Eu estava no caixa rápido de um supermercado caro onde vou poucas vezes para fazer uma compra fresca: pães especiais. Era um horário de pouco movimento e não tinha fila nas cestinhas. Haviam duas caixas sentadas lado a lado, sem fazer nada, e elas continuaram a conversa enquanto uma delas me atendeu.
-Estava pensando em fazer faculdade, mas acho que não vou fazer. Tanto empenho pra depois não conseguir trabalho do mesmo jeito. Conheço um monte de gente que fez faculdade e estão todos desempregados.
-Meu marido é um desses. Ele é formado em biologia.
Eu pensei várias coisas. Um lado meu dizia que ela tinha razão, que faculdade realmente não garantia emprego, veja o meu caso. Mas também ouvi a voz da minha mãe que sempre nos dizia que era importante fazer uma faculdade, qualquer uma, nem que fosse apenas para ter um curso superior, que ter um diploma era um ganho – colocação com que tendo a concordar, acho que conhecimento sempre vale a pena. Lembrei também da minha experiência mais do que recente no pior tipo de emprego do mundo, e pensei no quanto é duro querer que alguém abra mão do pouco de tempo e energia que tem, durante anos, para talvez ajudar no futuro. E, na realidade, quando você está dentro de uma empresa ninguém tem a menor pressa em te promover porque você está qualificado demais (também o meu caso no pior emprego do mundo). Mas o que encerrou minha discussão interna foi lembrar de uma cena que assisti há alguns anos.
Por um acidente no destino, num papel que eu chamo de “pobre de estimação”, eu estava numa mesa enorme de uma casa enorme. Eu entrei em contato com poucas pessoas realmente ricas na minha vida, mas quando aconteceu foi tão marcante que seria impossível não notar. A ostentação e a mesquinharia que tanta gente que se diz rica tem apenas atesta sua falta de origem; pessoas ricas há gerações podem se dar ao luxo de serem idealistas, dedicarem sua energia a projetos humanitários da ONU, ao mesmo tempo que são completamente insensíveis ao não saberem como soa falar que vai pagar oitenta mil reais num vestido “simplesinho”. Num dado momento do café que nos reuniu naquela mesa digna de novela, a pessoa rica virou para uma das convidadas e falou:
-Tem aquela sua neta que está fazendo direito, não é? Ela está na área de família?
-Não, ela foi pra área criminal, está super entusiasmada, trabalhando bastante…
-Ah, que pena. Estamos precisando de uma advogada lá no escritório, queria chamar a tua neta.
Eu quase cuspi o que estava comendo. “Então é assim que gente rica arranja emprego”, repeti furiosamente, como um mantra, durante dias. Numa conversa em um café, só por ser neta da Fulana, a menina ia arranjar emprego num dos escritórios de advocacia mais importantes da cidade. Não sei nem se a pessoa conhece a tal neta pessoalmente. Enquanto isso, nós, os comuns, perdemos tempo enviando currículos, vestimos roupas especiais para entrevistas, ficamos de olho nos classificados, estudamos o que dizer e como nos comportar! Aí tudo tem que ser perfeito, porque senão… “Não passei na entrevista porque não sabia harmonizar as cores com meu tipo de pele”, “não consegui porque demonstrei nervosismo na maneira de cruzar as mãos”, “foram aqueles minutos que atrasei porque fui no banheiro que me impediram de conseguir o emprego dos meus sonhos”.
As meninas que estavam conversando no caixa tinham razão, era bastante provável que ela não conseguisse emprego nenhum com aquele diploma. Não apenas porque estavam num caixa de supermercado, isso era mais um agravante – muita gente sai da faculdade com um papel, sem parentes na área, sem ter como investir mais ainda em pós-graduação, num aluguel de sala ou um emprego que na prática não sustenta, mas é aonde se deve estar por “contatos”. A desigualdade no ponto de partida é a diferença entre fazer um ângulo de 90º ou desenhar no olho um que parece ter essa medida, mas tem 89º. Lá na frente, não vai ter mais nada a ver com um ângulo reto. Muitos anos depois, quando já estamos velhos e entendemos mais o funcionamento do mundo, dá vontade de encontrar o Eu do Passado e dizer: “relaxa, você nunca teve a menor chance”.
“Relaxa”? É estranho, mas não encontro verbo melhor. Porque enquanto a pessoa não percebe que esse é um jogo de cartas marcadas, com vencedores pré-determinados, ela se maltrata. Ela vai se sentir um fracasso, achando que nunca fez o suficiente. Ao não passar no concurso super disputado, vai lamentar sua falta de inteligência ou sentir culpa por não ter estudado horas o suficiente, enquanto os filhos de alguns receberam o gabarito a domicilio. Vai se sentir obtusa porque não se tornou fluente num segundo idioma com aulas pré-gravadas – quem sabe um mochilão na Europa durante meses não teria ajudado, caso papai e mamãe tivessem dinheiro pra tanto? Posso listar esses contrastes sem parar. Existe sim, em todos as áreas, a tal da UMA grande oportunidade, geralmente uma Bolsa, disputada por pessoas de todo país; é verdade, a tal Bolsa pode fazer a pessoa alcançar o que mais ninguém da sua origem sequer sonhou. A existência dessa chance única salva poucos indivíduos, mas seu impacto no imaginário coletivo é enorme: através dela, o sistema alimenta a crença de que a ascensão é perfeitamente possível, basta fazer por merecer. Como se diz em sociologia, é a exceção que confirma a regra. Mas enquanto de um lado se cobra nada menos do que a genialidade, do outro lado basta que o herdeiro faça o básico. Quem nasceu bem e faz apenas o que lhe cabe – escolhe algo e se dedica -, vai longe. Aos outros, por causa daquele desvio de 1º lá no início, as oportunidades se tornam cada vez mais limitadas e mal pagas.