A moça no castelo

Eu passei o dia inteiro pensando nela.  É uma história tão complicada e tão irreal, parece mais um personagem de Garcia Marquez. A moça dessa história foi criada num mundo fechado e se recusou a sair de lá. Um mundo com apenas seus pais e um cachorro. As outras pessoas – vizinhos, parentes, colegas de faculdade, amigos de amigos – passaram por ela. Desses, alguns casaram, outros viajaram pelo país, tem os que se mudaram e os que tiveram filhos. Dos que casaram, tem os que separaram; muitos dos que viajaram já voltaram, e até já foram de novo; os que se mudaram já foi há tanto tempo que nem se lembram mais e filhos estão grandes. Tem gente que morreu, de morte natural, de acidente, de câncer. Falando soa trágico, mas a vida é assim, ela nos atinge, mesmo dentro de castelos. E mesmo quando a tragédia a atingiu, a moça continuou no seu castelo. Um castelo que agora nem é mais castelo, é apenas um conjunto feio de paredes, cada dia mais pobres e apertadas, como paredes de filmes que se movem de encontro umas com as outras. Nada a tira de lá. Ela recusou propostas grandes e pequenas, conselhos, mãos estendidas, oportunidades. Ninguém entende o porquê. É provável que tenha medo; quem sabe exista um sentimento de grandeza que beire a loucura. Um dia ela foi uma menina em roupas de princesa, e teria sido mais fácil naquela época. Hoje ela é uma mulher vestindo trapos. O tempo, o mais impessoal dos deuses, sempre pune os que tentam pará-lo.

O mais triste dessa história é que, mesmo quando ela sair, se um dia sair, nada pagará os anos perdidos. Nada compensará a vida vista pela janela, as conversas que ela não teve, o andar no meio de estranhos, as superações do dia a dia. Eu penso nela e relembro do quão privilegiada eu sou. É um privilégio se obrigar a sair de casa em manhãs geladas, passar na loja e receber um não, restaurar o dente e quebrar logo em seguida, olhar para quem te magoou e fingir que nada aconteceu. É melhor ter amado muito e depois se sentir sem chão do que nunca ter amado. É melhor possuir tudo e depois perder do que não experimentar o gosto. Não sou apenas eu que estou dizendo. A moça também me disse, quando nos reencontramos e ela fugiu de mim.

Flaneur

Desvio o meu olhar dos casais apaixonados. Passo de casaco, cachecol e mãos nos bolsos. Não tenho pressa, nunca mais tenho pressa, só que ando naturalmente rápido. Meus trajetos são tão longos quanto eu posso alongá-los. Às vezes isso se torna uma obrigação burra, improdutiva, uma grande perda de um tempo que me fará falta, mas não consigo evitar. Olho para o celular e ele nunca toca. Me proponho a fazer muitas coisas e não consigo concluir nenhuma, e a sensação de ter coisas por fazer me dá tranquilidade. Tenho que receber um pacote importante do correio e nunca estou em casa. O que me faz voltar toda noite é a Dúnia, o único ser vivo para com quem sinto obrigações. Senão, poderia passar a madrugada inteira andando. Todos temem por mim, tão tarde fora de casa – eu também temeria, antes. Agora, à noite me sinto dentro do meu elemento; o silêncio e o cansaço da tribo noturna é o meu. Meu olhar gosta das luzes amareladas nas ruas vazias e sinto que nada de ruim pode me acontecer porque já aconteceu. Grupos passam por mim, pessoas apressadas e também sozinhas. E casais. Comigo ninguém fala, a mim ninguém conhece. Vitrines exibem roupas bonitas que não tenho vontade de comprar porque apenas me cubro. Meus tênis estão gastos. Não invejo as pessoas nos carros, que chegam rápido demais. Faz frio. Minha mente se comporta como um amigo inconveniente, repetindo sempre o que estou cansada de ouvir.  Talvez esteja com fome, talvez não. Lugares específicos me remetem a coisas específicas que seria melhor esquecer. Nada daquilo existe mais, nem a mulher que os viveu. Meus desejos me doem e desvio o olhar. Ainda não é hora. Olho para os dois lados, atravesso a rua, finjo que tenho que ir. Eu assisto ruas vazias, luzes amarelas, vitrines bonitas.

Se eu pudesse

 

Minha primeira gira de umbanda. Eu sentada, encolhida em casacos, numa das noites mais frias do ano. Recebo os passes e bênçãos das entidades da linha de direita, nada de especial. Começa a segunda parte, da esquerda. Um Exu se aproxima das cadeiras onde estão os que só assistem, uma moça lhe presenteia, agradece e eles trocam algumas palavras. Depois, ele se dirige a mim. Com um olhar afetuoso, o Exu me pergunta se eu desejo pedir alguma coisa. Eu digo que não. Ele me pergunta de novo, se eu tenho certeza de que não quero pedir nada. Eu repito que não. E não digo não por desprezo ou por achar que ele não poderia me atender. Eu respondo que não porque não sei o que pedir. A única que eu poderia talvez pedir fosse para voltar no tempo. Para ter sido mais sábia, para ser maior do que eu sou. Tive também vontade de perguntar o Por Quê, mas meu Por Quê é tão profundo que só Deus poderia responder. Aí Exu me pergunta se eu não desejaria uma consulta com a Pomba-Gira. Agora o estrago já está feito, de que me adianta. Brinco com ele dizendo que não, pois a minha pomba está em recesso. Ele entra na onda e diz que isso é bom, que não convém andar com a pomba aberta por aí. Antes de ir embora, ele resolve falar sério e me diz que eu não devo me deixar afetar pelo que está me acontecendo, que eu sou maior do que tudo isso. “Você já é uma pessoa vitoriosa”. Que a vida tem fases – e nesse instante em faço um gesto de onda com a mão, indicando que estou na fase baixa – e que tudo o que estou vivendo, passará. Ele me diz para não me abalar, pois eu sou maior do que tudo isso. E depois se afasta. Aí que eu comecei a chorar.

Emergência

Meu amigo Ânderson, que é bombeiro, fica muito aborrecido quando noticiam uma tragédia e dizem que os “bombeiros demoraram a chegar”. Porque nunca, de acordo com ele, um chamado é tratado com indiferença, eles nunca dizem “vou aqui terminar esse café e aí a gente vai”. Se eles demoram, é unicamente pelo tempo que levaram para serem chamados e o deslocamento. É que nas tragédias, cinco minutos que eles demorem já é muito, é sentido como pouco caso.

O meu período de emergência acabou. Não estou ótima, mas estou administrando. No meu primeiro dia pós-divórcio, eu cheguei na natação acabada, e teve gente que foi capaz de olhar pra mim e perceber, e me atender na hora. Assim como me ofereceram abrigo e companhia, justo nos primeiros dias, em que eu estava insuportável. Ganhei chá quente de quem acabara de conhecer. E posso citar outros exemplos. Foram muitos os gestos pequenos e preciosos. São pessoas que não me devem nada, que não têm nada a ver comigo. Elas podiam passar reto e eu não as acusaria, não era papel delas.

Tem também o outro lado da moeda, mas nem vou falar dele. Um extintor no primeiro minuto pode ser tudo, um caminhão pipa horas depois pode não significar nada.

Folia de santo

Eu cheguei a desconfiar que era tudo a magia da situação. Confortavelmente instalada no banco de trás do carro, vendo passar por mim as lindas paisagens do Recôncavo Baiano. Na frente, Laécio dirigia e Regina, sonolenta, se cobria com um lençol. Como músicas nordestinas na paisagem e pelo povo que foi feito não soaria linda? Uma vez fui vítima da mesma magia e ela se desfez quando saí do local. Mesmo assim, pedi uma gravação do CD e já em São Paulo pude ter certeza: é lindo mesmo. Olha que não sou de curtir regionalismos. Se encontrarem o CD Folia de Santo, comprem. Cada faixa é uma história diferente, o que faz com que nenhuma sonoridade fique enjoativa. As letras trazem uma religiosidade tão inesperada e rica, tão diferente do que eu conhecia como músicas devocionais. Algumas letras são verdadeiras meditações. Eu ouço, ouço, e cada vez descubro coisas novas, fico ainda mais encantada.

Obrigada, Regina.

Boi preto e gata carente

Uma vez eu vi uma entrevista com o finado Clodovil, em que lá pelas tantas ele afirma que Leonardo Di Caprio era gay. O jornalista ficou espantado, e até relembrou que, até aquela data, o Di Caprio era namorado da Giseli Bündchen. Falar da sexualidade de celebridades brasileiras ainda vá lá, mas como é que o Clodovil se atrevia a falar uma coisa dessas de uma celebridade hollywoodiana, que ele nunca tinha visto na vida? Clô disse, simplesmente:

– Boi preto reconhece boi preto.

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Minha querida tia Hulda sempre tem um casal de gatos em casa. Já está na segunda geração. Pra não ter um criadouro de gatos, sempre mandam o gato castrar. E, mesmo castrado, ele sempre é capaz de satisfazer, pelo menos um pouco, as necessidades da gata. A gata, quando entra no cio, começa a miar escandalosamente na janela. Minha tia retira a bicha da janela e lhe diz:
– Não não não, pode parar com isso! Essa não foi a educação que eu lhe dei. Mamãe também tem necessidades e fica carente, mas eu não fico na janela gritando isso pra vizinhança inteira. Contenha-se!

 

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Desde que fiquei triste, as visitas a este blog tem bombado. É muito boi preto.

Essa da gata me lembra uma amiga. Ela tem miado tanto na janela, que tenho vontade de dizer – Escuta aqui, minha filha. Eu que separei não estou chiando tanto. Vamos manter pelo menos a dignidade?

Novas lembranças

Meu pai ficava sempre na mesma barraca da praia, tinha conta lá. Eu ficava horas no mar, pegando onda, ou jacaré, ou simplesmente curtindo. Só voltava quando estava morrendo de fome. Meu pai estava lá com os amigos, numa grande mesa. Eu tirava a camiseta molhada e me sentava ao lado dele. Aí bebia um refri com canudinho, comia acarajé, beliscava se tinha um peixe frito ou caranguejo por ali. Enquanto isso, olhava o movimento: as mulheres estendidas no sol, famílias sentadas em cadeiras coloridas, pessoas correndo pela areia escaldante, vendedores ambulantes. Na praia dava pra comprar um pouco de tudo: óculos de sol, bronzeadores, picolé, queijo coalho, camarões, redes, cangas… O vendedor que eu sempre fazia parar era o que vendia roletes de caldo de cana. Eram uns pedaços grandes, que ficavam espetados num bambu aberto com vários ramos, como um buquê. Com aquele buquê em mãos, eu mordia um delicioso pedaço de cana, que nunca cabia na boca, mastigava até sair todo suco dentro da boca e depois cuspia o bagaço na areia (eram tempos selvagens aqueles). Coisa boa.

 

Décadas depois, adulta e casada, na sessão de frios do supermercado, encontrei pedaços de cana à venda. Eles vinham numa embalagem à vácuo, cortados em pedaços bem pequenos, tinham validade de poucos dias e eram caros pela quantidade de produto que vinha. Nem liguei. Me dei vários pacotinhos de presente e levei pra casa. Nas primeiras canas, eu fechei os olhos e parecia que eu estava novamente na praia, na barraca, no sol, na infância. Passei a comprar aqueles pacotinhos toda semana.

 

Entusiasmado com o sucesso, o supermercado aumentava o preço a cada semana, até o pacote ficar absurdamente caro. Parei de comprar e as caninhas acabaram sumindo, acho que era eu quem comprava tudo. Mas não parei de comprar apenas pelo desaforo do preço. A verdade é que, infelizmente, a magia foi se desfazendo. Nos primeiros pacotes, o sabor remetia à praia. Depois, passaram a se remeter à tentativa. No fim, viraram apenas uma coisa que comia em casa.

 

Eu vejo que o luto segue a mesma lógica das caninhas. Só que não são lembranças buscadas, e sim invasivas. Tenho dedicado meus dias à produção lembranças novas. Quando faço coisas que normalmente já fazia sozinha, tudo está bem. O problema é o que estava ligado à companhia. Aí eu me conscientizo de que estou sozinha, de que nunca antes estava sozinha, e dói. Não doem apenas as grandes solidões, como a primeira noite na cama vazia ou a primeira compra de supermercado. Pra esses grandes simbolismos, a gente até consegue se antecipar. Dói, talvez até mais, o pequeno, o prosaico. Dói a primeira vez que recolho o lixo, dói o primeiro passeio com a Dúnia no fim de semana sem ter que combinar isso antes, dói esquecer o celular e saber que não vai fazer diferença pra ninguém, dói estar no ponto de ônibus no fim da tarde de sexta. É o mesmo ponto e o mesmo ônibus de sempre, mas às sextas e naquele horário, eu nunca estava lá porque ganhava carona. Tenho passado os meus dias repetindo gestos antigos de maneira nova, olhando para o que já não está lá e que machuca, na esperança de que o novo soterre o antigo e finalmente deixe de doer.

Duas historinhas contraditórias sobre meu envelhecimento

Detesto serviço de banco, por isso mesmo que quem cuida da minha conta é uma amiga. Os serviços de banco ficavam todos na mão do Luiz, eu mal e mal sei usar caixa eletrônico. Já sabendo disso, a Rafa abriu a conta, entende minhas dúvidas estúpidas e faz o que pode sem que eu tenha que passar na agência. Mas para mudar o meu nome na conta não teve jeito, eu tive que finalmente ir lá. Tenho uma má sorte com cartões e documentos que só ser exceção estatística explica. Sempre caio naqueles casos em não sei quantos mil, até em remédio. Então não fiquei surpresa em saber que a Receita Federal não tinha feito a mudança do meu nome, mesmo eu já mexido com isso antes de viajar. A mudança do nome na agência foi meio na gambiarra. Conversa daqui e conversa dali, ela me pede o meu RG. Ainda é antigo, porque consegui agendar pra daqui há alguns dias. A Rafa olha para a minha foto, tirada quando eu tinha vinte e cinco anos e solta:
– Você casou bem novinha, né?
Pior que ela nem percebeu que me chamou de acabada.
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Para ir à praia, eu só colocava biquíni, chinelo e um camisetão. Se o sol estava forte, boné e óculos escuros. Qualquer coisa a mais só aumentariam minhas chances de ser assaltada. Depois de poucos minutos de caminhada eu chegava na praia, segurava o chinelo nas mãos e andava com água até os joelhos. Quando queria entrar na água, encontrava alguém pra cuidar das minhas coisas para mim. Naquele fim de tarde um adolescente de bermuda se aproximou de mim e se ofereceu para segurar as minhas coisas. Achei muito estranho e não aceitei. Depois, ele se aproximou de mim e começou a puxar papo. Tive vinte e um anos a criatura. Ele quis puxar papo e eu não estava disposta a conversar, mas ao mesmo tempo não sei simplesmente ignorar alguém. Respondia com monossilábicos. Isso não o impediu de, poucas perguntas depois, me cantar da maneira baiana, que soa tão agressiva aos olhos sulistas que a gente fica com vontade de chamar a polícia – “você quer me beijar?” “vamos ficar nus na praia” “quer fazer amor comigo?”.
No início da conversa, quando eu ainda não desconfiava do que viria a seguir, ele perguntou a minha idade. Eu não vi motivos para mentir e respondi o que realmente é, que tenho trinta e sete anos. A reação sincera dele foi o elogio mais grosseiro e sem noção que eu já ouvi na minha vida. Vou até transcrever:
– Quantos anos você tem?
– Trinta e sete.
– Você fumou, é?
Hahahahahahaha! Obrigada, adolescente tarado das praias soteropolitanas.

O luto

Quando vou ao mar, sempre me pergunto o que estou fazendo longe dele. Amo o mar, amava pegar onda, fico horas dentro dele. O mar me equilibra. Mesmo que nada desse certo na casa do meu pai, eu sabia que valeria a pena viajar por causa da proximidade da praia. A casa do meu pai fica poucos minutos a pé de uma. Nessa última semana, eu ia para a praia sempre que podia, até mais de uma vez por dia, e fazia longas caminhadas com água até os joelhos. O clima me ajudou (24 graus, um frio!) e as praias ficavam quase desertas, o que me permitiu ficar à vontade. Junto ao Mar, a Yemanjá ou seja lá que nome tenha, eu chorei, desabafei, fiz planos, pedi ajuda. Até quando eu sofreria daquele jeito, até quando eu não saberia pra onde ir? Aí o Mar me relembrou que tudo tinha sido praticamente ontem.

 

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O luto é uma doença que nos rouba o prazer da solidão, o prazer de simplesmente estar vivo. Ele deixa o mundo cinza e os alimentos sem sabor. Quando quero ficar feliz, muito feliz, é como se minha cabeça batesse no teto. Já para cair, basta olhar para baixo. O luto é como atravessar uma caverna escura, sem ver luz alguma, sem qualquer sinal que nos indique a direção. Dificuldades corriqueiras se tornam enormes, os dias são longos. Essa não sou eu, essa não sou eu. Eu olho para o que me dava prazer e lembro que me dava prazer, mas não consigo mais sentir prazer. A solidão, que sempre foi minha amiga, se tornou feia como uma morte. A minha mente me tortura e me culpa, se apega a detalhes e se repete. Digo para mim mesma que essa não sou eu, isso é como uma doença que precisa ser purgada. Mas tenho medo de esquecer como eu era antes.

 

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Milton, para mim: Sobreviva ao luto.

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Eu lembro dos programas da TV a cabo, com acumuladores e aquelas pessoas que ultrapassaram os duzentos quilos. Aí vão investigar os motivos e lá atrás, na infância ou no tempo do guaraná de rolha, a pessoa sofreu uma perda. Eu vi uma acumuladora que perdeu a filha num assalto à mão armada, em casa. Vi uma mulher muito gorda que se sentia abandonada por não ter conhecido o pai. Tanta gente já passou por coisa pior e nem por isso vive no lixo ou sem parar de comer, a gente pensa. A dor dos outros tem sempre um quê de ridículo – pra quê se devastar por algo tão distante. Agora, vejo essas coisas e tenho medo de fazer igual. Porque eu as entendo, entendo sua escravidão. Por dentro a gente muda tão pouco, a maturidade é apenas um verniz. Pros fantasmas, um mês, um ano, vinte, trinta, quarenta anos podem não ser nada.

De volta

Às vezes coisas ruins motivam coisas boas. Eu não teria feito essa viagem se não tivesse batido no fundo do poço. Estar em Salvador nunca foi fácil pra mim, por motivos que são difíceis de explicar pra quem é de fora. Ir a Salvador sempre foi muito mais enfrentar fantasmas do que passar férias de verão. Antes de viajar eu me perguntava se, arrebentada do jeito que estava, seria o momento de rever certas coisas. Fui com medo. Pra minha surpresa, antes de viajar, eu estava é com medo de voltar. Com medo de ter minha vida de volta, agora que nem sei mais se gosto dela. Com medo de sair de um lugar onde todos estavam se esforçando pra me deixar feliz, onde eu era tão mimada. Eu me acostumei com os abraços, misto quente feito no forninho, praia à poucos minutos a pé e um sol que não nos deixa esquecer que estamos vivos.

 

Foi uma dessas viagens que mudam as coisas. Pude ler muito – coisa que não conseguia fazer há tempos – e tomar algumas resoluções. O coração ainda precisa do tempo dele, mas pelo menos a mente já sabe mais ou menos pra onde ir. Obrigada pai, irmãos, Hulda, Regina e Laécio, Lígia e todos que me alimentaram de carinho esses dias.

Recôncavo baiano

Eu esperava uma viagem pé no chão. Esperava passar por crianças de barrigão e descalças, casas com tetos de palha, bois magros comendo matinhos e mulas conduzidas por cangaceiros de chapéus de couro. Não era nada disso. O Recôncavo Baiano é uma região linda. Foi como se o Ministério da Cultura e a Universidade Federal do Recôncavo Baiano tivesse contratado a Regina e seu marido Laécio para convencer as pessoas a irem para lá. Eles me mostraram cidades fofas e tranquilas, me fizeram comer comidas deliciosas nos lugares mais simples, me fizeram prestar atenção na música ao vivo na praça e o sanduíche sendo preparado à meia noite. Eles me acenaram com a mudança que eles mesmo fizeram: trocar a vida agitada e consumista das capitais por uma vida mais natural, com mais qualidade. O mestrado que eu tenho e que em Curitiba não vale nada, quem sabe, pudesse ser muito útil e me garantisse uma vaga na Bahia.

Essa última parte é especialmente amendrontadora: perceber que mudar de vida estaria acessível dessa forma, bastaria me propor. Eu olhava para aquele cenário e me perguntava se seria feliz lá. Olhava para aquelas ruas e me perguntava como seria andar por elas não mais como turista e sim como moradora. Como seria morar perto de praias lindas, eu que amo tanto o mar. E perto do meu pai, o que não acontece desde a minha infância. Se eu daria esse salto, se teria coragem. Aí eu tive que me conscientizar de outro sentimento: o de me sentir sem lar. Desde que me separei é como se eu não tivesse mais casa, não pertencesse a lugar nenhum. Quando estou com os outros quero voltar para casa e em casa, me sinto insuportável. Faz apenas um mês que assinei meu divórcio e tudo ainda é assustador. 

O quanto eu sou apegada a Curitiba e ao que tenho lá? Visitar o Recôncavo me levantou questões sobre o que é realmente importante para mim, sobre o que busco – se eu realmente busco uma vida mais simples e o quanto isso é possível dentro das escolhas que fiz. Por ora, me parece que minha solidão se faria grande demais se me movesse dessa forma. Nunca fui aventureira. Mas o registro da experiência e as questões do Recôncavo ficarão sempre em mim. Quem sabe o que virá em seguida.

O jegue e a dureza

Duas coisinhas interessantes que meu pai me contou:

– Quem é do sul não faz ideia, mas o jegue é um animal que não suporta ficar sozinho. Se você prende ele sozinho numa árvore, no dia seguinte ele vai estar morto, ele vai ter se matado de tanto puxar a corda. Se você prende ele num muro, é capaz dele derrubar o muro. Ele não vai descansar enquanto não conseguir sair dali e encontrar companhia. Pode ser uma galinha, um cachorro. Quem tem um jegue sabe que precisa sempre deixar ele ao lado de algum bicho ou perto de onde tem gente, pra ele jamais se sentir sozinho.

 

– (Eu comentava sobre a quantidade de lugares comerciais fechados) É que aqui o pessoal é muito duro. Um dia eu estava num ponto de ônibus com mais cinco pessoas. Passou uma linha que ia pra um determinado lugar e a passagem era um real e oitenta. Ninguém entrou. Dali a pouco passou outro ônibus, que ia pro mesmo lado, mas com a passagem por um e sessenta. Entraram todos.

Maresia

Nunca me considerei uma pessoa olfativa, e talvez não o seja em relação a todo resto da minha vida. Mas Salvador me pega pelo cheiro. O cheiro de coentro misturado ao azeite de dendê. O cheiro delicioso de acarajé, presente nas ruas, denunciando que em algum lugar, dobrando alguma esquina, há uma baiana. O cheiro da maresia, assim que a gente chega um pouco mais perto da orla. E essa maresia, tão poderosa, faz com que nada cheire como cheira em Curitiba. Ela se mistura aos produtos de limpeza e os deixa com outro cheiro. Ela se mistura à madeira e faz com que a madeira em pouco tempo adquira o cheiro de madeira perto da maresia. A maresia se mistura à poeira, e faz com que seja uma poeira mais grudenta, e não aquela poeira solta que podemos soprar. Acho fascinante a maneira como aqui tudo seca muito rápido, pelo calor. Você lava roupa e quase pode vê-la secar em poucas horas no varal. As coisas sujam e basta jogar uma água em cima pra limpar. O sol e o calor inclemente (na concepção daqui está apenas agradável) se encarregam do resto. Lá embaixo, a gente tem que passar rodinho, pano, álcool, estender bem, e as coisas ainda assim podem levar dias segurando umidade. Mas aqui, quando seca, não seca igual. Meu cabelo está com uma textura diferente, tudo fica diferente. Olho para as plantas, para o verde abundante e as praças reluzem; mas não sinto desejo de estar nelas, porque preciso de sombra e, aparentemente, os outros também. Então esses lugares lindos servem apenas de passagem e as pessoas se juntam onde há pichações, cadeiras de plástico e bebidas geladas. Os lugares limpos e cimentados estão vazios; os lugares onde se vê gente são justamente os de ar decadente, acabados por essa maresia e esse sol; tudo necessitaria de tantas lavagens, tantas demãos de tinta, tanto verniz, tantas vassouradas e inseticida, que tudo fica como está. Não sei como as roupas resistem, coloridas, como as coisas se mantém nessa luta constante contra a natureza. A maresia, sente a maresia, que penetra todas as coisas, que altera a textura da pele e nos torna diferentes, outros.

Cobrador-legista

Até agora não entendi como é que eu me perdi na volta do Ibirapuera. Saí pelo mesmo lugar onde entrei, segui um retão, da mesma forma que cheguei lá andando reto toda vida (leia isso com sotaque catarinense). Até passei pelas mesmas clínicas que eu tinha passado. Devo ter pego alguma rua que sai de lá em triângulo. Sei que o caminho foi ficando diferente, diferente, até que não pude negar os fatos: estava perdida em São Paulo.

 

Encontrei uma moça, dessas que fica do lado de um stand pra falar de Jesus, e achei que seria alguém perfeito pra pedir ajuda. Ela me mandou andar até Santo Amaro e de lá pegar um ônibus. Tenho resistência a pegar ônibus em São Paulo, por mim faço tudo de metrô. Acho que é porque o sistema lembra mais o curitibano, com isso de parar nos mesmos centros e só fazer a troca. Mas estava perdida de um jeito, e preocupada com meus horários, que tive que ceder. Já havia andado horas, visto duas exposições, e estava no horário do almoço, tinha que sair cedo pra ir pro aeroporto. Nem lembro direito o nome da linha. Cheguei no motorista e disse que tinha que parar perto do cemitério, e ele me disse que passaria por uns quatro. Claro que eu nem sabia qual cemitério era, nem ao menos qual a graça da igreja que fica por perto. Tenso mas deu certo.

 

Então, eu reexpliquei minha situação ao cobrador e grudei nele. Sentei na frente do sujeito, que já conversava com uma moça. Era um cobrador que fazia bico de legista, ou o contrário. Quando que a gente vai imaginar uma coisa dessas. Ele nos mostrou a mão calejada de lidar com formol, mesmo usando duas luvas para trabalhar. Pena que perdi trechos da conversa, porque ele falava relativamente baixo. Ele nos falou que o formol ainda é menos pior do que o cheiro dos cadáveres, que nada fede mais do que gente. Contou do ajudante que abusava dos cadáveres e ele teve que demitir. E que, na verdade, ainda salvou a vida do sujeito, porque abusando de cadáveres ele acabaria pegando doença deles, que vai necrosando as partes que entraram em contato com os corpos. Falou da rápida decomposição dos cadáveres com câncer, que você não pode nem encostar o dedo para que eles não estourem e comecem a vazar na hora. Contou que ganha uma fortuna quando morre alguém de família rica e pedem para reconstituir o corpo para poder ter um caixão aberto. Contou do caso de uma moça, que à medida que foi sendo despida, apareciam mais e mais tatuagens, e tinha 26 piercings pelo corpo. Na hora de devolver os pertences à família, o choque: eram todos evangélicos, os pais não sabiam de nada daquilo. Concluíram que a moça morreu porque já estava endemoniada.

 

“A vida da gente é um nada. Isso aqui (passa a mão no braço) é um nada, se acaba muito rápido. Tem que viver bastante, namorar, aproveitar a vida. Estamos aqui só de passagem”. Clichê, mas com outra autoridade quando dito por um cobrador-legista.

Em Sum Paulo

O relacionamento de Don Drapper e Peggy Olson é um dos pontos interessantes de Mad Men. Nos ultimos dias, fiz uma maratona e assisti quase toda a série. Don e Peggy, embora nunca tenham se relacionado como um casal – acho que dizer isso não estraga surpresa nenhuma – e tenham suas proprias capacidade e caminhos, parecem nunca perder a ligação que possuem. Na ultima temporada, ja com tantas aguas passadas entre os dois, Don e Peggy estao conversando, ela muito insegura, ele num dos seus altos e baixos, e ele lhe diz:

– Eu tenho muitas preocupações na vida. E voce nãé uma delas.

Esse é o resumo do que eu senti agora que vim para Sao Paulo. Antes de casar, eu vivia por aqui, acho que tinha todos os anos. Depois fui ficando preguiçosa e parece que a ultima vez que vim tinha sido em 2006. Então mudamos eu, mudaram as pessoas, mudaram as relações. E me parece – posso agora dizer uma grande besteira, dessas regras gerais que criamos e que não resistem ao menor debate – que não existe ficar no mesmo lugar. Nada ficou no lugar, nada fica no lugar. E meu movimento para fora, por mais medroso e desajeitado que possa ser, ainda é melhor do que a tentativa inutil de manter tudo igual.


(estou num teclado sem acentos, fiz milagre pra colocar os poucos que tem)