O justo e o melhor

Ser justa era uma preocupação muito grande pra mim e parece que isso era muito claro para os outros. Digo que parece porque essa vontade de ser justa foi usada contra mim inúmeras vezes. Eu era acusada de ser injusta, ou diziam que o mais justo seria fazer tal coisa, e lá ia a trouxa quebrar a cara, enfrentar sozinha o dragão e receber o ônus de quem fala a verdade enquanto os outros apenas assistem. Mas lutar para ser sempre justo, como todas as vezes que as pessoas tentam aplicar um grande princípio na vida diária, é também de uma arrogância e onipotência tamanha. Quem sou eu, que vejo apenas o meu lado e sei o que é melhor para mim, para decidir que caminho a questão deve tomar. Ou seja, eu me sacrificava à toa. Não sei quais eram as intenções no passado e muito menos quais as consequencias no futuro. Às vezes, algo muito ruim e doloroso no presente pode ser revelar libertador; ao contrário, passar a mão na cabeça no momento errado pode ajudar a manter uma atitude nociva. Então abri mão da justiça e passei a fazer o que é coerente comigo. Eu faço o que eu posso, dou até onde consigo sem me fazer falta. Não quero fazer mal aos outros, mas cuido primeiro do meu umbigo. Ainda assim não é simples, mas é muito mais fácil de aplicar do que a justiça.

Ser boa, muito boa, fazer um trabalho excepcional sempre foi uma preocupação muito grande pra mim e parece que isso era muito claro para os outros. Nos trabalhos em grupo, eu era uma praga, daquelas exigentes que carregam o grupo nas costas e brigam com as pessoas no fim de semana, mas com quem todo mundo queria trabalhar porque tirava dez. Era desgastante levar tudo à ferro e fogo e já na adolescência eu tinha crises de gastrite. Só que eu conseguia. E consegui durante muito tempo, enquanto meus trabalhos tinham um alcance pequeno, enquanto eu me comparava com quem estava do meu lado. Só que a maturidade e a internet abriram meu mundo de tal forma que nunca mais poderei ter a ilusão de ser a melhor. Nem ao menos de estar entre as melhores. É como se eu precisasse de uns vinte anos a mais no meu passado para obter a cultura literária, a capacidade de análise, a profundidade do trabalho e até mesmo o conhecimento flamenco que eu gostaria. Hoje eu me vejo como uma blefadora. Se fosse lutar para alcançar os padrões que gostaria, as qualidades que vejo nos que admiro, não escreveria mais nem uma linha, não dançaria nunca mais. Então abri mão de fazer o melhor e procuro pelo menos não passar vergonha. Corrijo os erros, faço o básico, ouço os conselhos de quem entende e vou. O suficiente pra estar no jogo, sem a menor chance de ir pro pódium.

Princípios simples

Chega a ser frustrante, para o meu orgulho, que à medida que eu envelheça a vida parece cada vez mais psicanalítica. Odiei a psicanálise de todo o coração e fiz questão de aprender o mínimo possível, o suficiente para passar em algumas matérias. E eis que os princípios entraram em mim por frestas e hoje eles voltam à minha memória e concordo. Como os princípios de prazer e realidade. O de prazer quer pra já e agora, o de realidade diz que não, não agora, não desse jeito. E esse atraso provocado pelo princípio de realidade, ao invés de cortar o barato do princípio de prazer, aumenta a tensão e faz com que a descarga seja ainda maior. Ou seja, esperar aumenta o prazer. É simples, é bobo e hoje parece explicar de tudo pra mim. Da minha felicidade ao colocar cortinas novas aos mais complexos problemas sociais.
Não adianta, se demora tem mais valor. Somos idiotas, somos bichos, somos regidos por princípios bobos e simples. Pense na letargia dos que já nasceram com tudo e na garra dos que ambicionam o mundo. Se temos tudo de mão beijada… olhe o que acontece se temos tudo de mão beijada:
O que podemos esperar… de um ser humano? Torne-o rico, faça-o feliz até o pescoço, até a cabeça, de maneira que à superfície da sua felicidade, como ao nível da água, emerjam apenas bolhas de ar; deixe-o tão abastado, que nada lhe reste fazer a não ser dormir, comer doces, chupar sorvete e cuidar da preservação da espécie. Pois bem: em troca, este mesmo humano lhe pagará com alguma trapaça suja, por pura falta de gratidão, simplesmente por maldade. Arriscará, para tanto, até mesmo os doces. De propósito, cometerá a maior loucura, a asneira mais anti-econômica, somente para misturar o bom-senso extremamente positivo que lhe tem sido ofertado com o funesto, elemento fantástico que faz parte de sua própria essência. E, justamente os sonhos mais mirabolantes, a estupidez, são o que mais deseja conservar…
Nietzsche (citado por Watzlawick)
Por isso que não dá pra valorizar fast food, nem quando a comida rápida é sexo. Isso nos leva a idéias tão perigosas e machistas, de concluir que para a mulher ter valor ela precisa se fazer de difícil. Não concordo com o “se fazer de difícil”, menos ainda em pensar que esse papel cabe exclusivamente às mulheres. Mas existe sim uma tendência a desvalorizar quem nos acolhe  – na sua cama, na sua vida – de imediato. Como já disse, unicamente porque somos idiotas. Sem saber como a plantinha é plantada, demora a crescer, chega ao ponto certo, é colhida, lavada, cortada, temperada e cozida, como estabelecer uma conexão com a comida? Se a gente só abre um pacote não tem como dar valor. Cozinhar deixou de ser sagrado, logo o comer também deixou, e com isso perdemos o controle até do nosso peso. A roupa descartável feita por escravos estrangeiros também é jogada fora, não é igual à feita sob medida pela costureira de confiança. Eu adoraria ter dinheiro para pagar alguém que arrumasse minha casa inteira ao invés de passar anos vivendo como quem acabou de se mudar. Mas quando sou eu que envernizo minha porta, espero anos para colocar a cortina do jeito que eu quero – ahá, cheguei na cortina! – é tão diferente, é tão mais pessoal. Eu tenho mais carinho. Idealmente, talvez devêssemos fazer tudo que está à nossa volta, participar de todos os processos e de todos os consumos. Isso nos daria uma dimensão melhor do trabalho e o respeito viria como consequência. Quando é rápido a descarga é pequena, o que leva mais tempo tem mais valor. Somos estúpidos e primitivos.

Sdds: Orkut

O orkut foi importante para mim, por mais que hoje o renegue tanto quanto as minhas fotos de mullets. Lá fiz grandes amigos, e muitos deles são meus amigos até hoje. Eu os vejo casados, tatuados, morando sozinhos e tenho a dimensão do quanto o tempo passou.  Eu lembro de como eles eram antes, na época que trocávamos scraps e diziam que o meu scrapbook era “uma praça de eventos”. Eu tinha casado há pouco tempo, tinha poucos amigos e me divertir com eles pelo orkut era importante pra mim. Lá eu vi namoros, amizades, casamentos nascerem e morrerem. Conheci muita gente por causa do orkut, e descobri que pessoalmente é sempre outra amizade, outra relação, que a internet é uma realidade paralela. Foi no orkut que assumi que gosto de brincar e não de falar sério, que ter senso de humor precede o “oi, de onde tc?”. Era ótimo ficar fuçando os perfis – de amigos, inimigos, desconhecidos – tentando adivinhar a personalidade pelas comunidades. Eu adorava descobrir comunidades engraçadas, como a “Malufistas que dão o cu”, que diziam que eram pessoas que sofriam duplo preconceito, por sua posição política e sexual ou a “Eu já chorei vendo filme pornô”, que tinha uma descrição tão engraçada que me fazia rir sempre que lia. Eu tinha minhas próprias comunidades, a “Invejosos” e a “Rancorosos”, sendo que essa última era um sucesso. Uma vez fizeram uma comunidade pedindo a minha volta, porque cometi orkuticídio (quem nunca?). Quando voltei (quem nunca?), transformei numa comunidade mutante. Por falar em mutante, uma comunidade mutante de amigos foi recriada recentemente no facebook, como página, mas é claro que não é a mesma coisa – nós não somos os mesmos. Alguns falam mal de quando os brasileiros pervertem a função inicial das coisas em redes sociais, mas eu sempre vi nisso uma criatividade, algo positivo. No início, as brincadeiras eram nas comunidades, depois o negócio virou mandar scrap. E o que dizer dos depoimentos secretos?  Era uma prova imensa mandar um, com a advertência *Apague*. Era entregar um segredo na mão de alguém, precisava ser muito íntimo para mandar testimonial secreto. Pra saber de quem se era íntimo, era só listar com quem se trocava esses depoimentos. Dos depoimentos, alias, é a parte que eu mais sinto falta. Nosso perfil era conhecido não apenas pelo que dizíamos, mas também pelas coisas bonitas que nossos amigos tinham a dizer a nosso respeito. Era de aquecer a alma. Saudades.

Curtas e flamencas

Quando eu mudei de escola de flamenco, tomei todo cuidado do mundo pra não sair falando mal. Minha saída não foi planejada e muito menos espontânea, então houve um clima, uma expectativa por declarações polêmicas. Não o fiz por um motivo simples: não sou idiota. Eu sei que essas coisas podem crescer e gerar arrependimentos maiores no futuro. E foi uma mudança tão boa pra mim que não vi motivos pra me lamentar. Só que apesar de todos os meus cuidados, meus antigos colegas ficaram cheio de dedos comigo. Como se eu fosse agarrá-los num canto pra soltar os cachorros, pedir pra largarem a escola, sei lá. Isso me aborrece, julgarem tão mal as minhas atitudes sendo que nunca fiz nada parecido com isso.

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Quando eu saí, algumas pessoas ficaram a meu favor, outras não falaram comigo e certamente algumas ficaram contra. Suponho que houve comentários, que a história foi repetida, que cada um teve a sua opinião. Eu não estava lá pra querer contar a minha versão, e na verdade eu acho que isso não faz tanta diferença, as pessoas sempre pensam o que querem. E mesmo tendo sido lá o lugar que fui mais popular na minha (impopular) vida, no fim das contas, nossos laços se afrouxaram. Desculpem a constatação tão óbvia nessa altura dos acontecimentos, mas só agora descobri que quando você sai, pouco importa se foi justo ou injusto, se as pessoas te amavam ou odiavam, se você conhecia todo mundo ou não era ninguém. Quando você sai, você sai. Você não é mais, acabou.
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Na minha nova escola, logo nas primeiras semanas, fiquei apaixonada pela nova aula e a nova professora. E não quis dizer nada, contive meu entusiasmo por todos os meios virtuais, porque ia ficar parecendo que era uma crítica velada à antiga. Como se eu só dissesse que uma sabe muito pra dar a entender que a outra não sabe nada, entende? Pra ver o tato que eu tive, até mesmo exagerado. A verdade é que eu tinha vontade de pular de alegria, senti que estava no melhor lugar onde poderia estar. Lembro que na época, quando tinha vontade de escrever sobre alguma coisa, o tema que mais me vinha à cabeça era o da Generosidade. Com ela eu descobri que a pessoa mais generosa não é aquela que te faz benesses porque você é o preferido: é pura e simplesmente porque você está lá, porque ser generoso é o estado natural dela, um perfume. Te admiro muito, Tereza!

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Fiz um workshop maravilhoso com uma bailaora que mora na Espanha há muitos anos, a Yara Castro. Era dividido em dois níveis e de metida que sou fui pro mais difícil, junto com um povo que tem pelo menos uma década de flamenco, com professores. Talvez por acreditar na neurologia, eu me submeto a fazer umas aulas puxadas porque acredito que em algum lugar o meu cérebro está sendo forçado, que estou acelerando meu aprendizado de alguma forma. Eu lá, sofrendo com passos que aparentemente todo mundo pegou menos eu, querendo pegar a Yara e me explicar (como se ela não tivesse notado sozinha que eu tinha menos tempo de flamenco), aí ela diz: “Essa sensação de ‘onde é que eu fui me meter em fazer flamenco’ vocês terão a vida inteira, desculpa falar”. Vou? Ah, então está tudo sob controle!

Protesto masculino

Os homens hoje em dia sabem que nós mulheres não fomos geneticamente criadas para amar os serviços domésticos. Eles sabem, ninguém pode negar que hoje eles saibam. Então eles sabem que o trabalho doméstico é chato, precisa ser feito e muitas vezes se dispõem a ajudar. Só que, veja, eu acho que dentro deles alguma coisa ainda não aceita. Uma resistência, um protesto, algo muito profundo deles grita que não, que eles são grandiosos demais para aquilo. Homens nasceram para liderar tropas, suas mãos devem ficar ásperas ao amarrar cordas e não com detergente. Um homem fica intimamente ofendido com essas exigências. Cortar a grama, carregar sacola de supermercado ainda vá lá, porque são atividades que usam a força e força é com eles. A coisa está gritando quando, por exemplo, eles colocam o lixo para fora. Lixo não é pesado, lixo tem restos e homens não lidam com restos – homens criam restos, restos de corpos no campo de batalha. Mas por algum motivo cultural, jogar o lixo é uma das poucas coisas que conseguimos que eles façam direito. Eu acho que tem a ver com uma dinâmica de: o exterior e o público são masculinos, o interior e privado são femininos. Então jogar o lixo para fora, ainda que faça alguma coisa dentro deles gritar, tem a ver porque os tira de casa.

Como a cabeça aceita e o coração grita, sua forma de conciliação interna está em fazer as coisas pela metade. Perceberam que os homens levam os objetos até a metade do caminho, às vezes até fisicamente perto, mas jamais executam as tarefas domésticas até o fim? Não colocam no lugar, apenas sinalizam. O Luiz tira as toalhas do varal e joga em cima da cama. Ele atravessou a maior parte da casa com as toalhas, subiu um lance de escadas, faltam poucos passos até o banheiro… mas aí já não é mais com ele. Ele já fez tudo aquilo, já se humilhou bastante, e você ainda por cima quer que ele coloque as toalhas no cabide? Ou quando eu olho para a pia e tem um pratinho com cascas de banana, de cebola e outras coisas que devem ser jogadas fora. “O que é isso?” “São restos de comida, é lixo” “Então porque você não jogou no lixo?” Ele não sabe. Ele juntou tudo e seria muito fácil pisar num pedal e jogar lá dentro, mas isso não lhe ocorreu. É uma coisa inconsciente, sabe? Outra forma de deixar pela metade é o tal do desengorduramento. É sabido que se um homem faz um sanduíche com três itens quentes, eles conseguem usar no mínimo de três panelas. A prova disso é que depois, em cima do fogão, serão encontradas três panelas cheias de água. “É pra desengordurar“. E as fiadamãe ficarão lá dias a fio, desengordurando, até uma mulher perder a paciência e lavar tudo de uma vez.

É curto

Há um episódio do Tiny Toons que eu adoraria ter, porque o cito para várias situações. É assim: os personagens participarão de um concurso cinematográfico. O Patolino decide fazer sua biografia, começando com ele bebê, um patinho chorão, e avança para os vários feitos da sua vida. O desenho mostra outros personagens, acontecem várias coisas, e no dia do concurso estão todos no platéia para ver os filmes. Mostra o filme de um personagem, de outro, até que começa o filme da Felícia (aquela criança que ama animais e dá abraços esmagadores). Lembro que o filme dela começa com uma borboleta, acompanha o seu vôo e se estende por cenas lentas. O filme não termina nunca, a platéia em desespero, aquela coisa. O produtor fala pro Patolino: “o da Felicia está acabando com o nosso tempo, vai cortando umas cenas aí”. O filme dela continua, a platéia morrendo, o Patolino vai cortando, cortando… Quando acaba o filme dela e começa o dele: só aparece a cena dele bebê chorando e o filme acaba. A platéia fala: “É CURTO!” e aplaude efusivamente. Ele ganha o concurso.
O “é curto” pra mim vale desde filmes – me desculpem os mais cinéfilos, mas saber que um filme tem três horas me dá preguiça antecipada – até os projetos mais mirabolantes e ideias que vão se ajustando ao tempo, ao orçamento, ao que dá. Se vocês soubessem as coisas maravilhosas que já desenhei pra minha sala. Eu, modéstia nenhuma, tenho um bom gosto tremendo. É dura essa vida de ter bom gosto e não ter dinheiro para isso. Quem dera então que eu tivesse apenas o dinheiro. A mesa exclusiva que escolhi, o sofá ao lado da chaise estampada, o espelho gigantesco, colocado por cima do papel de parede… A mesa tinha uma base de lâminas de madeira sobrepostas. Isso faz uns cinco anos, no mínimo, e ela custava quase quatro mil reais. Nem todas as pragas do mundo evitaram que ela fosse vendida, a loja nem existe mais,  virou lanchonete. Depois escolhi outra mesa redonda, não tão linda, mas com tampo de mármore e base que lembrava aquela primeira – ao invés de lâminas, era uma cobertura de resina em formado ondulado e amarelo vivo. Essa custava dois e meio. O modelo está saindo de linha, a opção amarela não existe mais e… bem, acho que vocês entenderam. Qualquer dia desses, se der, vou comprar uma mesa de tampo de vidro da Tok Stok com base de metal e ficar louca de feliz. Dez anos e não temos mesa de jantar. Mal e mal sala de estar. Sabe o orçamento? “É curto”.

Oportunidade para costureiras

Mais um papo ouvido no ônibus.

– Você sabe costurar? Eu tenho uma amiga minha que está trabalhando com costura, está muito bem, fazendo muito dinheiro. Ela está precisando de ajudante, eu posso te colocar em contato com ela. Nem precisa saber costurar muito. Sabe essas camisetas, coisa bem simples? Então, é só fechar uns tecidos, coisa bem básica. Ela recebe umas encomendas de umas camisetas assim simples e só tem que fechar. Ela ganha um, dois reais por peça. Que ela faça quarenta peças por dia por um real dá quarenta reais, se for por dois reais sai oitenta. Ela fica o dia inteiro na máquina, ela não dá conta de tanta encomenda. Tem dias que eu passo lá e a comadre nem almoçou. Eu ponho você em contato com ela, serviço pra ela é o que não falta.

A outra não quis aceitar o emprego.

Política

Aqui e ali li algumas coisas sobre Getúlio Vargas, e todos são unanimes em dizer que ele manejava bem as pessoas e, por consequência, as situações. Ele se mantinha em cima do muro e acenava para os dois lados enquanto fosse necessário. Mudava de posição conforme a conveniência, fazia alianças com aqueles que antes eram seus inimigos. Um bom exemplo é a posição do Brasil na II Guerra Mundial: Getúlio tendia aos alemães e depois se voltou para os aliados quando viu que a Alemanha perderia a guerra. Sempre vi essas coisas de uma maneira muito negativa, mas aí Samuel Wainer, na sua autobiografia, coloca essa característica como positiva, coisa que João Goulart não tinha e deu no que deu – o Golpe de 64. Eu, que sou ofendida num dia e vinte anos depois ainda não esqueci, seria a pior política possível. O que é mau caratismo na vida comum é pensar acima dos seus interesses na vida pública. Política é realmente outra coisa, outro universo, outra lógica.
Sou do time “não guardo rancor, guardo nomes”. Não apenas pelo que fizeram a mim, e sim pelo que acredito que a pessoa é. O arrependimento e a mudança estão em locais diferentes do cérebro. Interromper uma ação é fácil, durante um certo tempo. Difícil é implantar em alguém o respeito pelo outro, esteja ele por cima, por baixo, fragilizado ou no topo. O exemplo mais interessante sobre essa filosofia de guardar nomes é uma história que ouvi sobre o Paulo Coelho. Ele apanha da imprensa brasileira desde que começou a fazer sucesso. Me disseram (não sei se isso está na biografia dele ou se gravado em alguma entrevista) que ele tem um imenso arquivo pessoal, onde estão catalogados artigos e declarações sobre ele. Um dia, por exemplo, apareceu um pedindo apoio para entrar na Academia Brasileira de Letras. Ele foi lá no arquivo, procurou o nome do Fulano e lá estava: um artigo escrito em mil novecentos em bolinha onde ele descia o pau no escritor Paulo Coelho. A resposta, imagino, foi um “Infelizmente eu não posso te apoiar”, seguido de uma cópia do artigo.

Último post do ano

Não sou boa de escrever mensagens de boas festas. Um dos motivos é que o Natal não significa nada para mim. Melhor: significa apenas aquilo que é hoje, uma época de ganhar e dar presentes. Por mim, preferia que a data fosse em agosto, porque é muita comilança pro espaço de uma semana. Já o ano novo não, nele eu acredito e me contagio. Gosto da idéia de transformar o que passou em passado e tentar começar tudo de novo, com esperança. Então não poderia deixar de agradecer àqueles que dão sentido a este blog: meus leitores. Alguns lêem pelo reader, outros passam pelo site assim que o post sai, tem os que esperam acumular pra ler vários posts de uma vez, existem os leitores ocasionais… De qualquer forma, são todos leitores e saber que vocês existem é importante para mim. Conheço alguns, recebo mensagens de outros, mas sei que a maioria é formada por pessoas que nem sei quem são. Nossa relação está neste espaço, nestas linhas. Nos momentos de desânimo – e não foram poucos – foi essa ligação que me manteve de pé e me ajuda a definir quem sou. Obrigada por darem um pouco de seu tempo para o que eu escrevo, obrigada por voltarem. Muito obrigada por tudo e espero encontrá-los no ano que vem.

2012, o ano do fim do mundo

Dizem os cinéfilos que o que faz um filme é o seu final. É por causa do final que acreditamos que aqueles longos minutos, talvez horas, na frente da tela valeram a pena. É o final que diferencia o filme interessante do inesquecível. Um bom exemplo disso seria o filme O sexto sentido, que se é quase todo ele apenas mais um filme de fantasmas e se torna marcante pelo final. Talvez por isso eu não seja capaz de falar que o ano de 2012 tenha sido ruim pra mim, porque estou feliz agora. Passei por muitas turbulências e me arrisquei em coisas que eu jurava que não faria. Talvez o tom do ano tenha sido o corte: cortei e fui cortada muitas vezes. Algumas situações fui eu que cortei, porque não fazia bem a nenhuma das partes. Noutras, o corte foi nas costas, uma facada. Amigos que eu pensei que levaria pela vida inteira também simplesmente me cortaram, porque para eles nossa amizade era apenas circunstancial. Foi um ano que fez jus à idéia de limpeza e expiação que os místicos lhe atribuiam.
Mas também teve começos. Penso nas violetas, que eu sempre morria de dó quando arrancavam folhas saudáveis para que elas florissem mais. Por ter sido cortada eu fui para outras direções. Estou começando tudo de novo de novo de uma maneira nova, com pessoas novas e perspectivas novas. Coisas que me acompanhavam há anos e faziam parte de mim simplesmente deixarão de ser. Vejam que conjugo o verbo no futuro. Em 2012 acabou e pra acabar é sempre mais rápido. Em 2012, também, surgiu a luzinha que diz que tem coisa lá na frente. Dizem que o melhor da festa é esperar por ela. Mais um motivo para dizer: estou feliz. 2012 foi um ano bom pra mim.

Um acidente

Eu estava a pé, numa via rápida perto de casa. De longe vi duas mulheres, uma por volta de seus quarenta anos e a outra bem jovem, bonita e com um jeito todo de perua. No início pensei que eram mãe e filha. Só depois vi os dois carros parados, um deles com a lateral toda amassada e os eixos das duas rodas tortos, aquele tipo de coisa que dá perda total no carro. Quando passei por entre as duas, pude ouvir a peruinha falando:
– Na minha concepção, a culpa não foi de ninguém, mas se você quiser eu assumo.
Eu teria matado.

O emprego

Estava no tubo esperando o ônibus. Duas mulheres se colocam ao meu lado e começam a conversar:
– Eu estou numa angústia, você não sabe o que eu estou passando. Eu trabalho ali (apontou um prédio na frente) e fiz uma entrevista e consegui um emprego ali (apontou um prédio no fundo). Só que cada vez que eu chego para a minha patroa pra pedir demissão eu travo, não consigo falar.
– Tem que tomar coragem, tem que pedir demissão.
– Eu gosto de lá. Mas é que aqui eu ganho mil e quatrocentos e nesse emprego novo eu vou ganhar mil e setecentos e não vou precisar trabalhar de sábado. Eu não sei o que fazer.
– Tem que tomar coragem e falar com a patroa.
– Eu vou lhe contar porque é que eu ainda não pedi demissão, é que eu estou com uma intuição ruim. É que lá eu vou ser contratada com uma outra, ela vai ser cozinheira. Eu vou cuidar da casa e a outra da cozinha. O nosso santo não bate, é por causa dela que eu estou na dúvida. Ela fica achando que manda em mim e nem patrão manda em mim, quanto mais outra empregada. Eu quis colocar uns panos de chão na máquina e ela quis me dizer que não podia, que a máquina estava limpa, eu respondi que quem sabia disso era eu, e a patroa teve que vir dizer pra gente não brigar. É só ela não me falar nada, porque se fala eu respondo…
Aí o ônibus chegou. Foi difícil me segurar e não virar pra ela e dizer que não era pra aceitar esse emprego.

Deixe-me ir

Tudo bem que eu era craque em relacionamentos à distância, mas eu bati todos os meus recordes quando me propus a manter um amor com alguém que morava em outro continente. É daquelas histórias que a gente imagina que SE um monte de coisas não fossem como eram, poderia ter sido bem diferente – só que na prática esses SEs são sempre tão impossíveis que é o mesmo que dizer que já nasceu condenado. Mesmo condenado, nos propusemos a manter contato e trocávamos e-mails todos os dias, mais de uma vez por dia. E olha que era a época da internet discada e eu acessava pelo computador da universidade. Naquele intervalo maior entre as aulas, tanto de manhã quanto de tarde, eu ia da Santos Andrade à Reitoria pra tentar acessar o computador. E antes de ir embora para casa também. Ficamos seis meses nessa. Ninguém devia fidelidade a ninguém, mas tínhamos o pacto de contar um ao outro caso alguma coisa acontecesse. 
No fim do semestre, ele me disse que estaria muito ocupado terminando sua tese, por isso não teria tempo de me escrever. Ele me mandava apenas um e-mail padrão, dizendo que continuava trabalhando e que me adorava. Naquele mesmo período eu fui dançar com uma amiga, e lá conheci um cara muito simpático, aquela coisa toda. Ele quis ficar comigo e fiquei tentada, mas pesando na balança achei que ele não era bom o suficiente para o e-mail que teria que escrever depois. Não ficamos e nunca mais nos vimos. Dias depois, meu namorado virtual finalmente havia terminado seu trabalho, e me escreveu um longo e-mail falando de uma festa que foi com seu melhor amigo, que havia aproveitado muito e que tinha conhecido uma moça. Não que tivesse acontecido algo, mas estava para acontecer e ele se sentiu na obrigação de me contar. Nem sei dizer o que me magoou mais, a mulher ou a perda de importância por ter recebido uma mensagem padrão por falta de tempo enquanto o outro ia a festas. Aquilo me pegou no último dia de aula, no fim da faculdade. Não apenas isso, na véspera de uma viagem de reconciliação com o meu pai. Tudo era muito doloroso e importante. Minha vida estava começando e eu não sabia onde estava pisando, não sabia onde me segurar. Eu lhe escrevi um longo e-mail e terminei tudo.
Anos depois eu voltei a lhe escrever, não lembro o motivo. Ele disse alguma coisa de eu ter ficado braba com ele e por isso aquele e-mail, e por isso o fim. Não era nada disso, ele não entendeu nada. Eu precisava ir embora, porque era louca o suficiente para persistir ainda mais. Ele, por amor a mim, precisava me deixar viver.

Olho no baterista

Eu sei que é completamente desnecessário republicar qualquer coisa que apareça no Kibeloco, mas esse eu não resisti porque ele me remete a outras reflexões. Na hora eu lembrei da Vingança do Tigre, só que essa seria uma versão do bem. Ele não está se vingando, está simplesmente sendo. Pensei no que já me disseram sobre o futebol, que assistir no estádio é completamente diferente muito mais divertido. Enquanto a TV nos diz o que e quando olhar, quem vai para o estádio vê as pessoas, ouve os gritos dos jogadores, repara no técnico tirando meleca do nariz, enfim, ele vivencia experiência muito mais ampla. Quando a gente vai a um espetáculo ao vivo, sempre acaba reparando em coisas que não estavam no scrip. Nem sempre quem se destaca é quem deve se destacar – o que é ótimo.