Saias e vestidos

Eu amo saias, amo vestidos. Eu me acho uma pessoa bem resolvida com a minha aparência e estilo em muitos aspectos, mas meu número de saias e vestidos sempre foi um problema. Quando vou fazer limpas no guarda-roupa, sempre tem saias e vestidos esquecidos, deixados de lado. Não os tenho demais, só que sempre tenho mais do que preciso. Não me sinto culpada com a compra ou a acumulação de saias e vestidos; devo ser uma das mulheres com o menor guarda-roupa que conheço, então ainda tenho crédito para alguns excessos. O problema é o que essa informação me revela. De algumas saias e vestidos eu me desfaço depois de ter usado muito pouco; se já estão tanto tempo parados é porque não usarei. Muitos simplesmente saem de moda. Ao me livrar deles, abro espaço para mais saias e vestidos, na esperança de agora usar… Sempre faço uma despedida antes de separá-los para a doação –  visto, vejo como é que eu fico, qual o caimento, o que mais combina. Lembro do que senti quando comprei cada saia e vestido, das ocasiões que idealizei que ficarei linda com eles. Constato, então, que não uso o que gostaria de usar e isso é uma certa derrota. Não sou, pelo menos nesse item, como eu gostaria. Não sei se deveria assumir que não sou e nunca serei uma mulher de saia e vestido, se desisto de vez. Serei eu e as roupas que gosto coisas separadas, inconciliáveis? O que sou no dia a dia é tênis e jeans, no máximo calça social. Minha rotina de ônibus e longas andanças combina com mochilas e  praticidade, com casacos que podem ser amarrados, calçados que não fazem bolhas. Eu me pergunto até que ponto tem que ser assim, se dava pra ter usado minhas saias e vestidos e o hábito não me deixou. Quando compro as saias e os vestidos é como se tivesse apostando numa das muitas mulheres que tenho em mim e que quer mais visibilidade. Quando me livro deles, é como se mais uma vez eu percebesse que essa mulher não encontrou lugar na minha rotina. Quem sabe durante toda vida eu tenha sonhado em ser uma mulher diferente e isso nunca – apenas isso, nunca.

Liberdade

Uma pequena introdução a uma história já muito pequena:

Minha madrasta tinha uns parentes de Ilhéus e não éramos muito chegados a eles. Talvez o único que meu pai gostasse fosse o pai do Juliano, um menino da minha idade que era filho único. Foi com eles (Juliano e o pai) que eu descobri o quão radicalmente diferente é ter irmãos – é uma educação meio na base da porrada, irmão não com o irmão a mesma condescendência de um adulto. Um dia estávamos nós três brincando de disputa de pênaltis, com o pai do Juliano de goleiro. Fiz chutes ótimos, fortes, no ângulo, de todas as maneiras que consegui e o pai do Juliano não deixou passar uma. Quando era a vez do filho, ele só faltava fugir da bola. Aí ele elogiava o garoto, dizendo que ele era ótimo, tinha chutado bem, nossa, que grande goleador, etc. Fiquei tão indignada que nunca me esqueci. 

Juliano, primeiro neto, primeiro sobrinho, filho único. Pais separados, o que contribuiu ainda mais para que sempre tivesse de tudo. Na vizinhança não era apenas o dono da bola como era também o dono do video game e do carrinho de controle remoto. Era também o mais bem vestido. Nunca houve brinquedo que ele não tivesse ganhado, mérito seu que não tivesse sido aplaudido, feito que não tivesse público. Quando passou no vestibular, no curso que sonhava, numa universidade boa, etc., seu pai lhe perguntou que presente ele queria ganhar. A resposta foi uma espécie de protesto:

– Eu quero a minha liberdade.

A réplica do pai foi ainda melhor:
– Liberdade a gente não ganha, se conquista.

Dos fracassos

Uma coisa que me impressiona na internet, até mesmo de amigos, é a certeza e a rigidez na hora de julgar certos comportamentos. Mesmo quando concordo com eles no quanto alguma coisa é condenável e errada, eu sempre me vejo mais disposta a relevar coisas, a colocar num contexto e até mesmo a perdoar mais. A mãe que deixa o filho de lado é insensível, sem caráter, péssima mãe; o adolescente que foi pego pela polícia é um criminoso, um bandido, merece morrer na cadeia, e por aí vai. Sim, eu sei que acabo sendo boazinha, ingênua, tendo a julgar os desconhecidos como se eles tivessem as minhas motivações. O mundo é um lugar cruel e as pessoas não têm escrúpulos e nem caráter, pelo jeito. Aí eu comecei a me perguntar do porquê eu acabo me vendo tão mais tolerante do que os outros.
Eu mudei mais do que a maioria das pessoas. Fui psicóloga, fui escultora, fui mestre… ou quem sabe devo dizer que sou todas essas coisas, e ainda por cima danço. Num sentido subjetivo, eu já vivi a experiência de ser um gênio da raça, aquela que tem tudo para dar certo, como também fui a zero a esquerda que ninguém sabe porque insiste. O motivo de eu ter sido tantas coisas é muito simples e está longe de ser um motivo de orgulho: eu fiz várias coisas porque fracassei muito. Se cada uma dessas coisas tivesse dado certo, se tivesse me rendido o dinheiro e o reconhecimento que eu esperava, eu estaria fazendo qualquer uma delas até hoje. Ninguém muda tanto se estiver sentado nos louros, se fizer uma falta imensa se for embora. Se por um lado ser Não Sei Porque Insiste era prova do meu fracasso iminente, por outro ser Gênia da Raça gerou tanta inveja e uma falta de colaboração que eu fracassei também. Com tudo nas mãos e com nada nas mãos, minha história tem me obrigado a buscar alternativas e até hoje vivo mais de esperança do que de frutos.
O que os meus fracassos me ensinaram é que os outros, a sorte, as circunstâncias, o contato, o apoio, enfim, o ser a pessoa certa na hora certa contam muito. O self-made-man é muito menos self do que pensa. A vontade e o trabalho sozinhos não são garantias de nada. Trabalhar com dedicação e vontade fazem sim com que você realize um bom trabalho – eu realizei bons trabalhos nas muitas coisas que fiz, pode perguntar para quem me conhece. Só que o bom trabalho também não é nada sozinho. Eu senti na pele a força das circunstâncias, o desespero de insistir e não conseguir, as dúvidas sobre si mesmo. Não me faltou vontade de vender a alma e sim alguém interessado em comprar. Nas minhas fantasias, eu já me corrompi, já traí, já dei as costas muitas vezes. A mim faltou chance, quem sabe até coragem – para os outros talvez não. A grande maioria dos incorruptíveis são, somente, pessoas desinteressantes que a vida não se deu ao trabalho de tentar. Canalhas, prostitutas, irresponsáveis… eu os tenho todos dentro de mim, conscientes demais pra que eu julgue os nos outros com muita severidade.

Velhos amigos

Eu falei tantas vezes que não gostava dos amigos do passado, dos fantasmas, de reencontrar quem um dia compartilhou do meu convívio tão somente porque frequentávamos o mesmo ambiente. Nunca vi graça nessas amizades antigas, de gente que me viu de mullets e pra quem eu nunca passarei de uma adolescente insegura. Eu não entendia qual a graça, já que nunca gostei de reviver o passado. Preferia mudar e mudar todo grupo de amigos fazia parte do pacote; acontecia naturalmente com as mudanças de ambiente e rotina. Era a ilusão de começar do zero em vários sentidos. Agora, me pego lembrando de algumas pessoas, de um passado já tão distante, e penso que elas – somente elas – entenderiam certas coisas que eu tenho vivido.

 

Meus velhos amigos, meus ex-amigos, seriam quase como quando a gente tem que fazer um cadastro e nos pedem pra indicar uns nomes de referência. Eles são referência. Tem coisas a nosso respeito que só o tempo e a vida mostram. Então eu não posso virar para os meus novos amigos e garantir que sou de confiança, que podem contar piadas sujas perto de mim que eu sei muitos outras mais ou que gosto muito mais de contato do que sou capaz de iniciar. Ou em problemas que tive recentemente, precisava (e não tive) de amigos antigos que garantissem que não sou de dar indiretas ou lessem as coisas no mesmo tom que eu as pronunciei. Eu sei que não sou perfeita – só que eu conheço mais ou menos pra que direção os meus defeitos caminham. Quando atribuem a mim defeitos muito distantes do que sou, constato que nada sabem a meu respeito. E suspiro, conformada. Quando os ventos gelados indicam que o inverno se aproxima, um amigo das antigas pode ser a lembrança permanente de quem eu sou, por mais que os anos seguintes tentem me desmentir e me enfraquecer.

 

Elogios e declarações de amor não tem nenhum valor se não forem espontâneos. Assim são as informações que só uma amizade antiga pode fazer a seu respeito. Alguém que já te conheça acaba servindo de ponte entre o que você aparenta e o que você é profundamente, entre a primeira impressão e a intimidade.

Declarações de amor

Quando apresentei meu então namorado pra minha mãe, ela disse: “ele mal abre a boca quando está com você, que fala pelos dois, mas ele parece estar satisfeito”. Somos, na maior parte do tempo, igualzinho o casal de UP. Eu falo do que me aconteceu, do que estou pensando, do que está passando na TV, no que estou planejando, e a cada dia essas frases se renovam, quase como um fluxo de pensamentos. E ele me ouve, com a paciência dos que falam menos e que não vivem no mundo das palavras. Falar não me basta, então eu escrevo. Tenho essa necessidade imperiosa de me expressar, que me atormenta por todos os lados, que não encontra poros o suficiente para sair. Com tantas palavras dentro de mim, inevitavelmente surgem algumas idéias muito boas. Seria impossível não surgir, é uma questão estatística.

Sou boa em declarações. Conquistava meus paqueras por e-mail, conquisto leitores por blog. Posso abraçar e beijar desastradamente um amigo, sem saber direto pra onde olhar ou onde pôr as mãos; mas me mande escrever algumas linhas sobre o que acho dele, que se ele realmente merecer, posso arrancar lágrimas. Sou boa em declarações e fiz muitas ao meu marido – que se emociona e me agradece. Durante muitos anos tentei arrancar declarações dele também. Já criei climas, forcei situações, olhei fundo nos olhos e nunca consegui. Pior: nas vezes em que ele se viu obrigado a me dizer alguma coisa, sob o risco de ver uma explosão de lágrimas ou fúria, ele me disse coisas tão canhestras que quase tive uma das reações, só que de frustração. Nunca duvidei de seu amor, tão imenso, só que custava ser capaz de transformar isso em uma frase ou metáfora decente? Sim, custa.

Agora sou obrigada a apelar para coisas muito maiores, e declarar que ele é engenheiro, daqueles que anda, se veste e vê o mundo sob o prisma de engenheiro. Que eu mudei tantas vezes de idéia quanto ele sempre foi o mesmo. Posso dizer também que o nosso amor é um amor taurino, pelo ascendente dele e pelos meus três planetas em touro. Alguns casais compartilham viagens de moto, profundezas obscuras de seus seres ou instantes tão intensos quanto fugazes. A história desse meu amor tem aliança, casa, cachorro e geladeira. Eu demorei a entender que as declarações de amor que ele me faz jamais virão em forma de palavras bonitas, e sim do seu apoio irrestrito a todos os meus projetos sem perspectivas, na disponibilidade do seu colo, na certeza da sua mão sempre que eu procurar alguém do meu lado. É um amor que não pode ser transformado em palavras porque é físico, é sólido, é constante.

Ninguém

A vida universitária não é nenhum bicho de sete cabeças, nenhum lugar onde se exija genialidade. Como a maioria das coisas, o mais difícil é passar nas seleções. Uma vez lá dentro, é possível ir levando, ir escorregando, fazer o básico. Claro que quando se está lá dentro, você sabe a diferença entre um profissional e um arrivista, um que trabalha de verdade e o que faz apenas para constar, o realmente talentoso e o na média. Mas quando sai o papel, o certificado, todos ficam iguais, todos se revestem da mesma aura. E a aura universitária, tanto dentro quanto fora, é extremamente poderosa. Então por mais que ser mestre ou doutor não seja um atestado de genialidade, por mais que eu tenha uma visão crítica sobre o assunto, abrir mão disso foi sim abrir mão de um sentimento de importância. Hoje vejo que fui de uma ingenuidade extrema: eu achei que poderia abandonar e voltar, que o simples conhecimento da minha capacidade garantiria a minha vaga. Como tudo o que garante status, na vida universitária é preciso estar dentro, ser político, contar com as boas relações. Eu não fiz nada disso e recebi de troco o que havia plantado – um pé na bunda.

 

Pior de tudo foi o que me levou a perder isso: a dança. De todas as coisas que já fiz na vida, a dança é sem dúvida a mais sem perspectiva. Não é que eu tenha largado a academia para ser bailarina, nada disso, não foi tão consciente. A dança me tirou da vida acadêmica na medida em que me tirou o tesão pela coisa, me fez mudar de foco; ela me mostrou que minha vida de até então era um equívoco. Digamos que eu me descobri, que eu saí do armário. Quem assumiu alguma coisa na vida sabe do que estou falando, do caminho sem volta que é se descobrir de verdade. Eu simplesmente não conseguia mais estar lá, não conseguia mais jogar o jogo. Foi com a dança que eu descobri que estava seguindo apenas a cabeça dos outros, que nunca fui realmente um deles. Ao mesmo tempo, ninguém começa a dançar balé com quase trinta com a ilusão de que se tornará uma bailarina profissional. Mesmo que tente, poucos anos de balé colocarão suas ilusões por terra. O corpo não é mais aquele e o tempo está contra nós. Surgirão meninas melhores, mais magras e mais expressivas o tempo todo, e o mundo pertencerá a elas. Começar tarde é desfavorável em quase todas as áreas; naquelas com exigências são físicas as coisas são ainda mais cruéis. O mundo não tem culpa que eu tenha descoberto muito tarde que tenho aptidão para tudo o que envolva consciência corporal, movimento, corpo. Posso e ganho em prazer, saúde, etc. – só não posso me iludir com a idéia de profissão e reconhecimento.

 

Ou seja, eu troquei a idéia de ser alguém – de ser “dotôra” – por ser ninguém. Na idade que os grandes mestres flamencos são veteranos, estou ainda aprendendo o nome dos ritmos, como é que se bate palmas, tentando fazer o meu calcanhar soar nos sapateados. Eu sei que, no fundo no fundo, ser doutora, ser grande bailaora flamenca, ou qualquer outro título, é sempre uma bobagem. Mas é uma bobagem que nos agasalha, que nos ajuda a falar com os outros, que nos consola nos momentos de solidão. Eu não tenho mais, eu não sei mais o que dizer para mim mesma e para os outros. Ao me dar conta de que nunca serei importante, eu pensei que morreria, que me desintegraria, que nada poderia vir disso. Eu não morri, eu ainda não morri. Mais: descobri o quanto é relaxante a consciência da pequeneza. Cada pessoa é muito pouco nessa vida, importante apenas para uma ou duas pessoas. Mas dizemos para nós mesmos que a terra não gira sem nossa ajuda. A vontade de ser importante é tão grande que vale até ser famoso no twitter. Eu sei de maneira muito profunda (e por vezes dolorosa) que não sou influente. Meu mestrado não vale nada, como bailaora eu não sou nada, meu blog não é famoso, nem na porra do twitter eu sou alguma coisa. Isso quer dizer que minhas ações não modificam o mundo de maneira definitiva, o que é UFA! Ao contrário dos que realmente decidem, eu não preciso ser coerente, eu não preciso ter uma foto séria, eu não preciso me preocupar com as minhas roupas, eu não preciso vigiar o que posto pra que meus chefes/subalternos/alunos/colegas não pensem mal de mim. Eu posso me preocupar apenas em ser eu. Isso ocupa mais tempo do que parece. Ser alguém alimenta o ego; não ser ninguém é pura liberdade.

Uma história real com cachorro e lição de moral

Quando nos mudamos pra cá, a idéia era não ter cachorro. Então, nesse pequeno espaço que temos em frente de casa, pretendíamos ter um lindo jardim, desses que as plantas crescem soltas sem muita intervenção dos (preguiçosos) donos. Sempre achei bambu muito bonito. Achamos que seria uma folhagem bonita para ter ao lado do muro. Quando fomos comprar, tivemos o que nos pareceu ser uma boa notícia: fomos informados que bambus cresciam como pragas, que poucas mudas encheriam o nosso muro e, se deixar, surgiriam bambus até do outro lado. Compramos algumas mudas com pouco mais de 10 cm e espalhamos por todo o muro.

Os meses se passavam e nada das mudas vingarem. Não entendemos o que estava acontecendo e acabamos esquecendo o assunto. Aí veio a Dúnia. Aquele filhote lindo acabou com os poucos móveis de madeira da parte debaixo da casa, com os rodapés, com as paredes, com os meus Snoopy de pelúcia e com qualquer coisa que cruzou com o seu caminho. Quando ela passou a ir para frente da casa, e mais tarde a viver lá, achamos que aquele seria o fim das nossas pequenas e frágeis mudas de bambu. Não deu outra: cada dia apareciam mais e mais folhas de bambu espalhadas pela garagem. Era uma verdadeira dieta de urso panda. Só que, para nossa surpresa, olha o que aconteceu:

Hoje tem tanto bambu que precisamos dar um jeito pra ele não ficar disparando o sistema de alarme. Não damos conta de limpar tanto bambu seco. E essa folhagem é a melhor amiga da Dúnia, o lugar onde ela gosta de se esconder e comer uma saladinha.

Moral da história: o que não mata, fortalece.

Eu sempre disse que a área do cérebro que leva as pessoas a serem fãs deve ser a mesma do sentimento materno, porque eu me sentia desprovida de ambos. Agora terei que parar de falar isso, porque nos últimos dias me descobri na maior tietagem. Já falei do Abolengo e que teria a oportunidade de ver o Farruquito. O que eu omiti é que veria o show daquele que considero o melhor lugar: das coxias. O espetáculo era quarta, seguido de um workshop de segunda e terça. Como ainda não sou uma blogueira famosa e remunerada, eu não tinha condições de fazer os dois. Então eu me inscrevi para o workshop e me ofereci como escrava branca para trabalhar junto da organização.

 

O workshop foi muito bacana, e lá eu já comecei a sentir os sintomas da tietagem. Quem já havia visto o Farruquito já havia me garantido que ele era apaixonante. Como o Farruquito não é o meu tipo – mais baixo do que eu, cabeludo, franzino -, não pensei que sentiria qualquer coisa. Mas senti. Ele é um charme e um amor de pessoa! Era ele chegar perto de mim que eu errava tu-do. Eu me increvi no curso de iniciante, porque sabia que não acompanharia o de inter/avançado. Foi na medida, finalmente saí de um workshop realmente entendendo os passos. E foi uma emoção sem tamanho ele dar uma palhinha para a TV e vê-lo convidar nossa querida Miriam a um dia fazer parte da futura companhia dele.
Foi nesse exato momento que eu vi que ele me olhou e comecei a errar.
(foto Letícia Volpi)

Foi no dia do show mesmo que eu me convenci que fui fisgada pela magia de ser fã. Enquanto o Farruquito é o carisma em pessoa, Karime Amaya é muito tímida e fechada, de alguns pontos de vista antipática. Então eu nem me aproximava, apesar de terem previamente combinado que eu cuidaria dela no camarim. E quem é que explica que eu me senti paga por um dia inteiro de correria quando ela pediu minha ajuda para passar para o fundo do palco porque não enxergava nada e a conduzi lentamente pelo braço? Só um fã sabe do que estou falando. Ou de ter aceitado ajudar o produtor – que depois que me fez tirar correndo cópias em A5 com ele não parou mais de me pedir coisas – a fazer a mala do Farruquito? Fã, fã, fã. E a surpresa de estar esperando Karime dançar  La niña de fuego e ouvir uma cantada do guitarrista? Coisas bobas que em outras circunstâncias e com outras pessoas não seriam nada, ou até seriam ruins, fizeram o meu dia. Voltei pra casa eufórica e assim estou até agora. Não é sempre que se chega perto de Deuses Flamencos. Lembrarei dos últimos três dias pelo resto da minha vida.

Eu e o ídolo. Tirei tantas fotos com o Farruquito que ele só não se recusou porque é muito boa gente =)
(Foto Letícia Volpi)

Primeirona

Eu tinha uma amiga que contava que tinha um organismo muito sensível, que ela absorvia e manifestava as coisas que estavam no ambiente com mais antecedência que as pessoas. Ela me contou que todos no trabalho comiam no mesmo bandejão, e um dia ela passou mal poucas horas depois de sair de lá. Era uma intoxicação alimentar grave, que só se manifestou no resto da repartição dois dias depois. Eu sempre achei essa história de sensibilidade extrema dela meio exagerada, mas começo a pensar que sou um pouco assim. E não com coisas que eu como, e sim em coisas que me acontecem. 
Aprendi a esperar que o rio traga os cadáveres, tal como a Fal disse. Geralmente acontece assim: eu pertenço a um grupo. Aí uma das pessoas desse grupo me apronta uma grande, uma enorme sacanagem. Deve ser algo na minha personalidade – sou brincalhona, calminha, as pessoas costumam me achar gente boa. Ou seja, devo ter um Tonta escrito na testa. Seja lá como for, as pessoas mais inesperadas já me disseram absurdos, mostraram um lado ruim que é até difícil de entender. Como explicar uma pessoa que é legal e atenciosa com todo mundo resolver ser sacana e filha da puta de repente, e só com você? Quase inverossímil. Por ter consciência de que é difícil de explicar, eu sempre optei por me retirar da história sem falar nada; quem quiser que acredite, e minha experiência diz que as pessoas nunca acreditam. Tenho fama de pessoa difícil e não me dou ao trabalho de desmentir. Mas o rio sempre traz o cadáver, a tal pessoa acaba fazendo a mesma coisa com os outros. Sem que eu precise me explicar, sem que eu precise trazer ninguém para o meu lado, com o tempo, as informações chegam até mim e os fatos mostram que tenho razão. Eu fui apenas a primeira. Eu sou como aquela amiga, de organismo sensível.

Baratas

A existência das baratas prova que Deus não existe. Ou, se existe, Ele não descansou no sétimo dia e sim resolveu sacanear a humanidade, criando um bicho muito melhor do que ela em vários sentidos: é compacta, rápida, voa e sobreviverá à hecatombe nuclear (Deus sabe de tudo, então a hecatombe nuclear está no embrião da maçã que Adão comeu). Uma das maiores qualidades da cidade de Curitiba é o seu baixo número de baratas. Sabemos que elas existem, mas o cidadão médio e limpinho não tem muito contato com elas. Elas não estão lá, em qualquer passeio numa rua escura, se esgueirando pelas frestas de casa, subindo pelas paredes da pizzaria. Digo tudo isso porque meus anos em Salvador me fizeram conviver com esse bicho muito mais do que gostaria, e tenho muitas lembranças.

 

Eu lembro que baratas são persistentes. Uma noite nós achamos uma numa mala vazia e fechamos o zíper. Foi um inferno, porque ela passou a noite inteira rodando e se debatendo dentro da mala. Aí a gente não sabia se abria a mala de uma vez ou se a deixava lá. Acho que acabamos deixando, só pelo medo de abrir o zíper e ela vir direto pra cima do nosso braço. O banheiro da casa do meu pai tinha perigosas frestas, que tornavam o ato de tomar banho e sentar na privada momentos tensos para mim. Na frente da privada ficava o canto da pia, com um armário que não chegava a encostar na parede. Na parede branca, havia dois riscos que sempre me davam a impressão de serem antenas de baratas. Eu me sentava observando aqueles riscos. Bem num dia que estava sentada olhando os riscos e fazendo o número dois, eles começaram a ficar maiores e se mexerem… Mas nada se compara ao problema do boxe: o chão do boxe era um pouco mais baixo do que o resto do banheiro, e com uma fresta pequena no canto. Eu tinha idéia de que daquela fresta a qualquer momento poderia surgir uma barata. Um dia eu estava no banho e aconteceu. Saí correndo pelada e quando abri a porta do boxe a barata saiu correndo também e passou pelo meu pé. Essa é uma das características mais odiosa das baratas: elas partem pra cima da gente.

 

Pra falar a verdade, eu é que sofria porque era de fora. Era tanta barata que não dava pra viver se assustando, então os nativos se acostumam. Todo utensílio doméstico precisava ser relavado antes de usar. As escovas de dente precisavam ficar dentro de potinhos porque baratas adoram saliva. Aquelas armadilhas de barata da Baygon devem se esgotar em poucos dias, por puro excesso de clientela. Aí o meu pai resolveu comprar uma armadilha engenhosa e totalmente ecológica, esta:

 

É simples. A armadilha é desmontável e formada por três partes: piso, segundo andar e o topo transparente. Você coloca a isca no meio e as baratas entraram na armadilha. Só que a portinha só permite entrar. Sem ter para onde ir, elas subirão, e a parte de cima da armadilha é de acrílico, como uma grande lente. Basta pegar a armadilha e colocar no sol, que as baratas morrerão queimadas.
Agora, imagine comigo: você conseguiria pegar uma armadilha cheia de baratas vivas pra colocar no sol e depois conseguiria arrancar as baratas torradas pra reaproveitar a armadilha? Ninguém foi capaz, de modo que elas continuaram muito nojentas e felizes pela casa.

Biografia

Eu praticamente parei tudo o que estava fazendo pra devorar a biografia do Paulo Coelho. Mesmo quando o li na adolescência e era mística, a postura do Mago sempre me pareceu esquisita. Eu não achava adequada a maneira como ele se exibia com a espada e aparecia no Fantástico. Por esse tipo de atitude, nunca consegui levá-lo a sério como um mestre. Se eu já era assim com ele antes, imagine se agora procuraria na biografia dele algum insight. E não é que tive?

Desde pequeno, desde sempre, Paulo Coelho quis ser escritor. Mesmo quando ia muito mal na escola, quando passou muito tempo envolvido com teatro, música, viagens, sexo e drogas, ele nunca se esquecia do seu sonho de ser escritor. Só que – a impressão que me deu – ele era inquieto demais, tinha paixões demais. Escrever requer silêncio e exclusividade e ele não conseguia fazer isso. Então ele vivia se propondo a se isolar e escrever e isso não acontecia. Foi assim quando ele foi para a Inglaterra com a mulher. Naqueles meses, ele viu diversas exposições, filmes que a censura não deixava passar no Brasil, fez curso de fotografia, viveu um casamento à quatro, passeou… ou seja, mais uma vez ele viveu intensamente e não escreveu uma linha do tão sonhado livro. Quando finalmente tinha que voltar para o Brasil, ciente do fracasso do projeto, ele escreveu no diário mais ou menos assim:

Estou com 35 anos e acabou aqui a minha chance de me tornar um escritor.

Estou com 35 anos e me parece que a minha vida é um fracasso e não me oferecerá mais nada. Ele estava há apenas 6 anos de escrever O diário de um mago.

Impensável

O ruim de mudar muito é que chega uma hora que a gente começa a duvidar de si mesmo. Começa a achar que não está buscando um lugar melhor, e sim que é incapaz de ficar quieto, que não sabe o que quer. Lembro que fui muito acusada disso – você não sabe o que quer. Olhando para trás, eu vejo que realmente não sabia o que queria, só que não da maneira como julgavam. Eu não sabia o que queria quando fiz aquela faculdade inteirinha, concorrida e cheia de status. Não sabia o que queria quando fui fazer pós e tentei virar professora. Meu guarda-roupa sempre soube: eu tentava me tornar uma pessoa séria, comprava umas calças sociais, umas camisas sem graça e pastinha e achava que em breve seria uma mulher de salto atrás de uma mesa, ou de um divã, ou numa sala de aula. Meses depois a roupa ia pro sacolão da doação, porque eu simplesmente não conseguia vestir aquilo. Nunca conseguirei vestir o papel de pessoa séria e exemplar.
Por incrível que pareça, eu sabia o que queria quando era criança. Eu insistia para fazer aula de natação, adorava praia, adorava mar, adorava me manter em movimento. A escola de natação ficava poucas quadras do colégio, e minha mãe sempre se recusou a me matricular – não sei dizer o motivo. Ainda hoje, qualquer rua mais movimentada é pretexto pra eu sair correndo, porque adoro sair correndo. Quando preciso pensar, ou sempre que posso escolher, faço os meus percursos a pé. Só que eu cresci numa família que despreza profundamente todas as carreiras que têm haver com o físico, de dançar a ser atleta, e numa escala ainda mais baixa, ser professor de educação física. Então jamais pensei, jamais cogitei, não cheguei nem a pensar na possibilidade. A família nos determina, como diria Bourdieu, na medida que ela determina o que é impensável. E o impensável deles deixava de fora o que combina comigo. De maneira oposta mas com o mesmo resultado, escrever era impensável pra mim. Desta vez não por desprezo, e sim por ser grandioso demais.
Se tivesse nascido numa família com aptidões parecidas com as minhas, quem sabe… Hoje eu vejo que se por fora eu mudei muito, por dentro segui uma trajetória retilínea. Eu sempre fui a mesma, meus gostos e necessidades não mudaram. O que eu estava buscando era uma maneira de ser coerente. Eu queria ser o que sou, eu queria chegar ao que combina comigo. O resto sempre foi barulho.

Apesar de você

Eu tinha uma amiga que tirava tantas fotos de si mesma que era até cansativo. Eu sou muito chata com as minhas fotos, odeio quase todas. Então quando tirávamos fotos juntas e ela dizia “vamos tirar outra” porque nenhuma das duas achou que tinha saído bem, a sugestão era bem vinda. Mas quantas vezes uma pessoa comum aguenta repetir a pose, o sorriso de foto? Eu largava na terceira tentativa. Aí eu aproveitava pra comprar alguma coisa, ir no banheiro, ler um edital, enquanto ela continuava com suas milhares de tentativas até sair algo perfeito. Obviamente o perfil dela era cheio de fotos, todas descoladas e que passavam aquela mensagem – olha como eu vou nos melhores lugares, me visto bem, sou linda e popular. De todas as fotos que ela tinha, eu gostava de apenas uma, que tinha sido tirada por um amigo, de surpresa. Mais tarde ela até tirou do álbum. Naquela foto, ela estava com os braços apoiados na mesa, a cabeça abaixada e rindo. A foto passava uma sensação muito boa, dava vontade de rir também. Ela estava descabelada, com uma roupa de ficar em casa e tal, mas ali ela estava linda. Naquela foto eu via a amiga de quem eu gostava, a que ela nem sabia quem é, a que estava por dentro da super-descolada que ela tenta ser.

Tenho até uma certa dificuldade em explicar. Eu vejo que algumas pessoas compram uma idéia de que elas são um tipo de pessoa, e que essa é a sua marca registrada. Como essa amiga, que se achava descolada. Outras pessoas gostam da idéia de que são boazinhas, ou muito sinceras, ou a encarnação da moralidade, ou divertidas, etc. Só que elas não são. Ou até são mas não naquela intensidade, não de modo caricato, não o tempo todo. Mas elas forçam essa imagem, achando que é isso que as define. E não é. Na verdade, a gente gosta da pessoa apesar da imagem, da pessoa que ela é atrás da imagem, da que aparece quando ela está distraída. Era essa pessoa que aquela foto mostrava. Só que não dá pra dizer isso para a criatura, porque sem aquele papel ela pensaria que não é ninguém. Se ela soubesse que a tal imagem é justamente seu problema… O que quer dizer que se um dia ela conseguir ser cem por cento aquilo que ela sonha que é, o que havia de melhor ficou para trás.