As ilusões armadas

elio gaspari

Eu nunca fui do time que achou que não existiu ditadura, eu fui criada numa casa onde se ouvia Chico Buarque e se explicava que eram músicas de uma época que não se podia falar abertamente, que notícias eram substituídas por receitas de bolo, que pessoas sumiam e reapareciam “suicidadas”. Por isso, nunca senti necessidade de ler sobre a ditadura. Mas estou sempre lendo alguma coisa, e passo por períodos maníacos que leio, vejo e pesquiso tudo possível sobre o mesmo assunto. Meus interesses me levaram sem querer à década de 50, e me vi fã de toda aquela época. O Brasil bombava como destino turístico chique, bombava com bossa nova, mandava Carmen Miranda pra fora, descobria o samba da melhor qualidade dentro, construía Brasília, recebia grandes pesquisadores. Era tudo tão legal que eu quis saber porquê deixou de ser tão legal, o contraste entre aquele Brasil de 50 e o Brasil que eu nasci que sempre se odiou era muito grande. Fui pela lógica: se era assim em 50, a resposta está em 60. Foi aí que eu caí no período militar. Escrevi no FB: amigos, o que devo ler para entender o golpe de 64? Foi assim que cheguei ao As Ilusões Armadas, a série de 5 livros de Élio Gáspari. Achei os 4 primeiros na Biblioteca e o último volume teve que esperar pela compra do Kindle.

Os livros são interessantes, bem escritos, consistentes; a série é um clássico, basta ver as críticas. Durante a leitura me aconteceu algo que jamais havia me acontecido na vida: eu passei a ter pesadelos, como se eu visitasse os locais. Lembro do pior deles, logo depois de ter lido sobre o Araguaia. Havia uma pessoa que iam matar, mas saiu uma ordem que cancelava. Acho que ele era enfermeiro. Lembrem-se que na época não existia celular, se a pessoa não estava do lado de um telefone, não tinha como avisar. Era uma questão de tempo – haviam saído atrás dele, outro saiu para tentar avisar que não era mais pra matar. Nos pesadelos, eu sempre chegava no local e não havia ninguém lá, a violência já havia acontecido e as pessoas foram embora. Mas o chão estava cheio de sangue. Poça no lugar onde a pessoa morreu, marcas do corpo que foi arrastado. A dor, os gritos, a violência. As paredes se lembravam e eu sentia tudo mesmo sem ver.

Nunca quis ser “especialista” em ditadura, li o livro pra mim, gosto da dura verdade. Existem muitos motivos que levam as pessoas a negar que tenha havido ditadura, ou que foi um preço necessário, ou que não foi tão violenta assim, ou que só foi violenta com uns poucos ou que mereciam. Acho que o que há de pior ao estudar este período é olhar o mal tal como ele é – o mal não precisa de Diabo, ele é humano e pode foi institucionalizado com cartilhas, especialistas e contracheques.

 

O marido envergonhado

vergonha

Não sei se golpe é a melhor palavra para definir quando alguém conta uma história triste e falsa para fazer com que um desconhecido se disponha a lhe dar um pouco de dinheiro. Uma vez uma mulher me veio com uma história dessas, de uma passagem de ônibus, e me apontou para o marido e o filho envergonhados dela ter que pedir. Não dei dinheiro apenas porque não tinha nada, de verdade, estava perto de casa, mas minha reação foi bem diferente quando ela me abordou poucos dias depois. Talvez ela não fosse profissional o suficiente, porque deveria ter me reconhecido ou mudado de bairro. Mas, talvez ela fosse muito mais esperta do que eu ao perceber que o que dava veracidade à história não era nada do que ela dizia, e sim o marido. Lembro que ele desviou o olhar quando ela apontou pra ele, e me pareceu que ele estava realmente envergonhado de ter que deixar a esposa pedir dinheiro na rua. Foi ele quem me sensibilizou.

os que acreditam no cinismo e na maldade de todos os que não são “de bem”, mas eu acredito que ele podia estar sinceramente envergonhado, mesmo dando um golpe. Acredito na contradição humana. Acredito na ocasião que medimos entre o ruim e o pior, e mesmo a escolha pelo ruim sendo racionalmente justificável, não nos sentimos bem. Ouvi um motorista de ônibus reclamar de um sujeito que estava pedindo dinheiro; ele disse que quando a pessoa começava nessa vida, nunca mais arranjava um trabalho de verdade. As opções parecem ser: trabalho duro e honrado que paga pouco ou mendicância que exige menos e que paga mais. Mas há a humilhação, a vergonha. As caras viradas, as pessoas que fecham o vidro do carro, a sucessão de nãos. Os que dão com tanto nojo que deve dar vontade de enfiar a moeda na fuça. Eu nunca pedi esmola e já sei de tudo isso. Eu me pergunto o que a pessoa diz sobre sua profissão no primeiro encontro, como se defende do cunhado mala no churras da família. Ninguém escolhe entre salário de médico e esmola, assim como ninguém leva vida de classe média com esmola. Na minha opinião, o salário do duro e honrado anda baixo demais pra tanta cobrança ética.

Eu acredito no marido envergonhado. Não precisa aplicar golpes em estranhos pra ser marido envergonhado. Às vezes fazemos escolhas que são apostas no futuro. Às vezes ainda não chegou ou não estamos preparados pra dizer. Fora o pessoal do “cada enxadada uma minhoca”, quem nunca? O marido envergonhado me faz pensar naquelas definições de felicidade, das que se tornam cada vez mais impossíveis à medida que se vive: não ter vergonha de nada do que você é ou faz.

Curtas muito adultos

muito adulto

Não ir ao médico é muito adulto. Quando eu ainda estava na curva ascendente da vida, achava um absurdo a pessoa perceber que tem algo errado com o seu corpo e não correr pro médico. Depois, alguma coisa passa a estar sempre errada com o nosso corpo. E sabemos que o médico nunca nos dirá nada agradável.  Eu e minha lombar, por exemplo, ele não vai me dizer que ela dói porque está bem encaixada e eu faço tudo certo.

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Eu saí do armário com essa história de fazer vídeo e tenho visto outras pessoas saindo também. Pessoas que tem algo a dizer sobre seus livros, sua carreira acadêmica, o que estuda. Que não sabem mexer direito em câmera, têm cacoetes estranhos, rugas, erram palavras. Que tem consciência de que daria pra fazer uma lista imensa de pessoas mais habilitadas do que elas pra falar do assunto em questão. Mas é o que tem, somos o que tem.

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Numa das primeiras vezes que eu dancei em tablado, foi justamente com a minha ex-professora. Fiquei surtada durante uma semana inteira. Minha fantasia era que, se um dia ela voltasse a me ver, eu estaria super poderosa, com todas as falhas técnicas que ela via na época que me conhecia sanadas, enfim, queria provar que ela estava cem por cento errada em não me achar um fenômeno.

Lembrei dessa história porque tive algumas idas e vindas na minha vida e em nenhuma foi como eu fantasiei. Não sei se é porque não alcancei nenhuma das minhas metas ou se é porque somos pra sempre aquela mesma pessoa meio desajeitada de sempre e o tempo só nos acrescenta quilos.

Música italiana

Não sei, simplesmente acho que música italiana era moda quando eu era pequena. Cresci, e como acontece com todas as modas, comecei a achar brega. Aí o youtube, que vive me oferecendo coisas, colocou esta quando eu estava com a mão ocupada demais – na verdade, o corpo inteiro ocupado em tomar banho – e não pude fugir. Quando vi, estava cantando “Io che amo, solo teeeeeee!”. Tem o Chico, que é mais ou menos como colocar cobertura de chocolate num doce. Só que quando pude ver o clipe de verdade – saí do banho e pus de novo – vi a moça nessa atitude inspirada e voltei a achar brega. Outra lembrança infantil: as pessoas só cantam música apaixonadas com as pessoas apaixonadas? Por que elas são obrigadas a fingir que está rolando um clima? Perdoo porque é o Chico, e ele falando que ama solo te olhando pra te deve dar uns comichões mesmo.

 

Vendas de humanas

calculadora

– E temos estes lençóis aqui, em promoção.

Olho para a pequena tabela em cima dos lençóis. Nela mostra que o preço antigo era R$ 169,00 e estava custando R$ 139,00. Ficamos naquela de “olha esse”, “tem esse outro”. Duas estampas bem diferentes tocam meu coração.

-Mas, não estou conseguindo pensar direito… de quanto é essa promoção?

-Está R$ 139,00.

-Digo, a porcentagem…

-Então, era R$ 169,00.

-…quanto isso é de desconto.

-Trinta reais.

– De desconto?

-Trinta reais a menos. Era 169,00.

Ficamos alguns segundos nos olhando em silêncio, numa guerra de quem tinha mais grilos na cabeça e bolas de feno enquanto fingíamos ser capazes de calcular de cabeça. Eu cheguei até o “multiplicar os 30 por 100 e depois dividir por 169″, mas eu vi que ela nem isso. Por algum motivo, adoro essas porcentagens nos descontos; se for dez, nem acho que realmente descontaram, e quando é 50%, mesmo que seja de R$ 5,00, acho que estou fazendo um baita negócio. Ela começou a olhar para o vazio, ao invés de tentar loucamente obter a informação, que era o que eu gostaria que ela tivesse feito. Quem mandou ser uma pessoa de humanas que não consegue saber se 30 a menos é barato o suficiente ou não.

(É quase 20%. Também sou contra darem desconto quebrado.)

Pequenos ódios

dogbert karma

Sacos de lixo também precisam ser de qualidade. Já apareceu meu lixo todo esparramado na frente da casa, eu desconfiei que foi alguma forma de protesto de vizinhos, e no fim era apenas saco vagabundo que arrebentava embaixo. Investi em sacos melhores. Mas olha o problema: o caminhão passa sempre na mesma direção, claro. Ele pega o lixo da casa da esquerda, da minha, corre pro caminhão. Com mais frequência do que eu gostaria, o saco da minha vizinha arrebenta e cai lixo dela na frente da minha casa. Dias desses catei, cheia de ódio, um vidrinho minúsculo. Além de tudo não separa o lixo. Pensei em falar com ela, mas é justamente a vizinha maluca. Depois pensei em apenas jogar o lixo na frente da casa dela, o que ainda cogito fazer, aí lembrei de um dia que estava chegando em casa e ela me perguntou se eu vi quem ficou de madrugada perto da lixeira dela, porque a câmera não pega muito bem aquele pedaço. Ou seja, louca do jeito que é deve olhar todo fim de semana o que acontece na frente da casa dela. E até o cachorro dela é louco, é do tipo que passa alguém na frente e ele passa mais de minutos latindo. No fim, recolhi o vidrinho. Sabe o Dogbert, do Dilbert? Tem uma historinha que ele vai se tornando chefe apenas por mandar as pessoas saírem dos seus lugares e ninguém o enfrenta. Funciona mesmo.

Aceitação 100%

Eu sou uma grande fã do Ru Paul´s Drag Race. Eu lembro quando um amigo com quem não falo muito me mandou uma mensagem privada dizendo que eu precisava ver, que eu adoraria. A princípio, um reality de drags não me disse nada. Mas, como meu amigo mesmo disse: conhecer aquele universo nos faz vê-las de outra forma, o tremendo talento, empenho, paixão e autoconhecimento que há por detrás. Outra coisa que eu amo é saber que nenhum participante realmente perde – só de colocar os pés no programa, aquilo já gera mais cachê, fama, fãs clubes.

MAS não consigo transmitir a minha paixão do reality para os outros, mesmo entre amigos que não têm nada contra gays. Eu sei que se dessem uma chance, se assistissem um único episódio, entenderiam minha admiração pelo trabalho. E se vissem um pouco mais, veriam quando elas contam suas histórias e suas dores. Inevitavelmente, o público do Ru Paul´s é levado a pensar: você pode não entender, pode não desejar isso para si e para os seus filhos, mas tem que reconhecer que são pessoas que encontram nessa atividade um equilíbrio e um acolhimento que não conseguiriam de outra forma. Não é preciso querer o mesmo, basta respeitar.

Nesse sentido, talvez o Queer Eye consiga atingir muito mais o coração resistente à causa LGBT, até porque os gays são agentes de mudança e não a história central. Ao contrário de realitys de moda que primeiro destroem a pessoa ao criticar tudo o que ela vestia para depois reconstruir, os Cinco Fabulosos partem de amor e aceitação logo de início. E não sei como a produção do programa acerta tanto na seleção das pessoas, porque terminamos amando todo mundo. Não é apenas moda: tem a redecoração da casa toda, a alimentação, o coach para a área da vida que precisa de uma força, a mobilização da família e amigos. O objetivo é ser agente de mudança para a vida inteira.

Na nova temporada (ainda não terminei), dois momentos me chamaram atenção, pela extrema sensibilidade: uma mulher, cuja queixa era não se sentir bem com sua feminilidade. O marido dizia que era linda, o irmão que morreu. Aí a colocam num com outras mulheres, para cada uma falar dos seus desafios. “Você tem ouvido a vida inteira os homens falarem da sua aparência, acho que você precisa ouvir mulheres”. Noutro caso, dentre o desleixo, pobreza e tristeza, o participante não era fã de tomar banho todos os dias. Quando vão comprar roupas e o assunto vem à tona, o sujeito se esconde. Não foi bronca, foi conselho: “Roupas de algodão absorvem o suor e ficam pesadas, prefira estes tecidos”. No fim, ele disse que há anos tentavam ajudá-lo com “bons conselhos”, o que só o deixava mais resistente. “Vocês realmente me aceitaram”.

É muito bonito, é muito amor. Impossível não se apaixonar pelos cinco.

 

Curtas sobre ser quem é

well

Há um ano, eu publiquei um ou dois textos falando sobre a Marielle. Ela me impressionou muito e, como quase todo mundo, eu só fiquei sabendo da sua história quando terminou. Ainda hoje me espanta como ela me parece tão grande, enquanto para outros era “aquela lésbica” ou “só mais uma pessoa”. O ano após a morte dela foi tão longo, parece muito mais do que um ano, e tão pior. O que dizer quando uma sociedade mata ou deixa morrer os seus melhores?

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Eu tenho um problema específico com o elogio “esforçada”, talvez por ter ouvido muito. Quem sabe numa outra sociedade, como a japonesa, em que o empenho e a disciplina ocupam um papel diferente, seja realmente um elogio. Eu acho que, aqui, ser chamado de esforçado é meio como ganhar o Miss Simpatia: todo mundo sabe que a Miss Simpatia nunca é a vencedora do concurso. O esforçado nunca é o talentoso, o best, o preferido, o melhor. Esforçado é aquele cujo único mérito é fazer tudo certo, mas sem alcançar um resultado digno de nota.

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Nunca fui da turma cuja sorte bate à porta, talvez por isso minha única opção seja mesmo o esforço. O que a vida tem feito comigo é – pela total falta de candidatos e alternativas – me transformar na pessoa que eu gostaria de ter ao meu lado. Baratas, filtro d´água, manter as contas em dia, fazer manutenção de bicicleta, descobrir músicas novas, apagar todas as luzes, saber o que me cai bem, criticar e corrigir o que eu mesma escrevo. Mais recentemente, gravar vídeo com recomendação de coisas bacanas pra ver ou ler.  (Tá na minha página no FB, às quintas)

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Uma coisa ótima que ouvi sobre auto-estima. Falava de um aspecto específico no mapa astral, mas acho que serve pra todo mundo: “saiba que você tem esta voz dentro de você que sempre vai te colocar pra baixo. Pra sempre você vai ter a sensação de que não vai dar certo, não vale a pena, você não consegue. Se for esperar o dia que você se sentir preparado e confiante, você nunca fará nada na sua vida. Você deve viver e seguir em frente apesar dela.”

Ô, merda, eu sou mesmo muito esforçada.

Jeans e oráculos

Eu adoro comprar roupa online, especialmente da China. Antes (dólar baixo) era uma pechincha, saia quatro vezes mais barato do que ir numa loja. Depois de ser tão vantajoso e passei a comprar menos, mas continuei gostando. A ironia é que comprar em site é se basear em medidas e com base na foto tentar adivinhar como você ficaria. Justo eu, que quando preciso comprar um jeans sou capaz de experimentar vinte antes de me decidir por um – ou nenhum. Aí eu me dei conta de que talvez seja justamente por isso, porque no site eu me desobrigo e pessoalmente eu não posso não experimentar. Se eu não experimentar tudo, vou me condenar pelo resto do tempo, imaginando que um jeans muito mais perfeito estava à minha espera.

Bauman fala disso, outros autores falam disso, do quanto o excesso de escolhas acaba se tornando fonte de ansiedade. Aí estava pensando num meio atendimento que acabei fazendo com um amigo. Numa fase da vida dele, ele viajou para o exterior e que poderia ter acontecido algo extraordinário nesta viagem, que a vida dele poderia ter dado uma guinada. Eu fui determinista, disse que pelo mapa dele a viagem deu o que tinha que dar, que aquilo era um começo e não uma guinada. Lembro agora de um outro amigo que via cartas, e ele me disse que nove entre dez pessoas queriam saber de amor, os outros poucos tinham um problema específico de saúde ou queriam um emprego. Eu lhe perguntei se já apareceu gente que não iam arranjar um amor e ele disse que sim, e que falou para elas. Então, concluí que o que as pessoas iam lá ouvir que iam sim arranjar um amor, que apesar das aparências e da ansiedade havia alguém, era apenas uma questão de tempo.

Ninguém aqui nasce numa família de nobres ou servos e que lhe diz desde criança que você será nobre ou servo. Por mais que a mobilidade social não seja tão livre quanto se prega, crescemos com uma ideia de é tudo escolha nossa. Tudo o que eu sou e penso é fabricado a cada minuto e em cada gesto. Como se a vida hoje fosse um excesso de opções confuso e sempre escolhemos errado em algum lugar. Sempre, eternamente, nunca enxergamos o suficiente, nunca experimentamos o suficiente, era justamente o último jeans da loja que tinha o melhor caimento e mudaria nossas vidas. Procurar oráculos, mapas astrais, cartas, previsões é, no fundo, uma visão determinista. E o que ela nos diz é: você fez o seu melhor e o que tinha de fazer. Aguarde e confie.

Tenho respaldo da sociologia ao dizer: você não escolhe tanto assim.

Paul diz: Let it be. Confiem nele.

Trazer alegria

marie kondo

Começou uma onda Marie Kondo quando apareceram os episódios na Netflix e, como sempre parece acontecer na internet, depois das reações iniciais boa, a moda virou e o bacana é detestar a Marie Kondo. Mas mesmo entre aqueles que disseram que não têm paciência com o jeitinho dela, acabam repetindo um conceito fundamental do seu método: trazer alegria. Além de ver os episódios, li o livro, e achei que ele realmente dá dicas valiosas. Percebi que eu me desfaço com facilidade de roupas, mas me dói muito lembranças e presentes. Coisas que nem ao menos gostei quando ganhei, atulham minha vida, e não acho correto me livrar. Ela dá alguns conselhos práticos a respeito e recomendo a leitura – só procurar pelo nome dela no LeLivros, caso você queira baixar.

Conversando com amigas sobre a Marie Kondo interior, eu percebi que consigo me desfazer com facilidade porque minha mãe me fez associar esse descarte com alegria. Limpávamos meus brinquedos periodicamente, e ela sempre destacou que aquele brinquedo que eu nem lembrava mais que eu tinha faria uma outra criança desconhecida feliz. Sempre acabo imaginando que, em algum lugar da cidade, tem uma pessoa com a roupa que não me caía bem ou o bibelô que eu não gostei, e feliz da vida.

Curtas sobre fragilidade

É sempre a mesma coisa: eu nado há anos e nado bem. Aí aparece um homem na turma, que nada mas não está acostumado com o ritmo puxado da aula. Começa uma série, digamos que dez tiros de cem metros. Além de conhecer o meu ritmo, as séries de resistência são as minhas preferidas, o meu desempenho vai melhorando com o esforço. No primeiro tiro, eu nado mais rápido do que o tal aluno novo. Do segundo em diante, o sujeito faz de tudo pra ganhar de mim. Eu chego na raia tranquila e ele está com os pulmões pra fora. Até que ele não consegue manter mais e nos últimos tiros está quase uma piscina inteira atrás de mim. Por que tudo isso? Porque eu sou apenas uma mulher, eles precisam ganhar de mim.

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Aplicativo de karaokê: quase todas as letras de música são cantadas numa primeira pessoa do sexo masculino. Eu canto a letra tal como ela é, todas as mulheres que eu ouvi cantando fazem a mesma coisa. Só que de vez em quando, muito raramente, aparece uma letra com uma primeira pessoa no feminino. Dá pra perceber: o sujeito vai cantando normalmente, aí chega na parte feminina – “estou apaixonadA”, “estou sentidA” ou “você é meu queridO” – , e o sujeito tem um mini ataque de pânico. A palavra sai atrasada, num tom diferente – e no masculino. Vai que uma pessoa o ouve interpretar uma música num aplicativo, de nickname irreconhecível, e conclui que se ele canta música de mulher no feminino é porque gostaria de ser uma? Sempre lembro deste vídeo:

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Já comentei o caso aqui. Eu ia na loja quando era casada e o dono ficava conversando com o ex. Fui na loja recém-separada e o dono passou a me virar a cara. Depois, inesperadamente, me tratou bem. Pediu abraço de fim de ano e até aí ok. Na vez seguinte foi mais explícito na cantada – se eu percebi é porque só faltou a pessoa anunciar em carro de som. Não fiz nada, apenas na vez seguinte fui para as prateleiras; se tivesse interessada, teria ido falar com ele. Ele me cumprimentou, entendeu, tudo muito sutil. Pois bem. Voltei. O sujeito me deu um sorriso tão agressivo que foi como se eu tivesse corneado o sujeito e voltado na loja pedir produto de graça? Minha vontade foi dizer pra ele: Percebe que você criou uma história sozinho, que EU NUNCA TE FIZ NADA?

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Estou espalhando esta raiva por aí. LINK DA NOTÍCIAUma mulher ultrapassou homens que partiram 10 min antes de bicicleta e decidiram para-la e todas as outras mulheres por sete minutos – tudo para que os pudessem recuperar a vantagem e os seus egos não sofressem danos permanentes. É uma metáfora tão clara sobre o que é ser mulher. Feliz dia. Reclamemos.

Megera

evil queen

Infelizmente, eu ouço os meus vizinhos mais do que gostaria. O vizinho dos fundos, então, sempre fala muito alto. Eu acabo ouvindo alguns diálogos. Não sei dizer se ele e a mulher estão se separando ou estão tentando não se separar, mas ela dá patada atrás de patada no que ele diz. Às vezes ele nem disse nada demais, mas dá pra perceber que tudo a tira do sério. Não julgo, de verdade.

Um casamento acaba por muitos motivos e é claro que o meu teve muitos motivos. Ouvindo os dois lá atrás, eu percebo que uma das coisas que me dói sobre o meu casamento era a pessoa que eu era. Não vou saber dizer se eu era assim desde o começo, se foi como a relação se desenvolveu, se tinha jeito, só sei dizer que eu era e não gostaria de ser de novo. Minhas impaciências, minhas injustiças, minhas ingratidões. Será que eu sou uma megera estava uma megera? Algumas coisas nossas só encontram a luz do dia na intimidade extrema – e nem sempre é bonito de ver.

Losers

losers

Não sei se ando numa fase emotiva, mas há muito tempo eu não gostava tanto e me emocionava com uma série Netflix com a Losers. Acho que a última que me entusiasmou assim foi a Abstract. Não faz muito tempo, eu estava nadando e veio um flash de uma lembrança, e que me foi muito reveladora. Eu estava começando a fazer aulas de natação, estava indo muito bem para quem começou mais velha, aí vi as outras pessoas nadando e fazendo virada olímpica, e pensei: “eu tenho que aprender a fazer virada olímpica. Senão, por melhor que eu nade, nunca vou deixar de ser reba” (expressões de infância voltam à minha mente nos momentos muito íntimos, esta quer dizer algo como “ruinzinha”, “porcaria”). Não devia estar nadando nem há um mês e não queria ser reba. O que me surpreendeu é que eu tento dizer pra mim o tempo todo que não sou uma pessoa competitiva. Aí eu vi que sou, porque tento jamais ser reba. E achar que pra tudo o que você faz na vida, mesmo começando fora da época e ao lado de pessoas que fazem aquilo a vida inteira, você deve ser pelo menos boa, não deixa de ser querer demais.

A série fala de muita gente que estava lá em cima e falhou, em derrotas que foram melhores do que vitórias, derrotados que se tornam mais famosos do que os vencedores, vitórias pessoais que valem muito mais do que qualquer medalha. A cada ano que passa, é como se eu ficasse cada vez pior no flamenco. Não deve ser verdade, mas subjetivamente pra mim é assim. Sério, eu fico muito sem graça quando me mandam vídeos e dizem me querer ver dançar. Porque eu sei a imagem que mulher dançando flamenco passa, aquela feminilidade forte e decidida, e eu sei que me ver não é assim e nunca serei assim. As pessoas que são assim têm uma relação com a música e com o sapateado que eu não tenho, e não é uma questão de tempo. Acho que me sinto tão mal porque finalmente vi que nunca deixarei de ser reba no flamenco. Em outra coisas eu consegui, no flamenco não. Mas, ao mesmo tempo, o flamenco me proporciona experiências que, digamos assim, até parece que eu sou boa. Meio porque estamos no Brasil e “é o que tem hoje” – eu estou lá, estou disponível. Se tivessem outras dez opções, quem sabe as escolheriam e eu nunca entraria, mas não tem. (Deve ter umas cinco e garanto que chamam todas as cinco antes). Mas se estou na foto, subo no palco, participo do programa e levo a lembrança pro resto da vida comigo… sou loser.

Os favores dos Deuses

shiva murudeswar

Eu acho fascinante como a cultura modifica a maneira de olhar o que até mesmo “deveria” ser igual. Astrologia, por exemplo, o quanto a abordagem do ocidente e do oriente é diferente. Já falei algumas vezes que o cálculo é diferente, que as lendas são diferentes, que as técnicas são diferentes. Mas o que eu acho de mais fundamental  são os tais “remédios” da astrologia védica. Nos primeiros vídeos que eu vi, peguei uns astrólogos falando meio mal, que não era pra colocar um anel no dedo e achar que com isso todos os assuntos relativos àquele planeta – Saturno para carreira, Vênus para amor e prosperidade, Sol para auto-confiança, etc.  – estavam resolvidos. Depois que eu entendi que eles não são tão dispensáveis assim. Enquanto numa leitura ocidental o astrólogo vai te dizer que você pode ter dificuldade de ser firmar na carreira e ser responsável, ou que tem que se esforçar muito para arranjar um casamento, na leitura védica você tem um karma ruim com relação a esses assuntos que precisa ser queimado. Somos muito self made man até em astrologia. Então você não é uma pessoa com uma carreira ruim, você está com Saturno fraco; ou não é uma pessoa com dificuldades na vida amorosa e sim tem um Vênus muito aflito no mapa. Você escolheu nascer assim, a questão não é um simples “rever atitudes”. Se você está sofrendo demais é porque a escolha saiu pesada, então o único possível é querer que haja uma misericórdia no pagamento de suas penas. Os “remédios” são para melhorar a relação da pessoa com os deuses relacionados ao assunto problemático. Há coisas que soam engraçadas, como alimentar corvos ou nunca aceitar amostra grátis. Como todo tipo de penitência, a pessoa aprende sobre si no processo e precisa de força de vontade (já psicologizei, olha o vício ocidental). E, sabe como são os deuses, o pedido é nosso e atender ou não é com eles – ou melhor, com a nossa possibilidade kármica.