar de estilo pessoal fracassem porque partimos de uma abordagem essencialista: eu reflito sobre meu estilo, acredito que busco algo diferente e tento transformar isso em ação; outra forma de abordar o assunto poderia ser behaviorista, de tentar mudar o comportamento através do comportamento e o estado psíquico acompanhará a mudança por consequência. Uma vez eu li (impossível dizer aonde) que mexer no computador, que hoje nos parece tão natural, é uma aprendizagem que leva cerca de seis anos. Para quem nasceu em meio à tecnologia, os seis anos passam sem sentir – uma experiência bastante diferente para os mais velhos, que sofrem preconceito por não conseguirem fazer algo tão “natural“. De maneira semelhante, pessoas que gostam de moda costumam estar sempre informadas a respeito de moda, se expondo às informações em revistas, vitrines, artigos e conversas com amigos, enquanto as que não gostam praticamente só se preocupam com uma roupa na hora de comprá-la. Visto desta maneira, o vestir-se ou não com “estilo” ou o fracasso em mudar não passa por “relação com a própria feminilidade” ou “sensibilidade estética” – como qualquer mudança de hábito, ela é muito mais um não saber fazer, ainda.

Choradores

lenço

Eu lembro que a Regina Casé tinha um programa temático que mostrava a vida de desconhecidos, acompanhava o que eles estavam vivendo, tudo de forma muito leve. Aí um dia eles foram atrás de pessoas fazendo mudanças. Não lembro quantas histórias eram, mas tinha gente empacotando, indo ao aeroporto, fazendo festas de despedida. Lembro de um caso em particular, acho que de uma moça que estava indo pro Japão. Ela contou sem dramas o que estava vivendo, que sem dúvida tinha a ver com a necessidade de ganhar dinheiro. Eu era muito jovem quando passou o programa, então aquela mulher contou que ia embora num tom normal e eu achei que estava tudo normal. No final do programa teve até um mea culpa, a Regina disse que quando pensaram no tema não tinha noção do quanto era difícil, que não havia nada de leve e divertido em sair fisicamente de onde você está para saltar no vazio. O que ficou para mim do programa foi a Regina Casé ao lado da moça, se acabando de chorar. Por ela, por toda aquela solidão, a solidão que a moça não podia se permitir sentir.

Acabarão as fitinhas

senhor-do-bonfim

Eu faço controle de contas, tenho caderno de citações, cadernos de anotações diversas. E todos eles são marcados com uma fitinha do Senhor do Bonfim. Um dos cadernos acabou, e fui com urgência na livraria comprar outro bem bonito, porque seria mais um dos que vai me acompanhar durante anos, passeando entre os cômodos, recebendo anotações no sofá. Escolhi com todo carinho e quando cheguei em casa e fui correndo colocar a fitinha. Aí me deu aquele agridoce: eu tenho vários pacotinhos de fitinhas porque meu pai me enviou. Um dia – não sei nem dizer há quantos anos – eu mandei uma mensagem pro meu pai dizendo que estava sem fitinhas e se ele poderia me mandar algumas. Pouco tempo depois chegou uma caixa de correio com uma quantidade tão exagerada de pacotes, cada um deles com umas dez de cores diferentes. Tenho usado há anos sem me preocupar em contar, sabe quando você tem tanto de alguma coisa que é como se nunca fosse faltar? Foi um gesto de carinho de quem estava longe, de quem gostaria de oferecer muito mais e já não tinha como. “Acabaram as fitinhas”, eu pensei, como se já fosse passado. Não acabaram fisicamente, mas acabou. Já disse, assim que ele morreu, acabou Salvador, acabou tudo. Não que eu não tenha como comprar, não que eu não tenha quem me envie, mas acabou. Quem já se despediu de uma fase da vida sabe como é ver, pouco a pouco, as coisas se renovarem – peças de roupa que perdem cheiros, eletrodomésticos que ficam superados, lugares e hábitos totalmente inéditos. A cada mudança, vai embora uma testemunha da nossa história que nunca mais voltar.

Curtido

roça

-Você é professora?

-Não.

-Você tem cara de professora.

-É a idade. Estou velha. Vê se alguém com dezesseis anos vai ter cara de professor. Todos nós ficamos com cara de professor com o tempo.

-Professora jovem. Eu que tenho cara de acabado. É que quando eu tinha meus quinze anos, quinze até os dezenove, eu cantava nos bailes. Na fase de desenvolvimento, como se diz, eu dormia mal, bebia. Fiquei assim.

-Mas aí valeu a pena, aproveitou.

-Eram outros tempos. Naquela época não se considerava que eu era assim tão novo…

-Verdade, outra educação. Hoje é diferente, pra melhor e pra pior.

-Eu acho que é pra pior. Hoje protegem muito. Eu fui colocado pra trabalhar na roça com meus seis anos. A gente aprende a dar mais valor.

-Tem o lado bom e o ruim. De um lado, as crianças recebem tanto amor, tanto carinho, tanto cuidado… Mas por outro lado, quando saem no mundo, é porrada atrás de porrada.

-É mesmo, eles não estão preparados.

-Você que trabalhou desde os seis anos, alguém pode dizer: coitado, que infância dura. Mas por outro lado, quando você ficou adulto, já estava curtido.

“De onde diabos eu fui desenterrar o termo ‘curtido’? Será que ele entendeu que eu o comparei com couro?”

-É bem isso mesmo. Veja, meu pai acordava a gente cedo. Com seis anos eu pegava na enxada. A gente arrancava feijão, assim. Eles diziam que a gente arrancava rápido porque era criança, não tinha dor nas costas. Não tinha? De tarde a gente não conseguia fazer assim (se inclina para trás). Era pequeno e tinha braço pequeno, mão pequena. Produzia menos, mas trabalhava igual. Em dois dias a gente fazia um alqueire. A gente vinha assim, com o adubo, e o adulto passava atrás fechando assim.

Meu ônibus chega. Eu me despeço.

-Eu vou ficar pensando no que você me falou. Eu nunca tinha memorizado assim. É bem como você disse mesmo.

Curtas de obviedades (ou não)

overthinker

Eu tenho meio dúzia de arrepios ruins quando alguém decide ver um espetáculo de flamenco e vai justamente num que eu considero ruim. Porque a primeira vez de qualquer coisa é muito determinante. Pode ser mágico, pode fazer com que ninguém queira experimentar de novo. Se na primeira vez tudo é ótimo e tudo é novidade, a cada repetição vamos entendendo mais, tendo mais com o que comparar, descobrimos mais, captamos sutilezas. Ou seja, ser exigente é a consequência natural de experimentar muitas vezes. Alguns são assim com livros, outros são assim com shows de rock. Nem tudo é arrogância, às vezes é o excesso de bagagem.

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Quando eu era nova falávamos em injeção na testa. Era uma expressão que vinha no final da frase, “… até injeção na testa”. Significava uma ação tão dolorosa quanto inútil, era uma expressão pra mostrar situações extremas de forma engraçada, dizer que até isso você estava topando. Agora injeção na testa nos faz pensar em botox e tratamentos estéticos em geral, então as pessoas pagam caro pra levar injeção na testa. Ou seja, as palavras são as mesmas mas o sentido mudou completamente ao longo dos anos. Quando o mundo muda, as palavras e as expressões mudam também – e nem sempre estamos a par da diferença se não entendemos o contexto. Tipo dizer que o nazismo é de esquerda porque o partido nazista se chamava, numa tradução literal, Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães. Acreditem no que os alemães dizem, eles entendem mais de alemão e nazismo do que nós.

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Toda geração tende a achar que as coisas estão piorando. Nossos avós pensavam assim, nossos pais pensavam assim e, se você é um pouco mais velho, tende a olhar para os xóvens e se irritar da maneira como eles são barulhentos, usam cueca pra fora da roupa, sujam o corpo com tatuagens e são bissexuais. Quando nascemos, somos muito abertos à aprendizagem, totalmente abertos; à medida que se envelhece, a capacidade de assimilar o novo diminui e o filtro aumenta. Mais velhos, somos praticamente incapazes de aprender e filtramos tudo. Somos, enquanto geração, a cristalização de algo, e a sociedade nunca pára de mudar – se parar, ela morre. Com um modelo cristalizado, tudo o que se afasta dele sempre parecerá uma perda. Na verdade, para além dos nossos olhares viciados, o que vem depois de nós não é pior ou melhor, é diferente. E as pessoas que chegam depois de nós terão dores e alegrias diferentes.

Perda de valores, vanguarda e flamenco

Não faz muito sentido pra mim, mas tenho amigo gay que dança flamenco e é daqueles que se enfurece com a “perda dos valores”. Ele é mais velho, não é dessa geração que se assume desde a adolescência, ouve músicas e tem ídolos gays, “dá pinta” por aí. E o flamenco, como todo mundo que faz flamenco sabe, já foi uma dança muito subversiva. Tem uma brincadeira que eu faço, quando surge uma dúvida de como um passo é feito: basta testar qual a maneira mais difícil que será aquela. Quase morri de tédio o dia que vi o ensaio de um grupo de dança tradicional, que pra cada dois passos para a direita, precisavam fazer dois para a esquerda, sempre precisava haver o mesmo número de pessoas a cada lado do palco e eles precisavam andar formando figuras geométricas. O flamenco é todo torto, faz as coisas em números ímpares, entra no meio dos tempos. Isso sem falar nas subversões ainda mais óbvias, como o fato da mulher puxar a saia pra cima na hora de dançar, a força e a sensualidade no palco, a presença. Pensem no que era isso há séculos, porque o flamenco existe pelo menos desde o século XVIII. Uma vanguarda que todos os bailaores sabem é que um ritmo chamado Farruca antes era dançado apenas por homens, e hoje as mulheres o dançam também, geralmente de calça e figurinos sóbrios para se manterem fiéis ao estilo. Se por um lado o flamenco foi uma vanguarda em relação à sua época e à outras danças, ele também teve sua vanguarda dentro da vanguarda, com a mulher ousando colocar uma calça, ousando expressar sentimentos que até então eram considerados exclusivos dos homens.

Mas o flamenco é uma arte, algo lindo, superior, meu amigo diria, nada a ver com os absurdos que tem por aí: gente pelada, peças onde se enfia a mão nos orifícios uns dos outros, desrespeito a figuras religiosas em exposições, que são vestidas de forma profana ou o profano vestido de religioso. A questão é que para as inovações surgirem é preciso ter liberdade. Outras metáforas me vêm à mente: um solo fértil, um respiro, a flexibilidade que permite que construções que recebem muito impacto não desabem. Não é possível, antes mesmo das coisas surgirem, julgar o que presta e o que não presta. É preciso aceitar o choque inicial, saber que é assim que funciona e, à primeira vista, pode ser até feio. O “fora dos padrões” pode ser visto como ameaça, assim como pode ser o experimental, diferente, novo, criativo – é através dos que fazem coisas que a princípio não nos parecem certas que a sociedade se renova. O chocante nem sempre está começando um novo caminho, ele pode estar informando algo que existe e em pouco tempo será comum. Como um dia foi com o flamenco, com a homossexualidade, com as mulheres usarem calças compridas. O que é idiota e sem sentido, o choque pelo choque, como peça de teatro onde um enfia o dedo no orifício do outro, não frutifica e o próprio tempo se encarrega de apagar.

No vídeo, uma Farruca de uma das escolas de flamenco mais tradicionais da Espanha, a Amor de Dios.

Curtas com pitadas feministas

elenão

Independente do resultado das urnas, depois destas eleições, candidato nenhum vai ousar ser machista. Um assessor vai impedir que publiquem, ele será falso e dirá frases decoradas, o que seja. O que vimos foi um desrespeito total e absoluto, tão grande e evidente, tão certo de que não teria consequências.

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Eu estava no ônibus, sentada, e quando ele chegou no terminal, uma moça que ficou do meu lado falou em voz alta para um rapaz, algo sobre que nunca acontecesse com a mãe ou irmã dele. Ele começou a chama-la de feia, dizendo ela que queria aparecer. Outra mulher levantou a voz, e disse que depois de tudo o que a moça havia passado o sujeito ainda fazia isso, que o marido dela o encheria de porrada se estivesse ali. O sujeito vestiu o capuz e se calou, sentindo o meu olhar e do ônibus inteiro contra ele. Uma cena dessas seria impensável antes.

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Comprei com amigas a camiseta “Lute como uma garota”. Como não foi só comigo, posso dizer: é uma experiência andar com ela. Uns aprovam, outros parecem lançar um olhar quero-ver-se-é-lésbica-abortista. Não sei se a associam com a Manuela D´Ávila ou sabem que faz parte de algo maior. Por outro lado, também dá muito orgulho sair com ela.

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Tô lendo a biografia do Churchill, culto, herói, divertido, aquilo tudo que sabemos. É um livro meio arrastado pela quantidade de detalhes. Não sei se ele muda de ideia depois, mas nas cartas que ele escreveu na juventude, ele é terminantemente contra o voto feminino, porque “elas podem dominar o mundo”. Deveríamos mesmo, viu.

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Apesar de tudo o que eu li e de tudo o que eu já sabia, foi uma experiência muito marcante pra mim ver o filme sobre as Sufragistas. Tem na Netflix. A gente não tem dimensão. O que Churchill, esse filme, o candidato e o movimento #elenão me confirmam é que quem não chora não mama. Não dá pra pedir gentilmente, esperar que se toquem e abram mão da sua posição confortável por nós. Nós, mulheres, aquelas que poderiam dominar o mundo e ainda estão caminhando para se enxergar como coletivo.

Todas as manhãs

dudu aguinaldo 06

…você chama o seu cachorro pra lhe fazer um carinho, mas chega uma manhã que ele, com a cara já toda branca, prefere permanecer deitado. Na padaria do bairro, de novo, uma funcionária some e nunca se saberá o motivo. Na festa de encontros de ex-colegas de faculdade, além da exibição das rugas e barriguinhas, um casamento não vai bem colide com um coração que está livre. Os tapumes e a sujeira da calçada somem e, como mágica, se transformam em mais um arranha-céu. Na turma da academia, cheia de pessoas da terceira idade, é a jovem que está com câncer. Uma área inteira da cidade, um trajeto de ônibus e um lojinha somem da sua vida, deixam de existir no mapa, porque o motivo pra ir até ali não existe mais. Ser chamada de “senhora” se torna tão corriqueiro que deixa de ser ruim. A peça que estava à venda e já esquecida no meio da decoração da loja finalmente sai e rende um dinheirinho. A filha que nunca passava em medicina finalmente passa no vestibular, ou decide fazer outro curso, mora num apartamento e tem namorado. O calendário ideal, com espacinhos para escrever todos os compromissos do mês, no próximo ano não vai ter mais. Grandes amigos do passado e grandes ódios do passado desbotam e ficam quase iguais. A alça pra abrir a porta do guarda-roupa se solta. O irmão que era galinha se casa, o irmão mais amado não dá notícias. A longa estadia no exterior já foi e já voltou. A comida que era apenas para “se virar” se torna boa. A morte que parecia insuperável se mistura na rotina. Eu prossigo, vocês insistem em mudar.

Dentes de leão

dentes de leão

Meu irmão foi me ver num dos primeiros campeonatos que participei. Da arquibancada, ele me viu chegar com as outras sete nadadoras e me aproximar do meu bloco de saída. Da minha parte, posso dizer que estava uma pilha, coração acelerado, touca incomodando porque coloquei com antecedência, óculos muito apertado para não pular pra fora quando eu pulasse na água e, principalmente, nervosa em pensar que exibiria para o mundo a minha terrível barrigada na hora de entrar na piscina. Ele me disse, depois, que sentiu uma pontada de inveja: “eu não sei como é essa experiência, eu nunca participei de um campeonato”. Ele até hoje não sabe qual o sofrimento de se separar, um sofrimento que muda o nosso material, mas acredito que ele viverá uma das mudanças mais fundamentais da vida que é ter filhos. Acredito que nenhum dos dois terá a experiência tão comum de ter carro, porque nunca gostamos. Eu não sei das longas viagens de ônibus por Minas Gerais e o interior da Bahia, as horas tediosas, o vômito do banco da frente aplacado com revistas de Comunicação. Eu não sei o que é ficar solitário em outro país, ele não sabe o que é a solidão de ovelha negra da família. Na época que éramos próximos e parecidos, eu juraria que tudo isso é impossível. Eu vi um astrólogo dizendo que mesmo gêmeos nascem com minutos de diferença que se tornam graus, e com o passar dos anos é como se esses graus se tornam cada vez maiores e definidores, como ângulos que se afastam. É da natureza que seja assim – não é isso que ela busca ao fazer dentes de leão tão leves e sopráveis?

Grande passo

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De um lado dizemos que não dá pra prever a história, que as tentativas sempre erraram. Às vezes, é a tentativa que a altera. Talvez o próprio Marx tenha impossibilitado – ou atrasado – que a classe operária tome os meios de produção, porque seus insights sobre o capitalismo foram lidos pelos dois lados, e de certa forma foram usados para fortalecer o próprio capitalismo. Podemos também dizer que Hitler poderia ter ganhado a guerra, caso não tivesse tentado invadir a Rússia, e por aí vai. Alguns dias e algumas decisões são mais importantes do que outras.

“O que eu faço agora?”, eu pensei. Tive a sensação teatral de que um dia é possível perguntarem do dia de hoje no futuro. O único presente que me ocorreu de me dar foi ir até a pizzaria Itália e comer duas fatias das tradicionais pizzas de muzarela deles. A pizza que como desde criança, que minha mãe come desde criança, que meu irmão mais velho come sem parar quando vem para Curitiba. Enquanto escrevo isso, lembrei de um amigo que contou que levou a mulher para a maternidade porque a bolsa havia estourado, ficou numa sala de espera e depois a enfermeira disse que havia nascido. Que foi estranho. Nenhum close, papel picado, música, pessoas se abraçando em lágrimas. Os grandes passos tem precisado de um diretor de vida melhor.

Um Eu melhor

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Eu acho que os textos estão melhores e sem dúvida hoje eu sou muito mais independente. E intransigente. Aprendi a não precisar dos outros para minha estabilidade emocional. Antes eu tinha uns descontroles, as coisas perdiam a perspectiva e eu ficava agitada e pessimista, sem saber direito como sair daquele estado. Minhas opções eram uma conversa racional que só uma ou duas pessoas no mundo eram capaz de ter comigo, ou passar dias em loucura, até cansar. Achava normal e hoje acho um saaaaaco quem age assim, quem procura em mim esse esteio. Sou a minha própria estapeadora que grita pra me acalmar, sou o cachorro da foto com a própria guia da boca se levando pra passear.

Descobri que há quem me considere melhor hoje do que quando eu era casada. Eu não consigo pensar nesses termos. O meu ponto de vista é a realidade ter se tornado mais dura e reajo a ela. Antes eu era um molusco pelado e agora sou um molusco de carapaça.

Um moreno

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Era uma festa de ciganos e, como um espécie de presente, nosso anfitrião disse que quem quisesse poderia fazer uma rápida consulta com as ciganas. Claro que eu aproveitei. Não quis falar nada pra ela, queria ver aonde ia chegar. A cigana me conhecia apenas de vista e assim que olhou a minha mão disse que eu já tinha sido casada. Até aí, informação fácil. Depois disse uma ou duas coisinhas a respeito do meu casamento que eu juro que nenhum dos presentes tinha como saber, fiquei impressionada. Eu disse que falavam pra mim de um moreno que ia aparecer, mas que moreno demorado. Não lembro que termo que usei ao invés de aparecer, sei que ela me corrigiu dizendo que ele já me conhecia de alguma forma, apenas não via razão para se aproximar. No começo eu pensei: “Poxa, comassim moreno, me conhece e não me dá bola?” Depois eu gostei. Só por que me viu ou me leu por aí era pra mover céus e terras, ficar apaixonado à distância, me stalkear, ficar cheio de ilusões? Isso é coisa de gente louca ou carente, quem está bem segue seu caminho. Um dia, conversando comigo, aí sim poderíamos ver se rolava uma afinidade e faria sentido ele se aproximar de mim.

Foi então que eu descobri o quanto a minha visão sobre o amor mudou.

O tempo trota a toda ligeireza

Vi, mais pelo título ser curioso do que qualquer outra coisa, o documentário Chuck Norris x Comunismo. Foi um ano que vi muita coisa boa, e este foi mais um. Nesta época de ignorância, me dá até medo indicar – “olhaí, comunismo, uma tremenda porcaria”. O filme é crítico sim como o comunismo romeno, mas muito mais pelo seu aspecto totalitário, ou seja, algo que acontece em doutrinas de direita e de esquerda. Trata de História, mas também de histórias. Tem protagonistas e uma ação que se desenrola. É crítica e uma declaração de amor ao cinema.

Naquela parte muito bobinha e pessoal que nos marca, o filme me fez pensar no quanto tudo chega ao fim. Por mais indestrutível que pareça, por melhor ou por pior que seja. Quando se vivia aquilo retratado no filme, o regime comunista parecia que nunca chegaria ao fim e durou quantas gerações, duas? Um dia conseguir uma fita pirata pra assistir no vídeo cassete é uma aventura, anos depois é uma experiência isolada e deslocada no tempo. Ele me fez pensar o quanto, apesar de toda essa porcaria que está rolando, temos que continuar vivendo. Continuar fazendo as coisas, tocando os projetos, amando, aprendendo coisas novas. Porque passa.

Um problema novo

Fui na biblioteca devolver os últimos livros que peguei e, ao contrário do que faço há anos, quase a vida inteira, não peguei nada novo. Acho que foi só durante a faculdade que deixei de pegar livros na Biblioteca Pública, porque os pegava da biblioteca da universidade. Foi uma sensação de término de relacionamento. Não digo que nunca mais pegarei nada, que me abastecerei para tudo de arquivos mobi, mas sem dúvida nada será como antes. O novo formato combina comigo, que nunca fui de posar na frente de estantes. Fui criada ouvindo a pergunta, antes de querer comprar algum livro: Mas você já verificou se tem na biblioteca? Se a resposta fosse afirmativa, era um desperdício querer comprar. Não tenho big estantes, fotos diante de estantes, check in em sebos e sempre achei – estava redondamente enganada! – que não precisaria de nada disso para as pessoas perceberem que leio muito e mereço crédito. Mas o problema novo não é deixar de ler, e sim ter me dado conta que a minha coleção de marcadores de livros não tem mais razão de ser. Ainda não sei o que farei; como desacumuladora compulsiva, não me agrada deixá-los aqui como lembrança. É provável que me livre de alguns jogando no lixo ou os espalhe pelo mundo, entre pessoas que eu gosto. Quem sabe guarde alguns. Este daqui é um dos meus xodós:

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O bom de chopp

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Estávamos quase reprovando em massa em Estatística quando o professor oficial da cadeira voltou dos EUA, com a promessa de uma forma arrojada e fresquinha de pensar. Ele era alto, loiro, agitado e provavelmente bonitão (naquela idade eu apenas o classifiquei de velho), a própria encarnação do winner. O curso em questão era de psicologia e, pelo menos naquela época, ninguém ali era muito de esquerda. Ele realmente conseguiu o milagre de salvar a turma, jamais esquecerei que pulei de uma nota 0,25 (eu colei) para 10, o que me permitiu fazer prova final e passar. Um dia, numa de suas muitas ilustrações, ele falou do novo profissional que estava surgindo. Ele disse que antigamente toda empresa tinha “o bom de chopp”, que era o cara que não trabalhava tanto assim, mas ele era amigo da galera, contava boas piadas, deixava o ambiente mais ameno. Por isso se fazia vista grossa pro rendimento menor e ele ia ficando. Agora não, não haveria mais espaço para isso, cada um tinha que ser muito competente e focado. Sem lenga lenga, trabalho duro. Várias cabecinhas balançaram em sinal afirmativo, cada qual se sentindo muito merecedora de passar nesse funil. Eu fiquei incomodada – tanto que lembro da história – e levei muito tempo para entender o porquê.

Hoje em dia se considera um avanço a maneira como temos medicamentos para pacientes psiquiátricos, porque com isso é possível estabilizar o humor deles e torná-los produtivos. Só que numa perspectiva mais crítica e ampla, vemos que outras épocas e sociedades tinham uma capacidade muito maior de absorver essas pessoais tais como são. Onde vemos gente esquisita que não produz, poderíamos ver místicos, visionários, artísticas, xamãs, santos, eleitos. Ninguém precisava tentar mudar, eram pessoas com dons especias e um papel onde suas características eram valiosas. Eles estariam apontando pra uma direção que ninguém mais. Estariam não, estão – nós é que falhamos em ver. Sem perceber, colocamos como valor absoluto o indivíduo ser gerador de renda. Se não gera renda, independente do motivo, não merece crédito em nada.

Não é à toa que as classificações psiquiátricas aumentem cada dia mais. Basta alguém gritar no local de trabalho ou destruir um objeto que já é surto e precisa ser internado. Pouco importa a violência que se sofre o tempo inteiro, quem não consegue lidar com isso a portas trancadas é louco. Normal é que leva pancada atrás de pancada com uma capacidade infinita de se conter, porque hoje nem “precisa” mais de um bom clima no trabalho. Ou será que o bom de chopp também era uma forma de trabalho?

Camus e a moralidade

Nas primeiras vezes que eu vi falarem em comunismo e socialismo nas discussões na internet, eu não achei que fosse sério. Achei que fosse um comunismo entre aspas, com muitas críticas, um comunismo como forma simplificada de definir algo como um humanismo, um desejo maior por justiça social, algo do gênero. Porque me parece totalmente inviável que se abrace o comunismo não apenas após as experiências da URSS ou da China, mas porque mudamos muito profundamente nesses anos. E essa mudança me parece exemplificada no que esta professora diz sobre o afastamento de Camus do círculo de intelectuais franceses:

Não eram apenas os intelectuais franceses. Este senso de sacrifício algumas vezes recaía apenas sobre a costas dos outros mas que muitas vezes implicava a submissão da vida a um ideal. Somente ele explica Olga, Marighella e tantos outros que lutaram empunhando bandeiras. A ideia de sacrifício também estava presente na postura intolerante da esquerda que achava o governo Jango conciliador demais. Quando a situação ficou insustentável, o governo paralisado e o cheiro de golpe no ar, essas esquerdas ficaram felizes porque acreditavam que uma crise intensa poderia desencadear o levante da classe operária que eles tanto sonhavam. Hoje a gente tende a dar razão ao Camus, porque somos mais carpe diem, a vida é uma só. etc. E de vida em vida, vimos muita gente morrer e o mundo ideal nunca chega.