Embora eu nunca tenha chegado perto de viver isso por ter me afastado da profissão, sempre me dá um arrepio quando vejo notícias de tragédias e violências terríveis – daquelas que nos fazem perder a fé na humanidade só de ficar sabendo, quanto mais vivê-las – e ela termina com a notícia tranquilizadora de que a pessoa já está recebendo tratamento psicológico. Eu me coloco no lugar desse terapeuta, eu o imagino entrando numa sala com uma pessoa totalmente ferida e ter que ser, para ela, o veículo de restaurar uma psiquê feita em migalhas, como se num só indivíduo tivesse sido despejado um caldeirão inteiro de maldade, uma violência que representa classes, gerações, algo muito maior do que os próprios participantes. Há dores que são inevitáveis, mas há também dores que ninguém deveria viver. O que é possível dizer? Às vezes não há mesmo nada a dizer. Nada para dizer, eu acho que uma das coisas mais difíceis é não ter nada para dizer e realmente se calar. Lembro de um amigo ateu que perdeu a mãe e recebeu várias condolências falando de Deus, as pessoas chegavam a escrever “eu sei que você não acredita, mas vou dizer do mesmo jeito: que Deus…”. Ou quando dizem para uma pessoa com depressão não ficar daquela maneira ou sair para tomar um ar. São frases de consolo que servem muito mais a quem diz do que a quem recebe.
Quando eu fiz faculdade, não existia coach; o mais próximo de coach naquela época era a chamada Terapia Breve. Ao invés de ficar muito tempo revirando seus pensamentos, na terapia breve a pessoa já chegava dizendo seu objetivo e em poucas semanas o terapeuta a ajudaria a chegar lá. Dentre as opções que me foram oferecidas, eu me encantei com o psicodrama de raiz, digamos assim, o que tinha raízes no teatro (mas não atuei porque ele precisava de mais uma pessoa). Hoje existe a Constelação Familiar, que pelo pouco que sei bebe um pouco da fonte do psicodrama, soube que pra divisão dos diversos papéis usam até cavalos. Para turbinar o currículo, o lance era fazer as Pós-Graduações e depois passou a ser MBA, soa muito mais FGV. Para não ficar só no acadêmico: eu fiz a dieta Dukan há alguns anos, emagreci bastante (e depois recuperei), comi tanto queijo minas (fazer uma dieta baseada em carne quando não sei come carne é complicado) que a padaria aqui perto de casa só faltava vender queijo minas em fardos. Lembro que quando eu era criança existia a Dieta de Beverly Hills, tinha que fazer refeições só de fruta – e só uma fruta! -, porque diziam que era assim que os homens (os nossos amigos caçadores e coletores) faziam nas origens. Agora tem Gluten Free e não sei se ela ainda está vigente ou se surgiu outra e não estou sabendo. Sobre procedimentos estéticos podemos citar que antes era o Botox e agora é a Harmonização Facial, sobre internet podemos falar de Blogueiros que deram lugar aos Influencers, enfim, para cada setor existe o último, o novíssimo, o revolucionário que AGORA SIM. Não que houvesse nada de errado com o que havia antes, e muitas vezes são os mesmos conteúdos/procedimentos/pessoas sob novos nomes, mas o simples fato de ser o antigo parece diminuir a eficácia.
Objetos sagrados costumam ser separados dos objetos comuns, mesmo se puderem ser limpos ou sejam idênticos. Não se pode pegar um prato comum de cozinha e usar num rituais, lavar, comer, usar em rituais de novo. Objetos mágicos “sujam” se forem usados para fins profanos. Para entrar nas igrejas católicas subimos escadas – às vezes de muitos degraus e que nos deixam esbaforidos -, o que nos tira gradualmente do mundo comum para entrar no sagrado. Já dentro do ritual, os Oficiantes têm roupas diferentes do seu dia a dia, nem que seja apenas um manto que cubra a roupa normal. Mas o ideal mesmo é quando é possível retirar o Oficiante da vida comum, vivendo em casas separadas, sem ter que ganhar seu sustento como um assalariado, muitas vezes sem poderem constituir famílias. Tendemos a acreditar em pessoas que falam em cima de púlpitos, vestem roupas diferentes e que não vemos fazendo coisas banais. O psicólogo junto de quem viveu uma tragédia pode não ter muito mais o que fazer do que ouvir e chorar junto, mas ele é O Psicólogo. (Assim como se ele disser algo inadequado, será muito pior por ter sido um Psicólogo).
O engraçado é que a morte da magia já foi decretada inúmeras vezes. A Antropologia nasceu quando os Europeus descobriram os Outros, e os chamaram de incivilizados, porque os Outros, estranhamente, sempre perdiam em critérios de civilização: não usavam calças, não frequentavam escolas, não reverenciavam a rainha da Inglaterra. James Frazer – que, se não me engano, é o mesmo antropólogo que disse “Deus me livre!” quando questionado se gostaria de encontrar pessoalmente algum dos nativos que estudava -, inventou uma escala que dizia que o pensamento humano evoluía da Magia, passava pela Religião e culminaria na Ciência. Os povos primitivos, coitados, ainda pensavam que um machado ungido num ritual podia fazer mal a uma pessoa que estava a quilômetros, ou seja, não entendiam nada de física, por isso ainda estavam na Magia. Já os europeus haviam passado pela Religião e já estavam, no séc XIX, predominantemente na Ciência, quase de todo racionais e perfeitos. Chegamos no futuro fazendo coisas impensáveis há poucos anos, como interagir com facilidade em tempo real com pessoas do outro lado do mundo – que agora muitos acreditam que é plano.
Decretar o fim da magia e qualquer tipo de lúdico parece ser uma fantasia iluminista que ainda carregamos. A mim, a tentativa de fazê-la desaparecer como água só a espalha em pedaços menores ainda mais difíceis de rastrear. Lembro de uma vez que fui buscar meus florais na farmácia de manipulação e lá encontrei uma das minhas professoras, que na época também ocupava um cargo importante na universidade. Assim como eu, ela foi buscar florais, e eu percebi que ela ficou muito sem graça quando me encontrou. Mas quando se convive com muitos professores, doutores, cientistas e pessoas “racionais” em geral, menos temos a visão ilusória de que são pessoas guiadas apenas pela razão. Como qualquer psicólogo poderia confirmar, quando negamos uma parte essencial do psiquismo na ilusão de fazê-lo desaparecer, apenas criamos um monstro que não conseguimos controlar. A publicidade nos captura com pura magia, fazendo com que o consumidor se identifique com a modelo, se emocione com a música, deseje o cenários e compre um produto (que não é nenhum dos três itens) acreditando que tudo aquilo virá até ele espontaneamente. Irmã cada vez mais íntima da publicidade, a magia está presente na política, que definitivamente agora investe puramente no emocional. As pessoas estão votando em heróis contra vilões, em purezas, em soluções rápidas, em paraísos na terra e cada vez menos em projetos políticos, aqueles detalhes chatos do dia a dia como decidir prioridade de verbas, traçar um plano de ação, atender demandas de grupos, etc.
Mas a magia também está nos relacionamentos, no amor, em olhar para um ser humano e achar que ele é essencialmente único. Eu gosto da frase que diz que “casar de novo é a vitória da esperança sobre a experiência”, porque acho que é isso mesmo. Apesar dos fatos apontarem para o contrário, de quem já casou saber das dificuldades diárias, é muito humano ficar inundado de esperanças e fazer tudo de novo – casar de novo, montar uma família de novo, acreditar que pode controlar o destino de novo. A magia está na arte, que é produzida diariamente, até que uma combinação de notas ou cores muito específica atinge as pessoas com uma força inesperada e as emociona, cria um novo mundo, passa a fazer parte de suas vidas. Hoje até mesmo a ciência se rende ao poder curativo das rezas, do efeito da meditação no cérebro, da força interior que as pessoas encontram nos momentos difíceis apenas porque creem numa explicação. Magia não é realmente desacreditar de leis da física (como acreditavam os primeiros antropólogos) e sim se permitir uma relação muito mais orgânica com elas.