A morte da magia, agora sim racionais e perfeitos

Embora eu nunca tenha chegado perto de viver isso por ter me afastado da profissão, sempre me dá um arrepio quando vejo notícias de tragédias e violências terríveis – daquelas que nos fazem perder a fé na humanidade só de ficar sabendo, quanto mais vivê-las – e ela termina com a notícia tranquilizadora de que a pessoa já está recebendo tratamento psicológico. Eu me coloco no lugar desse terapeuta, eu o imagino entrando numa sala com uma pessoa totalmente ferida e ter que ser, para ela, o veículo de restaurar uma psiquê feita em migalhas, como se num só indivíduo tivesse sido despejado um caldeirão inteiro de maldade, uma violência que representa classes, gerações, algo muito maior do que os próprios participantes. Há dores que são inevitáveis, mas há também dores que ninguém deveria viver. O que é possível dizer? Às vezes não há mesmo nada a dizer. Nada para dizer, eu acho que uma das coisas mais difíceis é não ter nada para dizer e realmente se calar. Lembro de um amigo ateu que perdeu a mãe e recebeu várias condolências falando de Deus, as pessoas chegavam a escrever “eu sei que você não acredita, mas vou dizer do mesmo jeito: que Deus…”. Ou quando dizem para uma pessoa com depressão não ficar daquela maneira ou sair para tomar um ar. São frases de consolo que servem muito mais a quem diz do que a quem recebe.

Quando eu fiz faculdade, não existia coach; o mais próximo de coach naquela época era a chamada Terapia Breve. Ao invés de ficar muito tempo revirando seus pensamentos, na terapia breve a pessoa já chegava dizendo seu objetivo e em poucas semanas o terapeuta a ajudaria a chegar lá. Dentre as opções que me foram oferecidas, eu me encantei com o psicodrama de raiz, digamos assim, o que tinha raízes no teatro (mas não atuei porque ele precisava de mais uma pessoa). Hoje existe a Constelação Familiar, que pelo pouco que sei bebe um pouco da fonte do psicodrama, soube que pra divisão dos diversos papéis usam até cavalos. Para turbinar o currículo, o lance era fazer as Pós-Graduações e depois passou a ser MBA, soa muito mais FGV. Para não ficar só no acadêmico: eu fiz a dieta Dukan há alguns anos, emagreci bastante (e depois recuperei), comi tanto queijo minas (fazer uma dieta baseada em carne quando não sei come carne é complicado) que a padaria aqui perto de casa só faltava vender queijo minas em fardos. Lembro que quando eu era criança existia a Dieta de Beverly Hills, tinha que fazer refeições só de fruta – e só uma fruta! -, porque diziam que era assim que os homens (os nossos amigos caçadores e coletores) faziam nas origens. Agora tem Gluten Free e não sei se ela ainda está vigente ou se surgiu outra e não estou sabendo. Sobre procedimentos estéticos podemos citar que antes era o Botox e agora é a Harmonização Facial, sobre internet podemos falar de Blogueiros que deram lugar aos Influencers, enfim, para cada setor existe o último, o novíssimo, o revolucionário que AGORA SIM. Não que houvesse nada de errado com o que havia antes, e muitas vezes são os mesmos conteúdos/procedimentos/pessoas sob novos nomes, mas o simples fato de ser o antigo parece diminuir a eficácia.

Objetos sagrados costumam ser separados dos objetos comuns, mesmo se puderem ser limpos ou sejam idênticos. Não se pode pegar um prato comum de cozinha e usar num rituais, lavar, comer, usar em rituais de novo. Objetos mágicos “sujam” se forem usados para fins profanos. Para entrar nas igrejas católicas subimos escadas – às vezes de muitos degraus e que nos deixam esbaforidos -, o que nos tira gradualmente do mundo comum para entrar no sagrado. Já dentro do ritual, os Oficiantes têm roupas diferentes do seu dia a dia, nem que seja apenas um manto que cubra a roupa normal. Mas o ideal mesmo é quando é possível retirar o Oficiante da vida comum, vivendo em casas separadas, sem ter que ganhar seu sustento como um assalariado, muitas vezes sem poderem constituir famílias. Tendemos a acreditar em pessoas que falam em cima de púlpitos, vestem roupas diferentes e que não vemos fazendo coisas banais. O psicólogo junto de quem viveu uma tragédia pode não ter muito mais o que fazer do que ouvir e chorar junto, mas ele é O Psicólogo. (Assim como se ele disser algo inadequado, será muito pior por ter sido um Psicólogo).

O engraçado é que a morte da magia já foi decretada inúmeras vezes. A Antropologia nasceu quando os Europeus descobriram os Outros, e os chamaram de incivilizados, porque os Outros, estranhamente, sempre perdiam em critérios de civilização: não usavam calças, não frequentavam escolas, não reverenciavam a rainha da Inglaterra. James Frazer – que, se não me engano, é o mesmo antropólogo que disse “Deus me livre!” quando questionado se gostaria de encontrar pessoalmente algum dos nativos que estudava -, inventou uma escala que dizia que o pensamento humano evoluía da Magia, passava pela Religião e culminaria na Ciência. Os povos primitivos, coitados, ainda pensavam que um machado ungido num ritual podia fazer mal a uma pessoa que estava a quilômetros, ou seja, não entendiam nada de física, por isso ainda estavam na Magia. Já os europeus haviam passado pela Religião e já estavam, no séc XIX, predominantemente na Ciência, quase de todo racionais e perfeitos. Chegamos no futuro fazendo coisas impensáveis há poucos anos, como interagir com facilidade em tempo real com pessoas do outro lado do mundo – que agora muitos acreditam que é plano.

Decretar o fim da magia e qualquer tipo de lúdico parece ser uma fantasia iluminista que ainda carregamos. A mim, a tentativa de fazê-la desaparecer como água só a espalha em pedaços menores ainda mais difíceis de rastrear. Lembro de uma vez que fui buscar meus florais na farmácia de manipulação e lá encontrei uma das minhas professoras, que na época também ocupava um cargo importante na universidade. Assim como eu, ela foi buscar florais, e eu percebi que ela ficou muito sem graça quando me encontrou. Mas quando se convive com muitos professores, doutores, cientistas e pessoas “racionais” em geral, menos temos a visão ilusória de que são pessoas guiadas apenas pela razão. Como qualquer psicólogo poderia confirmar, quando negamos uma parte essencial do psiquismo na ilusão de fazê-lo desaparecer, apenas criamos um monstro que não conseguimos controlar. A publicidade nos captura com pura magia, fazendo com que o consumidor se identifique com a modelo, se emocione com a música, deseje o cenários e compre um produto (que não é nenhum dos três itens) acreditando que tudo aquilo virá até ele espontaneamente. Irmã cada vez mais íntima da publicidade, a magia está presente na política, que definitivamente agora investe puramente no emocional. As pessoas estão votando em heróis contra vilões, em purezas, em soluções rápidas, em paraísos na terra e cada vez menos em projetos políticos, aqueles detalhes chatos do dia a dia como decidir prioridade de verbas, traçar um plano de ação, atender demandas de grupos, etc.

Mas a magia também está nos relacionamentos, no amor, em olhar para um ser humano e achar que ele é essencialmente único. Eu gosto da frase que diz que “casar de novo é a vitória da esperança sobre a experiência”, porque acho que é isso mesmo. Apesar dos fatos apontarem para o contrário, de quem já casou saber das dificuldades diárias, é muito humano ficar inundado de esperanças e fazer tudo de novo – casar de novo, montar uma família de novo, acreditar que pode controlar o destino de novo. A magia está na arte, que é produzida diariamente, até que uma combinação de notas ou cores muito específica atinge as pessoas com uma força inesperada e as emociona, cria um novo mundo, passa a fazer parte de suas vidas. Hoje até mesmo a ciência se rende ao poder curativo das rezas, do efeito da meditação no cérebro, da força interior que as pessoas encontram nos momentos difíceis apenas porque creem numa explicação. Magia não é realmente desacreditar de leis da física (como acreditavam os primeiros antropólogos) e sim se permitir uma relação muito mais orgânica com elas.

Em busca de um lugar quentinho

Quando eu li a série Sapiens, de Yuval Harari, especialmente o primeiro livro – Sapiens: uma breve história da humanidade -,fiquei com a sensação de que o autor é fã dos caçadores e coletores. Tudo pode ser apenas um recurso, porque ele precisava refutar um pensamento que está tão entranhado em nós que nos parece muito natural: se nós sobrevivemos a outras espécies, é porque somos melhores. Ou: o fracasso de padrões do passado atesta a superioridade do padrão do presente. Harari nos aponta que, em vários itens, os caçadores e coletores eram melhores do que nós, os sedentários. Um deles é a inteligência. Como vivemos em sociedades complexas e cheias de tecnologia, temos a impressão de sermos muito inteligentes, mais inteligentes do que jamais fomos; o autor nos aponta que, coletivamente, por causa da construção histórica do pensamento, podemos ter nos tornado mais inteligentes, mas como indivíduos não. O homem contemporâneo é, em comparação com seu ancestral caçador e coletor, pouco habilidoso, pouco desafiado, conhecedor de um número pequeno de rotinas, logo, menos inteligente. Além da inteligência, perdemos em força, em criatividade, em integração com a natureza, até mesmo em saúde… mas escolhemos esse caminho sem olhar para trás, em busca de algo muito caro: segurança. A segurança da barriga quentinha que apenas a agricultura pode nos dar. E a proteção gerada pela vida comunal.

Existe uma corrente filosófica chamada Contratualismo, da qual todos nós já ouvimos falar um pouco, e dela vem a ideia de Contrato Social. Todos os autores da corrente falam desse Contrato, apesar de diferentes concepções de homem e de como e porquê o Contrato é feito. Para Hobbes, com a ideia do “homem lobo do homem”, somente um poder absoluto e autoritário é capaz de impedir que os homens vivam em guerra constante. Já Locke acreditava num homem essencialmente bom e o Estado surge do consenso, para garantir os direitos naturais do homem. O Estado que não defende esses direitos perde a sua legitimidade e pode ser deposto. Quando estudei essa linha de pensamento pela primeira vez, achei que a teoria fazia sentido mas que havia algo estranho, algum ponto cego, e não sabia dizer o que era. O estranho está na noção de que exista algo antes do contrato. Não existem homens solitários, que falem a mesma língua e que vivam sozinhos tempo o suficiente para depois fazerem uma grande reunião e decidir um contrato. Linguagem, vestuário, moradias, instrumentos, direitos, deveres, cultura, ideais, leis – tudo surge ao mesmo tempo, tudo junto e misturado, gerado e modificado sem parar no convívio. Podemos sonhar com Tarzãs e Meninos Lobos, mas sabemos que um homem criado fora do convívio humano é apenas um animal em desvantagem. Ser um humano não se resume a ter um corpo humano.

Eu acompanhava a série Star Trek (primeira geração) quando era criança e tive a oportunidade de rever muitos episódios depois de adulta. Xinguei muito o Capitão Kirk! Mais de uma vez, a tripulação encontrou planetas que eram como paraísos. Eles tinham algo nas suas atmosferas que acalmavam as pessoas e lhes davam paz, então todos ficavam contemplativos e não queriam mais viver aquela vida de exploração espacial. (Imagine aquele típico cenário Star Trek, só com pedras e fundo colorido, e a tripulação deitada e conversando como se estivesse num festival da maconha). Kirk era sempre o que não se deixava contaminar e ele dava um jeito de arrancar todo mundo daquele estado. Era pra ficar infeliz e trabalhando mesmo. A justificativa dele era que aquilo era contra o espírito humano, que era a luta, a incompletude, a insatisfação, a ambição, em resumo, a infelicidade que nos tornavam grandiosos.

Seria Kirk retrato da época que a série foi lançada? Hoje acho que ninguém faria (e repetiria) uma defesa tão apaixonada de viver sob pressão, talvez porque estejamos vivendo pressão demais. Freud concordaria com Kirk ao dizer que uma vida toda voltada ao prazer não nos leva a nenhum avanço civilizatório; que o Princípio de Realidade, ao negar a satisfação imediata do Princípio de Prazer, apenas contribui para aumentá-lo. Não é difícil perceber que faz sentido; o alívio de um prazer represado é muito mais profundo do que um que se deixa realizar assim que o desejo surge. Eu tendo a concordar com Marcuse, que em Eros e Civilização, diz que o desenvolvimento do capitalismo fez com que nós pervertêssemos o Princípio de Realidade com a “mais-repressão”, jogando a satisfação da libido cada vez mais longe, até simplesmente ignorá-la.

Como os Estados Unidos venceram a Guerra Fria – não se pode dizer que um país que não existe mais possa ter ganhado, não é?- o sistema que eles representam é o padrão que venceu. Se venceu é porque é melhor, certo? Quando caiu o Muro de Berlim e as duas Alemanhas puderam se olhar, eu lembro das reportagens falando do quanto a cidade ocidental era mais bonita, colorida e conservada. Agora eu percebo que existe um movimento de olhar para esses mesmos restos de outra maneira. De olhar para os kommunalka – apartamentos comunais da antiga URSS – e ao invés de pensar que são feios, reparar que são grandes. O meu pai tinha um indisfarçável desprezo pela poucas conquistas dos filhos, que aos quarenta ainda não eram nada e não tinham nada, enquanto ele aos quarenta tinha casa própria, carro, sustentava a própria família e a da ex-mulher, viajava e gastava muito. No excelente documentário The True Cost (que não está mais na Netflix), além de mostrar a pobreza e a exploração daqueles que produzem as nossas fast-fashion, somos obrigados a encarar a nossa pobreza, nós, os consumidores. Se antigamente a pessoa tinha duas camisas e usava uma enquanto a outra lavava, ela também tinha a perspectiva de economizar bastante até comprar seu terreninho. Agora não, o terreno ou a casa própria se tornaram tão distantes para a maioria que o único luxo possível é o imediato, o da roupa bonita. Da minha parte, tenho pensado que estou bastante cansada do tal espírito humano insaciável e ambições sem fim.

Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes

Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes
Que nem devia tá aqui
Permita que eu fale, e não as minhas cicatrizes
Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós?
Alvos passeando por aí

Emicida – AmarElo

Pedir para dez pessoas que viam e depois se tornaram cegas é trazer à tona experiências dolorosas. Teve um detalhe de um dos depoimentos que me doeu pela sua simplicidade. Um dos entrevistados contou que, certa vez, foi contratado por uma empresa apenas para fazer número. Ele foi deixado numa sala vazia na parte de cima do prédio sem ter nada o que fazer. Além da situação em si já ser deprimente, era ainda mais doloroso que o deixavam sozinho também no elevador. Ele entrava no elevador e, quando parava nos andares, as pessoas não entravam com ele. Aquilo me doeu porque vi a dor com que ele me contou, mas também porque eu também poderia ter feito o que aquelas pessoas fizeram. Elas ficaram tão sem saber o que fazer que preferiram fingir que não estavam lá, na esperança de que ele não percebesse.

Depois de ler a série de Philippe Ariès sobre a morte, eu nunca mais vi a cremação da maneira como via. Ele é um historiador do que se chama de História das Mentalidades e/ou História de Longa Duração e trata o caminho que fazemos desde a Idade Média até os tempos atuais para mostrar a nossa relação com a morte. As pessoas eram mais íntimas dos cadáveres, putrefação e morte em geral. As pinturas estão cheias de sangue, pessoas sendo degoladas, tripas de fora, cadáveres esverdeados. Há registros de pessoas que anunciavam que viveriam apenas mais alguns dias, e com isso tinham tempo de reunir a todos e resolver as pendências antes de partir – elas diziam que iam e iam mesmo! Os funerais eram longos, de uma semana pelo menos, e se enchia o recinto de flores para suportar o mau cheiro. Aqueles dias serviam para dar tempo para as pessoas se despedirem, viagens de carroça e cavalo eram demoradas… Mas também servia para se ter certeza de que o falecido havia realmente morrido e que não ia levantar de repente de uma catalepsia – fenômenos imprevisíveis para a medicina da época e que davam a impressão de que a pessoa foi e voltou do além. Fomos nos afastando de tudo isso, desse convívio carnal a morte, e ela foi se tornando tabu. Não queremos nem falar, como se isso atraísse e a morte em si não fosse inevitável, dizemos até Aquela Doença para não usar a palavra Câncer. O cadáveres foram ficando fisicamente distantes, sendo cuidados em lugares especializados e quase em segredo, e hoje rejeitamos até que reste um corpo. Queimamos, jogamos as cinzas no mar, apagamos qualquer resquício de fisicalidade.

O nosso afastamento do carnal fez com que Norbert Elias, já no século passado, lançasse a previsão que no futuro seríamos cada vez mais vegetarianos. Ele disse que explicaríamos isso de várias maneiras, como o amor pelos animais, os nutrientes, a preservação do planeta e etc., mas o que permitia fazer uma previsão segura sobre isso era a maneira como estávamos nos afastando da carne. Enquanto qualquer nobre educado precisava saber destrinchar um porco com elegância na frente de seus convidados, hoje compramos a carne preparados, cortes e bandejas higiênicas que dissociam aquele alimento de qualquer animal ou de morte. O problema com a morte não segue direção única, então não apenas rejeitamos a morte dos animais: também vivemos, ainda de acordo com Elias, um movimento de afastamento de pessoas velhas. A decadência física dos velhos nos lembra nossa própria decadência, e isso é desconfortável. Quando uma pessoa velha demonstra amor à existência carnal, como por exemplo fazendo sexo, ficamos horrorizados, sentimos aquilo como indecente – queremos acreditar que velhos são puros e esterilizados, iguais as bandejas de carne. Os velhos têm marcado no corpo a passagem do tempo e na presença deles é impossível esquecer a morte. Amamos a juventude, fazemos de tudo para parecermos eternos adolescentes. Aos velhos cabe o asilo e os lugares escondidos, porque assim quando eles somem também não fazer nenhum barulho, ninguém nem vê o corpo.

Uma vez indiquei para uma pessoa preconceituosa que assistisse Ru Paul´s Drag Race. Eu queria que ela conhecesse. E a defini como preconceituosa, mas era mais complexo do que isso – a maneira como foi criada e suas crenças religiosas lhe dizem que homossexualidade é errado, mas ela tampouco consegue aprovar que as pessoas sejam maltratadas por isso. Para ela, o desejo pelo mesmo sexo é como um problema sem solução, uma prova da imperfeição do mundo. Eu queria que ela visse, com Ru Paul, a história daquelas pessoas, que em vários momentos do reality falam de suas dificuldades com a família, emprego, imigração, relacionamentos. Mas eu queria que ela visse também o grande talento daqueles profissionais, as provas muito difíceis, como as drags precisam conhecer seus próprio estilo, encontrar maneiras de tornar o corpo mais feminino, serem interessantes, representar, dançar, atuar. Assistir o programa nos faz enxergar drag menos como algo folclórico e mais como um trabalho feito por pessoas comuns. Mas a pessoa a quem sugeri ver o programa não quis, alegou que achava tão doloroso ver como os gays sofrem que ela não ia ver. E fim.

Já me aconteceu mais de uma vez de contar dramas aqui do “nosso lado” (esquerda) e ser desmentida sem dó. Você conta algo como o que está acontecendo com a Manuela D´Ávila, de enviarem ameaças de estupro para sua filha de cinco anos, ou histórias difíceis de racismo ou preconceito de classe e o ouvinte carimbar: “é mentira”. Para algumas pessoas, quanto mais violenta e injusta a história, maior a prova que “a esquerda inventa essas coisas para se vitimizar”. Negros exageram quando dizem que pessoas menos qualificadas ficam com as vagas de emprego, mulheres andam por aí se insinuando e não mencionam isso quando reclamam de assédio, entregadores de aplicativos atravessam a cidade em bicicletas por gosto, etc. Eu vejo que não é a mim ou as vítimas das histórias que essas pessoas desmentem, e sim o mundo que é descortinado. Como encarar o fato de que o mundo pode ser tão ruim e continuar vivendo; que existem pessoas que fazem o mal sem a menor culpa e algumas delas podem ser meus vizinhos; que enquanto estou tranquila outros são tão injustiçados; que existam problemas tão grandes e sem solução? Elas se recusam a ver o lado ruim, menos ainda que possam estar envolvidas nisso quando abraçam certas idéias. A intenção das pessoas que não entravam no elevador porque havia um cego lá dentro jamais foi magoar ou serem preconceituosas – mas foram, e muito. O problema é que somos responsáveis não apenas pelo que dizemos, mas também pelo que calamos e o que preferimos não lidar.

O elo mais fraco

Como diz a sábia frase popular: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Assim é também psicologia e sociologia, cada uma com seus objetivos e campos de atuação diferentes. Eu cursei psicologia e, ao longo do curso, algumas insatisfações surgiram e que me levaram a fazer faculdade de sociologia. Conversei ao longo dos anos com psicólogos que atuam na área e eles me disseram que eu não estou errada nas minhas percepções. Vou apenas levantar as questões, sem ter pretensão de dizer que é assim ou qual a resposta. Talvez alguém do outro lado tenha pensado nisso ou possa aprofundar esses insights, não sei. Vou falar especialmente de psicologia clínica porque era a área onde eu pretendia atuar.

Entre extrovertidos e introvertidos, podemos dizer que o paciente que vai procurar uma terapia é introvertido. Entre os que falam alto ou baixo, será os que falam baixo. Entre os agressivos e os pouco agressivos, os pouco agressivos. Mas, principalmente: entre os que de baixa auto-crítica e muita auto-crítica, será o de muita auto-crítica. Eu me aborrecia em perceber que a pessoa que procurava uma terapia era sempre o elo mais fraco da corrente, o que estava sofrendo maus tratos dos outros. Numa família cheia de agressividade e falta de limites, o que procura terapia é aquele que tem seus limites violados, o que é agredido, o que não suporta aquele clima, quase nunca ou nunca os que causam a situação, os agressores. Num ambiente de trabalho tóxico com um chefe que assedia moralmente, os empregados vão procurar ajuda porque ficam doentes e não sabem o que fazer, o chefe não apenas continua muito bem como é capaz de ser promovido. Nossa sociedade gosta de extrovertidos, dos que falam alto, encara como força de caráter ser agressivo e vê na falta de auto-crítica uma pessoa muito segura. Era frustrante pra mim estar sempre tratando da vítima, e até o fato de estar em terapia aumentava ainda mais a crença de que a errada era ela.

No segundo caso, – não necessariamente é outra pessoa ou uma que chega apenas com essa questão – o que me incomodava é mais amplo. Digamos que aparece no consultório uma pessoa que se queixa de ser obesa. Ela tem problemas de auto-estima e se acha uma preguiçosa e sem força de vontade porque é descontrolada e come muito. A obesidade é um problema muito complexo, pensar em metabolismo lento ou acusar alguém de gostar muito de doces é ver apenas o mais imediato. No Brasil temos vários tipos de corpos, de cores e distribuição de gordura diferentes, mas quando vemos as revistas parece que só é bonito quem tem um tipo longilíneo europeu. Temos um modelo de barriga ideal que é impossível até mesmo para a tal mulher longilínea européia depois que ela teve filhos. Como querer, sozinho, construir uma auto-estima e amor pelo próprio corpo quando tudo a sua volta diz o contrário, que beleza é outra coisa. Sobre comer errado ou gostar de comer, estamos cercados de alimentos que geram compulsão e inflam, que são produzidos para isso mesmo – serem consumidos em excesso, sem a menor preocupação com a saúde. Para se alimentar bem é preciso conhecimento, tempo e dinheiro, e não é todo mundo que consegue juntar os três fatores. Quem cuida demais da alimentação acaba se tornando uma pessoa difícil no convívio, porque passa a ser a chata que se recusa a comer, que não tem nada para ela no cardápio comum. É fato que a evolução tecnológica tornou nosso estilo de vida mais sedentário, então o esforço que faríamos naturalmente ao andar longas distâncias ou transportar coisas pesadas já não existe, então existe a necessidade de dar ao corpo o esforço que ele não tem mais com exercícios. Mas fazer exercícios, seja numa academia ou fora dela, além de demandar tempo, não é algo que todo mundo gosta e não deveria ser errado não gostar. Ou seja, numa sociedade onde tudo é organizado para tornar a pessoa obesa, ela assume aquilo como uma culpa pessoal e procura uma solução individualizada para o problema.

Nos dois casos, parece-me que estamos lidando com a parte fraca, com o sintoma e não com a doença. Eu me perguntava se tratar esses casos não quer como querer enxugar gelo. Para o indivíduo sem dúvida a terapia tem valor, porque seu sofrimento é real. (Aqui faço um mea culpa: como psicóloga, poderia ter ajudado de maneira concreta a vida de algumas pessoas, enquanto minhas dúvidas teóricas não me levaram a lugar nenhum). Por mais que um problema possa ser explicado socialmente, ninguém quer ser reduzido a um número, cada um quer ter qualidade de vida e merece ter estratégias para ser mais feliz. Desde que me formei, o número de candidatos praticamente dobrou, o que indica que a área se tornou ainda mais importante. Mas essa percepção de que a psicologia é importante não seria indicativo de mais sofrimento psíquico, ou seja, que o indivíduo não está sendo esmagado de maneira ainda mais intensa pela sociedade? Será que gerar cada vez mais estratégias individuais, fazendo de cada pessoa sua própria célula problemática que tem que se resolver, não é também contribuir para que nada mude e as pessoas continuem sendo esmagadas? Depois de cinco anos de faculdade, quando entrei na sociologia eu me surpreendi em perceber o quanto eu ignorava a respeito de história, cultura, correntes de pensamento. Na busca de estabelecerem sua posição como ciência, os cursos de psicologia focam sua abordagem na própria psicologia, em suas teorias e métodos, e praticamente ignoram as grandes mudanças da sociedade. Se olharmos apenas para o indivíduo trancado com os seus problemas, jamais entenderemos o porquê de alguém hoje se queixar de obesidade, o que não ocorreria há séculos atrás quando a gordura era considerada bonita, assim como não conseguiremos entender o porquê apenas repetir programações positivas adianta muito pouco.

Como eu já disse antes, eu não acho que nada disso desmereça o valor da psicologia, são apenas questões que me incomodaram pessoalmente. Eu nem ao menos posso dizer que foram apenas estas questões que me afastaram da área, porque grandes decisões envolvem sempre muitos fatores e eles nunca são apenas teóricos. Fiz psicologia e sociologia, então sou fruto de duas formações; entre as minhas duas mães, eu sei que é a segunda que não encontra no mundo o valor que merece. Eu acho que muito do que vivemos hoje seria menos surpreendente, e quem sabe poderia até ter sido evitado, se nos acostumássemos a olhar além dos indivíduos e da nossa própria época.