Rudra e Sati

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Brahma criou o universo e a participação dele nas histórias termina aí, só os outros dois deuses da trindade aparecem interferindo na nossa história. Quando o Dharma (A Lei) precisa ser reestabelecido, Vishnu reencarna. Ele é a força de manutenção, então os avatares dele são régios, calmos, doces, como Lord Rama; Shiva, que simboliza a força destrutiva, aparece em avatares mais guerreiros, fortes, radicais, como Hanuman, o deus-macaco que auxilia Lord Rama a derrotar Ravana.

Um dessas encarnações de Shiva é o não tão aprazível Rudra. Não é um deus fofo, o nakshatra dele é associado ao trovão e ele representa o aspecto furioso de Shiva, a ira que destrói as injustiças. É um tremendo guerreiro e um sábio renunciado. A própria palavra renunciado já dá a pista: ele passa muito tempo em meditação, vive coberto de cinzas, vive semi-nu, dorme na floresta.

(O que eu adoro nesta história de Rudra e Sati é o quanto o que realmente tem valor só é visível para os que têm olhos para ver. Ele era o Deus Shiva e…)

Sati era uma das filhas do riquíssimo rei Daksha, um brâmane muito poderoso e conceituado, versado nos complicados rituais védicos. As histórias hindus das princesas que querem casar estão cheias de festivais, de provas que elas inventam como erguer arcos com encantamentos ou coisas do tipo, proezas que têm o objetivo de fazer com que os homens possam se exibir e que elas possam se encantar com o noivo. Pois o olhar de Sati recaiu sobre alguém que nem ao menos queria se casar: Rudra. Ela realizou todo tipo de austeridade para se mostrar digna dele, e foi viver também na floresta e com a roupa do corpo. Daksha não aprovou a escolha e nunca entendeu como a filha pode rejeitar um reino para ficar com um mendigo; se ele já não achava Rudra sua pessoa favorita, com o passar do tempo passou a odiar o genro.

Daksha realizou um festival e Sati quis ir porque sentia falta da sua mãe e suas irmãs. Rudra disse que não era uma boa ideia, mas ela quis ir de qualquer forma. Todos haviam sido convidados e eles não, depois chegando lá o rei recebeu a filha com frieza, ela viu que não havia oferendas a Shiva… foram várias desfeitas até ela não aguentar mais e começou a discutir com seu pai. Como um pai e bramana podia ser tão cego, não via o quanto ela estava feliz e as imensas qualidades de Rudra; como uma filha podia se achar grande coisa e desrespeitar e envergonhar o próprio pai na frente de todos – e daí pra baixo. Sati – que havia se tornando um poderosa yogui – lamentou que nenhuma austeridade que ela praticasse mudaria o fato de que ela e Daksha eram pai e filha, que ela tinha o sangue dele, sangue que ela gostaria de arrancar de si, indigno, que num próximo nascimento ela pudesse nascer filha de alguém melhor. Ela então começou a se rasgar, enfurecer… a rainha e o as irmãs, assustadas, queriam que Daksha a parasse, e ele nada fez. Na sua fúria, Sati entrou em auto-combustão e queimou até virar cinzas.

Mas e Rudra? Conto no ano que vem…

(Eu tirei a história daqui, se quiser conferir. Mas já vou adiantando que ele vai apenas até onde eu já contei…)

2020 para mulheres

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Não vou listar as últimas novidades de um dia nas redes sociais, que incluem balarorixá estuprador e homem indo ao cinema com onze mulheres. Terminei recentemente a série sobre a vida de Luís Miguel (Netflix) e chama muito atenção a relação entre os pais dele, a maneira como a mãe foi esmagada pelo marido. Eu fui uma menina criada entre meninos, apenas com irmãos, então nunca soube o que era ter do meu lado uma irmã para discutir vestidos, paqueras, dicas de maquiagem. Em compensação, era eu a mais apta a dizer para as minhas amigas o ponto de vista deles, que lhes parecia tão misterioso. No excelente “Que co#o está pasando?” (Netflix), citam que atualmente os meninos já acessam pornografia com oito anos de idade, enquanto as nossas meninas sonham em ser princesas – não precisa ser nenhum gênio para concluir que há um abismo aí. Eu entendo perfeitamente a decepção de muitos homens com aquelas (eu no conjunto) que cortam o cabelo bem curto, “cabelo de homem”; os cabelos longos são um símbolo tão feminino, uma vaidade que dava um trabalho imenso para a mulher e que eles desfrutavam tanto. O cabelo que “não tem onde pegar” pode lhes apontar mais do que uma falta de vaidade, pode ser a recusa de ser levar para dentro da vida deles um universo de delicadezas que, como homens, eles não estão autorizados a acessarem sozinhos.

Mas o que realmente me vem forte neste fim de ano é a constatação da fragilidade das mulheres. Da temerária tendência a confiar, abrir mão e ceder. A dificuldade de ouvir o próprio corpo gritando de insatisfação, a vontade de ir embora, a confiança nos próprios instintos. Será possível criar com cor de rosa, vestidos e constantes elogios à aparência e ao mesmo tempo essa menina ser capaz de levantar a voz, gritar por ajuda, ser grossa quando não há ninguém ao lado para apoiar? Mais do que fora de moda, a feminilidade tradicional nos tem colocado em risco;. quando vejo uma mulher boazinha demais, temo por ela.

Visitação

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Eu era tão certinha, não gostava de ir a festas, beber e nenhum dos comportamentos que as pessoas tentam reprimir nos adolescentes, que achavam que seria facílimo me fazer entrar numa igreja – afinal, justo a parte que todos achavam difícil eu fazia espontaneamente. Me convidavam pra ir pra igreja delas e eu ia. Ninguém te convida de primeira a entrar na igreja, você é convidado pra um culto, ganha um livro sagrado de presente. Perdi a conta do número de denominações que eu visitei. Eu queria conhecer, saber como é por dentro. Eu ia, assistia, ouvia com atenção, era apresentada aos outros fiéis, ao grupo de jovens, cheguei até a ir em festinha. Depois perguntavam: e aí, gostou? Interessante. As pessoas são legais? Sim, foram legais. Viu como tem um monte de rapazes sérios? É, tem vários rapazes? E aí, vai voltar? Não. Nesse ponto ficavam doidos, levantavam a hipóteses de que alguém havia me tratado mal, ou eu não achei os rapazes bonitos. O engraçado é que as hipóteses sempre giravam em torno de pessoas e jamais do que eu pensava do que foi dito, do que era pregado.

O poker e o acordo entre amigos

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Era uma turma que tinha o poker sagrado num dia específico da semana. As mulheres eram proibidas de aparecer ou de achar ruim. Os amigos se reuniam na casa de um deles e passavam a noite inteira lá, jogando. Apareceu o Amigo Bonitão e pediu um favor para o Amigo Jogador. O Bonitão tinha arranjado uma mulher, ela era casada, um caso complicado. Ele disse para a esposa dele que iria participar do jogo de poker, mas o que ele iria fazer era aproveitar para ver a amante. Até aí tudo bem, disse o Jogador. O problema é que Bonitão tinha um carro esportivo caro e muito marcante, se ele saísse com aquele carro por aí as chances de alguém descobrir eram muito grandes. Então ele precisava que o Jogador lhe emprestasse o carro, que era um carro comum e não chamava atenção. Eles se encontrariam no poker, o Bonitão pegaria a chave do carro do Jogador e devolveria no final da noite com o tanque cheio. Tudo bem. E assim seguiu o acordo, o Jogador dava a chave do carro, ficava jogando com os outros e depois de algumas horas o Bonitão aparecia de novo, devolvia as chaves e o tanque do carro estava cheio, chegava a ser até vantajoso.

A questão – e não sei como aconteceu, porque quem me contou a história não lembrava desse detalhe – é que o Jogador descobriu que a mulher casada que dormia com o Bonitão era a sua. O Bonitão pegava a chave do carro, entrava na garagem do prédio usando o controle que ficava dentro do carro, o porteiro via apenas que o carro do morador entrava e saía, o Bonitão subia pelo elevador da garagem (a história é antiga, câmeras em elevadores ainda não haviam sido inventadas), e ficava muito à vontade porque tinha certeza que o marido não voltaria enquanto ele mesmo não fosse embora…

O meu 2019

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Se eu tivesse feito meta para 2019, ela não teria sido alcançada. Eu não escrevo metas por sempre achar que dá uma frustração de ler e não conseguir, como se desse má sorte. O que eu colocaria como meta é a mesma que eu colocarei pro ano que vem, digamos assim, a mesma que como Pink & Cérebro tenho repetido todas as noites, há anos.

Foi um ano tão difícil, coletivamente falando. Mas tenho que dizer que não alcancei a meta que estabeleci porque este ano foi além de qualquer expectativa. Foi um ano que consertou o que eu achei que estava quebrado para sempre. Eu achei que morreria se chegasse no fim deste ano sem conquistar nada, na mesma indefinição de sempre só que mais velha, achei que se não acontecesse algo do nível de bola de fogo surgindo dos céus e alterando todo minha perspectiva, eu não conseguiria resistir. Termina o ano que estou no mesmo ponto e com outro sentimento, ou seja, mudei porque o meio não mudou: estou meio assumindo a loucura, a impossibilidade, numa fé sem fundamento, um desespero tão calado que talvez ele tenha morrido e eu que ainda não fui lá conferir o corpo. Quando uma criança quer muito uma coisa e não ganha, primeiro ela esperneia, grita, pode fazer birra se for mimada, propõe, chantageia, esgota todos os recursos, mas no fim ela vai cansar e partir pra outros brinquedos. Eu estou meio como essa criança.

Eu espero de 2020 um tiquinho mais de esperança e sorte.

O entendimento da mesma idade

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Quando meu pai, no seu novo casamento e nova vida, ganhando bem, saindo, indo a todas as festas e vivendo o auge da sua popularidade, a mim, como filha, não caiu bem. Passou muuuuito tempo e não me caia bem. Como um pai podia se dizer apaixonado em ser meu pai e ao mesmo tempo ter todo um entorno que eu detestava. Mesmo sabendo que não eram o ideal pra mim, ele não largou tudo, como um pai ideal faria, ele lidou com minhas queixas misturando negação, jeitinho, gambiarra, ilusão e empurrar com a barriga – como a vida adulta funciona a maior parte do tempo.

Um belo dia me bateu a luz, talvez pela famosa chegada na mesma idade que ele: eu descobri que ser pai não era a coisa mais gostosa do mundo. Existem pessoas (dizem) que amam a maternidade/paternidade 100%, em cada fralda suja, lição de casa, carona pro colégio – mas isso não se aplica a todo mundo e sem dúvida não se aplicava ao meu pai. Ter filhos demanda muito dos pais, durante muitos anos, fisicamente, financeiramente, emocionalmente, tudo. É um pedaço importante da vida deles, mas tem outras coisas. Eles ainda gostam de amigos, bebidas, aventuras, tudo o que eram antes de serem pais. Como vi uma piada por aí, às vezes a pessoa não estava pensando se queria um menino ou uma menina e sim numa boa bimbada. Foi muito bom quando finalmente entendi que meu pai não fazia coisas para me desagradar, ele fazia coisas para SE agradar e que, como efeito colateral, não eram exatamente o que eu gostaria. Não era o ideal, era o que tinha, e é o que tenho no meu passado e não dá pra fabricar um novo – e, vou te falar, depois de uma fase acho que nem cabe mais ficar choramingando. Ninguém é Vilão de Novela Mexicana, aquele que gasta todas as suas energias e recursos pensando em fazer coisas que atingem o protagonista. Nem por ódio, nem por amor, nem ao menos nossos pais.

Um depoimento menos UAU sobre meditação

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Eu pensei em escrever este texto o dia que li uma reportagem sobre meditação que dizia mais ou menos assim: “no começo, você vai sentir a mente dispersiva. Depois de uns quinze dias, você começa a perceber que o seu foco…”. Pois bem, eu medito há quase trinta anos (!!!) e continuo sentindo a mente dispersiva.

Olha, se você meditar e em quinze dias a tua mente ficar focada, meus parabéns. Acho inclusive que você tem um grande papel na evolução da espécie humana. O que eu e as pessoas comuns costumamos sentir é que há dias e dias, e nem dá pra antecipar se o dia será produtivo ou não antes de fazer. Nos dias de preocupação, é quase certo que você vai ficar remoendo os problemas o tempo todo, mas também é possível remoer as besteiras mais incríveis nos dias felizes. Às vezes acontece, por cinco minutos ou durante aquela meditação, do seu foco estar incrível e você levantar pleno, mente limpa, concentrado e iluminado. E na meditação seguinte é como se nada tivesse acontecido, de novo.

Eu medito com as pernas cruzadas, e li em livros de yoga que os ocidentais não estão acostumados a sentar assim, mas que com o tempo e a insistência o corpo acostuma e as pernas param de formigar. Mentira. Ou vai ver que é depois dos trinta anos de prática. Eu já insisti e meditava sem me mover, até parar de sentir as pernas. Aí a sensação ao levantar era horrível e cansei de ficar gemendo e me apoiando nas paredes até voltar ao normal. Agora eu dou uma esticadinha, coloco os pés no chão, cruzo de novo, tudo enquanto medito.

Existem vários tipos de meditação: com foco ou sem foco, com os olhos entreabertos ou fechados, olhando para velas ou para imagens, pensando num mantra ou se fazendo uma pergunta… Eu já tentei de tudo um pouco e minha experiência diz que nenhum é mais fácil do que outro. Quando você muda, até pode parecer que sim, mas é apenas porque a mente gosta de novidade. Escolha um e fique.

Meditar em grupo deve ser legal, eu só fiz uma vez. Era uma meditação dinâmica do Osho e achei interessante. Mas era fora de mão pra mim em todos os sentidos: horário ruim, bairro longe, valor fora da minha realidade. Soube de um grupo bom e me interessei, qualquer dia desses vou tentar. Da minha parte, nunca realmente procurei professores ou grupos de meditação. Grupos podem ter uma dinâmica própria e não sou uma pessoa grupal. Minha meditação sempre foi algo íntimo e só sentar e meditar na sua própria casa é muito cômodo.

Mas então, você me pergunta, se mesmo depois de trinta anos você não sente que a tua mente ficou estável, como continuar?

Eu vejo pelo seguinte: quando eu não consigo meditar, eu sinto falta. Antes eu era bem radical, chegava a voltar correndo pra casa ou não marcar nada que fosse me atrapalhar meditar. Hoje tenho consciência de que se cheguei em casa muito agitada, precisando de um banho e de comer, tenho que atender essas necessidades e não adiante me forçar. Quando não posso meditar, meu sentimento é de ter deixado de fazer algo importante, ter aberto mão de uma prazer. Apesar de eu não ser capaz de sentir o progresso, sei que em algum lugar da minha mente aquilo é uma necessidade.

Assim como o não comer carne ou gostar de ler, não sei dizer qual o efeito da meditação na minha personalidade porque ela cresceu junto comigo e se confunde com os meus hábitos. Eu tenho fama de pessoa pacífica e controlada, dizem que é pra isso que serve. Recomendo os documentários que falam sobre os efeitos da meditação no cérebro, tem vários na Netflix, eles são bem animadores. Neste texto eu dei uns conselhos práticos pra quem quer meditar.

A primeira reunião após a promoção

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Eu nem ao menos procurei esse estágio, uma colega de faculdade tinha arranjado pra ela e desistiu de última hora porque apareceu uma oportunidade melhor. Foi um achado ela conseguir que eu aceitasse, pra ficar menos chato pra ela com o pessoal da clínica psiquiátrica. Eles tinham dois tipos de estágio de seis meses: quem não tinha experiência (meu caso) precisava passar três meses na clínica dia e três meses no integral; quem tinha experiência anterior em psiquiatria ficava só um mês na dia e os outros cinco no integral. Eu não sabia a diferença na época: clínica dia são os pacientes que recebem tratamento de dia e voltam para casa à noite, como se fosse o expediente de um emprego; a clínica integral era para quem tinha tido uma crise e precisava ficar em observação durante alguns dias e depois voltava pra sua rotina.

Eu curti a beça ficar na dia, foi lá que me ensinaram a jogar sinuca. Quando me avisaram que eu seria transferida depois de um mês, não fiquei feliz, mas era uma espécie de promoção. Cheguei lá e ao invés do rádio ligado de um, aulas de artes de outro, jogos de sinuca e outras coisas, havia uns cinco adultos de cara fechada em volta de uma TV ligada. Tentei ser legal com eles do mesmo jeito que era legal com os outros. Lembro bem de um rapaz moreno, pouco mais velho do que eu, e eu sabia que ele era mitomaníaco. Tentei conversar com o grupo, propor fazermos alguma coisa, quem sabia jogar cartas, e uma hora eu usei a expressão “chato”: disse que estava chato ali, que no integral havia mais opções do que fazer. Silêncio, assunto não andava, clima estranho, essas coisas. Lembro de mim com meus 18 anos de jaleco no meio daquelas pessoas e como elas me olhavam e me pergunto como é que eu não desconfiei. Quando acabou meu horário e eu me levantei, o rapaz moreno ainda me disse algo bem maldoso, tipo um “que bom né, esse tédio”.

Na primeira reunião com os estagiários, poucos dias depois do meu primeiro plantão, falaram de uma tal estagiária que foi extremamente anti-ética. A estagiária enfureceu os pacientes, falou mal da própria clínica, desmereceu o tratamento, só faltou propor uma revolução comunista. As duas horas de reunião foram inteiramente dedicadas a descer a lenha em mim, embora não tenham chegado a me apontar. No final, procurei a coordenadora, que sabia que era eu, e disse que eles poderiam me desligar. Ela colocou panos quentes, disse que eu era ótima, pra não levar tão à sério, ia dar tudo certo. Eu completei meus seis meses, conhecia enfermeiros, médicos, até mesmo a dona da clínica e queriam que eu renovasse, mas já não era mais conveniente pra mim.

O rapaz mitômano foi visto meses depois na fila inscrição de uma faculdade de psicologia.

Curtas de amigos ou não

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O cara que vendia os kits no ônibus enfatizou tanto que ele entrou no mundo das drogas fumando cigarro comum com os amigos quando era jovem, depois eles experimentaram maconha, e havia também a balada com música eletrônica e drogas pra ficar doidão e acordado, que eu concluí que o segredo de não entrar para o mundo das drogas é ser um adolescente impopular.

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Como se não bastasse a Síndrome nas Escadas pra vida, de não dar as respostas merecidas no momento que sou ofendida, descobri também que tenho uma mágoa tardia. Vi o nome de uma pessoa com quem não falo há tempos e tudo voltou: as pequenas grosserias, os sinais que eu ignorei, uma palavra aqui e outra lá. Tive insights e agora definitivamente a detesto.

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O segredo, como dizia o professor de My Fair Lady, é que se você resolve ser grosso, deve ser grosso com todo mundo, sem distinções. As pessoas me perdoam por não sair com elas porque sabem que eu não saio com mais ninguém, ou seja, não é que elas estejam relegadas do grupo do que são realmente íntimos. Tudo certo pra mim, mas que esse trem de querer ser popular deve dar muito trabalho, ah isso deve.

Voltar e tomar banho

Eram outros tempos e um condomínio fechado, todas as crianças mais ou menos da mesma idade e de férias. Eu só voltava para casa pra comer, às vezes nem isso, e ficava brincando na rua. Na frente de casa ficavam as quadras de vôlei e futebol, e a de vôlei tinha uma areia especialmente fofinha. Dava dez horas da noite e eu estava brincando, até que o meu pai saía gritando para que eu voltasse pra casa pra tomar banho. Ele sempre quis ter filhas e só teve a mim de menina, sempre me tratou com o carinho que teria reservado a todas as outras meninas que não conseguiu ter. Mas recaiu também sobre mim uma imagem de como as meninas deveriam ser. A questão do banho não era apenas por estar tarde, mas também porque as outras meninas, aquelas cujo modelo de comportamento ele gostaria que eu seguisse, voltavam pra casa e tomavam banho cedo. Bom, se o problema era o banho… Eu tentei, voltei pra casa e tomei banho, aí descobri que o banho era mais do que isso: tomar banho cedo implicava em vestir uma roupa limpa, e de roupa limpa e banho tomado eu deveria me mover pouco para não suar. Eu deveria ficar trancada em casa, meio imóvel, vendo TV. Eu não conseguia ver graça naquilo e meu pai se aborrecia que os prazeres de ser uma menina numa roupa arrumada não me seduzissem como deveria. Porque machismo não é só o brucutu que empurra deputada e acham que é justo; isso é consequência. Machismo abarca um conjunto de expectativas irrealistas, sobre homens e mulheres, e que determinam comportamentos visando a confirmação e a perpetuação dessas mesmas expectativas.

Por favor, assistam este documentário, Que co#o está pasando? Na Netflix está legendado, claro. Mesmo com tudo o que já li e pensei, os insights que ele oferece são incríveis. E nós aparecemos nele, vergonhosamente representadas pela Damares…

O deleite da singularidade

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Indra destituiu seu irmão, Varuna, e se tornou o novo rei dos deuses. Mas Varuna era naturalmente qualificado para o cargo, por ser o deus do Espaço – ele estava em todos os lugares, via tudo, e por isso era capaz de julgar imparcialmente. Indra é o senhor das tempestades, e mandar nuvens para vigiar não é tão eficiente. Então, Indra apelou para Vishnu. Assim como no catolicismo, aqui há também uma trindade: Brahma, Vishnu e Shiva. Eles não são deuses como os das muitas histórias do panteão hindu, eles são os Criadores. Como adultos que não se entusiasmam com as brincadeiras das crianças, os Criadores do Universo não costumam participar do que está acontecendo, a não ser quando pedem por sua interferência. Foi o caso: depois de tudo feito e finalmente rei, Indra percebeu que não conseguiria governar se não pudesse estar ciente de tudo o que acontece.

Chega aqui o ponto que eu considero mais delicioso desta história e que me faz amar a visão do hinduísmo: Vishnu é ao mesmo tempo consciência e objeto do mundo material. Sem ele não existimos como sujeito que experencia, assim como sem ele não haveria o que experimentar. O Universo foi criado para este deleite que é criar e perceber o criado. É fácil imaginar que este deleite é muito maior se cada objeto, cada mínima criação, seja única. Como a singularidade das coisas é o mais interessante a Vishnu, ele percebeu que não poderia dar a Indra a capacidade de perceber tudo porque isso o destruiria. Indra deixaria de ser Indra – apaixonado, ambicioso, ávido – se passasse a ver tudo o que acontece em todos os lugares.

Como era necessário que alguém tivesse a capacidade de perceber o todo para governar os deuses e o problema foi apresentado a Vishnu, ele tinha que encontrar uma solução. Quem ficou com o encargo foi Lord Yama, que governa o sub-mundo e é responsável por julgar as pessoas após a morte. Mas aí já é outra história…

(resumo da história contada neste vídeo do astrólogo védico Vic Dicara)

Esquecimento

O único conselho que eu ouvi, que hoje é o mesmo que eu daria, o único possível, é: mantenha-se ocupada. Eu era uma introvertida que perdeu a capacidade de estar só, então foi como se me tirassem tudo. Me vi desejando ser convidada ou me auto-convidando. Antes do final de semana chegar, eu já precisava fechar uma agenda, porque eu sabia que a sensação de acordar sozinha no sábado era terrível. Agora abriram e fecharam lugares, mas ainda sei praticamente todos os cafés até chegar à minha casa. Eu precisava estar fora de casa, era só o que importava. Quando voltava para casa – em algum momento tinha que acontecer -, ligava imediatamente a TV, assistia, acompanhava, algo totalmente estranho pra quem sempre achou estressante o barulho de TV ligada.

Numa noite, depois de muitos meses nessa luta comigo mesma, cheguei, tranquei o portão e repus a comida do cachorro, coloquei a bolsa de lado, fui preparar minha janta, vi se a roupa havia secado no varal, arrumei a bolsa pro dia seguinte, chequei redes sociais, preparei meu prato de comida, jantei, coloquei o prato na pia, lavei louça… até que finalmente me dei conta de que não havia ligado a TV. Percebi e liguei. Mas naquele intervalo eu ainda não havia notado e me entristecido com a minha solidão. Depois de muitos meses lutando contra a escuridão, finalmente foi indiscutível que a luz iria vencer.

Querida, mantenha-se ocupada.

you are more

A barata triste

melancolia

Eu sempre encho minha casa daquelas armadilhas de baratas, que juram que elas comem veneno e morrem no ninho. Compro dessas porque é o que tem, porque se fossem pequenos lança-chamas eu também compraria. Teve um único verão que me esqueci de trocar as armadilhas e vi duas baratas no espaço de pouco tempo, o que me fez correr até o supermercado pra uma compra emergencial de armadilhas novas. Isso pra dizer que compro a tal armadilha porque alguma mágica acontece, nem sei  o quê, minha casa fica sem baratas e isso me basta.

Acho que eu finalmente vi uma barata envenenada. Fui na minha cozinha, à noite, acendi a luz, coloquei os pratos na pia, e quando olhei pro chão a mancha marrom era uma barata. Normalmente eu teria dado um pulo, mas falei “que ousadia!”. Porque parada daquele jeito poderia ser uma folha, uma casca de cebola, algo inocente. Estava viva, as antenas mexiam, mas se movia lentamente. Sempre de olho pra ela não correr, peguei o veneno que estava poucos passos dali, na sala. Quando voltei pra cozinha, a barata havia sumido. Pronto, pensei, correu pra longe, vou ter que tacar fogo na casa e mudar de país. Olhei melhor e ela mal tinha atravessado a porta. Ela caminhava tão lentamente, de um modo tão hesitante, tão pouco barata, que só pude concluir que ela havia acabado de comer um dos venenos e estava passando muito mal. Lembrei que a embalagem diz que ela morre no ninho e transmite para as outras baratas, o que me deu alívio duplo: não teria o desgosto de esmagar uma barata e nem de ter que colocar no lixo. Eu observei a barata se afastar cada vez mais da cozinha, da área de serviço, da claridade, até que ela adentrou algum buraco e sumiu. Nunca pensei que uma barata seria capaz de uma cena tão melancólica.

Uma coisa é uma coisa e a outra coisa…

antidepressivo

Não sei, era como se fosse interligado, só pelo fato de ser alguém próximo a mim ou eu ficar sabendo, não sei explicar. Só sei que um dia eu percebi de uma maneira muito forte que o sucesso dos outros não tem nada a ver com os meus fracassos. Óbvio, eu sei, mas eu percebi de maneira profunda. Eu passarei o resto dos meus dias usufruindo das minhas escolhas ruins, minhas oportunidades ruins, minha realidade ruim. E o outro, que teve outras circunstâncias, poderia ter pouco ou muito mérito ao conquistar justamente o que eu quero, e mesmo assim eu não tenho nada com isso. Fulana aos vinte publicou e eu aos quarenta não – e.d.a.í. Eu tinha raiva e quanto mais perto a pessoa era da minha realidade, maior a frustração. Não sei, vai que, do lado de lá, esta mesma pessoa olha pra mim e lamenta nunca ter se casado, não saber nadar, não ter pisado num palco. E se eu deixar de fazer tudo isso, também não a ajudo em nada. Eu entendi e me deu como uma raiva do destino, que me assiste bater a cabeça na parede por ter dificuldade no que pros outros é tão fácil, por me ver insatisfeita e continuar calmamente com os seus planos. Que pode ser que seja a vida inteira assim, que eu seja como a Lucia Já Vou Indo, a lesma de um livro que li na infância e que saiu com mais de uma semana de antecedência pra uma festa e quando chegou tudo já havia acabado. E ninguém, ninguém, tem nada a ver com isso, porque cada um está fazendo o melhor que pode com seu próprio caminho. De ódio, comecei a ajudar os outros. Pra ficar mais feio pra você, Destino. Pra fazer pelos outros o que você se recusa a fazer por mim.

Amor (ou pelo menos tolerância) no coletivo

i created it myself

Eu passei dias pensando no tema, mas achei que vocês iam me matar se eu viesse aqui dizer que o segredo da popularidade é gostar das pessoas. Cheguei nisso assim: eu li o Como Fazer Amigos e Influenciar as Pessoas na adolescência. Lembro até hoje do olhar de pena da funcionária da biblioteca. Mas o meu interesse foi muito menos puro do que o de ser popular e sim de entender o mecanismo. Só lembro agora da regra que dizia que é muito importante lembrar do nome das pessoas, porque para elas é a palavra mais bonita do idioma. Ele é cheio de regras que fazem muito sentido quando as lemos, mas lembro que minha popularidade continuou a mesma na época que tentei aplicar. Acho que eu não soava sincera.

Com o tempo, meu relacionamento com as pessoas foi melhorando e acho que aplico ainda menos as regras do que antes. Eu levo muito tempo para aprender nomes e os desaprendo num instante. O que eu acho que aconteceu é que passei a gostar mais das pessoas – desde aqueles com quem tenho afinidade ao fulano que nem olha pra minha cara. Eu tento entendê-las nas suas razões. O segredo dessa mudança em mim, acho, foi começar a olhar para as pessoas como parte de gerações – graças à sociologia e ao meu próprio envelhecimento. O que individualmente pode ser difícil de engolir às vezes faz todo sentido no contexto. Por exemplo, o imenso apelo que o candidato de direita teve sobre a geração que tem pra lá de seus sessenta anos. A pauta moral os conquistou, ponto. Faz sentido se pensarmos nas mudanças radicais eles presenciaram, tanta liberdade e quebra de paradigmas no espaço de poucos anos, as certezas que eles têm e que talvez ninguém mais daqui pra frente tenha. Enfim, raciocínios desse tipo me fazem ser menos difícil de conviver com escolhas que eu abomino. Sou boazinha? De modo bem prático e egoísta: viver sem odiar o entorno é mais leve.