14. Paulo Coelho volta para o jantar com o Dalai Lama e recebe uma visita inesperada

Paulo Coelho jamais se perdoaria se ele tivesse perdido a oportunidade de jantar com o Dalai Lama – mas, de certa forma, ele perdeu. Era um jantar beneficente com uma lista restrita de trinta pessoas, convidadas pessoalmente por assessores ligados ao próprio Dalai e cuja renda seria destinada à Woodstock School.  O jantar, feito por uma monja budista que cozinhava com ingredientes exclusivos do mosteiro, estava saboroso, mas entrou com sacrifício no estômago depois de três garfadas – com o fuso horário todo desregulado, Paulo Coelho não sentiu fome na hora do almoço e acabou fazendo pra si mesmo uma omelete substancial menos de duas horas antes do jantar. O pior nem foi não ter saboreado o jantar exclusivo pela qual ele esperou tanto tempo: meio entorpecido de um sono que ele passou o dia inteiro controlando, Paulo Coelho fez uma garfada meio descoordenada e duas bolinhas de grão de bico rolaram pela mesa; durante uma fala do Dalai, muito interessante sobre o crescimento da intolerância no mundo, sentiu sua pálpebra pesar e levou uma pescopada de Christina Oicitica – ou teria sido sua cabeça que pesou sozinha? Paulo Coelho contava que o Dalai Lama não tivesse visto ou, caso tenha visto, que sua imensa bondade e experiência com viagens tenha feito ele entender e perdoar o gesto.

Eles tiveram que voltar cedo! Amal Clooney, sozinha, numa conversa animada com Usain Bolt – será que o marido dela sentiria ciúmes? Paulo Coelho nem teve chance de conversar com Vik Muniz, a quem encontrava tão pouco, porque J.K. Rowling estava contado algum causo muito interessante a ele, e Bob Dylan, que acompanhava tudo da sua poltrona, sorria de maneira enigmática. Juliette Binoche analisava o formato dos canapés e misturava inglês e francês para fazer trocadilhos sobre eles. Enquanto isso, Paulo Coelho começou a falhar até no inglês, o que só lhe acontecia quando se irritava ou estava com muito sono. Paulo Coelho queria ficar, mas Christina Oiticica que o puxou, disse que ele não tinha condições e estava quase dormindo em pé. Ele aceitou ir embora a contragosto, mal entrou no carro e dormiu no banco do passageiro, de babar. Paulo Coelho apagou na cama antes mesmo de sentir a cabeça afundar no travesseiro. Então, às três horas da madrugada, ele acordou de repente, desperto com quem sai de uma chuveirada fria. Inquieto demais para continuar deitado, ele vestiu os chinelos e andou pela casa escura. Bebeu um copo d´água, parou diante da janela onde há poucos dias havia conversado com Expedito e observou de longe as casas apagadas e a neblina suave nas luzes dos postes. De repente, alguém bateu à sua porta. Enquanto decidia se atenderia ou não, bateram de novo, então ele foi de uma vez, porque não queria que Christina Oiticica acordasse assustada.

-Quem está aí?

O diabo.

13. Paulo Coelho fica frente a frente com Dom Pepe, agora no Paraguai

A boa nocia é que existia vôo direto de Curitiba para Assunción. A má é que o vôo durava doze horas. Paulo Coelho havia parado com as exaustivas entrevistas e noites de autógrafos justamente para escapar de vôos longos em intervalos curtos de tempo, e agora se submetia de novo a isso, apenas para entregar uma caixinha para um pai de santo no Paraguai. No quase um dia inteiro de viagem, Christina Oiticica havia mobilizado os amigos e descoberto o endereço do centro de umbanda de Dom Pepe, que era comandado por Padre Jorge.

Paulo Coelho colocou os pés em Assunción pouco antes das 7h da manhã, e embora o seu desejo fosse terminar aquela história o mais rápido possível, ele se sentiu um pouco aliviado quando o pai de santo, por telefone, pediu para Paulo Coelho aparecer lá no final da tarde. Isso lhe deu tempo de ir para um hotel, tomar um banho para tirar do corpo todo ar de ar condicionado de avião e deitar totalmente na horizontal, numa cama de verdade e não mais numa poltrona reclinada, onde ficou preguiçosamente esticado por umas quatro horas. Não chegou a dormir bem, teve um sono agitado por sonhos estranhos com pipas, bolas de gude, pião, jogo de bafo, só brinquedos muito antigos, não entendeu de onde seu inconsciente resolveu tirar aquilo. Desceu até o restaurante do hotel e pensou em conhecer Assunción, porque talvez fosse a sua única chance na vida de passear pela cidade, mas acabou voltando pro quarto – ainda estava tonto por conta da viagem – e ficou o resto da tarde por ali. Ligou para a recepção e perguntou quanto tempo o taxi levaria para chegar até o endereço que tinha e lhe disseram que, como era fim de semana, em meia hora dava para chegar com folga. Organizado e bem programado, meia hora antes do combinado com o Padre Jorge, Paulo Coelho subiu no taxi.

O taxi seguiu confiante por ruas bem cuidadas. Atento à paisagem, Paulo Coelho achou a capital do Paraguai bastante simpática, com alguns prédios históricos e edifícios no centro e rapidamente – pelo menos assim parece para quem está acostumado com grandes centros urbanos – se tornar uma cidade de construções pequenas, bastante arborizada e céu para admirar. Alguns trechos lhe remetiam ao nordeste brasileiro, outros a São Paulo. Depois de vinte minutos de viagem, quando o carro já havia avançado bastante dentro da cidade, cada vez mais longe do rio Paraguai, o trânsito subitamente ficou emperrado. As ruelas tinham muitos carros estacionados, pessoas na rua em pequenos bandos e olhares curiosos. O taxi era obrigado a desviar, quase parando, até que chegou um ponto que não dava realmente para entrar, quase já no endereço. Paulo Coelho adivinhou o que estava acontecendo e combinou que o taxista deveria esperar por sua volta.

Só faltava uma faixa de boas vindas com o nome dele. Desde a rua, uma multidão esperava por Paulo Coelho, cadeiras ao lado de fora e um telão, pessoas de pé e os médiuns a postos. Uma cadeira foi colocada ao lado do altar e de lá Paulo Coelho assistiu uma gira só de ciganos, semelhante à que havia visto no terreiro do Brasil, como se fosse um filme adaptado para outro país: as pessoas não eram as mesas e a língua também não, mas a maneira de organizar, os batuques, as roupas vistosas e coloridas, as guias, era basicamente a mesma coisa. Padre Jorge era mais novo do que Pai Gil, moreno e mais atacarrado, mas era interessante perceber que Dom Pepe conseguia imprimir a ele o mesmo ar majestoso e ladino. Assim que Dom Pepe baixou, Paulo Coelho tentou falar com ele, que apenas lhe fez um sinal para que aguardasse. Os ciganos vieram, dançaram, surgiram pratos de comida cheios de alecrim e pimentão que passaram diante de Dom Pepe e depois eram mostrados para o público presente, e gradualmente foram enchendo o chão do centro, recoberto com uma toalha. Primeiro os ciganos homens e Paulo Coelho se serviram, depois das ciganas, e por fim distribuíram comida com o público. De um lado, Paulo Coelho estava impaciente por ter que passar horas sentado quando pretendia liquidar o assunto em poucos minutos; por outro, ele nunca se sentia completamente em paz em negar atenção a quem quisesse lhe ver por admirar o seu trabalho.

Quando todos terminaram de comer, abriram para atendimentos, e as pessoas avançaram sobre os diversos ciganos; uma cigana alisava a mão da moça e falava sem parar, enquanto um cigano olhava para cima, como se houvesse uma tela em cima do consulente. Um casal num canto falava tão alto que dava pra ouvir tudo. Paulo Coelho aproveitou que Pepe estava sozinho e lhe estendeu o pacote. Dom Pepe recusou, e disse que o presente não era para entregar para ele, e sim para o cavalo dele, então Paulo deveria esperar pelo final da gira – “não vai demorar” Dom Pepe garantiu. Diante da cara insatisfeita de Paulo Coelho, Dom Pepe disse que ele também poderia escolher um cigano, qualquer cigano, e lhe fazer as perguntas que quisesse. Paulo Coelho não quis.

Era muita gente e os ciganos queriam atender todos. A demora fez com que parte da multidão se dispersasse, era muito tempo para ficar de pé esperando, ainda mais num domingo à noite. Paulo Coelho sentia o seu corpo escorrer na cadeira e, embora não tenha dormido de verdade, sua mente ficou letárgica e ele observava o que acontecia com o distanciamento de um sonho. Finalmente os atendimentos terminaram, o batuque recomeçou e os médiuns rodaram e jogaram os lenços amarrados em forma de turbante para cima. As cortinas foram fechadas, Paulo Coelho apareceu em fotos e distribuiu sorrisos e suportou, com toda paciência possível, mais essa espera até poder cumprir sua missão.

Finalmente sobraram apenas Paulo Coelho, Padre Jorge e uma mulher, que Paulo supôs ser esposa de Jorge. Os dois se postaram numa atitude solene diante do altar, enquanto Paulo Coelho lhe estendia o pacote. Pelo silêncio, ele supôs que já sabiam o que havia lá dentro. Padre Jorge abriu o papel de embrulho, que ocultava uma caixa comum de papel pardo. De lá de dentro, tirou uma paçoquinha. Sim, uma paçoquinha daquelas de supermercado em forma de rolha. Paulo Coelho soltou um “mas…”, num gesto de surpresa que não encontrou eco em ninguém. Padre Jorge abriu cuidadosamente a embalagem da paçoquinha, que se esfarelou na sua mão, e pegou um pouco do pó e jogou pra dentro da boca, com a cabeça para trás. Apertou os lábios e fez uma expressão concentrada, antes de decidir engolir e dar o farelo que sobrou para a mulher. Paulo Coelho ficou aguardando, pra ver se aquilo faria algum sentido. “Eu acho que sim, e você”. “Não, não é pra tanto”. “Depende. Eu daria empate”. Paulo Coelho pediu para quem alguém lhe explicasse o aquilo significava. Eles explicaram que Dom Pepe havia apostado com eles que havia uma sobremesa de mani no Brasil que era mais gostosa que eira manduvi. Mas até aquele dia, ninguém nunca tinha vindo do Brasil pra trazer o mani brasileiro para eles, Dom Pepe disse que conseguiria alguém. “Cigano de palavra!”, completaram. Paulo Coelho ficou tão furioso que foi embora sem nem perguntar, afinal, qual das duas sobremesas havia ganhado.

12. Paulo Coelho finalmente fica frente a frente com Dom Pepe

Na manhã seguinte, Pai Gil atendeu a porta e Paulo Coelho viu o quanto o médium era diferente do guia: enquanto Dom Pepe tinha um ar majestoso e ladino, Pai Gil tinha gestos suaves e preguiçosos, um ar cansado e feminino. Pai Gil pediu um tempo para se preparar, e quando voltou havia trocado o moletom surrado por roupas brancas. Foram juntos até uma sala que ficava nos fundos do terreiro, ainda mais para trás do que Paulo Coelho já tinha visto. Era um quarto amplo, com a porta e a janela na mesma parede, grudada com o muro que demarcava o fim do terreno. Duas paredes eram ocupadas por roupas ciganas. Na terceira parede, um aparador cheio de objetos, todos remetendo a ciganos: leques, imagens, castanholas, flores, azulejos. Em frente ao aparador, uma mesa de madeira maciça, também cheia: uma bonequinha de cigana, uma vaso com uma rosa de plástico, dois tarôs, um saquinho verde, cinzeiro, isqueiro, três maços de charutinhos, uma plaquinha que indicava o valor da consulta, um círculo de almofadinhas de chita – que Paulo adivinhava serem patuás. Pai Gil lhe pediu licença, virou de lado, fez uma pequena oração e começou a se contrair com os joelhos dobrados, como quem sente dores. Em seguida, já estava murmurando em espanhol e colocou o lenço azulado na cabeça.

Dom Pepe se sentou tranquilamente na cadeira, como quem tem todo tempo do mundo, pegou uma das caixas de charutos e acendeu o primeiro de muitos.

-Eu tive uma vez um cliente, era médium da casa, mas não daqui, que dançava. Ele me disse que o sonho dele era ir pra Espanha, ele queria muito estudar na Espanha. “Dom Pepe, eu quero ir pra Espanha, eu vou economizar dinheiro para ir pra Espanha”. Vai, meu filho, vai. Eu sou espanhol, então falo sabendo: é um povo preconceituoso, eles não gostam dos de fora, não tratam bem. O rapaz era meio loiro, não estava acostumado com preconceito. “Dom Pepe, meu sonho é dançar em não sei aonde, você acha que eu consigo”, eu só dizia que era o sonho dele, então ele tinha que ir. Foi. Foi e as coisas não deram certo com flamenco. Eles não aceitam, sabe? Os de fora. É tudo eles, eles, eles. Ainda mais loiro, se ele ainda tivesse uma cara mais espanholada, uma pinta de cigano, era capaz que desse mais certo. Levou tanto na cabeça que acabou voltando e veio aqui triste, que tinha dado errado, que agora odiava a Espanha e tal. Até a prostituição lá é diferente daqui, elas sofrem muito, ficam na mão de cafetão e nenhum dinheiro. Eu tenho umas clientes prostitutas, elas moram no apartamentinho delas, recebem os clientes, tem o seu dinheiro. Sei que o rapaz veio me cobrar, dizer que eu deveria ter impedido ele. Eu disse que não era minha missão impedir porque era o sonho dele, que quando a pessoa tem uma vontade forte é porque tem que ir mesmo e uma coisa aguarda ela e só Deus sabe o quê. Eu sei que ele reclamou, reclamou e meses depois ele arranjou um emprego muito bom, porque disse na entrevista que tinha morado na Espanha, que falava espanhol fluente. Porque ele tinha largado o emprego aqui pra viajar. Às vezes a pessoa não se dá conta. Hoje em dia falam muito de dança cigana, e tem a dança flamenca, naquela época não era assim, não tinha essa diferença. Tem umas coisas que eles falam de ciganos que não são fiéis, umas modernidades, eu mesmo quando vejo os ciganos de hoje em dia não sei se me adaptaria. Muita gente já me perguntou se eu gostaria de reencarnar de novo, eu digo que sim, mas só se fosse de novo na minha época. As mulheres dançando dança cigana, mostrando as pernas, cigana não mostra as pernas, mostra sim o colo, o decote no colo está certo. E os homens que dançam, afeminados, naquela época não se toleraria isso. O meu cavalo mesmo, também é afeminado. Mas isso é uma coisa da época de hoje, ninguém tem culpa de ser o que é, o ser humano não tem capacidade pra julgar o que Deus determinou. Esse daqui foi o meu primeiro cavalo, hoje eu tenho outro em Assunción e tinha um em Salvador. Esse moço era filho de uma mãe de santo e aprontava muito, traía a noiva direto. A mãe de santo, que recebia Rosita me pediu para descer nela e dar um esculacho no rapaz. Eu desci e disse tudo. O rapaz disse que não aceitaria sermão, que ele faria o que quisesse da vida e eu fosse tomar no cu. Tudo bem, vou mesmo, aí fiz o rapaz perder seu excelente emprego no banco e a noiva. Depois me chamou, cansou de me chamar e dizer que queria me pedir desculpas e eu fiquei só olhando, nunca mais desci. Depois ele acabou abandonando a espiritualidade pra poder fazer o que queria. Outro médium que eu tinha era no Recife. Tinha duas irmãs que iam nesse centro, uma delas cadeirante. A cadeirante ia a outro lugar fazer trabalho de amarração. Eu dizia que não dava certo, que ela devia pensar na condição dela, que o moço não a queria, que ela não poderia ter filhos com ele. As duas quiseram entrar. A outra irmã, Kátia, virou cambona e a cadeirante cantava. Um dia uma médium, que incorporava da cigana Zilá, que tem doze anos, começou a falar para ela: “Você tem uma cigana do seu lado, sabia? Você poderia trabalhar com ela” “Posso?” “Pode. Mas eu não posso falar quem é porque você não vai gostar. Pergunta pro Pepe”. Ela foi perguntar e eu disse: Esmeralda. “Ah, com essa eu não quero!”. Quando a moça ia fazer trabalho de amarração, o pai de santo dizia que fazia de tudo, mas uma tal de Esmeralda ia lá e desmanchava, sem dizer que a Esmeralda era a cigana dela. Depois de muito tempo, de chorar muito, ela disse que aceitava, que incorporaria a Esmeralda. Ela ficava no chão e eu girava em torno dela, até ela sentir a vibração. Quando a moça entrou no centro, ainda na assistência, foi a primeira vez que eu reencontrei Esmeralda depois do desencarne. A moça que incorporava a Esmeralda tinha uns cabelos longos, até o chão, igual a própria Esmeralda. Aí o meu médium começou a dar em cima dela. A Esmeralda veio me dizer que não aceitava aquilo e que não queria mais aquele rapaz no centro, aí eu também deixei de incorporar nele. De aproveitar bem a vida você entende, não é? Assim como você entende em ter que acertar as contas com a espiritualidade depois. Eu quero pedir um favor bem simples pra você, bem simples mesmo. Eu quero que você entregue essa caixinha pra mim de novo, mas não aqui e sim quando eu estiver incorporado no meu outro, lá no Paraguai. Não vai ser difícil me achar lá, eu sei que se você começar a perguntar do centro de umbanda do Pepe, que recebe ciganos, vai acabar me encontrando. Só vai lá, diz que veio falar com o Pepe, tudo igualzinho você fez aqui. E me entrega”.

11. Paulo Coelho procura Dom Pepe

Como Dom Pepe não era propriamente uma pessoa, Paulo Coelho não tinha como encontrar com ele simplesmente, ele precisava marcar um encontro com seu intermediário, o médium. Pra isso ele precisou ir ao centro de umbanda onde Pepe baixava, no horário do ritual, chamado de gira.

Paulo Coelho chegou pontualmente às 18:30, porque foi o horário que lhe passaram, e antes mesmo de chegar na casa amarela os atabaques eram audíveis na rua. Uma rua tranquila, num bairro distante do centro da cidade. Os únicos carros estacionados na rua se aglomeravam em frente àquela casa. Quando desceu do uber e ganhou a rua, Paulo Coelho teve a impressão de que foi julgado pelo olhar da mulher que passou com duas crianças, como se dissesse: mais um que vai pra macumba. A casa e seu portão principal estavam todos fechados; na entrada lateral uma porta na entrada da garagem tinha um cadeado já batido e um longo caminho que conduzia até os fundos. No caminho atravessou por uma garagem atulhada de material de construção, depois um pequeno pátio estilo espanhol. Apenas atrás da parede de azulejos dos fundos do pátio começava a parte mística, com uma fonte à direita e diversas prateleiras com imagens de pretos-velhos. Mais uma parede e começava o terreiro propriamente dito. Em três fileiras dos dois lados, cadeiras de palha em frente à uma cortina toda colorida. Dava pra ver que, por detrás dela, a movimentação de pessoas – o trabalho interno já havia começado. Espalhadas em duplas, cerca de oito pessoas aguardavam sentadas.

Duas moças puxaram as cortinas pelo meio assim que Paulo Coelho entrou. Era mais impactante e teatral do que ele esperava: numa sala imaculadamente branca e profunda, pessoas de branco na fila cantavam. A decoração era feita de cordas – nas divisórias entre o espaço sagrado e profano, nos atabaques, em pilastras – e tecidos coloridos no teto. Havia simplicidade, bom gosto, limpeza e pureza. Nos fundos, um altar formado em cinco partes, com imagens de Nossa Senhora, Jesus Cristo, São Sebastião, São Jorge e Cosme e Damião com índios, ciganos, Zé Pilindra, pretos e pretas velhas, Iemanjá, inúmeras imagens pequenas, anjos, vasos com flores, contas. O altar tinha uma luz branca em cima e a imagem de Nossa Senhora, muito maior do que as outras, que parecia abraçar o mundo. O ambiente cheirava defumação, uma mistura de ervas muito peculiar. O som dos três atabaques, feitos por dois rapazes e uma moça sentado nos fundos, parecia ecoar dentro do coração. Era como um daqueles espetáculos que, mesmo sentados na platéia, a pessoa se sente dentro, dançando junto.

Os médiuns homens estavam de calça e camiseta brancos, as mulheres com saias volumosas até o chão e a parte de cima dos mais diversos modelos de camisas, camisetas, rendas, também brancos. Todos com os pés descalços e grandes colares de contas verde e branca cruzadas sobre o pescoço. Uma voz masculina iniciou um canto que falava de caboclos e no mesmo instante alguns médiuns se desequilibraram nos joelhos, deram solavancos no corpo e foram, um a um, diante das pessoas sentadas e faziam saudações ruidosas. Cada saudação era de uma maneira, o que as tornava interessantes: uma saltava sobre um dos joelhos e com expressão séria dava uma batida no peito; um rapaz sobre os dois joelhos e gritou longamente enquanto esmurrava a região do coração; uma mulher com cerca de sessenta anos levava os dedos indicador e médio juntos do coração e depois para a testa. Depois, os caboclos voltavam para a roda, expressões fechadas e mudos. Alguns andavam um pouco, numa atitude inquieta, mas a maioria permanecia no lugar numa expressão dura e imóvel.

Foi então que Paulo Coelho viu Dom Pepe pela primeira vez – ou melhor, Pai Gil incorporado em Dom Pepe. Com as mãos atrás das costas, ele se afastou do altar e andou calmamente até as pessoas, como quem está apenas dando um passeio. Era um homem com seus cinquenta anos, pele clara e olhos azuis, o físico normal do homem que havia sido magro na juventude e agora estava mais pesado e com barriga. Usava um lenço colorido em tie die em tons de azul e amarelo, uma camisa de manga bufante dourada e aberta até o peito. Em cima dela havia mais colares do que era possível contar, dezenas; coloridos, de diversos tamanhos, e deveriam pesar um bocado. Um lenço vermelho amarrado na cintura e as pontas se estendiam quase até os joelhos. A calça azul também era larga e bufante. Ele tinha um pequeno charuto no canto da boca, e falava sem ter que tirá-lo. As pessoas seguiram sua caminhada majestosa com o olhar, e ele passou ignorando a todos. Veio do canto direito em direção a Paulo Coelho, e não se virou, não lhe disse nada, mas Paulo poderia jurar que, quando entrou no seu campo de visão lateral, Dom Pepe deu um sorriso de lado. Depois, foi embora tão tranquilamente como veio e ficou junto do altar.

Os caboclos fizeram uma roda e um a um chamaram os médiuns que não haviam incorporado. Não eram muitos. A pessoa entrava na roda, se colocava na frente de Pepe e iniciava o movimento, rodando de olhos fechados para sua direita. Um rapaz gordinho com o cabelo quase todo aparado e cavanhaque, depois de rodar um pouco já parou e assumiu os gestos duros do caboclo, e veio para frente e prestou uma reverência com a cabeça. Um homem mais velho, alto e magro, rodou num ritmo tedioso, quem sabe com medo, e logo saiu da roda igual entrou. Um careca com expressão boazinha rodou com tal intensidade que foi caindo em cima da roda, e Paulo Coelho ficou com medo dele se machucar seriamente. Depois foi para o canto, de olhos fechados, e por ali ficou enquanto estiveram os caboclos. Depois foram duas mulheres em seguida, duas mulatas tão parecidas que deveriam ser parentes. Depois, quase como esquecida, veio uma moça com o cabelo preto bem farto e com cachos delicados sobre os ombros. Ela se aproximou com dificuldade, mancando; foi quando Paulo Coelho percebeu sua lordose, os ossos frágeis e que uma perna era mais curta do que a outra. Prestou atenção nos traços finos e os olhos pedintes e reconheceu: era a irmã de Expedito.

Estela – era esse mesmo o nome? – girou hesitante dentro da roda e até o próprio Dom Pepe parecia preocupado. Depois poucas voltas ela ficou tonta e parou, e uma moça a conduziu gentilmente até o canto, onde Estela permaneceu de olhos fechados. Ela tinha o rosto magro e melancólico, muito bonita, e Paulo Coelho entendeu as coisas que Expedito falou da irmã, ela realmente tinha um ar realmente de quem não pertence a esse mundo. Paulo Coelho estava tão envolvido em encontrar Dom Pepe, que nem se deu conta de que aquele centro de umbanda também era sua ligação com Expedito. Conferiu novamente o whattsapp, para ver se Expedito havia respondido a mensagem enviada ainda no aeroporto. Os risquinhos estavam cinza.

Dom Pepe posicionou os caboclos numa roda e chamou as pessoas que quisessem tomar passe. Enquanto todos foram se levantando discretamente e seguiram em ordem até o meio, as duas mulheres que estavam na mesma fila que Paulo Coelho começaram a passar na dianteira dos outros, pedindo licença, dizendo que é porque precisavam falar especialmente com o Caboclo das Sete Flechas. As pessoas cederam seus lugares com um silêncio acompanhado de um olhar de reprovação. Paulo Coelho entrou para tomar passe e se postou na frente do primeiro que lhe apareceu, afinal não conhecia ninguém pra ter preferência. Era uma mulher um pouco mais baixa do que ele, magra e morena, um cabelo preso numa trança que ficava bem fina na ponta. Achou o passe bem completo, a mão do caboclo tremia diante dele, como quem limpa uma mancha persistente imaginária; desceu com a mão tremendo até o chão e bateu três vezes no solo. Com um toque de ombro, fez com que Paulo Coelho se virasse, repetiu o processo nas suas costas, fez com que se virasse de novo, arrancou flechas imaginárias do corpo dele, e por fim bateu no peito e fez uma reverencia com a cabeça, demonstrando que havia terminado. Quando Paulo Coelho voltou para a sua fileira, as duas mulheres mal educadas estavam conversando, e no fiapo que ele pegou enquanto passava por elas, ouviu o nome Estela. Elas eram Yara e Tia Cidão, a mãe de Expedito e sua companheira! Apesar das duas serem fisicamente parecidas – baixinhas, morenas e seios fartos -, não era difícil distinguir quem era quem: Cidão tinha um cabelo muito curto escondido por um boné para trás e usava caça de estilo militar; Yara tinha um longo cabelo preto preso num rabo de cavalo e usava uma calça de ginástica apertada. E ambas usavam uma camiseta V-Boy, com desenho estilizado do Expedito caído de pernas para cima.

-Oi, vocês são parentes do Expedito, não são? Eu sou o Paulo Coelho, o escritor que ele foi visitar.

Paulo Coelho achou que a reação delas foi meio rude – uma cutucou a outra, se olharam e ficaram à espera do que ele tinha para lhes falar. Não apenas não sorriram como instintivamente jogaram o corpo para trás. Paulo Coelho então emendou, disse que Expedito era um menino excelente, que elas deveriam estar orgulhosas; contou que Expedido lhe deu um número de whats e que ele havia lhe mandando uma mensagem, mas não obteve resposta e ficou preocupado. Elas responderam muito à contragosto. Sim, Expedito era excelente. Cidão ficou com o celular dele e só usava pra telefonar, ela falaria com ele sobre a possibilidade de dar o novo número. Expedito foi viver no Rio de Janeiro, porque lá tem mais oportunidades na carreira dele. Não, por enquanto ele não estava ajudando, pelo contrário, estava gastando até mais. Aquelas respostas frias fizeram com que Paulo Coelho entendesse que, do ponto de vista da sua família, a viagem de Expedito até a Suíça para conhecê-lo foi apenas desperdício de tempo e dinheiro, já que ele conseguiu ficar famoso por seus próprios méritos.

Depois que todo mundo recebeu passe, até mesmo os que estavam lá dentro ajudando e os que tocavam atabaques, cantaram uma música e os caboclos foram embora. Depois que desincorporavam, os médiuns entravam correndo num quarto que tinha do lado, de onde saiam de roupas trocadas. Paulo Coelho aproveitou esse instante para acenar para Dom Pepe, que continuava incorporado. Ele agiu com a maior naturalidade de quem encontra um velho conhecido, como se soubesse exatamente quem Paulo Coelho era e o que queria ali. Disse para Paulo Coelho avisar o seu médium que voltaria no dia seguinte para falar com ele; para que não restasse dúvidas, repetiu o mesmo recado para uma ajudante.

Mais tarde, já no hotel, Paulo Coelho ligou para a esposa e disse que precisaria ainda de mais um dia fora e que lamentava muito. Christina Oiticica disse que entendia, que poderia ir desmarcando os compromissos dele, mas que ele deveria pensar se valia a pena. Até mesmo o jantar com o Dalai Lama, pela qual ele esperava há meses, deveria ser desmarcado? Era dali a três dias.

10. Paulo Coelho passeia em São Paulo

Antes de viajar, Paulo Coelho havia combinado com Christina Oiticica que ela não deveria contar pra ninguém que ele ia para o Brasil, para todos os efeitos ele estava em casa. Não era tão difícil, porque há anos ele havia restringido sua agenda ao máximo, quase como uma aposentadoria; não havia mais necessidade de atender todos os jornalistas, aparecer em todos os lançamentos de livros e participar de todos os encontros. Sua fama estava estabelecida e, mesmo se houvesse ainda o que alcançar, ele não tinha mais pique. E, particularmente, avisar que estava no Brasil era sempre complicado, porque por mais tempo que ficasse, nunca era possível fazer tudo.

Ser um escritor famoso era um tipo ótimo de fama, muito melhor do que ser um ator de Hollywood ou um astro de rock. Num evento literário, as pessoas vinham atrás dele, tiravam fotos, filas de espera e falta de espaço. Já no dia a dia, na padaria ou andando pelas ruas, era apenas uma pessoa ou outra que o abordava, geralmente as pessoas ficavam na dúvida. Aí, com os poucos que não se deixavam vencer e se aproximavam, ele sorria, tirava as fotos que pediam… e ia embora o mais rápido possível, antes que crescesse demais.

Quando finalmente se viu em São Paulo, descansado, sem compromissos e sozinho, Paulo Coelho sentiu uma euforia por estar de volta ao seu país natal que só quem vive longe é capaz de entender. O menino que apareceu na sua casa e agora em vídeos não tinha mais a menor importância. Agora estava perto do Ibirapuera, do MASP, do museu da América Latina, de pastéis de feira, de pessoas falando português nas ruas.

Justamente para estar mais perto de tudo, Paulo Coelho se hospedou num hotel que ficava na Avenida Paulista, perto de tudo o que ele queria ver ou da estação de metrô que o levaria até lá. Ele mal colocou os pés para fora da porta do hotel, o direito ainda suspenso no ar e buscando o solo, quando alguém veio na direção contrária e lhe deu um esbarrão tão forte que por muito pouco seu nariz não bateu no chão. Paulo Coelho viu os prédios inclinarem e voltarem ao normal enquanto uma mão muito firme puxava o seu antebraço – tão firme que talvez a queda tivesse sido um prejuízo menor. Ainda meio confuso, ele olhou para cima e viu um homem com mais de um metro e noventa, lenço na cabeça, brinco de argola na orelha, colete preto, camisa vermelha… enfim, um cigano. Paulo Coelho jurou que aquele homem lhe diria: “eu sou a encarnação de Dom Pepe e vim falar com você”. Mas o rosto do cigano perdeu qualquer autoridade quando ele lhe deu um sorriso largo e o chamou de “senhorzinho” enquanto pedia desculpas. O cigano estava acompanhado de uma Mulher Maravilha, um padre enlaçado numa freira e um palhaço. Paulo Coelho se condenou mentalmente por estar impressionável.

Paulo Coelho seguiu por entre os prédios, redescobrindo-os por debaixo de cartazes e pichações. As placas das lojas haviam ficado menores – uma lei nova, ele ficou sabendo – e janelas que estavam há anos tampadas acabaram surgindo. Ele estava assim, reparando em pinturas e detalhes quando sentiu seus pés baterem em algo duro e quase se lançar para frente (de novo); olhou para o chão e havia quase pisado num mendigo, que estava sentado com as pernas estendidas da estreita calçada. Paulo Coelho pediu muitas desculpas e vasculhou os bolsos à procura de dinheiro para tentar compensar. Praticamente só havia Euros na sua carteira, e seria uma piada de mau gosto dar uma daquelas notas a um mendigo. Entregou para o mendigo umas moedas perdidas, ainda da outra vez que tinha vindo pro Brasil e tinha tomado um café por aí., sem olhar e sem saber direito o quanto havia dado. Dois passos depois, já de costas, Paulo Coelho ouviu um barulho metálico suave à sua frente – o mendigo atirara nele a moeda que havia acabado de receber.

Respira, foi apenas o que ele pensou. Paulo Coelho não fazia ideia do valor e estava ali para relaxar, se divertir, matar as saudades do seu país, e não para querer se indispor com ninguém, menos ainda com um mendigo. Ele ainda estava pensando e contra-argumentando consigo mesmo quando passou por uma vitrine e viu, de canto de olho, um velho com uma expressão muito amarrada – era ele mesmo. Parou, soltou o ar, desanuviou a expressão. Por detrás do seu próprio reflexo, percebeu que estava diante da vitrine de uma barbearia e não seria má ideia, pensou, aproveitar a conspiração do universo pra aparar aqueles fios desorganizados que cresciam no seu rosto e couro cabeludo.

Veio lhe atender um rapaz de roupa muito colada e mascando chicletes; ele nem se deu ao trabalho de chegar perto de Paulo Coelho, foi andando até a cadeira para ser seguido. Aquilo não ajudou na melhoria do humor – por mais que fosse um salão mais simples, dirigir-se ao cliente era uma questão de educação. Colocou a toalha morna do rosto de Paulo Coelho com a mesma atitude, não tentou puxar conversa e nem ser simpático. O salão era dominado pelo barulho da TV colocada no canto. Sem ter o que fazer, Paulo Coelho olhou para ela. Anunciaram um ranking de “sucessos da internet”, e depois de mostrarem uma galinha bicando as pintas de um cachorro, um bebê que fez careta depois de cheirar a própria fralda e uma moça sendo surpreendida enquanto cantava no chuveiro, o vídeo escolhido como mais engraçado da semana foi, que dúvida, o do Expedito.

Assim que o vídeo dele apareceu na tela, o clima no salão mudou – as conversas foram interrompidas, todos os rostos se voltaram para a TV. Os apresentadores riram, o barbeiro riu, os outros clientes riram. Paulo Coelho não entendia o que todo mundo via naquilo, nem era tão engraçado assim, era apenas meio ridículo. Uma chegou a dizer que já viu o vídeo dezenas de vezes, e ria em todas elas. Seu barbeiro, até então inacessível, se entusiasmou, disse que era fã do V-Boy, que o seguia e que V-Boy tinha “mais de 10K no IG”, frase que Paulo Coelho não entendeu direito, apenas que mostrava popularidade. No meio da conversa que surgiu por conta do vídeo, Paulo Coelho falou que conhecia Expedito e foi um desastre: o barbeiro virou os olhos pra cima e fez expressão de desgosto, dois seguraram riso, a que parecia ser dona do salão mudou de assunto rapidamente, constrangida. Aquilo realmente o tirou do sério: quem mandou fazer questão de ser simples, entrar num salão qualquer, com um rapaz mal educado e não dizer quem ele era, dava nisso. Quando passou o cartão de crédito e a mocinha do caixa fez menção de reconhecê-lo, Paulo Coelho fez questão de confirmar que ele realmente era quem ela estava pensando, e saiu imediatamente, sem dar a ninguém a chance de tirar foto.

Paulo Coelho decidiu que naquele momento o melhor era ficar quieto, no escuro, sem interação. Foi direto até o Centro Cultural FIESP e comprou um ingresso para um filme que começava em uma hora, o horário mais próximo que havia.

Já passava das duas horas da tarde, mas Paulo Coelho ainda estava no fuso horário suíço e entrou no restaurante do Centro Cultural. Estava quase vazio, o horário era mais para lanche da tarde do que almoço. Quis comer algo bem brasileiro e pediu uma moqueca, que no cardápio dizia que era para compartilhar, mas ele estava sozinho, então perguntou para o garçom como era a porção, porque não viria mais ninguém. Nessa conversa sobre o prato, o garçom o olhou demais, Paulo Coelho falou demais e acabou que o sujeito o reconheceu. Pronto: o chef apareceu para falar com Paulo Coelho, bateu papo, tirou selfie, alguns clientes idem, e o que era pra ser uma pausa rápida virou um evento. Na cozinha, quiseram caprichar no prato porque era para Paulo Coelho e mais de quarenta minutos se passaram e o prato não foi servido. Para não ter que engolir tudo correndo, Paulo Coelho disse que tinha que sair, a sessão ia começar dali a pouco, ficaram constrangidos por deixá-lo com fome, desculpas de ambas as partes, muitas mesuras, e no final ele se sentou para ver o filme faminto e atrasado.

A sessão estava quase vazia. Uma das poucas pessoas eram um casal com uma criança, que corria entre as cadeiras. Crianças correndo entre cadeiras, num cinema passando filme Cult não costumavam ser uma boa combinação. Discretamente, Paulo Coelho procurou uma fila bem longe deles, entre o grupinho de rapazes e o casal com cara de professores. A criança explorou todas as fileiras e cantos possíveis e ainda estava por aí quando as luzes se apagaram. A mãe começou a chamar o menino com uma voz dengosa: “Pepe, volte aqui!”. Paulo Coelho apurou o ouvido, achou que de repente ela poderia ter dito “bebê”, mas ela se repetiu e realmente falou Pepe. Que o tal Pepe – sério, destino? – ficasse quieto quando o filme começasse, Paulo Coelho pensou. Logo na primeira cena, a tela já mostrava o tom amarelado das ruelas orientais. Era um filme de nome esquisito, Paulo Coelho havia comprado mais pelo horário do que qualquer coisa, ele nem sabia do que se tratava. Cena com ruela oriental era um bom prenúncio.

De ruela vai pra uma mulher de avental cozinhando. Surge uma jovem de grandes olhos pretos e ar preocupado e a observa, as duas tem intimidade, são parecidas, mãe e filha. Paulo Coelho se delicia com o R gutural rasgado e ao mesmo tempo suave das palavras delas. A cozinha é apertada e está cheia de comida, tudo ainda feito de maneira muito natural – folhas recém colhidas, os animais em postas grandes e quase inteiros, vegetais com suas raízes. Hum, melhor deixar as mágoas pra lá e fazer uma nova tentativa no restaurante, assim que o filme terminar- eles ficariam felizes por ele ter voltado, ele poderia comer bem, todos sairiam ganhando. Enquanto as duas mulheres cozinhavam, uns homens davam uma passadinha rápida por ali, marido e outros filhos, alheios ao que acontecia. O filme falava do conflito de gerações, a mulher, esposa e mãe, bastante tradicional, com a filha que desejava conhecer o mundo. A mãe passava o tempo inteiro cozinhando, a filha queria mais da vida. Deve ter sido filmado num take só, levava muito descascar sementes. Tão bonita, a moça em breve ia casar e precisava aprender a lidar com a casa, a mãe dizia. Quero outra vida, não quero casar, a filha dizia.

Enquanto conversavam, a mãe depenava a galinha, a filha cortava os legumes. Pedaços brancos da carne eram colocados na panela com água fumegante, temperos coloridos eram moídos, a fumaça passava entre as duas, e o estômago de Paulo Coelho roncava. A comida era inteira colorida, brilhante, gordurosa, e à mesa a família se fartou, comeu com os dedos, as sementes grudadas nas frutas caramelizadas de sobremesa; enquanto comiam tão bem, mãe e filha tentavam achar uma saída que satisfizesse o que as duas acreditavam ser o melhor caminho, a filha aprendia as técnicas a mãe, a mãe se via na filha e tentava encontrar uma solução conciliadora. Que filme bonito, tanto amor, que fome. Enquanto, na cena do aniversário do pai, todos beberam vinho tinto e comeram carneiro, Paulo Coelho começou a pensar em, talvez, avisar alguns amigos que estava em São Paulo e sair pra almoçar com eles.

O filme já ia pra lá de uma hora e, como era de se esperar, Pepe começou a se agitar na cadeira. Paulo Coelho ouvia a mãe tentando acalmar a criança, prometendo doce se ele suportasse mais um pouquinho. Ele tentava se concentrar no filme, mas a falta de firmeza da mãe o irritava. A criança batia o pé, ela murmurava, choramingo de manha. Paulo Coelho ficou contra a mãe: o filme não parecia estar nem na metade e era quase todo de diálogos, não fazia o menor sentido para uma criança, o certo seria sair com ele da sessão. Mas eles continuavam, a mãe pedia paciência, agora prometia levar no cavalinho e Pepe voltou a andar entre as cadeiras. Apesar do barulho e da fome, Paulo Coelho estava disposto a ficar até o fim, porque realmente queria saber aonde aquela história ia parar. No meio das panelas fumegantes, um vizinho de rosto chupado veio pra jantar e admirar a moça, parecia que a família iria fazer ela se casar com ele.

POF. O som seco de algo caindo no chão poderia passar anônimo, se não tivesse sido seguido de um choro agudo que impediu qualquer outra coisa de ser ouvida. Pepe, aparentemente, tentou correr como estava fazendo antes, mas agora estava escuro e ele se estabacou. O menino gritou, a mãe gritou, todos se viraram pra eles. Do lugar onde estava, Paulo Coelho via apenas a agitação das cabeças e ficou muito feliz quando as viu se afastarem em direção à saída. Quando voltou o olhar para a tela, havia um cigano. De onde e por que, numa rápida virada de cabeça, um cigano entrou no filme. Um close persistente, lenço na cabeça, olhar ladino, traços, tudo bem cigano. Paulo Coelho nem quis esperar pra saber o que iria aconteceu: ele saiu da sessão e foi direto pra um Mac Donalds resolver seu problema mais imediato. E, depois, iria de uma vez para Curitiba.

9. Paulo Coelho decide conhecer Dom Pepe

Depois de ler o livro, Paulo Coelho ficou impressionado pela maneira como combinava com o que ele havia visto no “ritual” que fez com Expedito e decidiu que precisava conhecer o tal do Dom Pepe. Desmarcou seus compromissos, deixou Christina avisada – ela não gostou muito, mas entendeu – e foi para o aeroporto. Enquanto esperava pelo vôo, aproveitando o café da sala VIP, ele pegou o celular e foi ler as muitas mensagens que o aguardavam no whatsapp. Abriu o grupo Brésil, um dos seus preferidos, só com os amigos mais próximos. No Brésil, no meio das cinquenta mensagens que não havia lido, entre brincadeiras e emoticons, havia um vídeo de uns meninos jogando futebol. A câmera focalizava um deles, que gritava “mostra pra mãe, mostra pra mãe” e antes de chutar no gol, o menino escorregava no chão que parecia ser de lama e caía com as pernas pra cima bem esticadas, parecendo um V. Era muito engraçado, principalmente porque ao invés de se levantar imediatamente ou desfazer a posição, ele erguia a cabeça, que surgia no meio das pernas, e pedia para a pessoa do celular desligar. No grupo, as pessoas achavam o vídeo divertidíssimo. Paulo Coelho mal havia acabado de ver o vídeo quando recebeu uma mensagem de Christina Oiticica:

 

Christina: Já embarcou? Recebi agora do grupo das artistas.

[vídeo do menino jogando futebol]

Christina: Não é o Expedito?

Paulo: Acho que sim.

Christina: Coincidência estranha, né?

Paulo: Acha?

 

Na escala em Madrid, Paulo Coelho não conseguiu uma boa conexão ou sinal de wi-fi. Quando chegou em São Paulo e finalmente pôde ir para um hotel e ver as mensagens com calma. Quando abriu de novo seu whatsapp, Paulo Coelho descobriu que naquelas mais de doze horas em trânsito, o rapaz do vídeo já era “V-BOY”, e a internet fervia de montagens onde ele, de pernas pra cima, participava de variados acontecimentos: havia montagens em que ele estava na abertura da Copa do Mundo, no grito do Ipiranga, na Revolução Francesa e no meio dos girassóis de Van Gogh. Paulo Coelho achou que não dava para deixar ignorar tanta coincidência e mandou uma mensagem para Expedito dizendo que estava no Brasil e queria encontrá-lo. Ficou de olho no celular, mas durante toda sua estadia a resposta não veio.

8. A história de Dom Pepe, um príncipe cigano

Junto com o vibrante sol andaluz nasceu Pepe, o líder cigano, no final do século dezenove, em 1870. Velásquez, seu pai, deu uma grande festa em todo acampamento, para homenagear o primeiro filho homem, que no futuro seria um líder do seu povo. Isabelita, ainda cansada do parto mas muito feliz, sussurrou pela primeira vez o nome no ouvido do seu niño. O nome de Dom Pepe não é esse, Pepe é o nome com que ele é chamado. Quando Isabelita estava grávida, ela e o marido rezavam a Santa Sara, que lhe desse um sinal e lhe revelasse como a criança deveria se chamar. Foi num sonho que o nome lhe foi revelado. Apenas Velazquéz e Isabelita – mais tarde o próprio Dom Pepe – souberam que nome era, que sorte atraía, que maneira o filho deveria se fortalecer e falar com o Divino. Ao longo dos anos, eles foram sussurrando o nome no ouvido de Pepe até ele aprender. Dom Pepe não teria o privilégio de fazer o mesmo com um filho seu.

Dom Pepe lembraria por toda eternidade a perda da sua mãe, no seu terceiro parto, e Igor carregou durante toda vida a culpa de ter sido a causa da morte dela – mas era o destino, estava escrito. Dom Pepe tinha Regina chorando no seu colo quando foi se despedir da mãe, talvez por isso o laço deles fosse tão forte, quem sabe até mais forte do que os irmãos de verdade dele. Regina foi pega pelos seus pais em uma de suas andanças, ela chegou em casa quando já engatinhava e imediatamente se tornou parte da família. Era um costume cigano visto com naturalidade, pegar bebês para criar. Velásquez adorava Regina, a pegava no colo e dizia que jamais a deixaria se casar para não ir embora, frase que Dom Pepe adotou também, sem querer e sem saber quando. Talvez o pai tivesse começado a dizer aquilo para já acostumar a menina com a idéia de que jamais se casaria, já que era muito raro uma criança adotada arranjar marido, porque os ciganos só se casam entre si. Como todas se conheciam, ninguém a escolheria por ignorância.

Velásquez sentiu muito a morte da esposa e não quis tomar outra, mas, como todo cigano, ele sabia ser prático. Não só pelas viagens constantes e a liderança da tribo, fazia falta uma mulher que o ajudasse a cuidar dos seus filhos.  Embora eles tivessem a Regina, era uma atribuição pesada e ele como homem nem saberia como fazer. Mulher cigana cuida de todos os afazeres domésticos e era um serviço pesado, que incluía carregar água, manter a fogueira, charquear a carne. A mulher a quem ele pediu isso era ela também uma líder da tribo, mas num sentido espiritual: Zoraide entendia de ervas, era uma mulher de grande sabedoria. Ela sabia de verdade, porque o que as ciganas aprendem para ganhar dinheiro fora de casa é outra coisa, Zoraide realmente tinha o dom. Pepe observava sua segunda mãe colhendo ervas, cheirando, fazendo chás, pessoas que mal se aguentavam de pé e depois de uma visita ficarem boas, e cresceu com a noção do valor do conhecimento cigano e o cuidado com as pessoas.

Velásquez teve uma vida boa e morreu de velho, cercado pela família e amigos. Ele casou todos os seus filhos naturais e conheceu alguns netos. Regina continuava ajudando na casa, de cabeça descoberta, sem nunca conhecer homem. As ciganas solteiras ou descasadas não usam lenço na cabeça, enfeitam o cabelo com flores. Às vezes elas são descasadas porque o marido descobriu que não eram virgens durante a lua de mel, porque não passaram no teste do lençol, quando o cigano exibe para toda tribo o sangue do lençol que mostra que a mulher foi deflorada. Mas pode também ser quando elas traem o marido.

Dom Pepe não teve filhas e nem filhos. Ele poderia ter devolvido a sua esposa, por ser doente e não ter lhe dado descendentes, seria um direito dele e nem teria que devolver o dote. Mas ele não tinha pressa e gostava de Soraia. Como manda a tradão, eles se casaram na adolescência, um casamento arranjado pelos seus pais quando eram ainda crianças. Era uma boa mulher, cuidava bem dele e das coisas, era obediente, trazia dinheiro para casa, eles se davam bem. Eram ciganos, ninguém esperava paixão, felicidade e outras idéias de gadjes. Os ciganos podiam passar a vida inteira sem conhecer o amor. Dom Pepe conheceu e no que isso deu? Desgraçou a si mesmo e a sua tribo.

Aos 38 anos, com a morte de Velásquez. Dom Pepe virou chefe da tribo. Não que seja obrigado o filho assumir, não é como uma família real, ele assumiu porque tinha experiência e os ciganos acharam por bem ele continuar depois de ter aprendido tudo com o pai. Dom Pepe era forte, vinha de boa família, bom cavaleiro, conhecia bem as paragens, conhecia todo mundo, falava bem – era a escolha natural, parecia que não tinha como dar errado.

 

Uma das coisas que o chefe faz é visitar as outras tribos. Um dia apareceu por perto de onde eles estavam uma outra tribo, eram uns ciganos que tinham vindo do México. Como líder, Dom Pepe juntou uma comitiva dar lhes dar boas vindas. Ele levava um maço de cravos para entregar de presente. Ele viu, na frente de uma barraca, uma mulher sentada escovando os seus cabelos. Eles iam até o chão.

O homem cigano é livre para deitar com outras mulheres, especialmente as de fora, as gadje, mas mulher cigana tem que ser fiel. Quando os ciganos sabiam da traição da mulher, se fazia uma CRIS. Cris era uma reunião com toda tribo, eles expunham a mulher, o caso dela ia a julgamento com a CACU, um conselho formado pelas pessoas mais velhas da tribo. Se ficava provada a traição, eles decidiam pela separação do casal. A maneira de separar é tirar o lenço da cabeça da mulher e dar para o marido. É o lenço que simboliza que a cigana é casada. Se a cigana sai da sua barraca pra ir a outra sem o lenço, vão dizer que ela está provocando. Se ela usa o lenço, ninguém mexe com ela porque é uma mulher casada. Só que aí quando tira o lenço dela e se separa, ninguém quer mais nada com aquela mulher, nem a família a aceita de volta. Ela fica sozinha no mundo.

Quando Dom Pepe viu aquela mulher sentada do lado da barraca sem lenço, achou que podia ser o caso, que era uma mulher experiente, ainda mais pela maneira que ela lhe sorriu. Dom Pepe lhe jogou um cravo e a mulher o apanhou com a saia. Todo mundo viu. Seu nome era Esmeralda del Castro. Ela era filha da líder daquela tribo, a Emalesca. Depois Dom Pepe soube que Esmeralda não havia se casado porque era doente de defeito físico, uma perna mais curta do que a outra. Ela era bem morena, quase preta. Além do defeito, era uma filha adotiva. Emalesca tinha dois filhos gêmeos e um deles, Carlos Ramirez, era apaixonado com Esmeralda.

Mas pra Dom Pepe nada daquilo tinha importância, e pra Esmeralda também não. Eles ficaram apaixonados e sentiam vontade de estar sempre juntos, igual eles ouviam falar nas canções. Soraia não dizia nada – Dom Pepe nunca perguntou e ela como esposa cigana não tinha direito de querer achar ruim. A vontade de ver Esmeralda era demais, ele não conseguia evitar de todos os dias tentar vê-la, mesmo levando tanto tempo de cavalo. Não tinha como esconder e Carlos Ramirez ficou louco de ciúmes.

Com tanta visita acabou acontecendo o que se esperava: Esmeralda engravidou. Dom Pepe ficou muito feliz de finalmente ter um filho, e quis fazer o correto: devolver Soraia e casar com Esmeralda. Mas Emalesca também não tinha gosto nisso, porque se casada Esmeralda passaria a viver com a tribo de Pepe e ela havia adotado a menina pra ter alguém pra ficar com ela.

O casal havia marcado um encontro. Se Esmeralda já era lenta normalmente, por causa do problema na perna, quanto mais grávida. Na direção contrária, vieram Carlos Ramirez e seus comparsas, montados a cavalo. Eles tentaram fugir e foram alcançados em pouco tempo. Dom Pepe e Carlos Ramirez entraram em luta corporal. Num momento que Dom Pepe se virou, Ramirez enfiou uma adaga nas suas costas. A última visão de Dom Pepe encarnado era o céu limpo e muito azul da Andaluzia.

Levaram Esmeralda de volta para a tribo, que foi trancada numa barraca por sua mãe, até o fim da gravidez. Aos outros ciganos ela disse que a filha estava gravemente doente, com uma doença contagiosa. Emalesca fez o parto da própria neta. Ela pegou a recém nascida e fugiu com ela pela noite. Ainda não tinha amanhecido quando ela encontrou uns peregrinos, contou uma história qualquer e lhes deu a menina de presente. Desgostosa de perder o homem que amava e a filha, Esmeralda entrou em greve de fome e morreu de inanição. Carlos Ramirez e os outros irmãos resolveram se vingar na tribo de Pepe e os atacaram de surpresa. Foi uma chacina, registrada numa placa em Andaluzia, e hoje Dom Pepe paga pelos seus erros atendendo num centro de umbanda em Curitiba.

7. Paulo Coelho viaja sob o efeito do LSD

Christina Oiticica estendeu a Expedito o pequeno pratinho com quadradinhos e disse que ele deveria pegar apenas um e colocar na boca. Ele obedeceu, e antes que Christina Oiticica pudesse tirar o pratinho, Paulo Coelho pegou um quadradinho para ele também. O olhar do casal se cruzou e nenhum dos dois disse nada. Não era esse o combinado, há décadas Paulo Coelho estava limpo; a atitude surpreendeu sua mulher, mas se ele havia decidido entrar numa viagem, era adulto e responsável o suficiente.

Christina Oiticica se retirou, Paulo Coelho e Expedito se sentaram. Paulo Coelho fechou os olhos e respirou profundamente. Abriu os olhos, olhou em torno. Expedito mantinha os olhos fechados e uma expressão concentrada. Paulo Coelho fechou novamente os olhos, respirou, se sentiu entediado. Como o cheiro de fio químico ficava repulsivo com incenso. Ele percebeu que vinha uma corrente de ar debaixo da porta do banheiro, um ar geladinho, o basculante devia estar aberto. Quem sabe Christina tenha deixado escancarado para ajudar um pouco. Paulo Coelho tentou se concentrar naquele ar que vinha puro, e começou realmente a sentir como se pudesse controlá-lo, como se tivesse a capacidade de escolher que corrente de ar seu nariz aspirava. O ar não era uma pura combinação de elementos, ele era um ser vivo. Naquele ar que lhe vinha selecionado, começou a sentir o cheiro da noite, o cheiro da grama, o cheiro deixado pela esposa, ainda parado no lugar onde ela esteve. Depois se deu conta de que provavelmente já estava começando a sentir os efeitos do LSD.

Ele não se espantou e resolveu acompanhar a viagem. Depois de tanto tempo, não sabia mais como o seu corpo reagiria. Paulo Coelho usou drogas numa outra época de vida, e parou quando sentiu que elas não tinham mais nada de novo para mostrar. O combinado entre ele e Christina Oiticia não era aquele, era somente para Expedito usar o LSD; mas quando o ritual começou, Paulo Coelho começou a não achar justo que o menino passasse por tudo sozinho, e fazia sentido, dentro daquela história, pegar um quadradinho também. As suas experiências com LSD não tinham muitos padrões: algumas foram bonitas e lhe trouxeram muita paz; outras eram apenas divertidas, infantis e coloridas, bolhas de sabão da consciência. O cheiro que até então era fio químico e incenso de repente mudou – o mundo se encheu com cheiro de maçã. Paulo Coelho e estava segurando maçãs e alisou a casca macia e fina, uma em cada mão. Depois as maçãs não apenas estavam nas suas mãos, ele estava sentado numa montanha delas.

Quis olhar para as maçãs e viu que ele era pequeno e elas enormes. Quis se levantar e alguém que ele não viu lhe entregou uma faca. Ele deveria começar a cortar as frutas, depressa, muitas frutas. E fez o que lhe pediram, na sua mente, manejando aquela faca enorme e sem peso, como se fosse uma formiga carregando uma folha. Paulo Coelho começou a descascar as maçãs, abacaxis, damascos, frutas do conde, laranjas, pêras, bananas, mirtilos, ameixas, jabuticabas, abacates, cerejas, limões, mangas. Rápido, mais rápido, muito rápido, ele não era o único, mais pessoas estavam cortando frutas, ele sentia a presença delas.  Cacaus, graviolas, melancias, carambolas, pequis, amoras, uvas, graviolas, caquis, umbus, lichias. Paulo Coelho sentia o aroma de cada uma delas e nunca havia se dado do quanto cheiro de fruta é algo delicioso.

Depois de passar horas descascando, ele empurrou as frutas com as costas para uma bandeja enorme, e a carregou por cima da cabeça, numa fila formada por outras bandejas com frutas cortadas. Chegou num lugar forrado de bandejas e depositou a sua bandeja no primeiro pedaço vazio que encontrou. O cheio de fruta agora era tão forte que chegava a sufocar. Olhou para as outras bandejas e viu que muitas delas estavam cheias de moscas, as frutas fermentavam, intocadas. Olhou para cima e, como uma rainha num reino de formigas, havia uma moça sentada. Ela apoiava os cotovelos no joelhos e seus cabelos, muito pretos, caiam sobre as frutas e melecavam, o que não a incomodava. A moça estava triste. Por algum motivo, ele não era capaz de formular nenhum pensamento além de “moça triste”. As frutas eram todas para ela e ela não pegava nenhuma. A tristeza da moça era tão triste que Paulo Coelho se sentiu triste também. Quis abraçá-la e insistir para que ela comesse um pedacinho, uma frutinha só, por favor. Mas ela não comia, ela se recusava. Paulo Coelho começou a chorar descontroladamente.

Paulo Coelho passou a mão pelo rosto molhado e respirou fundo, tentando se acalmar. Tentou voltar para o atelier. Quis sentir as suas costas na cadeira, as paredes, a familiaridade. Não fazia idéia de que horas seriam, há quanto tempo estava sentado. Conseguia se lembrar onde estava e porque estava ali, bom sinal. Quem sabe o efeito já tivesse passado. Não se moveu, não abriu os olhos, estava pesado, sentia vontade apenas de se deixar estar. Ainda sentia um restinho de cheiro de frutas podres grudado nas narinas. Ouviu uma música bem baixinho, como se tivesse um vizinho estudando música ao lado – o que não era possível, sua casa era distante demais para que ouvisse seus vizinhos. Era uma guitarra flamenca. Havia uma voz masculina no fundo, bem baixinho. À medida que a música avançava, a voz foi aumentando, como se sentisse estimulada pela atenção, e a guitarra foi diminuindo. Aquilo foi ficando desagradável, de novo. A voz da música se tornou uma voz masculina rouca que sussurrava no ouvido direito de Paulo Coelho num idioma que soava bastante antigo e rústico.

Paulo Coelho queria ver o rosto de quem lhe sussurrava, mas sentia seu pescoço duro e não conseguia se virar, nem o homem tampouco se colocava ao alcance dos seus olhos. De tanto se esforçar em olhar pro lado, sabe lá como ou por onde, ele conseguiu ver que era um cigano, que o cigano tinha o cabelo bem preto, sobrancelhas pretas e despenteadas que quase se uniam por cima do grande nariz. Os pêlos do rosto eram grossos e vinham desde cima da bochecha. A boca e o pescoço eram finos e fortes. A camisa aberta deixava amostra o peito bronzeado de sol. A camisa era estampada, com um desenho miudinho, e metade dela tomada por um desenho abstrato, que depois Paulo Coelho percebeu que não era um desenho, e sim uma mancha. Uma mancha espirrada. Pingos. Manchas grossas. Aquelas manchas puxavam o olhar, Paulo Coelho não conseguia parar de olhar pra elas, descobrir o padrão dos desenhos, o que havia ali. O cigano pareceu perceber que estava sendo analisado e olhou para Paulo Coelho e quando aquele olhar bem escuro cruzou com o dele, Paulo Coelho acordou.

Quando abriu os olhos, o brilho do sol ultrapassava os panos pretos que cobriam as janelas.  O atelier havia voltado a ser apenas um atelier, com figuras em gesso e barro. Olhou para o lado e viu Expedito de olhos fechados, respirando serenamente. Paulo Coelho se levantou e encostou levemente no ombro de Expedito, que abriu os olhos sem susto, como se estivesse esperando pelo gesto.

-Tudo bem?

-Tudo.

-Você viu alguma coisa?

-Não.

-Não, nada?

-Não.

Mas o menino parecia satisfeito e nenhum dos dois retornou ao assunto. Naquele mesmo dia, Paulo Coelho levou Expedito ao aeroporto. Conversam amenidades, sem cobranças. Quando se despediram, Paulo Coelho se deu conta que se preocupava com o menino e pediu o whatsapp dele, para saber se chegou bem. Antes de embarcar, Expedito tirou do bolso um livro mal feito, de Xerox. Era o livro dele.

6. Paulo Coelho e Expedido participam de um ritual

Quando Paulo Coelho abriu a porta de casa, pontualmente às 23h, mesmo na escuridão dava perceber que Expedito estava tenso. Pudera, o próprio Paulo Coelho também estava.

Fora ajuda pra tirar uns poucos móveis do lugar, Christina Oiticica cuidou de tudo sozinha. Paulo Coelho apenas observava, por cima do livro que estava lendo, enquanto a esposa ficava pra cima e pra baixo, abraçada em diversos objetos, procurando na internet, indo e voltando de carro para sabe-se lá aonde. Ela se envolveu de corpo e alma no projeto, como quem faz uma grande produção teatral. Apenas uma hora antes que ela lhe passou algumas instruções – se Paulo Coelho não soubesse direito o que o aguardava, não precisaria fingir surpresa.

Paulo Coelho já abriu a porta para Expedito com a roupa do “ritual”: um grande camisolão preto, parecendo uma batina, e que ia até o chão. A roupa de Expedito estava no lavabo esperando por ele. Que Expedito lavasse o rosto e as mãos depois de trocado, num gesto simbólico de retirar todas suas impurezas. E não esquecesse de tirar qualquer acessório, como o pequeno brinco que usava na orelha esquerda, como um sinal de desapego.

Com a casa às escuras, Paulo Coelho conduziu Expedito segurando-o pelo braço; ele fez aquilo para dar a impressão de que conduzia com reverência, mas na verdade a escuridão excessiva da própria casa o deixou meio inseguro – ele a viu com o olhar muito suspeito sobre o assoalho, como quem faz testes. Eles atravessaram a casa principal e chegaram no jardim de inverno. No caminho que dava acesso ao atelier de Christina Oiticica, ela acendeu a trilha de tochas que acomodavam as velas de citronela, cujo cheiro lhe trazia recordações felizes do Rio de Janeiro. Como se os deuses tivessem decidido colaborar com a farsa, não se via uma estrela no céu e a noite estava silenciosa e imóvel. Em frente à porta encostada do atelier, Paulo Coelho tirou o seu chinelo e Expedito imitou. Dava pra ver por debaixo dela uma luz avermelhada no chão.

Quando abriram a porta, o cheiro que havia lá dentro fez Paulo Coelho e Expedito virarem o rosto para trás. Paulo Coelho sabia o que era aquilo: fio químico. Christina Oitica havia acendido incenso também, talvez para compensar o cheiro, o que tornava a mistura ainda mais desagradável. Quando tudo aquilo terminasse, iria reclamar com ela: diabo, enxofre, foi uma associação clássica, mas não era preciso envenenar o marido. Expedito e Paulo Coelho entraram no atelier cobrindo o nariz na roupa.

Quando olhou em volta, o ambiente estava tão sinistro e diferente, que Paulo Coelho teve vontade de bater palmas – estava muito profissional, sua mulher fez mesmo um trabalho de primeira. Se para ele, que conhecia tão bem o atelier, era impressionante, imaginava o efeito que o cenário causou no Expedito. Havia gelo seco serpenteando discretamente o chão – e alguma coisa gelada e esquisita, que faziam os dois quase pularem de nojo quando sentiam seus pés pisarem nelas (era uma espécie de bala de gelatina, Cristina lhe contou mais tarde). Havia panos pretos cobrindo todas as janelas. A iluminação vinha toda debaixo, de velas colocadas no chão. Havia um estranho som de fundo, como se fossem animais se esfregando nas paredes. As esculturas inacabadas da Christina Oiticica adquiririam sombras disformes e alongadas na parede, e davam a impressão de serem sátiras e doentias.

Quando chegaram ao fim do corredor de sombras, eles encontraram com Cristina Oiticida, vestido um traje parecido com o deles mas com um ostensivo colar de pedras vermelhas e uma coroa combinando. Na parede ela colocou as máscaras que eles tinham comprado no Sri Lanka, bem folclóricas, chegava a ser uma maldade associá-las àquilo. Na pequena mesa ao lado, coberta com uma toalha branca, um candelabro iluminava uma espada, um rolo de papel e um pratinho. A espada era a que Paulo Coelho mostrava para os jornalistas que queriam ver a espada que gerou o livro O diário de um mago. Era tão verdadeira como os pergaminhos que vendem ao lado das pirâmides do Egito – e, como tal, convenciam muita gente.

Com uma voz mais grosso do que o seu timbre normal, Cristina Oiticica se dirigiu solenemente ao marido e perguntou se Expedido era o “solicitante”. Logo após, ela fez um gesto que mandava Expedito se ajoelhar e depois empurrou sua cabeça para baixo. Ela amarrou uma fita vermelha na cabeça do menino, colocou três pingos de parafina, uma com cada vela do candelabro. Deu voltas em torno dele, pegou a espada, tocou no ombro, apertou a ponta no ombro, pegou o pergaminho que estava na mesa e o passou na vela para mostrar que palavras estranhas surgiram com o calor, e depois leu o que estava escrito, um monte de sílabas sem sentido que mais pareciam que ela estava falando klingon. Para Paulo Coelho tudo parecia uma tentativa meio patética de criar um ambiente, mas pela cara de Expedito parecia estar dando certo. Depois da leitura, ela lhes ofereceu um cortador de papel, quer dizer, um punhal. Christina Oiticica pegou o dedão de Expedito e enfiou a ponta do punhal na ponta do indicador direito. O menino quase deu um pulo. Ela encostou a pequena bolinha de sangue contra o pergaminho.

-Meu amor, desculpe ser estraga prazeres – Paulo Coelho para Christina Oiticica, dez horas antes -, mas o seu plano tem uma falha grave.

-Qual?

-Ele pode não sentir nada. Quantos rituais eu já fiz na minha vida e não senti nada. Por mais bonito que esteja, por mais fé que a gente coloque, às vezes entramos e saímos do mesmo jeito.

-Eu pensei nisso. Tenho uma arma secreta, eu garanto que ele não vai sair sem sentir nada.

Quando Expedito terminou de dar as voltas, Christina lhe estendeu o delicado pires de cristal, a sua arma secreta, o que garantiria que aquele ritual faria Expedito viver experiências místicas e sairia de lá convencido: LSD.

– Christina, você quer dopar o menino!?

-Ah, Paulo, não me venha com essa, não você! O ritual vai criar o ambiente necessário da viagem e nós dois estaremos lá para ajudar. Ele pode ficar aqui em casa até o efeito passar.

5. Paulo Coelho não sabe o que fazer e surge uma solução

Quando Christina Oiticica acordou, encontrou Paulo Coelho olhando para o horizonte com um ar meio melancólico. Na pia, duas xícaras e restos de anis. A sala estava vazia, mas ela ainda parecia carregar um ar pesado e agressivo, como se o que acabara de ocorrer tivesse impregnado nela como uma fumaça de incenso.

O clima pesou quando Paulo Coelho disse a Expedito que não tinha como lhe ajudar. Primeiro ele não acreditou, agiu como se aquilo fosse puro charme. Reforçou que Paulo poderia confiar nele, que o assunto não sairia daquela sala. Depois parece ter pensado que fosse receio por falta de empenho, quem sabe o processo de venda de alma envolvesse muito esforço físico e algum tipo de tortura, então Expedito falou do seu passado difícil, na sua experiência com trabalhos braçais, que passou privações e ainda assim conseguia trabalhar sem descanso. À medida que Paulo repetia que não podia ajudar porque não existia pacto nenhum, Expedito começava a ficar mais exasperado e tentava encontrar argumentos cada vez mais sem sentido. Mas o pior de tudo foi quando ele pareceu – será que há outra maneira de interpretar um rapaz que ainda há pouco estava com frio quase se despir? – se oferecer sexualmente.

– Mas você falou pra ele que essa história de pacto é ridícula, de onde…

-Ele me disse que todo mundo sabe, eu e a Xuxa.

Paulo Coelho sabia muito bem ser firme e defender seu território quando era invadido, mas a história o afetou mais do que ele gostaria. Numa só feita, ele não apenas foi acusado de ter pacto com o diabo como também ser mentiroso ao negar o fato, egoísta por não dividir seu diabo com os outros. Dizer que uma pessoa fez um pacto é, no fundo, negar que ela mesma seja o agente do seu sucesso. Não que ele já não tivesse enfrentado isso, basta ver a maldade dos seus críticos brasileiros, mas era diferente… As ações do menino se baseavam em crendices, eram lógicas totalmente ilógicas até pros mais místicos; só que havia no meio daquela confusão tanta certeza e tanta vontade que era difícil não se sentir tocado. Seres confiantes e que enfrentam o mundo fazem parte do grupo de pessoas que Paulo Coelho se identificava.

– Paulo, essa sua mania de querer argumentar…

Paulo Coelho tentou explicar ao menino a dificuldade e a especificidade de ser escritor. Da necessidade de ler muito, praticar, encontrar sua própria voz, conhecer a fundo a si mesmo e ao tema. Mas o menino havia escrito, ou melhor, transcrito um livro de um cigano que baixava num centro que ele frequentava, claro que não entendeu nada. Na opinião dele, bastava ter uma boa idéia e pronto. E ainda citou os próprios livros de Paulo Coelho como exemplos de que bastava uma história boa: “num livro você fala da moça que ama um que virou padre, no outro livro a mulher tem problema no coração, em outro vira prostituta…” . Ainda usou O Alquimista para tentar manipulá-lo: se Expedito tinha feito igual Santiago, acreditado nos sinais e investido tudo para chegar naquele momento porque acreditou no seu sonho, como que Paulo, o autor do livro, poderia se negar a ajudar? Então era tudo mentira, ele mesmo não acreditava no que escreveu? Foi nesse momento que Paulo Coelho se sentiu atingido e talvez – pensando em retrospectiva – tenha perdido um pouco a calma. Não era mentira, era literatura! E se Expedito se considerava tão fã, basta consultar entrevistas que Paulo Coelho deu durante os anos, ou ler a biografia escrita por Fernando de Moraes para saber da sua batalha pessoal para se tornar escritor, um sonho que ele perseguiu sem conseguir concretizar até os quarenta. Aí Expedito acusou Paulo Coelho de ser um velho amargo com vontade de se vingar do mundo, Paulo Coelho o acusou Expedito de ser pretensioso e arrogante.

-Eu acho que você deve chamar o menino e fazer uma invocação com ele.

-Tá louca agora, Christina? Desde quando você acredita que…

Ela tinha um plano. Sofisticado e criativo como só ela seria capaz de pensar. Tudo o que Paulo Coelho precisava fazer era localizar o hotel do menino – se ele achou Paulo Coelho perguntando pelas ruas, também dava pra achar um menino brasileiro perguntando por ele nos hotéis – e dizer que ele havia mudado de idéia e que ele deveria vir esta noite, preparado.

4. Paulo Coelho se cansa de tanta história e tenta trazer Expedito de volta ao que interessa

– Ok, fico feliz pela sua irmã ter desenvolvido a espiritualidade dela. Mas o que é que eu tenho a ver com isso pra você vir parar aqui na minha casa, que fica a um oceano de distância da sua?

– Foi Dom Pepe.

Expedido assistiu de longe quando sua irmã passou a frequentar o centro de umbanda em Curitiba. Mesmo lá, houve resistência que ela se tornasse médium, tinham receio que ela se machucasse, porque a incorporação exige bastante fisicamente. De qualquer forma, ele ouvia os comentários em casa: Cidão que se sentia perseguida no trabalho por um chefe homofóbico se queixou a Exu Caveira, que lhe pediu uma garrafa de pinga pra dali a um mês; antes mesmo de comprar a garrafa, o chefe já havia sido transferido. Reclamou de outra pessoa, e ela do dia pra noite se tornou uma flor. Yara via na generosidade de algumas patroas o atendimento de umas demandas que ela estava precisando, como a troca do sofá e ganhar um celular novo. O dinheiro subitamente parecia render então todos viviam melhor. Expedito ficava feliz em ver a família feliz, mas não tinha vontade de ir, praticamente perdiam o sábado inteiro pra fazer essa ida e volta para Curitiba.

Expedito provavelmente jamais teria conhecido Dom Pepe se um dia Dom Pepe não tivesse vindo até eles. Estela conseguiu um emprego em casa, costurando pétalas de flores de tecido pra uma loja, e com mais esse dinheiro extra, eles puderam se mudar pra um lugar melhor. Como a mudança aconteceu perto do aniversário da Dona Tereza, Pai Gil viria visitá-la ele concordou em aparecer para abençoar a nova casa. Expedito acompanhou tudo de longe, ele achou que Dom Pepe ia abençoar e ir embora. Depois de tudo feito, deram vinho para ele, e ele se sentou no chão, perto da janela, e fumando um charutinho atrás do outro começou a conversar. Dom Pepe contou a história de um médium que ele baixava, em Salvador, que aprontava muito, traía a noiva direto. Pediram pra ele dar um esculacho no rapaz, ele desceu e disse tudo. O rapaz disse que não aceitaria sermão e que Pepe tomasse no cu. Dom Pepe disse que tudo bem, ia mesmo, aí fez o rapaz perder seu excelente emprego no banco e a noiva. Depois o rapaz chamou chamou chamou e Pepe não desceu. Foi ali que Expedito passou a gostar de Dom Pepe, porque viu que ele era um homem de verdade.

Só então Expedito começou a frequentar o Centro. Gostava dos atabaques e das músicas, mas ele agia diferente da família, que tinha muito medo e respeito por todas as entidades. Expedito as tratava de igual pra igual, como faria com gente viva. Era comum, entre uma linha de trabalho e outra, que Dom Pepe começasse a contar histórias e dar umas lições nos médiuns através delas; aquele era uns dos momentos preferidos de Expedito, Dom Pepe não era de engolir ofensa.

Em trabalho cigano com magia, Expedito sempre pedia a mesma coisa: ficar rico. Quando Dom Pepe sugeriu a Expedito que ele escrevesse um livro com as histórias dos ciganos, ele sentiu que Dom Pepe havia lido, lá do além, os seus pedidos. Durante anos, Dom Pepe contou um pouco de sua história para todos os que passaram por ele; pela primeira vez, alguém colocaria as histórias no papel. Não só no papel: Expedito anotou, imprimiu; fez as ilustrações para deixar o livro mais grosso e rondou os terreiros de Curitiba e do litoral com os livros debaixo do braço, até vender tudo. Foi com aquele dinheiro que viajou até a Suíça.

3. Expedito conta como, através da irmã, eles entraram em contato com os ciganos

No último encontro entre Dona Laura e Yara, ela estava disposta a tratar a mãe adotiva e ex-patroa com raiva, e havia passado dias ensaiando as respostas que daria. Mas Dona Laura entrou lá e muito rapidamente os seus olhos varreram a pobreza das acomodações, perguntou se Yara precisava de alguma coisa e fez um carinho muito de leve em Estela. Quando Dona Laura foi embora, sem agredir ou pedir para que Yara voltasse para casa, o que tornou o encontro muito mais triste e humilhante do que qualquer coisa que pudesse ter dito. Agora Yara entendia o que as pessoas queriam dizer quando falavam em se sentir no fundo do poço. Quando ela saiu de casa para ficar com Francisco, era pra ter uma vida melhor e não pra viver daquela maneira.

A casinha era maior que o quarto que Yara vivia antes e era bom não ter que pedir permissão cada vez que punha os pés para fora ou opinião sobre o que fazer. Mas, por outro lado, do que valia essa liberdade toda se ela não tinha para onde ir, sempre ocupada com bebê e sem ter com quem deixar. Ela nunca havia vivido também a situação de ter que se preocupar com o dinheiro da comida. Por pior que Dona Laura fosse, comida nunca faltou. Yara nunca havia vivido uma realidade onde era preciso economizar na comida, não atender o corpo o tanto que ele precisasse. Já Francisco, apesar de ganhar mal, se sentia rico vivendo ali. Ele adorou não ter que puxar o saco de moradores e ter que se preocupar em ficar arrumado. Como porteiro, ele precisava fazer a barba todos os dias e andar de calça social e camisa; agora estava sempre de roupas velhas, barba e cabelos crescidos. Trabalhava ao ar livre, não tinha horário certo, tinha muitos amigos. Dava até pra beber e jogar cartas durante o expediente. Mesmo o trabalho braçal era divertido às vezes.

Francisco passava em casa de vez em quando, dava um beijo em Yara, deixava um troco na mesa e sumia de novo. Uma vez se meteu num navio de carga e foi até os Estados Unidos, passou semanas fora. Yara não podia contar com o marido pra nada, nem contra as ratazanas enormes que passavam correndo pelo teto de madrugada. A casa tinha frestas invisíveis, provavelmente feita pelos ratos, porque dava pra sentir o vento frio mesmo com a única janela fechada. Yara morria de medo de um rato pegar as crianças, limpava o boquinha deles constantemente pra não ter nenhum resto de comida, qualquer pacote de bolacha que ela abrisse tinha que ir pra um potinho. Francisco fazia pouco caso, colocava ratoeira e veneno, mas só faltava os ratos darem risada. Eles eram invencíveis, morria um e surgiam cinco, e provavelmente já moravam ali muito antes deles. Yara e as crianças é que eram os intrusos e tinham que ir embora.

Quem ajudou Yara foi tia Cidão, uma amiga da época do orfanato que nunca foi adotada. Ela também trabalhava no porto, mas com contrato assinado, era operadora de empilhadeira. Quando Yara se mudou com os dois filhos para casa de Cidão, Francisco disse que a mulher havia “virado de lado”, que ele iria mostrar para as duas o que era bom, que apareceria na casa e pegaria seus filhos de volta, que aquilo era um golpe para exigir pensão – mas disse isso no bar, pra quem estava lá na hora, nunca chegou a dizer nada pra elas e também nunca visitou os filhos.

Foi tia Cidão quem não se conformou com Estela ficar o dia inteiro deitada, que foi atrás de muletinha de criança pra ela, que fez questão que ela também estudasse. Estela floresceu depois que foram morar com tia Cidão. Estela em pouco tempo começou a se destacar na escola, ela acordava sozinha, antes dos outros, e chorava se por acaso não pudesse ir. Estela era boa até em matemática. Tia Cidão arrumava o cabelo dela com lacinhos, e a menina começou a usar vestidos e querer estar bonita. A maior vaidade dela era o cabelo, quase liso, bem preto e volumoso. Enquanto Expedito era um menino comum, que dava trabalho pra mãe por gostar de gazear aula pra jogar futebol com os amigos, a irmã era madura, sempre atenta ao que os outros diziam, e sempre sabia parecer dizer o que a pessoa que estava triste precisava ouvir. Era a única que gostava de umas músicas só com instrumento, musicas superiores, e ela sempre estava lendo alguma coisa. De pequena dizia que não queria casar, porque homem só atrapalhava a vida da mulher e ela não queria repetir os erros da mãe. Em casa, todos tinham orgulho da Estela.

– Desde pequena Estela falava que tinha uma amiga, uma amiga que ninguém via. A amiga dela se chamava Madalena e tinha um lenço na cabeça. Só que ela dizia que o lenço na cabeça da Madalena não era igual os que a mãe usava, que os da Madalena tinham umas moedinhas penduradas. Como é que a criança ia saber disso sozinha? Ninguém em casa tinha como saber de cigano, foi a Estela que levou a gente pra aquele caminho.

Quando Estela completou 15 anos, tudo pareceu ir por água abaixo. Ela não conseguia estudar, sair da cama, não queria falar com ninguém. Era como se tivesse voltado a ser uma criança. Yara e Cidão levaram a menina ao posto de saúde e os médicos não apenas disseram que ela não tinha nada, como duvidaram quando a família disse que ela era normal e estudava. Estela estava como que apagando, ela só queria ficar encostada, não tinha prazer em falar ou fazer qualquer coisa. Desde bebê Estela ficava sorrindo e olhando para o vazio. Como diz tia Cidão, não era porque ela era boba e sim porque era especial, via dimensões que outras pessoas não viam. Se por um lado, Deus e a pobreza haviam lhe tirado a normalidade da perna direita, por outro era uma menina linda e cheia de dons espirituais.

Dentre as casas que Yara limpava, estava a de Dona Teresinha, uma senhora de mais de oitenta anos que dividia o tempo dela em Paranaguá e na casa dos filhos na capital. Yara conhecia o filho da Dona Teresinha de vista, porque ele estava sempre por ali. Quando Estela estava daquele jeito, um dia Yara foi trabalhar muito triste e Dona Teresinha perguntou o que estava acontecendo, e ela contou. Só então Dona Teresinha disse que o filho dela tinha um terreiro e perguntou se Yara queria ir, quem sabe a causa do que estava acontecendo com Estela fosse espiritual ou, mesmo que não fosse, uma ajuda espiritual nunca era ruim. Quando Yara comentou em casa que iria para Curitiba pra visitar um terreiro, pela primeira vez em muito tempo Estela manifestou uma vontade: ela queria ir junto.

O ritual começava no final da tarde de sábado e elas chegaram em Curitiba pouco depois do almoço. Pai Gil concordou em fazer o Cigano Pepe descer antes, para atendê-las. Desde que ouviu falar em ir pra Curitiba, Estela estava mudada, estava animada, Yara ficou até com medo de passar por mentirosa quando chegasse lá. Mas Dom Pepe não precisou de explicações, ele sabia de tudo só de olhar. Ele disse que Estela estava sofrendo de influência espiritual, que era a inveja no ambiente de trabalho de Cidão. Como Estela era a mais sensível da casa, pegou nela. Ele perguntou quantos anos ela tinha, e quando lhe disseram que tinha acabado de completar 15, ele disse que estava explicado também pela idade. Aquela era uma idade muito importante para quem era médium, uma idade limite. Ela podia seguir o caminho da mediunidade, assim como poderia fechar os seus canais, e aquela era a idade mais adequada. As más influências que vieram do trabalho de Cidão estavam se aproveitando disso, tentando tornar ela médium à força pra ficar a serviço de coisas ruins, mas como ela era um espírito bom, estava resistindo, por isso o cansaço constante, ela estava vivendo uma verdadeira batalha no campo espiritual. Dom Pepe e a equipe dele se encarregariam de afastar as más influências e, depois, elas poderiam conversar com o cavalo dele – Pai Gil – para marcar um dia para fazer o trancamento, que tinha que se na cruz que fica no meio do cemitério. Mas aí, quando estavam todos satisfeitos com a explicação, se sentindo protegidos pelos ciganos do centro e a menina havia tomado passe de caboclos durante a gira, Estela avisou a família: não trancaria mediunidade nenhuma.

2. Expedito conta a história da mãe e da irmã

– Pra falar do Dom Pepe eu tenho que contar da minha irmã, Estela. Ela teve poliomielite e a doença foi uma benção da gente.

Yara, a mãe deles, não gostava de falar do assunto, mas ela contava que foi adotada ainda criança por uma mulher da alta sociedade de Paranaguá chamada Laura. Como criança de orfanato, ela sabia que o tempo corria contra ela. Pra piorar, Yara sempre foi meio grande, sempre pareceu mais velha, com os olhos pequenos e as sobrancelhas cerradas, uma expressão de índia triste. Se ela fosse pequena e frágil, havia mais chance de ficarem com pena. Quando Laura apareceu no orfanato, Yara estava no parquinho com as outras crianças.  Quando chegavam adultos, geralmente casais, as crianças ficavam imediatamente atentas e agitadas. A brincadeira não era mais uma simples brincadeira, poderia ser o momento mais importante das suas vidas.

Não foi exatamente como Yara imaginava. A mulher chegou chique e não chegou a se sentar, quem sabe banco de cimento não fosse o suficiente para ela. Olhou para todas as crianças e fixou o olhar em Yara, que gelou. Não era bem isso que se esperava sentir, “gelar”. Yara lembrava de ter ouvido o termo “escurinha”. Depois daquilo a mulher nunca mais apareceu, Yara achou que a história não ia dar em nada. Até que numa manhã lhe disseram para fazer as malas porque ela havia sido adotada. Era aquela mulher chique que chamou ela de escurinha.

A estranha a esperava na porta e recebeu o abraço que Yara correu para lhe dar de forma desajeitada. Os pertences de Yara cabiam todos na mochila, que ela carregou sozinha. Laura a levou para um prédio, subiram pela escada que ficava junto da garagem, entraram pela porta da cozinha e na parte da lavanderia havia um quarto com muitas caixas de papelão e uma cama. Havia também um pequeno banheiro, com um chuveiro em cima da privada. Era ali o espaço reservado a Yara. Não era o que Yara sonhava, mas era uma casa – e com esse pensamento e a expectativa de que aquilo seria apenas o começo, ela se acomodou e tentou encarar da melhor forma possível. Yara não entendia direito o que ela era, pelo menos no começo. Depois da primeira semana que passou lá, quando Dona Laura ensinou pacientemente tudo o que esperava de Yara, ela ficou feliz quando recebeu um dinheiro para comprar doces. Quando ganhava as roupas usadas ou sorvete, achava Dona Laura a pessoa mais generosa do mundo. Mesmo quando começou a ouvir das outras crianças que ela “não passava de uma empregada”, aquilo lhe soava tão abstrato – ela realmente limpava a casa e fazia comida, mas também vivia com a família, saía junto, tinha suas coisas. Dona Laura dizia que Yara era parte da família e era assim que ela se sentia também.

Dona Laura tinha um casal de filhos e o pai das crianças viajava a semana inteira e só ficava lá nos finais de semana. Como as crianças estudavam de manhã, Yara acordava às 6h, para comprar pão fresquinho e leite e deixar tudo pronto na mesa antes de irem para a escola. Aproveitava a manhã para fazer o básico: arrumar as camas, limpar os banheiros, passar o aspirador e tirar o pó. Depois ia pra cozinha, pra deixar tudo pronto, com arroz, feijão, carne e saladas, quando dona Laura e as crianças chegassem. Depois Dona Laura partia com elas de novo, às vezes para o balé e judô, outras vezes para o inglês e terapia. Yara sempre tinha muito o que fazer, porque dona Laura não admitia que aparecesse um escurinho no rejunte, uma sujeira acumulada nas esquadrias, qualquer coisa que tivesse muito contato com mão, como maçanetas, deveria ser limpado com álcool hospitalar toda semana, sem falar nos muitos tapetes da casa, a coleção de bichinhos de cristal, as capas das almofadas. Cada vez que Yara passava pela sala, ia catando os brinquedos das crianças, pouca coisa mais novos do que ela; eles gritavam por Yara pra tudo, cresceram acostumados a não se responsabilizar por nada dentro de casa. Yara não tinha hora exata pra parar, era como se o expediente dela fosse rareando quando o sol se punha, e sua última obrigação mesmo era deixar tudo ajeitado depois do jantar. Aí ela ia pro seu quarto ver novela, na TV que ganhou de Natal – era a da sala, que eles trocaram por uma melhor. Mas como ela estava ali mesmo, se precisassem de um leitinho ou passar uma roupa que seria usada na manhã seguinte, ninguém se constrangia em aparecer na área de serviço e gritar por ela. Os finais de semana eram iguais, só que um pouco mais leve, porque não tinha mais que acordar tão tarde e a família passava quase o dia todo fora.

Na versão da Dona Laura, foi o pai do Expedito o culpado, ele que fez a cabeça da Yara contra ela. Francisco era porteiro do prédio e Yara tinha apenas dezesseis anos. No fim de ano Yara tinha comido muito panetone, as crianças e Dona Laura não gostavam dos que tinham frutas cristalizadas e deram todos pra ela. Depois de um tempo, ela estranhou que vomitava e a barriga dos panetones não diminuía. Foram quase quatro meses até que descobrisse que os encontros secretos – quase todos os dias, na escada entre os andares quando Yara ia fazer as compras, no apartamento dos porteiros quando tinham mais tempo – geraram um fruto. Um dia Yara se deitou de bruços e sentiu um segundo coração batendo dentro de si.

Dona Laura ficou louca da vida quando soube da gravidez, passou o dia gritando com todos que apareciam na sua frente, tomou aquilo como uma ofensa pessoal. Primeiro, exigiu que Yara tirasse a criança; depois voltou atrás porque a gravidez já estava muito adiantada pra um aborto. Francisco desde o começo queria assumir a mãe e a criança, Dona Laura não aceitava. Ela dizia que Yara, sua filha – bastava ver a certidão de nascimento -, tinha sido uma vítima, o nome daquilo era estupro e ela, Laura, não merecia pagar pelo resto da vida por aquele erro. Depois de nascida, a criança seria colocada pra adoção e pronto, tudo voltava ao normal.

Dona Laura nem disse isso diretamente a Yara, ela falou com Francisco que falou com Yara. O clima já estava péssimo antes, mas ela continuava trabalhando normalmente. Naquela tarde, a raiva era tanta que Yara perdeu o controle e falou tudo o que estava guardado há anos. Ela se abraçou na sua barriga, gritou, esperneou, xingou, ameaçou, tudo. Ninguém ia fazer ela abandonar uma criança, ela teria aquele filho nem que fosse para morrer de fome junto com ele. Foi para o quarto e passou a noite trancada, sem conseguir dormir e nem parar quieta, pronta para partir na manhã seguinte. As coisas de Yara já estavam todas empacotadas em duas mochilas, uma caixa de papelão e um saco de lixo, quando Dona Laura bateu no seu quarto e disse que ela poderia ter a criança, bastava não descuidar da casa. Foi pensando na criança que Yara aceitou temporariamente a oferta, mas assim que Estela nasceu, as duas e Francisco foram pra uma casinha no Porto de Paranaguá.

A casinha não ficava perto ou ao lado do Porto, ela ficava realmente no porto, quase em cima da água. Estava abandonada antes da chegada deles; antes era um antigo escritório ou ponto de venda, Yara não sabia direito, foi Francisco quem arranjou. Ele largou o emprego no prédio e agora trabalhava no porto sem ser registrado, ajudava a carregar carga, consertava coisas, serviços gerais. Não pagavam aluguel, eles viviam lá meio de favor, como uma espécie de caseiro. Yara tinha certeza que foi a proximidade do porto que fez Estela pegar a doença.

– Mas como é que a menina ficar com poliomelite pode ser uma benção?

– Porque Laura localizou os dois. Ia usar os papéis para provar que era a mãe adotiva da Yara, ia botar meu pai na cadeia e tudo mais. Não fez quando soube que a menina tinha ficado doente, e não ia servir pra ser empregada também. Aí ela sumiu da vida da minha mãe, pra sempre.

-Então foi essa a benção, ter se livrado do risco da cadeia?

-Também, senhor Paulo. É que a minha irmã é uma pessoa muito espiritualizada, um anjo que veio do céu. Foi ela que nos colocou em contato com os ciganos.

 

Paulo Coelho e o pacto

  1. Paulo Coelho recebe uma visita

-Senhor Paulo, eu gostaria que o senhor me pusesse em contato com o seu diabo, pra fazer um pacto. Também quero ser escritor.

Paulo Coelho ficou tão indignado que lhe faltaram palavras. Eram tantas reclamações que ele tinha a fazer ao mesmo tempo: como era possível que aquele desconhecido tenha conseguido rastrear o endereço dele na Suíça, o indiscreto que deu acesso à informação seria punido sumariamente; uma vez de posse do endereço, como alguém se atreve a bater na casa dele às 7h numa manhã fria de sábado, e o flagra de pijama de flanela listrada, roupão marrom, meias de lã e pantufas; como o sujeito tinha tanta certeza de um pacto que vinha lhe perguntar isso na maior cara de pau, e pior, lhe pedindo indicação. Se por um lado tudo isso tornava mais do que justo que Paulo Coelho o escorraçasse em maiores justificativas, o moço na sua frente lhe disse isso com tanta sinceridade, com um olhar tão canino, com os dentes batendo de frio na soleira da sua porta e uma boina ridícula apertada entre os dedos, que a cena era também enternecedora e Paulo Coelho disse: entre.

De qualquer maneira, seria um causo interessante. Enquanto o estranho adentrava a sala em passos curtos, pedindo mil desculpas e olhava para o interior da casa como quem se vê hospedado num grande hotel cinco estrelas, Paulo Coelho arrastou as pantufas até a cozinha e perguntou se ele queria chá, sem esperar pela resposta. “Também quero ser escritor”, como não se reconhecer nessa frase, nesse sentimento. Paulo Coelho depositou com todo carinho o anis estrelado mais inteiro na xícara do rapaz. Depois do chá, quem sabe uma selfie, alguns conselhos e ele poderia dispensar o garoto e seu sábado voltaria ao normal.

A sala tinha duas poltronas, quase uma de frente para a outra; as duas ficavam um pouco na diagonal, diante de uma maravilhosa vista dos Alpes. A intenção era que as pessoas se sentissem à vontade para conversar frente a frente, mas que a qualquer momento a falação pudesse ser abandonada para apreciar a paisagem. Como homem de letras, Paulo Coelho às vezes se via farto delas, da eterna luta de encontrar o termo mais correto para comunicar algo, e a cada dia se via mais e mais apegado a cenários, a música clássica, a prazeres sensoriais simples, tais como a recém-adquirida habilidade de misturar sabores no chá.

O rapaz escolheu a poltrona que ficava de costas para a porta, bem como deveria. Continuava segurando a boina entre os dedos. Era moreno, e de cima dava para ver que também seria careca quando a idade chegasse. Vestia uma japona bastante fofa, de um tom vibrante de vermelho. Estava sentado na ponta da poltrona, ainda tenso, mas o olhar havia abandonado a expressão de cachorro arrependido. Olhava para as montanhas com um ar tenso de quem não estava aproveitando nada.

– Você é o…

-Expedito.

Expedido pegou a sua xícara e a abraçou com as mãos, para esquentar. Paulo Coelho acomodou-se na outra poltrona e também segurou a xícara com as duas mãos. O perfume de anis e canela que invadia a sala. Contemplou a vista das montanhas – que nunca o cansava – em silêncio. Ele se perguntou quanto tempo aquele silêncio duraria. Não era um silêncio tranquilo – a ansiedade do rapaz magnetizava o ar e, mesmo de canto, o olhar dele queimava. Por sua vez, Paulo Coelho também usava sua visão periférica e experiência de vida para analisar a sua visita: o conjunto casaco-luva-touca descombinados o fazia pensar que o rapaz não tinha muitas opções de roupas quentes no guarda-roupa. Sendo assim, talvez aquela fosse sua primeira viagem internacional, quem sabe a primeira de avião, o que tornava aquele encontro ainda mais estranho. Não era alguém que estava passeando na Europa e resolveu fechar um contrato com o diabo, ele deve ter viajado especialmente para fazer aquela visita. Depois que ficou famoso, Paulo Coelho se tornou um verdadeiro imã de loucos; pedidos de favores, invasões de espaço, chantagens emocionais e todo tipo de gente já apareceram diante dele; se ele embarcasse em metade do que queriam dele, já não estaria nem vivo. Ainda assim, algumas vezes era difícil colocar limites e provavelmente aquela seria uma dessas ocasiões.

-Você gosta de Borges?

-Q-Quem?

-Começamos mal.

-Senhor?

-Borges, Jorge Luís Borges, escritor argentino. No Aleph, um dos meus livros preferidos dele, a primeira história, O Imortal, ele conta a história de um conquistador que buscava a vida eterna e era ajudado por criaturas bárbaras que mal falavam. Depois descobriu que elas eram o povo imortal que ele buscava. Para quem já havia provado todos os sabores e visto todos os cenários, não havia mais o que buscava e vaidades necessárias…

– Mas… não foi o senhor que escreveu Aleph?

-Sim e não. – aquela ignorância era comum, ele mesmo havia causado aquilo, mas um ignorante em Borges sempre o irritava. Ainda mais querendo ser escritor. – Vamos ao que interessa. Expedito, né? Como foi que você encontrou meu endereço, com quem você falou?

-Com os seus vizinhos.

-Como é que é?

– Eu fui andando. Perguntei da região no hotel e vim até aqui. Depois foi andando na rua e perguntando onde morava o escritor brasileiro. – tirou de dentro do casaco um exemplar de O Alquimista, todo maltratado. Paulo Coelho olhou para sua foto de mais de mais de vinte anos e ficou satisfeito em saber que ainda se parecia com ela – As pessoas me apontaram a casa e eu vim.

Era tão absurdo que só poderia ser verdade.

-E como você veio parar aqui, na Suíça?

-Foi com o dinheiro da venda. Da-da venda do livro, o que eu fiz.

-Ah, você tem um livro. Você não me disse que precisa de um pacto para ser escritor?

-É que… não foi um livro que eu inventei. Eu só contei a história do cigano Pepe. Ele me deixou contar a história dele pra ter dinheiro para procurar pelo senhor.

Em um mês, o mundo inteiro mudou

O mundo era outro quando eu decidi tirar férias deste blog. Eu estava fazendo minha aula de flamenco, preocupada com o fato de uma viagem em família coincidir com uma apresentação, e estava preocupada em remarcar a passagem. Agora não há mais classe de flamenco, viagem, apresentação e ninguém sabe quando qualquer uma dessas coisas será possível de novo, e até mesmo o que será possível de novo.

Minha esperança, ao deixar de escrever no blog, era reencontrar meu entusiasmo para escrever. De repente, me vi em vontade de compartilhar nada aqui, porque o próprio ato de contar uma história estava perdendo sentido pra mim. Eu sempre fui à favor do esforço continuado e acreditava que ele, por si só, é capaz de grandes realizações. Bem, sem esforço sem dúvida as realizações não são possíveis, mas comecei a duvidar de qualquer capacidade que eu pessoalmente tenha pra isso. Não acredito mais que eu possua, dentro de mim, o necessário para escrever um livro interessante. Vocês podem me dizer: nem todos precisam escrever um grande livro, pequenas histórias de blog também têm o seu lugar. Durante mais de dez anos isso foi suficiente, mas agora eu realmente cansei.

Escrevi uns contos e, se nada mudar, eles são a última manifestação da minha ambição em escrever coisas interessantes. Sabe que até pra mandar conto pra amigos e querer que eles leiam é complicado? A gente quase perde o amigo, é uma saia justa enorme pra ele, que se vê entre a necessidade de me agradar e a exigência de dizer a verdade.

Há um desses contos, em especial, que gosto muito e sei que editora nenhuma toparia publicar, porque o personagem principal é uma pessoa famosa e ainda viva. É uma homenagem, acho que se um dia a tal pessoa lesse, iria curtir muito, mas não vai acontecer, ninguém vai topar e pronto. Então decidi publicar aqui, um capítulo de cada vez. Assim, sacio a vontade de vocês de lerem algo meu e vamos ver o que será de mim quando eu chegar no fim do 29º capítulo. Isso se até lá não surgirem queixas e eu tenha que apagar tudo…