Batalha

Há poucos dias uma artista que eu sigo no Facebook, e com quem não tenho intimidade, postou a notícia de uma performance que teve na USP de uma moça pintada de preto e era mijada por um rapaz. Ela estava indignada com o absurdo, convocou um amigo negro e disseram que aquilo era apologia à violência e ao racismo. Junto com outra amiga dela, eu disse que não via assim, que era justamente o contrário: o choque era para mostrar as relações entre negros x brancos, homens x mulheres. Ela não disse nada e eu, por ver nela uma pessoa envolvida com arte, interpretei seu silêncio como concordância. Dias depois, a vi compartilhar um texto com a mesma posição sobre a tal performance. Aí eu entendi que ela não concordou e sim me ignorou. Que não quis discutir comigo por achar que não vale a pena entrar em discussões – política que eu também adoto na maior parte do tempo -, mas que meus argumentos não mudaram nada. Eu acho chato problematizadores enfurecidos, então entendi a posição dela. Ao mesmo tempo, fiquei decepcionada e desativei as notificações.

Este vídeo não tem, por parte do Porta dos Fundos, nenhuma mensagem subliminar. Mas ele representa como eu tenho me sentido diante da mais nova mentalidade medieval brasileira.

O tempo trota a toda ligeireza

Vi, mais pelo título ser curioso do que qualquer outra coisa, o documentário Chuck Norris x Comunismo. Foi um ano que vi muita coisa boa, e este foi mais um. Nesta época de ignorância, me dá até medo indicar – “olhaí, comunismo, uma tremenda porcaria”. O filme é crítico sim como o comunismo romeno, mas muito mais pelo seu aspecto totalitário, ou seja, algo que acontece em doutrinas de direita e de esquerda. Trata de História, mas também de histórias. Tem protagonistas e uma ação que se desenrola. É crítica e uma declaração de amor ao cinema.

Naquela parte muito bobinha e pessoal que nos marca, o filme me fez pensar no quanto tudo chega ao fim. Por mais indestrutível que pareça, por melhor ou por pior que seja. Quando se vivia aquilo retratado no filme, o regime comunista parecia que nunca chegaria ao fim e durou quantas gerações, duas? Um dia conseguir uma fita pirata pra assistir no vídeo cassete é uma aventura, anos depois é uma experiência isolada e deslocada no tempo. Ele me fez pensar o quanto, apesar de toda essa porcaria que está rolando, temos que continuar vivendo. Continuar fazendo as coisas, tocando os projetos, amando, aprendendo coisas novas. Porque passa.

Os chuveiros da diretoria

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O apelido fui eu mesma que criei. No vestiário, os chuveiros do fundo, não sei o motivo, são abertos, o que permitem que as pessoas tomem banho olhando umas para as outras. Os outros chuveiros são fechados. As alunas mais antigas gostam de tomar banho lá, por isso o apelido, eu digo que não tenho cacife para tomar banho com elas. Claro que é bobagem, e apesar das pessoas se apegarem a lugares, eu poderia ter me apegado a um daqueles chuveiros também. Não o fiz com a desculpa perfeita que os banhos ali são muito demorados, porque as conversas vão se alongando. Do meu chuveiro fechado, poucos passos dali, capto algumas palavras: “absurdo”, “Lula”, “esse país”, “ladrões”. Mais do que as palavras, o que eu capto são os tons furiosos. Saem de uma aula relaxante, vão para chuveiros quentinhos e de água abundante, e quando vão se trocar o volume da indignação já está lá no alto. Esse país, o Lula, que absurdo, ladrões!

Um dia estava como sempre ouvindo só os rumores dos banhos da diretoria, captando os tons indignados, etc. Quando saí, descobri que o motivo da vez nem era o Lula e sim o fato de não ter lixeira especial para lixo reciclável no nosso banheiro.

Curtas de comidas sem

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Um café no meio da manhã com uma senhora com mais de oitenta anos. A casa tranquila, a empregada, TV ligada no Bem-Estar, o café passado na hora. Uma xícara a mais colocada pra mim, porções contadas de quem não costuma ter visitas àquele horário. Eis que ela se lembra de algo muito especial:

-Tem aqui um bolo, uma receita que passou na Ana Maria: é um bolo sem ovos, sem manteiga, sem nada.

Era sem nada mesmo, até branco ele era. Parecia mais uma alma penada do que um bolo. Não tinha nem uma casquinha tostada pra dar um gostinho. Minha educação não foi tão boa, recusei.

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Aniversário de um amigo vegetariano, cada um trazia uma coisa. Os pacotes e forminhas de todas as procedências se espalhavam na mesa improvisada. A única coisa com ar caseiro chamou minha atenção: uma torta salgada. Eu adoro torta salgada e nunca consegui fazer (!).

– Fui eu que fiz, é vegana – disse a amiga assim que me viu pegando o guardanapo.

Se ela não estivesse olhando, eu teria soltado a mordida de volta na mão, como criança. Tinha tomate, ervinha, cenoura e massa ligando tudo, o que tornava a torta tecnicamente uma comida. Mas não era comida.

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Numa loja do produtos naturais. Tenho conseguido transferir quase todas as compras que eu fazia pelo centro para perto de casa; agora que não frequento mais a Biblioteca Pública, quase não vou pra lá. O chato é que tem uma daquelas vendedoras hiper-eficientes, que oferece mais coisas até a gente sair de lá. Comprei meu farelo de aveia de sempre e:

-Chegou uma nova leva de pães, a senhora precisa comprar pão? Temos pães veganos. Pães sem origem animal. Pães sem açúcar. Pães sem fermento. Pães…

-Você estão oferecendo esses pães para a pessoa errada. Eu adoro pão e não estou fazendo nenhum tipo de dieta. Não quero pães sem e sim com. Quanto mais tiver dentro do pão, melhor.

Foi a única vez que consegui fazer a moça calar a boca.

Com todos

my-fair-ladyTem uma cena em My Fair Lady que Eliza Doolittle acusa o Professor Henry Higgins de ser um grosso, um insuportável. E ele lhe diz que sim, mas que ele era grosso e insuportável com todos, sem distinção. Eu acho que é por isso que meus amigos, mais dia menos dia, deixam de se sentir desprestigiados por não poderem contar com a minha companhia nas suas casas, suas rotinas ou suas vidas noturnas. Não é que eu exclua, que goste mais de uma turma do que de outra, que saia com um e não com outro – não faço isso com ninguém. O que eu gosto é de ficar no meu canto com os meus livros e minhas coisinhas. Nada pessoal.

A vergonha de Arjuna

O Bhagavad Gita é um pedaço dentro do Mahabharata, que descreve uma batalha entre duas famílias e é uma alegoria do bem contra o mal. Krishna, a encarnação de Deus, estava neutro e deu aos oponentes as opções: eu ou meus homens e poderio bélico? Os justos escolheram Krishna. O Bhagavad Gita é apenas o momento que Arjuna, o guerreiro do lado bom, olha para o outro lado e vê sua família e se pergunta se valeria mesmo a pena enfrentá-los no campo de batalha. Aí Krishna lhe dá uma aula e revela quem Ele é. Um dos momentos mais bonitos é quando Arjuna se emociona ao ver as muitas faces de Deus e lhe pede desculpas pela familiaridade com que o tratava até então, como se fosse um amigo qualquer. E Krishna responde: “deixa de frescura, mano”. Em outras palavras, claro.

Tiro daí duas pequenas conclusões, que nem místicas são. Muita gente pensa: quem me dera estar vivo na época de Jesus, eu me ajoelharia e o seguiria, etc. Ok, Jesus é o exemplo extremo, mas minha teoria é que ao longo da vida passamos por muita gente definitiva. Usei a palavra definitivo pra ser meio neutro, mas você pode chamar de evoluída. Uma pessoa que sem dúvida não estava, na ocasião, com um visível coro de anjos em volta. Quem sabe estivesse de chinelo de dedo, uma havaianas. E você deixou a pessoa passar. Pior, pode ter até tratado mal. Afinal, o reconhecer não cabe a ela. Ou seja, a gente pode ter passado a maior vergonha e nem sabe.

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Colocando-te na posição de amigo, sem sequer conhecer Tuas glórias, dirigi-me a Ti com as seguintes palavras imprudentes: “Ó Krishna”, “ó Yadava”, “ó meu amigo”. Por favor, perdoa tudo o que eu possa ter feito por loucura ou por amor. Quantas vezes Te desonrei, gracejando enquanto nos descontraíamos, deitávamos na mesma cama, sentávamos ou comíamos juntos, às vezes à sós e outras vezes diante de muitos amigos. Ó infalível, por favor, perdoa todas essas minhas ofensas! (Capítulo 11, verso 41-42, versão de Bhaktivedanta Swami Prabhupada)

Não acho difícil entender. Se Arjuna soubesse de quem se tratava, teria se tornado chato, ia perder toda espontaneidade e andar olhando para o chão. Se Nietzsche só acreditaria num deus que soubesse dançar, eu digo que só posso acreditar em um que brinque, que tenha senso de humor. Minha segunda modesta conclusão é: se nem Krishna, que era Deus, gostava de salamaleques…

Em fuga

É como estar no Eu sou a lenda.  Ver gente que eu achava legal – e diria até que com um esforço consciente pra ser mais legal do que sua posição de classe dispõe – achando que “até que não é má ideia” as diversas violências que tem sido legalizadas nos últimos dias está muito difícil. Conhecer gente nova? Eu não duvidaria nada que o galã bem nascido espancasse o flanelinha com a maior naturalidade na saída do jantar. Porque, pelo menos no discurso, as coisas estão assim.

Tenho tomado doses cavalares de Miguel Araújo.

Arrelia (também serve Tiririca)

Um autor, claro. Daquele que com a sua aldeia consegue descrever o mundo, um retrato da sua época e atemporal ao mesmo tempo. Se não pudesse ser um grande autor, pelo menos alguém que passa a sua vida cercado de muitos deles, pelo que produziram. Um professor universitário. Um pesquisador. Ou quem sabe um advogado, profissão que também se cerca de livros, linguagem, códigos. Se for para dar as costas para tudo isso, em viagens por lugares exóticos, com línguas que jamais soariam familiares, ser transportado num olhar a outra realidade. Projetar realidades, construções, arquiteturas, influenciar a pessoa sem que ela sinta, com a mágica da combinação de cores e móveis. Desenhar o trivial e transformar em algo novo e surpreendente, um novo jeito de se sentar ou de se vestir. Salvar vidas, o que pode ser tanto num sentido biológico como simbólico, salvar a alma da ignorância ou dos seus próprios medos. Sendo nos sonhos as profissões tão grandes e tão nobres, eu não entendia quando via a entrevistas de palhaços – Arrelia quando eu era criança e o Tiririca quando eu já era maior – que diziam que escolheram ser palhaços porque não conseguiam imaginar algo mais bacana do que viver de fazer as pessoas rirem.

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Sobre a tirinha: Macanudo é uma expressão argentina antiga, algo como “supimpa”. O autor, Liniers, batizou com esse nome apenas para colocar Supimpa no meio do jornal.

O desafio do pão

Documentário Massimo Bottura: Teatro da Vida (Netflix) mostra um teatro reformado para servir de refeitório. No letreiro: NO MORE EXCUSES. Das mesas às pessoas que recebem, tudo é pensado para oferecer o melhor. Chefs do mundo inteiro que oferecem seu trabalho e conhecimento para servir gente que não teria condições de pagar. Os ingredientes? Comida que seria descartada. Por isso, e por estarem na Itália, sempre tem muito pão e todo ele é amanhecido. Mas nem um único chef serve o pão seco e duro. A cada chef, vemos soluções diferentes: colocar num caldo de cebola e cúrcuma para depois secar no forno, pudim de pão, como parte de uma massa. Dava para fazer um livro de receitas de pães amanhecidos. O que é encantador no projeto é a maneira como se oferece do melhor, sem a mentalidade de que se é caridade qualquer coisa serve. É uma visão contrária, de querer fazer um extra, de oferecer a quem se encontra numa situação de fragilidade um carinho a mais.

Ao invés de enfrentar burocracia, armazenar, separar e pensar sobre, não é mais prático pegar o resto de comida, moer, transformar em pelotas desidratadas e pronto? É sim. Mas quando se pensa em gente e em comida, não se deveria pensar tão facilmente em praticidade. Comer é uma das necessidades mais básicas do ser humano e partilhar o alimento sempre foi uma das mais sagradas. Quem não se sente reconfortado pelo cheiro da comida quente, seja ela um feijão caseiro ou até mesmo o carrinho de cachorro quente de madrugada? Pegar uma comida e sentir que ela tem textura, sabor, cheiro, temperatura, que ela pode brincar na boca, descer gostosinho e ser saboreada é ser reconhecido como gente. Pedir comida já é humilhante o suficiente, a carga de sofrimento e abandono das pessoas não precisa ser aumentada. Se preparar comida dá mais trabalho, ok, é um trabalho que precisa ser feito.

Azul

Era como se eu tivesse acordado de madrugada pra fazer xixi. Olhei para o espelho e estava azul, muito azul, no mesmo tom de azul daqueles caras da propaganda da Tim (ou Tobias, do Arrested Development). Lembro de me olhar no espelho e me ver azul e querer tirar aquilo. Aí olho pro pulso direito e começo a sumir. Volto correndo pra cama antes que fique pior e me cubro.

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Todo mundo aqui já viu X-men e o meu preferido é aqueles que eles estão “jovens”. Tem a cena linda que a Mystica espera o Magneto na cama e ele a prefere azul. Ele lhe diz, em outro momento do filme, que ela desperdiçava uma tremenda energia ao se mostrar não-azul. Ser boazinha e adaptada é ser Mystica cor da pele.

“Perfection”

 

Multiversos

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Dizem que há multiversos, realidades paralelas, e nas nossas outras vidas paralelas fizemos de tudo. Cada alternativa possível, a da direita, da esquerda, do meio e para trás, foram todas vivenciadas, ou seja, em algum lugar existem versões nossas que conjugam o verbo na primeira pessoa do plural. Mas essa informação, na prática, não adianta nada, porque se não tenho consciência das outras realidades, elas são tão inexistentes quanto a minha imaginação. O pior, você sabe, que de todas as alternativas possíveis, eu prefiro exatamente a que estou – estamos – agora. Eu a criei, eu a escolhi, muito mais eu do que qualquer outra pessoa. O que eu vislumbrava podia ser tanto um fósforo riscado quanto uma bomba, em todas uma quantidade de dor acima do tolerável. Sou adulta – somos – e como toda adulta já tenho dores e culpas o suficiente na bagagem para aceitar mais dor e culpa como se nada fosse. O desejo que me restou, do alto da minha limpeza de caráter – porque me consolo de tudo isso dizendo a mim mesma que fiz o que havia de mais correto – é muito simples. Muito mais simples do que o teu, tenho certeza. Imagino que um dia a gente se encontre por aí, num corredor, e você estará no meio de amigos que eu sempre disse que não são os meus, eu poderei cumprimentar os presentes, me aproximar de você,  e te abraçar. Um abraço longo, daqueles que suspende o tempo, envolve o corpo e a alma. E com ele te faria sentir que tudo mais é pequeno diante da gratidão e amor imensos que sinto por você.

Do meio pro fim

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Harari cita umas experiências que indicam que o nosso cérebro não consegue avaliar uma experiência na sua totalidade. O que ele faz, na verdade, é dar pouco peso ao começo e fazer uma média do meio pro final. Segundo ele, esta tendência explicaria porque, apesar de reconhecer que a dor do parto é uma das piores que tem, as mulheres continuam parindo; elas dão pouca importância à dor e se fixam na que é a emoção de segurar seu bebê, etc. Isto também mostra que a gente reclama e acha eleitoreiro, mas os políticos que decidem trabalhar em véspera de eleição sabem mesmo o que fazem. Quantos filmes que pareciam bons enquanto assistíamos foram arruinados pelo final, ou vice-versa? As pessoas se casam, tem filhos, constroem uma vida juntas e, quando termina, o outro vira um monstro que só lhe fez mal. A média final de um casamento, com o terrível processo de divórcio, é o oposto da contabilidade que uma mulher faz quando pari… Caso você tente dizer que “um dia deve ter sido bom, senão vocês não teriam ficado tanto tempo juntos”, a pessoa vai bater no peito e dizer: É sim, foi péssimo, desde sempre, eu sofri muito!

Ok, é a tendência natural do cérebro, entendi. Mas existe um caminho menos imediato, de não sujar a história toda por causa do final. Conheci uma moça dançando, antes dela entrar na faculdade. Era daquelas adolescentes que passavam o tempo todo se queixando que era encalhada e feia. Passou num curso disputado, conheceu um veterano, namoraram quase até se formarem. Acompanhei de Facebook: fotos sorridentes em passeios, com os amigos, com a família, tinha até charge dela vestida de noiva. Quando a reencontrei: “Nossa, você não sabe o que eu passei, me livrei, aquilo foi um atraso na minha vida, um castigo!”. Eu me pergunto do que ela se queixaria caso tivesse ficado completamente sozinha durante esse período… Vejo que quem não joga sobre a sua história toda mágoa do meio-final se sente mais feliz. O que seria isso, uma reprogramação cerebral?

José falava francês

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… e inglês também. Ele fazia engenharia na UFRJ, ótimo em cálculo, um grande futuro pela frente. Mas os comunas ingenuamente pensavam que podiam falar francês pelo telefone que a tigrada não ia rastrear. Um dia parou uma viatura em frente de casa, os policiais levaram José. Ele sabia francês e o Serviço Nacional de Informação precisava de gente que ouvisse telefonemas em francês. Ele tinha que ouvir, transcrever, dizer onde eram os encontros. Não era um convite. A qualquer hora do dia ou da noite eles apareciam e levavam José. Ele passou a ver olhares assustados, ouvia os gritos por detrás de portas entreabertas, corpos sendo carregados. Tinha uma sala que a pessoa dava um passo para entrar e já caía numa piscina imunda e se ficava horas no escuro, trancada, gelada. Todo dia alguém apanhava, quer precisasse ou não, porque eles precisavam, estavam viciados. José se sentia muito mal, não queria fazer parte daquilo e pediu para que o liberassem, jurou que não abriria a boca. Logo nos primeiros dias da nova liberdade estava com a sua noiva na rua, um carro surgiu do nada e foi com tudo pra cima dela. Ela não conseguiu se salvar. Isso sem falar no carro parado em frente de casa, gente seguindo a mãe, telefonemas sem ninguém na linha. José voltou.

Doçura

Tenho sentido uma falta imensa de doçura, imensa. Apelo para doçura nas maiores doses que posso e sinto que ela adere em mim com um hidratante numa pele muito ressecada, que afina pouco e pede mais e mais. Um lado sente que precisa salvar o mundo do desmoronamento, outro que suas liberdades correm o risco de serem podadas antes mesmo de criarem raízes, e os dois se sentem perdedores. E se armam. Na minha busca por doçura, tenho ouvido muita música portuguesa, de quem sempre ouvi que desprezamos as raízes mas de quem herdamos o coração bom. Ouço a música deles e acredito.

Tempestade

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Depois de um mês de estiagem choveu muito, choveu, finalmente parou e a previsão é recomeçar. Mas o dia passou seco, roupa secando no varal, a noite silenciosa, talvez até mais silenciosa do que o normal, e a previsão de chuva parecia ser mais um erro. Mas os sites não param de noticiar e o Milton posta sobre palco caindo e quer tranquilizar as pessoas. Ponho varal pra dentro e me encastelo toda. Desde que passei a morar em casa, a chuva deixou de ser um ruído na janela que ajudava a relaxar pra ser algo que me acorda de madrugada. A porta da frente, na posição original, deixava entrar muita água, apesar daquela borracha instalada embaixo, e depois de qualquer chuva era certo que a sala inundaria. Também tem a corrida na madrugada pra tirar as roupas da pequena cobertura lá atrás. A Dúnia que tem comportamento estranho em dia de chuva forte, ora deprimida e querendo entrar em casa, ora se colocando num cantinho praticamente descoberto e se molhando toda. Mas, principalmente, começo a pensar em notícias de casas destelhadas, árvores, lugares que inundam enquanto estou quentinha. Morar em casa realmente nos deixa mais próximos da terra, com todo simbolismo que isso tem. Já repararam no quanto as músicas antigamente falavam de fenômenos meteorológicos? Era sunny day, here comes the sun, crying in the rain, long and cold winter…