Até o relógio está com vidro embaçado

Quando eu morava em apartamento, a chuva era um barulho lá fora; em casa, a chuva se torna algo muito mais concreto, um problema pra andar na sua própria área de serviço. Não sei dizer quanta porcentagem do meu dia merda era culpa disso, da chuva constante. Ultrapassou o estágio de falta de sol e são todas as toalhas que eu me enxugo molhadas, os panos na cozinha, o varal na sala, a tentativa de secar pendurando em cadeiras, o cachorro praticamente mofado… Aí fui na padaria e a mocinha sempre sorridente está com a cabeça apoiada no ferro do lugar onde passa cartão. Ao invés da conversinha simpática, apenas o básico, da parte dela e da minha. Isso sem falar do que não quero nem choramingar aqui, aquela confirmação de que as pessoas sempre me consideram alguém insignificante demais não apenas para não ter que puxar o saco como também não precisam fazer o básico do básico, nível nem ao menos agradecer presente. Aí final da tarde resolveu chover mais grosso e mesmo assim me arrastei até a manifestação. Muita gente conhecida disse que ia, mas não combinei nada com ninguém e foi sozinha. Acabei encontrando um amigo que não via há anos e marchamos juntos. Fui lá fazer número, ser mais uma pessoa pra ser talvez filmada por um drone e dizerem que fomos muitos a marchar pela educação. Tudo continuamente merdamente úmido e, pra falar a verdade, nem ao menos sei se adianta alguma coisa marchar. Eu vou para me sentir menos só, menos louca, menos “não entendo a indiferença de vocês” (leiam este artigo sobre NECROPOLÍTICA) , menos ET. E sempre dá certo.

UFPR

Geografia no cérebro

É muito mais do que um lado racional e um lado artístico. Pra uma ação complexa, como falar ou pensar, o cérebro ativa vários pedaços, como se fossem países diferentes no mundo cérebro. Às vezes também pode mudar de pedaços – não apenas quando tem uma lesão e aquela área fica inútil, mas também quando de alguma forma aquilo muda. A força e a complicação no cérebro humano é justamente esta, do charuto ser ao mesmo tempo só um charuto, mas também pode ser desejo fálico, o jeito de cortar o charuto, o clube do charuto, a diferença do gosto comum e os cubanos, daquele dia fumando charuto e… Por causa dos lugares diferentes no cérebro, as mesma pessoa pode ser um doce, que te fala do poder da oração, como também te dizer que não hesitaria em meter bala num bandido. E pra ela não há contradição nenhuma. O nome é dissociação cognitiva. Não adianta dizer que é característico de ismos ou istas, é próprio de seres humanos.

Às vezes também pode acontecer o contrário: de tanto áreas diferentes serem ativadas, assuntos que a princípio não teriam nenhuma relação, podem se encontrar lá dentro sem querer. O charuto, a arma, a oração, a aula de geografia – eles estão andando, se encontram na mesma rua e conversam. É isso também que faz o cérebro humano ser criativo. É isso que faz, também, com que London, London tenha se tornado uma música importante pra mim, daquelas que doem, apesar de eu nunca ter pisado em Londres e muito menos ter sido exilada. E não é nem a versão do RPM, que é a que me fez ter contato com ela quando era criança, é a London, London do Caetano. Aposto que você também tem dessas associações que só faz sentido nas esquinas do teu cérebro.

 

Dois pitacos e meio sobre Marguerite

Marguerite, que tem no Netflix, é baseado em fatos reais. É a história de uma aristocrata que canta muito mal, e que não tem a menor noção disso.

1. Tenho pensado bastante o quanto a diferença entre ser alguém e não ser ninguém é toda diferença entre levar porrada ou não da vida. Preto e pobre leva muito, e literalmente. Há poucos dias uma muito rica fez algo completamente sem noção num grupo de pessoas. Se fosse eu a fazer aquilo, a resposta seria imediata – fariam caras, alguém me mandaria parar e me colocariam de volta à minha insignificância em poucos segundos. Como era alguém que um-dia-pode-me-dar-uma-vantagem, não apenas não falaram nada como fingiram que estava o máximo. Igualzinho Margarite. O filme mesmo faz esse contraponto, mostrando a cantora talentosa e pobrinha. Me deu vontade de mandar pra umas Marguerites que eu conheço assistirem, quem sabe se tocassem.

2. Peguei o filme para rir, mas acabei me sentindo #somostodasmarguerite. Gostamos dos grandes talentos, mas a arte se faz principalmente pelos grandes entusiasmados. Pensei em dizer que os medíocres são o adubo da terra que gera os gênios, mas aí fica parecendo que estou dizendo que medíocre é merda… O que quero dizer é que não é possível investir só no gênio; quando vemos classes inteiras de pessoas que nunca se destacarão, ou que estão lá só de passagem, parece que é dinheiro jogado fora. Que se não é pra ser Bolshoi, não vale abrir escola de balé; se não é pra ganhar Nobel, pra quê fazer pesquisa. Não é assim, é preciso criar o ambiente. É preciso uma turma, uma geração, um bando de pessoas, o ruim, o bom e o mais ou menos. As pessoas aprendem vendo umas às outras, incorporando gestos inconscientemente, disputando entre si, criam uma história. Cada apresentação feiosa e erro é importante. É um caminho que se trilha e as pessoas precisam estar juntas. Cada pequeno é um pedaço que forma uma cultura inteira. 

2,5. Levei muito tempo querendo ser a parte do gênio e não a parte do adubo – e quem não quer? Se eu fosse o gênio, tudo seria contaminado pela crença de que sou especial. Comecei a dançar tarde, persisti sem ter jeito igual a Margarite, vejo pessoas ultrapassarem rapidamente o que eu conquistei a duras penas. Mas posso dizer com sinceridade: sou do meio artístico, sou uma pessoa que convive com artistas. Uns na frente do palco, outros no fundo, todos nós no teatro. Eu não seria quem sou se eu não tivesse entrado nesse caminho. Marguerite tem razão: sonhar é muito melhor do que o conformismo.

Curtas literários

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Game of Thrones acabou. Das maiores decepções que tenho ouvido foram os que torciam por ela, por ele, e os que queriam uma morte muito sanguinolenta pra uma mulher importante (vejam que estou tentando não dar spoiler). Eu descobri que não me frustrei porque não torcia por ninguém, e sim pela história. Torcia para ser surpreendida mas que, ao mesmo tempo, o autor tivesse tudo sobre controle.

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É muito legal descobrir o universo de um autor. No primeiro livro, você pensa: que fantástico, que imaginação sem limites. Não são sem limites, e ver os limites deles também é bacana. Amei o Problema dos Três Corpos de Cixin Liu e não consegui amar o filme (Terra à deriva) do conto dele, mas amei descobrir que uma das soluções típicas dele é viver dentro da Terra. Voltei a ler Dick e lá estão de novo os pre-cogs. É como ficar íntimo de alguém.

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A estatística no Kindle engana. Estava bem feliz lendo Harari, faltando uma boa porcentagem para chegar no fim do livro. Aí ele conta que medida duas horas por dia e o livro acaba. O resto são notas e referências. Fiquei tão chateada de ter lido o último Harari. Teria economizado se soubesse que estava no fim.

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Uma vez li algo sobre instrução espiritual, dizendo que a pessoa recebe uma e não têm prazo pra cumprir, nenhum erro ou punição, apenas não recebe a segunda enquanto não cumprir a primeira. Aí eu penso nos livros maravilhosos que indiquei e nunca foram tocados, e que eu mesma não perco nada com isso porque já li, e penso que faz todo sentido. Mas penso também, vingativamente, da pessoa lendo no leito de morte e pensando: se eu tivesse lido quando ela me sugeriu, teria feito TUDO diferente. (nunca acontecerá)

Salsicha

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Não me odeiem pelo que eu vou escrever sobre salsicha. Que te sirva de alerta: nunca economize na compra de salsichas.

A Dúnia está velha e passou a tomar repositor de cartilagem. Como ela tem que tomar todo dia, eu não ia brigar com ela todos os dias, então adotei de imediato o remédio na salsicha. O remédio é grande, então são duas metades por dia. Sabe como é, salsicha para cachorro, comprava a mais barata porque ela não se importa mesmo. E eu não como, não como salsicha porque não como carne. Sabe aquele cheiro que a gente identifica como cheiro de salsicha? Mesmo eu, que depois de anos sem comer carne nem salivo mais com cheiro de churrasco, acho o cheiro de salsicha bom. MAS eu descobri que esse cheiro é artificial. Só salsicha cara cheira salsicha. A salsicha barata tem cheiro de TRIPAS. Só de ter que mexer nelas todos os dias pra dar pra Dúnia, com aquele cheiro, foi me dando um nojo tão grande que eu agora sou obrigada a comprar salsichas caras pra ela.

A gente sabe que embutidos em geral não são coisas bonitas, mas não pensei que. Salsichas caras, lembrem-se disso.

Tamagotchi

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Eu já era adulta na época que lançaram o Tamagotchi e, embora alguns adultos não estivessem nem aí pro fato de ser um brinquedo, eu não tive um apesar de ter vontade. Um dia foi passar o dia na casa de uma colega de faculdade que tinha irmãos pequenos e um deles tinha um Tamagotchi. “Caiu no chão, ele está com defeito”. A minha vontade de brincar de Tamagotchi era demais e não liguei. Eu lembro que tinha até gente que ganhava dinheiro cuidando de Tamagotchi. Ele tinha necessidade, hora de comer e de brincar, e se você o ignorasse durante muito tempo, ele morria. Só que eu, naquele dia, fiquei com ele na mão o dia inteiro, o que o Tamagotchi pedia era atendido imediatamente, e mesmo assim ele morreu várias vezes. VÁRIAS. Fazer de tudo e não conseguir impedir aquela morte, mesmo eu sabendo antecipadamente que o Tamagotchi estava com defeito, me fez pegar horror ao brinquedo.

O Tamagotchi pra mim virou um símbolo de coisas que deram errado comigo, talvez só comigo, e me traumatizaram. Quando eu estava casada, acho que tivemos uns quatro carros, e dois deles deram muito problema. Quando digo muito, é muito. Eu lembro que cheguei em casa tantas vezes de carona na boleia do guincho que já estava me sentindo meio Musa dos Caminhoneiros. Carro morreu na subida perto de casa, carro morreu dez horas da noite em rua escura, carro voltou à 40 por hora do litoral soltando fumaça preta por todo caminho. Só que na época eu tinha ao meu lado um marido que por acaso era uma pessoa tranquilíssima. Pergunta se eu tenho coragem de ter um carro sozinha – TENHO HORROR. Acho que se me acontecessem aquelas coisas comigo dirigindo, apenas eu, o mais provável seria que eu paralizasse e começasse a chorar no meio da rua.

E eu sei que tenho outros Tamagotchis. Numa briga que foi muito marcante na época, um amigo me jogou na cara que eu falava tanto em dificuldades de relacionamento no blog que só podia ser uma pessoa muito difícil. Nunca mais me queixei de amizades aqui, mas as pessoas têm tanto prazer na companhia uns dos outros e eu na solidão, que quem sabe seja um efeito Tamagotchi…

Simplificação

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Eu mandei minha dissertação pra editora da UFPR assim que apresentei. Foi sugestão da banca, eu tirei 10 e escreveram “a banca recomenda fortemente a publicação”. Mandei, esqueci o assunto e depois de quase um ano me chamaram. Não sabiam direito o que fazer, eu tinha que dar uma olhada numa coisa. Eles mandaram a dissertação para três avaliadores. Dois deles escreveram avaliações positivas e a terceira tinha várias páginas e deve ser de alguém que me odeia muito. Ela implicava com coisas incríveis, me acusou por exemplo de usar demais a expressão “esta dissertação”. Realizei uma busca no word e tinha três ocorrências. Daria vários posts o que estava escrito lá e tive que apelar para o meu próprio departamento, porque algumas coisas eram tão injustas que atingia mais do que a mim. Uma das críticas também dizia mais ou menos assim: ela explica conceitos complexos com simplicidade, logo se vê que não domina o assunto.

E não é que nisso a pessoa acertou? Acho que uma das minhas características é transformar ideias complexas em conceitos mais acessíveis.

Como você é meu leitor, deve ter ficado com raiva da pessoa e tal. Posso dizer também que já li que uma das maneiras de testar domínio do assunto é pedir para explicar em poucas palavras. Mas, ao mesmo, quem sabe, pensando bem, eu tenho carregado a fama de burrinha-porque-simples e nem tinha me dado conta.

Dos simbolismos interessantes

homem ideal

que eu falei outro dia. Tem a casa 7, no mapa astral, que é o indicativo do cônjuge. Na modesta amostra me mapas que eu tenho, a pessoa ter várias planetas lá não faz com que ela case cedo ou case se relacione bastante, como seria minha primeira impressão. O planeta que está lá pode revelar o perfil de quem ela busca, então pense na confusão que é quando a pessoa tem vários perfis num lugar só. A pessoa tem lá Saturno em conjunção com Júpiter e uma pitada de Marte: ela quer um homem maduro, sério, mas que também seja idealista, otimista, quem sabe um professor, e ao mesmo tempo também jovem, cheio de energia e sexual. Quando um é jovem, não a completa porque falta maturidade; quando é mais velho, nem olha, mas quem sabe devesse porque ele preenche parte do que ela busca, e por aí vai.

Se você olhar bem, as pessoas que têm muitos relacionamentos são também aquelas mais flexíveis. Pode ser que sejam assim por serem pouco exigentes ou porque gostam da humanidade em geral. Às vezes tem aquelas parcerias estranhas, que quando o par vai embora, ela cochicha no seu ouvido: “meio besta, coitado. Só aguento porque…”

Mas tão bonitinho o silêncio

A intenção dela não foi nos dar uma vivência de racismo. O que aconteceu é que ela foi convidada para a festa de casamento mais chique da sua vida, no Castelo do Batel, o lugar mais chique possível para se ter uma festa em Curitiba. Com meses de antecedência ela nos consultou sobre a questão de ter um acompanhante, e numa das diversas brincadeiras, eu lhe sugeri que fosse com uma amiga e fizesse com ela um falso casal lésbico, ia ficar super moderna. Ela então me disse que, de castigo, caso ela não arranjasse um acompanhante para a data, eu teria que ir de lésbica com ela e ser a masculinizada – aproveitávamos o cabelo curto e já ia de terninho e pouca maquiagem. No fim, deu certo e eu não precisei ir. Nos dias seguintes, estávamos doidas pra saber da festa, vimos fotos lindas. Lembro bem também do nosso silêncio quando ela nos contou que, assim que estacionou o carro e saiu dele maquiada e produzida, os seguranças a mandaram estacionar nos fundos, porque era lá a entrada de funcionários. Dentro da festa, foi preciso darem uma carteirada nos garçons, porque eles serviam todo mundo menos ela. Talvez pior ainda tenha sido que nós achávamos que ela iria (ou tinha que) ir embora, indignada, e ela nos explicou que isso é normal, que se fosse se retirar a cada episódio racista não iria mais a lugar nenhum.

Também foi sem querer que eu e uma amiga iniciamos uma discussão política no berço de um lugar bolsonarista. Agora tem muito bolsominion arrependido, classe média que se vê como rica, que foi atingida por corte em saúde, concursos, alta do dólar, aumento do desemprego, enfraquecimento das exportações. Mas existem também aqueles que estão tão acima na piramide que não foram pegos por nada disso, ou que têm tanto que mesmo tudo isso come apenas a bordinha sem importância do seu patrimônio. E foi uma dessas pessoas que começou seus argumentos dizendo que não havia nada de novo, que esta crise é igual a todas as outras crises, que as loucuras ditas agora são iguais a todas as outras loucuras ditas antes, mas tudo isso é normal e nem merece registro porque foi o governo petista que criou um legado realmente imperdoável: “o PT criou a luta de classes, o nós contra eles”.

O racismo pra mim é muito abstrato, é uma coisa que acontece com outros, relatos que me surpreendem e me chocam. Quando o problema não é seu, quando você está no grupo privilegiado, é como se visse certos problemas desde a cobertura de um arranha-céu – você está tão alto que as pessoas na calçada são apenas cabecinhas, tudo parece pacífico e igual. O agora é diferente porque as pessoas reclamam. Indígenas, gays, mulheres, negros, pobres. O pessoal da cobertura não via e está sendo chamado a ver. E a reação de muitos é: que pena que o gay não é discreto como antes, que o negro não ria da piada racista como antes, que a mulher não seja passiva como antes. Agora a moça do café não quer mais trazer a filha pra aprender o serviço também, ela quer viajar e colocar os filhos em faculdade. Será que antes a empregada via que a patroa gasta numa noite mais do que lhe paga de salário num ano inteiro e achava OK, só passou a se indignar agora? E o problema está na indignação e não na disparidade? Ninguém nega as profundas desigualdades sociais do Brasil, desigualdades estas que nasceram com o país, mas acha que era tão mais bonitinho antes, um povo tão cordial, tão mais barata a mão de obra… Minha conclusão é que, se você sofre e tem do que reclamar, reclame mais, reclame mais alto, grite para todo mundo ouvir. Não permita que usem o teu silêncio como desculpa.

 

Expectativas

sci-fi

Tem aquela brincadeira, do homem que chega na balada e às 22h estabelece que “só loiras”, e às 3h da manhã já está aceitando qualquer uma que diga sim. O chato é que isso não é apenas uma atitude de homem, de balada, de sexo. Estava conversando sobre casamento com umas amigas e me calei, porque elas não haviam se casado e não tinham essa experiência: antes de você casar, quem sabe até o último minuto, existe apoio pra você sair da relação se não for totalmente maravilhosa pra você. Depois do papel, é um carimbo, uma expectativa. O “briga de marido e mulher ninguém mete a colher” não existe à toa. A festa custou uma nota. O seu antigo quarto já virou escritório. É uma instituição, envolve papelada, como se explicar. É tudo amor e tudo relacionamento a dois, mas regras são outras. O ato é o mesmo, mas não se olha uma traição de namorado como idêntica a uma traição de marido. Quando você é jovem, sua obrigação é comer o mundo – a melhor seleção, o melhor emprego, o cargo mais alto. É um gênio, vai trabalhar na ONU, vai… Depois, muito bom se você conseguir pagar as contas.

Não estou dizendo que não tenha seu sentido. Mas é um daqueles envelhecimentos que começa de fora para dentro. Você ainda se sente aquele, o de comer o mundo.

O jornal do bairro

jornais

Eu tinha uma amiga que não conseguiu se atualizar a ponto de ter internet, nem ao menos celular. Pra tudo era uma pessoa muito antenada, mas isso estabeleceu uma barreira que era difícil ultrapassar. Para algumas coisas era possível explicar e ela captava a essência, então não fazia falta. Digamos que eu explicava uma briga no Facebook; eu lhe explicava que cada um tem uma página, que são os seus dados, as suas fotos e o que você escreve. Outra pessoa pode ir lá e escrever no seu espaço. Então, cada um escreve a besteira que quiser no seu próprio espaço, mas alguém entrar no meu e me ofender era demais. Ela entendia. Ao mesmo tempo, eu tentei explicar blog e que tenho leitores, mas ela achava que eu seria realmente popular se enviasse meus textos para o jornalzinho do bairro. Ela também insistiu para que eu tentasse ir no Jô quando minha dissertação foi publicada. Olha, eu até tentei na época, achei site dele e você mandava um resumo do porque poderia aparecer lá. O site era tão abandonado que não precisava de mais nada pra saber que ninguém iria lá pra procurar um futuro entrevistado.

Tchecov, a quem amamos tanto, amargou um sentimento de falta de relevância porque não publicava um grande romance, e sim pequenas histórias nos jornais. Histórias essas que hoje achamos lindas, sensíveis, direto no ponto, que em poucas palavras captam o espírito dos seus personagens e nos permitem conhecer sua época. Eu amo ler e estava fazendo vídeos de recomendações (pela primeira vez desde que comecei, falhei e não sei se volto), e acabei fazendo quase um catálogo Netflix. Quase não recomendei livros porque me parece tão inútil. Tem alguns livros que recomendei pessoalmente para  algumas pessoas, livros tão a cara delas que só faltava exame de DNA para comprovar. Elas não leram. Não que não confiem me mim e etc., apenas porque quase não se lê. Ler é tão old fashion, tão século passado. Mesmo eu acho que não tenho mais o mesmo fôlego de antes, não consigo mais ficar tanto tempo parada para apenas ler.

O que, afinal, é ser lido? Será que também não é old fashion da minha parte pretender ser publicada?

Constante

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Agora a cada parada de ônibus tem alguém para “interromper o silêncio da viagem de vocês”. No meu supermercado a segurança não dá conta de tirar todos os mendigos do caminho, então sempre tem algum, em uma das saídas, para causar incômodo com sua falta de banho, roupas rasgadas e falando de fome. O mesmo sujeito me pediu dinheiro no terminal, na ida, e depois me pediu dinheiro no ônibus, na volta. A história de fitoterápico fortíssimo para doença degenerativa talvez não cole com ninguém com o mínimo de instrução, mas ele tinha o rosto retorcido de uma maneira que não é possível fingir então, tanto numa ocasião como outra, as pessoas ajudaram. Eu ajudei na ida e não ajudei na volta. Num supermercado comprei um café com leite pra um, no outro estava espantada diante de uma compra leve que saiu mais de cem reais, então não olhei e fingi que não ouvi, e o mendigo se queixou da minha falta de consideração de nem ao menos olhar para ele. Voltei para casa convicta da minha falta de trocado, que era verdadeira, mas com o coração apertado. Outro dia, naquele mesmo supermercado mas em outra saída, eu ajudei um homem que estava abordando pessoas, uma depois da outra, e elas lhe ignoravam. Eu estava subindo a rua e observava. Quando ele chegou perto de mim, não consegui ser dura com ele, não depois de ver aquela cena se repetir tanto. “Graças a Deus a senhora parou pra me ouvir, eu estou aqui há mais de uma hora…”. Eu não acreditei em uma palavra do que ele disse sobre passagem errada, mas lhe dei uns trocados. Eu tinha trocado e não estava me sentindo pobre. Para mim o tempo também parece estar correndo contra, eu também não sei o que fazer. Será que aquele pra quem eu nem olhei estava realmente com fome? Meu mundo está se desfazendo. Será que eu tinha a obrigação moral de entregar pra ele os meus dez reais? Tudo o que eu acho importante pra sociedade está sendo jogado no lixo, e a indiferença dos que têm posses me enlouquece. Vi um colega num carro todo caro e ao invés de ficar interessada vi naquilo a injustiça do mundo. Quase voltei, o mendigo não ia sair do lugar, mas é uma subida tão difícil. Me dei desculpas até chegar em casa. Vai me fazer falta. Vai mesmo? Não tanto quanto faz a ele, mas vai. Este mês, em especial. Eu também não sei mais o que fazer de mim. Eu estou perto deles, eu também sou eles.

Dica antiga para mancha nova de sangue

maizena

Acho que, de regra, à noite ninguém menstrua muito, né? Quero dizer, não como quando o corpo está em movimento. Pois bem, eu estava preparada e era de noite, e mesmo assim acordei com o meu maior acidente sanguíneo desde que saí da adolescência. Não encontro palavras. Por sorte era fim de semana e pude levantar correndo pra lavar tudo, camadas e camadas de tecido manchado. Aí eu me lembrei de um livro de dicas lá da adolescência, o mesmo livro que nos levou um dia meu irmão a piorar muito uma mancha com cola, porque o livro recomendou um pouco de óleo e ele pegou o óleo de cozinha e tentou derramar direto em cima dela, transformando uma discreta gota endurecida de tecido em uma mancha escura de uns dez centímetros, que disfarçamos durante meses com almofadas e sentando em cima. Acho que tínhamos menos de dez anos. Bem, voltando. Apesar da dica lamentável do óleo – que eu nem tenho certeza se era mesmo pra cola -, lá tinha uma dica sobre sangue que eu guardei e funciona que é uma beleza. Os adendos: a dica é para estofados e manchas novíssimas, porque não dá pra levar pra debaixo da torneira. Maizena com um tico de água, apenas para umedecer e fazer uma pastinha. Coloca em cima da mancha e deixa secando, a maizena absorve o sangue quase todinho. De nada.

Está mentindo-tindo-tindoooo!

estatueta

Tem aquelas histórias que se tornam icônicas, pelo menos dentro do seu convívio. Eu li uma do Tio Patinhas em que ele consegue uma pequena estátua que tinha o poder mágico de identificar quando alguém por perto mentia. Ela cantarolava: está mentindo-tindo-tindooo! Lembro de um quadrinho que ele está falando no telefone com alguém e a estátua cantarola, e a pessoa do outro lado fica indignada – “Quem disse isso?”. O “está mentindo-tindo-tindooo!” virou piada interna na minha família há décadas, mas acho que eles nem se lembram mais.

Dia desses, eu estava falando de decisões perfeitamente racionais: não ter outro cachorro ou qualquer animal de estimação depois que a Dúnia morrer. Não é prático, não dá pra viajar, dá uma baita despesa. Sem ela, posso finalmente me mudar e não morar mais em casa. É muito mais o meu perfil um apartamento no centro, quem sabe alugar um mobilizado, postaram uma vez um tão lindo no twitter e eu já estava quase fazendo planos de ir pra lá. Aí, em algum lugar dentro de mim soou o “está mentindo-tindo-tindooo!”. Pior que eu estava falando sério. Mas estava falando, decisão, ego, razão. Acho que o núcleo duro, aquela parte do meu iceberg self que está debaixo d´água, não vai permitir nada disso.

Utopias

dinheiro

Tem as estações tubo, o cobrador recebe o dinheiro para que não se cobre dentro do ônibus, e assim ele pode demorar menos tempo em cada parada. Eu pego ônibus numa estação de bairro, é comum os cobradores estarem batendo papo, assistindo TV, deve ser bem tedioso. Também é comum eles não terem muito troco. Já nas estações tubo centrais, os cobradores não param um minuto, não conseguem nem ao menos ir ao banheiro uma única vez durante todo expediente.

Uma vez eu estava conversando com um cobrador, e disse que na minha opinião os que trabalham nas estações mais movimentadas deveriam ter turnos menores. Ele pensou um pouco e disse que não dava, que atrapalha a escala, que a empresa não faria. Aí eu fiquei quieta, porque estava falando de um mundo ideal – num mundo onde a escala não é pensada nos termos mais cômodos e lucrativos, e sim que oferecesse condições mais justas. O mundo onde os carros são mais lentos para que as pessoas morressem menos.

Enfim, utopias. Para mim, um país que criminaliza arte e ciências humanas quer matar qualquer possibilidade de sonho.

Hoponoponno

hoponoponno

Às vezes a gente supõe que todos conhecem algo e não é realmente conhecido no geral, apenas no nosso meio. Pesquisem Hoponoponno. Tenho amigos que praticaram intensamente e garantem que funcionam. Eu pratiquei uma vez sem querer, sem usar a técnica da repetição e sim a essência dela. Eu tinha um orientador que não me encontrava, não lia o que eu escrevia, me deixou fazer o trabalho inteiro sozinha (acabei gostando) e que fez mea culpa de todas essas atitudes no dia da defesa. A explicação dele é que o tema lhe causava resistência, ativava lembranças dolorosas. Durante o nosso trabalho, eu mandei alguns e-mails para ele, e lembro de chorar muito na frente do computador cada vez que recebia a resposta. Vinham estocadas, sabe, maldadezinhas. A frustração e a raiva foram crescendo tanto, mas tanto, que estava se tornando insuportável, eu estava me tornando incapaz de olhar pra cara dele. Um dia dei um tempo e decidi fazer de tudo para superar aquela raiva, iria tentar ver o ponto de vista dele. Ator não tem que fazer isso o tempo todo, pega o papel de um assassino e tem que encontrar no sujeito pontos em comum, tem que entender a motivação dele? Foi essa a minha lógica, encontrar o bom naquele que me parecia um algoz. E eu encontrei. Descobri que a pressa era toda minha. Embora aquela atitude me soasse como resistência passiva, ele realmente não tinha obrigação de se adaptar às minhas necessidades. Não foi um insight luminoso, foi uma compreensão intelectual. Entendi e fez sentido, só isso. Quando eu o reencontrei, parecia que algum milagre havia acontecido. Aquela hostilidade havia se dissipado, de verdade. Pode ser que a mágica esteja na maneira diferente como eu cheguei, na leitura mais isenta que fiz dos sinais corporais, num círculo vicioso da minha atitude mais amigável, ou a energia de cá muda a de lá porque tudo no universo está conectado, etc. O importante é que hoponoponnizar funciona.