Namoro, gato e Mandela

Todos esses links noticiando que o Nelson Mandela morreu, o que está doente, ou que está dançando quadradinho de oito de tão saudável, que lembrei de uma história. Espero que a Camila me perdoe por contar, caso um dia ela veja isso daqui.

Conheci a Camila fazendo faculdade. Ela é natural de Moçambique. Passamos quase todo período de faculdade separadas, porque ela era amiga da galera e o povo lá me detestava. Um dia nos cruzamos no corredor e trocamos algumas palavras. Foi uma simpatia imediata, aquela vontade de conversar que não acabava mais. Só que ela estava justamente nos últimos dias por aqui, porque iria terminar o curso em Santa Catarina. Foram dias de amizade intensa. No fim, a super galera nem ligou quando ela se foi, e sua despedida foi comigo e outra amiga no apartamento onde ela vivia sozinha com o gato, o Poulantzas.

O nome Poulantzas me era familiar, era o nome de um dos teóricos que havíamos estudado em ciência política. Foi para contar a história do gato Poulantzas que eu fiquei sabendo de um fato que causou uma impressão muito ruim na Camila sobre os curitibanos. Foi assim:

Camila tinha um namorado. Um namoro morno, com saída com os amigos, visitas ao apartamento, nada muito entusiasmado da parte de ambos. Eles estavam juntos há poucos meses. Um dia a Camila comentou com ele que era afilhada do Nelson Mandela. Era e não era, não tinha muita importância para ambos. A história completa era que Moçambique havia tido uma guerra civil quando ela era criança e os pais dela era muito ativos politicamente. Quando ela nasceu, seu padrinho era um amigo dos pais dela muito ligado ao Mandela. Só que esse sujeito morreu cedo, e como forma de homenagem, o Mandela passou a ser o padrinho dela. Só isso.

Camila contou essa história para o namorado e do dia para a noite tudo mudou. O namoro ficou importante, ela foi apresentada para a família dele, passou a frequentar a casa, ficaram praticamente noivos. A sogra passou a tratá-la com deferência e o namorado lhe deu um gato persa de presente, o Poulantzas. Camila percebeu tudo aquilo e ficou assustada, do que teria motivado essa mudança. Até que um dia ela e o namorado estavam conversando, e ela se questionava sobre o que faria quando terminasse a faculdade, das dificuldades de arranjar emprego, etc. Ele: “Você fala essas coisas só pra fazer charme. Você sabe não tem nada com que se preocupar, sendo afilhada do Mandela…” Ela não aguentou e terminou o namoro.

Cartada final: o namorado pediu o gato de volta. Que ela devolvesse o gato ou pagasse por ele. Sem escolha, a Camila teve que recomprar o Poulantzas.

O passado

A mesma vontade de ser boa e ajudar o semelhante, que me levou a fazer psicologia, me levou também a fazer serviço voluntário. Eu fazia atendimento telefônico a pessoas que estavam deprimidas – trabalho de prevenção ao suicídio, como chamávamos. Só que, do mesmo modo que não teria paciência para ser psicóloga, eu tenho um limite meio curto com queixas. Já fui dessas amigas que ouvem os problemas das amigas. À medida que cresci e aprendi a me relacionar com as pessoas de outra forma, isso de ser confidente me encheu. Não pelas confidências em si, e sim pela repetição delas. A amiga com problemas com o namorado (e os problemas que exigem amigas-confidentes sempre são de relacionamento) vai repetir ad-infinitum as mesmas histórias. O motivo de queixa será sempre o mesmo, a solução será sempre a mesma – a vontade de reclamar e não fazer nada também. Fico com vontade de mandar à merda e que a pessoa só volte quando for reclamar de algo diferente. Um psi não pode fazer isso.

 

Eu atendia o telefone com toda paciência. Ouvi muitas histórias e acho que posso ter ajudado bastante gente. O problema estava nos que ligavam sempre. Uma vez por semana uma mulher me ligava aos prantos. Depois de um período respeitando a dor dela, deixando chorar à vontade, eu começava a perguntar o que estava acontecendo. Ela dizia que não era justo, que não tinham esse direito, que ela sofreu muito. Eu procurava ser compreensiva, e fazia perguntas com o intuito de ajudar a organizar as ideias. Aí ela contava que foi internada a força numa instituição psiquiátrica, o que é realmente sério. Ela continuava e dizia que era difícil, que ela não merecia, que na tal da clínica ela era medicada, falava com o médico, aquela rotina de instituição. Ela não estava mais lá, mas era difícil conviver com a lembrança. Agora é que vem o problema: o fato havia ocorrido há mais de vinte anos.

 

Quando soube – e não demorou muito – eu não conseguia mais atender a mulher. Não com toda paciência que ela queria. Chegou uma época que ela me ouvia falar Alô e desligava. Soube que ela ligava para todos os plantões, todos os dias, e em pouco tempo decorou o meu dia da semana e não me ligou mais. Mais tarde fiz estágio em clínica psiquiátrica e vi que esse comportamento (e tormento) dela não é incomum. Que bom que existe gente melhor do que eu, que trate e ouça. Como acontece nos pacientes psiquiátricos, é possível ler no comportamento daquela mulher uma metáfora do que nós, os “normais”, também fazemos, só que de modo menos evidente: pro passado não existe idade, não tem longe e nem perto. O passado é aquilo que nos atormenta e define quem somos, o que governa nossas ações, o que nos faz chorar. E isso pode nunca envelhecer.

Maquiagem

Não sei se já contei isso aqui; é que é uma coisa que sempre lembro quando me maquio para uma apresentação, e o fiz sábado passado. Sempre fui muito básica com maquiagem. Durante a adolescência, nem batom usava. O que, somado ao fato de eu ter o cabelo curtíssimo e andar com roupas folgadas, dava a muitos a impressão de que eu era lésbica. Na faculdade, passei usar batom e, aos poucos, a pintar o olho. E é só isso que costumo usar. Até subir aos palcos, não sabia me maquiar, não sabia a ordem nas coisas, o que era e pra que servia uma base. Hoje sei enganar uma maquiagem. E praticamente só a faço uma ou duas vezes por ano, quando tem apresentação. 

Eu fazia dança moderna e tinha aula todos os dias. Várias turmas faziam aula no mesmo horário, ou logo depois do meu horário, então cruzava com as mesmas pessoas quase todos os dias. Como geralmente acontece no meio da dança, eram poucos homens por turma (ou nenhum) e gays. Por isso, os poucos que tinha eram conhecidos por todos. O uniforme das bailarinas era collant preto ou azul marinho e meia calça. Costumávamos usar um shortinho. Eu não precisava prender o cabelo porque na época ele estava bem curto. No rosto, eu só usava o batom e o lápis nos olhos de sempre.

Chegou a época dos espetáculos de fim de ano, e o espetáculo seria num teatro daquele mesmo prédio. Então, nos maquiamos todas em frente ao espelho da sala de aula mesmo. Já fiz tantas vezes que hoje sou craque: sento de pernas cruzadas diante do espelho, coloco a necessaire no colo e só saio de lá com a maquiagem toda feita. Só depois eu me visto. Depois da maquiagem feita, naquele dia, passei pelo corredor pra resolver alguma coisa. Aí eu passei por um desses poucos homens que faziam aula por ali. Quando meu viu, ele foi escandaloso:

– NOSSA! VOCÊ FICOU MUITO LINDA MAQUIADA!

Um lado meu ficou lisonjeado com o meu grau de beleza, maquiada. Outro, lamentou pelos outros 364 dias do ano.

Corredor 10

Como diria Syrio Forel: O que dizemos para a morte? Hoje não.

Choveu tanto e tão desgraçadamente nos últimos dias que a vontade era de me atirar de uma janela. O som e o volume d´água era tal como uma janela aberta. Andar a pé era impossível, de ônibus um tormento, de carro uma tensão. Em casa, tudo molhado, as paredes escorrendo, as roupas durante dias no varal. Era uma sensação de falta de perspectivas, de não ter para onde fugir. Hoje o sol saiu e esfriou muito, com um vento de cortar os ossos, mas foi um alívio. Durante todos esses dias, por causa dos meus ensaios, o Luiz tem ido visitar sozinho o pai dele, que acabou de operar a coluna. Chegamos lá e meu sogro, dopado, estava enrolado nas cobertas. Meu sogro é mais alto do que eu, conversador, ativo, sorridente; hoje, me pareceu tão pequeno e frágil. Minha sogra, com a expressão cansada de quem está há dias fora de casa. Eu sei bem como é isso. Eles assistem a chuva e os protestos da janela e da pequena TV no quarto. A perspectiva do meu sogro é de pelo menos seis meses para a vida se normalizar.

 

A morte me espreitando na chuva que promete voltar, a vida parada num quarto de hospital querendo voltar a viver. Hoje não, hoje não.

Tragédia grega

Tenho minhas dúvidas sobre a existência de um Deus, e mesmo que ele exista, tenho certeza que não perde tempo controlando cada folha que cai no chão. Acredito que aqui e acolá temos a chance de mudar de vida – uma decisão minha pode fazer a diferença entre entrar para o circo ou trabalhar num banco, de ter uma vida longa ou morrer numa passeata. Ao mesmo tempo, nenhuma das minhas decisões poderia ter me tornado esposa do George Clooney. As escolhas são feitas dentro de uma esfera limitada de ação, como se fosse um círculo imaginário com pouco mais de um metro de diâmetro. Se eu quiser terminar a minha vida no Afeganistão, terei que ir muitos metros para o Oriente, tomar muitas pequenas decisões na mesma direção, tantas que talvez seja impossível. Já se eu morasse ou nascesse no Tajiquistão, seria muito mais fácil. Acredito que a vida se faz de pequenas decisões pequenas e idiossincráticas, quase sempre previsíveis. Decisões, muitas decisões. Talvez justamente por acreditar em decisões, o sentimento que tive em alguns momentos da vida – o de ser como um personagem de uma Tragédia Grega – me parece assustador.
Há um ditado grego que diz “o destino conduz a quem consente. A quem não consente, ele arrasta”. Por mais que eu não acredite em destino, tenho que reconhecer que em alguns momentos me sinto conduzida. As coisas podem acontecer em momentos exatos, ter uma série de coincidências, sequencias de acontecimentos totalmente improváveis. Pior, acontecer no dia preciso. Se acontecesse um dia antes, ou um dia depois, a sua atitude seria diferente. Quando as coisas acontecem assim, a gente vira à direita, à esquerda, à direita de novo, anda alguns metros para frente, e quando se dá conta está onde nunca pensou que estaria. Ou nunca desejou estar. Como se fôssemos um personagem duma tragédia grega – a quem não consente o destino arrasta, esqueceu? Às vezes o destino da pessoa é comer a própria mãe. O pior de tudo é que, nas tragédias gregas, é quanto mais a gente foge do destino, mais o cumpre.

Paul ou John?

Oi, muito prazer. Eu quero te conhecer melhor e temos poucos minutos. Na sua opinião, as canções mais bonitas de amor são do Paul ou do John?

Tenho cruzado com tanta gente interessante, com pessoas que gostaria que fizessem parte da minha vida. Mas tal como na música do Chico, parece que temos sempre poucos minutos para nos conhecer. Um almoço, um encontro, uma saída. Aí eu me pego tentando adivinhar quem a pessoa é pela maneira como ajeita o cabelo, pelo modo que sorri e o que a faz sorrir. Quero tornar a conversa inesquecível e reveladora, para ambos. Tenho vontade de perguntar – Me diga, Fulano, o que fez você escolher todas as coisas que escolheu até chegar aqui? Quem você é desde que nasceu? O que faz o seu coração vibrar? Mas tudo o que consigo comentar é que o dia está chuvoso ou pra tomar cuidado com o pavimento solto da calçada. Eu quero revelar, quero descobrir, quero ampliar o alcance e tornar a vida do outro parte da minha e pra isso tenho apenas uma migalha de tempo. Porque depois a pessoa vai embora. Ela voltará para a cidade dela, a rotina dela, a @ dela. E eu para a minha.

Preto ou branco? Samba ou rock? Praia ou campo? Gato ou cachorro? Casa ou apartamento? Frio ou calor? Você está andando pela floresta e encontra um muro, o que faz em seguida? Todas as perguntas do mundo são bobas, todas as perguntas são apenas uma tentativa débil de obter uma informação que na verdade não serve para nada. É tudo blablablá. A questão fundamental é se o outro sente como eu sinto, se estamos numa sintonia muito além das simples preferências. E pra isso não existem palavras.

Festa de passeio completo

Eu nunca tinha ido numa festa de quinze anos, assim como nunca curti convites para festas que exigem que a gente se arrume muito. Sempre tive alguma sorte nesse tema, com amigas que casam de dia ou nem fazem festa. As poucas que fui de passeio completo eram da época que eu morava com a minha mãe. Todo aparato de roupas e acessórios era feito por ela e minhas tias; meu trabalho era provar a roupa e aparecer com ela na festa. Sem dizer que na época meu cabelo era muito curto, do tipo que para arrumar basta colocar gel e quando muito uma presílha. Desta vez foi tudo diferente e na falta de um vestido longo eu fui obrigada a comprar, e nessa de comprar um longo aproveitei o pretexto e comprei um vestido belíssimo de flamenco. Animada com o vestido, me animei em fazer um cabelo à altura e fui no salão – como é caro fazer penteado, né? E que textura de ninho de rato que aqueles produtos deixam no cabelo. Mas ficou bonito, valeu a pena. Estava animada com a idéia de entrar numa festa belíssima, atrair os olhares, arrasar.
De fato, eu estava belíssima quando cheguei e recebi muitos elogios pelo meu traje espanholado. O prazer de chegar, cumprimentar e desfilar durou o quê, meia hora? A partir daí eu lembrei porque acho festas uma maçada. Pra começar, estava muito frio. Todas essas noites tem feito um frio moderado, e justamente na noite da festa choveu e baixou pra menos de dez graus. Antes de sair de casa, havíamos colocado roupa na Dúnia e o Luiz se lembrou dela: “Pelo menos a Dúnia está em casa quentinha” Eu: “Pelo menos um membro da nossa família está quentinho. E em casa”. O fiodamãe do salão era muito aberto. As mangas longas do vestido, o mantón que me cobria e a visualização criativa foram capazes de me transformar numa piriguete – eu era das mais cobertas e me sentia das mais geladas. Para os pés, eu precisava no mínimo de umas duas meias ou uma daquelas botas com lã dentro, e não um belo sapatinho de salto. Era frio, bunda quadrada, dor nas costas e vontade de tuitar. Parecia mais na Reitoria do que uma festa.
Eu fui obrigada a chegar cedo porque era parente. Então fiquei lá, horas e horas a fio, enquanto as pessoas que podiam se dar ao luxo de chegar atrasadas exerciam seu direito. Na mesa, havia umas torradinhas e dois patês. A torradinha tinha o talento de ser feita apenas de ar e não ter gosto de absolutamente nada. O patê branco era suave como clara de neve e também não tinha gosto. O patê rosa, tinha um leve gosto de queijo. Estavam horríveis mas foram avidamente atacados, porque o buffet levou quase três horas para surgir. Quando surgiu, como sempre, quase não havia opção para mim, que tive me conformar com batatas sem sal e um penne sem molho. A fila era tão grande que apesar da fome eu não consegui voltar. Me prendi à ideia de matar a fome com docinhos – coisa que eu nem fiz direito, porque levou mais de uma hora pra liberarem os doces e perdi a vontade. Teve a valsa, com aniversariante e o pai fazendo o possível para domar a vergonha. É, amigos, dançar com todo mundo te olhando não é fácil que eu sei. Teve discurso, power point com fotos mostrando a aniversariante desde criança até os dias de hoje. Foi amplamente aplaudido, aí apareceu um “ei, ainda não acabou!”, e começou tudo de novo… Quando a banda começou a tocar, apesar de serem bons, eu já tinha desligado o cérebro verbal e estava começando a entrar no estágio de querer matar pessoas. Fomos os primeiros convidados a ir embora. Nos próximos anos, espero só voltar a usar aquele vestido para dançar flamenco.

Santo Antônio

Essa história de ter bouquet de Santo Antônio me dá até vontade de casar na igreja (só casei no cartório), que é pra poder ter um. Seria um bouquet bom para jogar pras amigas enca… solteiras, mas também porque é o santo do meu dia. Dia de Santo Antônio sim que deveria ser dia dos namorados. Quantos anos não passei em brancas nuvens no meu aniversário porque as melhores amigas estavam todas namorando: ” Eu juro que lembrei de você no seu aniversário, mas eu estava com Fulano, então eu não liguei”. Presente, então, nem pensar. 
O chato, chato mesmo, é que nunca consegui ser devota de Santo Antônio. Conheço a história, reconheço a imagem, acho bacana, etc. Mas não é com ele, tenho esse problema com devoção a coisas abstratas. O máximo que arrancam de mim é uma simpatia. Mas acho que isso nunca o impediu de me favorecer, né? Então, feliz aniversário para mim!

Para conhecer alguém

Eu e a Luzia já trabalhávamos juntas, pelo menos, há um ano. Íamos realizar aquela que seria minha primeira exposição de esculturas, uma exposição coletiva na Rosa Cruz. Eu e ela exporíamos esculturas em resina com pó de mármore. Um problema comum a todo escultor é a questão do acabamento. Fazíamos a peça no barro, molde o mais fiel possível, preenchíamos com o material e na hora que a peça sai do molde ela sempre tem bolhas, rebarbas, marcas de molde. E o tal do acabamento pode salvar ou acabar com uma peça. Lá no atelier nós tínhamos uma cultura de lixas, de achar que pintar a peça a empobrecia. O grande lance era lixar, tampar os buracos que a lixa fizesse aparecer e lixar de novo.  Dava um trabalho do cão, especialmente nas minhas peças super detalhadas.

Alguém nos sugeriu fazer um jateamento, tal como se faz em vidro. A exposição se aproximava e estávamos desesperadas. Ela levou uma peça e eu levei outra. Explicamos para o sujeito, dissemos a numeração do jateamento que queríamos e voltaríamos em poucos dias. Quando voltamos, o jateador estava muito orgulhoso com o trabalho que ele havia feito. Era um homem que só jateava vidros, então ele se empenhou pessoalmente naquela tarefa. Quando ele trouxe as peças de volta, a da Luzia parecia um queijo suiço e a minha, que era grande, ostentava as marcas do jato, como se fossem grossas pinceladas. Depois a Luzia contaria a história dessa forma:
– O cara veio todo orgulhoso com as peças, que ficaram um lixo. Quando a Caminhante olhou para a peça dela, dava pra ver a decepção no olhar. Achei que ela ia fazer um escândalo, protestaria, brigaria com o sujeito, pediria o seu dinheiro de volta. Mas a Caminhante se limitou a agradecer e pegar a peça de volta. Nesse momento eu entendi quem ela é.

Eu não gostei nada dessa conclusão. De tantas coisas que havíamos vivido juntas, tantas risadas, tantos desafios, tantas conversas, e ela achou que minha personalidade foi desnudada por uma momento tão… pouco viril. Eu teria escolhido outros, eu teria me descrito de outra forma. Teria citado, quem sabe, quando fiz uma peça maior do que eu e a concluí sozinha, ou quando me dediquei até o fim pra terminar aquela encomenda, ou o dia o fato de que tiraram onda com a minha cara por ser tão mais nova e pouco a pouco conquistei o respeito de todo mundo. Se me pedissem uma seleção dos meus momentos, como uma grande apresentação, esses seriam eles. Mas a verdade, a grande verdade, é que o que somos não está contido no que dizemos, no que gostaríamos, no que exibimos, enfim, na personalidade domingueira. Uma pessoa se revela quando recebe um serviço mal feito, leva uma invertida de um amigo, faz mais um esforço quando está exausta, é pega de surpresa, precisa decidir rápido, disputa uma vaga, esquecem de trazer a sua comida no restaurante. A personalidade de quando tudo está sob controle às vezes sugere o que está embaixo, às vezes é completamente ilusória. Somente um grande momento simbólico e não programado pode nos revelar alguém. Pode ser algo grande, um gesto heroico que muda uma vida; pode ser uma reclamação que não foi feita. Mas, até que aconteça, não conhecemos realmente alguém. E sem conhecer uma pessoa não podemos ter certeza de amá-la.

Daenerys Targaryen II

Isso que dá a pessoa passar semanas lendo e ouvindo a musiquinha do Game of Thrones – só consegue escrever e pensar em metáforas sobre esse assunto. Olha que nem gosto assim da Daenerys, acho o desenrolar da história dela um dos mais chatos e dispensáveis. Mas, vamos lá:
(Contém spoilers da primeira temporada de Game of Thrones. E da segunda, dependendo do ponto de vista)

Durante o livro inteiro lemos como os Targaryen dominaram Westeros com os seus dragões. Um dragão parece ser a solução de todos os problemas: queimam fortalezas inexpugnáveis, voam por cima de torres altas, podem ser montados como cavalos e percorrer grandes distâncias, soltam fogo que combate inverno e pode matar os Outros. Mas os dragões estão extintos e… opa, não estão mais. Daenerys se abraça com aqueles ovos de dragão e os desperta no fogo. Daenerys, que tinha nascido pobre, em fuga, última descendente a reclamar o trono dos Targaryen. Aí quando ela consegue chocar três dragões, dá pra pensar – acabou a história. Ela monta nos dragões, voa por cima das fortalezas, bota fogo em todo mundo e se torna rainha, eba. Só que as coisas não acontecem de forma tão automática – dragões são bichos e como todo bicho eles demoram para crescer. E enquanto os dragões crescem, a vida continua. Daenerys tem que buscar um lugar pra viver, mantimentos para alimentar a si  mesma e seu povo, tem que provar sua autoridade. Os dragões se tornam um problema adicional, porque despertam a cobiça e são vistos como mercadoria. Ela recebe propostas de casamento, de compra, sofre atentados por causa deles. No futuro, eles podem ser uma dádiva, mas apenas no futuro. Danenerys precisa de tempo, eles precisam de tempo. Mas tempo é justamente o que ela não tem, não há um lugar onde ela possa simplesmente sentar e esperar.

Eu tenho cá os meus filhotes, os meus projetos. Quero muito crer que sejam dragões. Nos últimos anos eu comecei muitas coisas novas. Eu demorei pra chegar até elas, percorri milhas e milhas. São coisas me dão prazer, que combinam com quem eu sou e o que quero de uma maneira muito profunda. E, modestamente, faço-as bem feito. Mas são coisas novas. Elas não me dão frutos hoje, não me darão frutos no mês que vem, nem quero me iludir em pensar que daqui há um ano… Só que o tempo está passando. Eu não sou uma adolescente, não sou uma recém-formada, não estou nessas fases da vida que se considera bonito e normal começar. Estou ficando mais velha, e estar mais velha me deixa mais insatisfeita, mais desesperançada. Olho para os meus filhotes e a cada dia tem ficado mais difícil. Até que ponto comprometer o presente em nome do futuro, até que ponto é sensato apostar com a própria vida? E o mais importante: durante quanto tempo mais eu aguento esperar? Não sei.

Carros são todos iguais

Existe um distúrbio cerebral chamado prosopagnosia que faz com que a pessoa se torne incapaz de diferenciar rostos. Li um caso severo de prosopagnosia onde todo mundo que chegava perto do paciente tinha que dizer seu nome pra que ele soubesse quem é, inclusive a mulher dele. Os únicos que não precisavam fazer isso eram dois amigos, um por ser muito alto e o outro por ter um defeito físico. Quem tem essa doença vê perfeitamente, mas para ele dois olhos, um nariz e uma boca são todos muito parecidos, ele não consegue diferenciar esses detalhes minúsculos que tornam cada rosto único. Não existe diagnóstico para isso, mas acredito que a incapacidade que eu e muitas pessoas temos para identificar carros seja mais ou menos por aí.

Meu amigo Anderson tem. Ele locou um carro, viajou com ele, e quando devolveu não sabia dizer que carro era. Eu teria feito a mesma coisa, se soubesse dirigir. Não sei e não pretendo saber. Eu digo que se tivesse um carro, seria obrigada a fazer uma adesivagem bem aberrante nele, algo como encher o carro de bolinhas roxas. Senão, certeza de que perderia um carro no estacionamento para nunca mais encontrar. Já passei muitas vergonhas por causa dessa minha autopagnosia. Pior coisa é quando vou receber carona de alguém e a pessoa: “Me espera no estacionamento da farmácia, eu tenho um C3”. E lá vou eu no lugar, na hora marcada, e fico passando pela bunda de todos os carros à procura do nome. E quando acho o nome certo, passo discretamente pela frente do carro – vai vou entrando e nem é da pessoa? A não ser que a pessoa tenha uma Kombi, um fusca, um Uno (modelo antigo) ou um Ford Ka, é certeza que eu não sei que carro é.

Antes eu sentia vergonha por não saber diferenciar os carros. Até que um dia eu saí com um paquera. Ele me pegou na faculdade e parou o carro poucas quadras antes de um barzinho. Conversamos, voltamos pelo mesmo caminho e parei na frente de um carro. 

– Por que você parou?
– Esse não é o teu carro?
– Não, ele está na quadra debaixo. E nem ao menos é dessa cor.

Enquanto eu estava quase me escondendo debaixo daquele carro de cor diferente, ele viu a coisa de maneira muito otimista: “Isso mostra que você não é Maria- Gasolina”. 

Olha, não sou mesmo. Não que quem ligue pra carro necessariamente seja, claro. Mas isso me lembra um dia que estava no McDonalds e o Luiz encontrou um ex-colega de trabalho. Eles se cumprimentaram de longe e ele comentou que não sabia que o Fulano havia se separado, porque aquela mulher e aquela adolescente que estava juntos com ele não eram a que ele tinha conhecido. Tudo bem, a vida é assim mesmo. Só que mais tarde fui ao banheiro e por acaso a tal mulher e filha adolescente estavam lá. Mãe e filha estavam analisando o currículo do sujeito:

– Ele tem um Fluence. Um Fluence está custando na faixa de pelo menos 65 mil reais.

(Claro que eu tive que inventar o carro e pesquisar o preço, porque eu não lembro)

A casa

A casa é como um segredo meu, com a vantagem de que não estou guardando segredo. Ela está lá, para quem quiser ver. Mas aquela rua é isolada, muito ruim para os carros e faz parte de um caminho a pé que só eu faço. Então, a casa é só minha. Na primeira vez que a vi, ela me chamou tanto atenção que fui andando devagar, olhando para ela, e quase torci seriamente o pé. É uma casa de madeira, dessas polonesas que pouco a pouco estão deixando de existir. Ela teria tudo para ser igual às casas vizinhas, que são de tijolo mas claramente um dia foram iguais a ela. O que a casa tem de lindo, de diferente, é o toque hippie que os donos colocaram. A parte do gramado da frente é toda cercadinha, com várias plantas e pedras espalhadas. Recentemente, fizeram um canteiro de flores em forma de coração. Logo atrás dele, há um sofá antigo com vasos de plantas. É tudo feito como eu e você faríamos, dá pra ver que não há um trabalho de um paisagista ali. Por todo muro- daqueles antigos, de concreto – há vasos de plantas. Nas janelas, há bandeirinhas indianas, que parecem de festa junina, com dizeres em sânscrito. No meio das duas grandes janelas da frente, há como se fosse uma bandeira, com um símbolo esquisito, com três bolas grudadas dentro de outro círculo. Por causa dessa bandeira eu me pergunto se ali é alguma espécie de associação. A subida que conduz o carro à garagem também tem vasos de plantas. A entrada principal e da garagem são as mesmas. Nessa entrada, há uma placa em bronze, logo acima da campainha, com uma mensagem, algo como “aqui cultivamos sorrisos”. Há sinos dos ventos, bandeirinhas, mandalas, várias coisas penduradas para captar o movimento. Não sei descrever a quantidade de penduricalhos que tem lá. Todo material usado é pedra, madeira, coisas simples, com história e que tendem ao oriente. Da rua dá para para perceber que no fundo da casa há mais plantas, redes, cadeiras, tudo convidativo. Há também um vira-lata, daqueles amarelos.

 

Sempre torço, quando passo por ali, para ver alguém entrando ou saindo. Eu vejo uma vez ou outra um carro, que ao invés de estacionar na garagem ou passar pelo canteiro de flores, pára meio de lado na grama. É um carro desses grandes (não me peçam mais informações porque carro é tudo igual) e tem um adesivo de Ganesha. A casa me convidava de tal maneira que muitas vezes estive muito perto de apertar a campainha, ou até mesmo de passar pelo portão. Ela me faz pensar que seus donos são um casal hippie de meia idade: ele, de longas barbas brancas e camisa de tie die colorido; ela, com um cabelo longo e acizentado, partido no meio, e saia até os pés. Simpáticos, eles me convidariam para entrar, e conversaríamos como velhos amigos em cima de almofadas coloridas, cheiro de incenso e ao som de Ravi Shankar. Claro que as possibilidades disso ser verdade são mínimas, nulas. Gosto de fantasiar que naquela casa há um portal para outro mundo, com amigos e relações que estão inacessíveis para mim. Que se eu virasse à direita – a casa fica sempre à minha direita quando estou caminhando – poderia começar relações novas, experimentar amigos e coisas que nem imagino, totalmente distantes do que eu tenho hoje. Ela está lá, me convidando todos os dias e todos os dias eu lhe digo que não, que estou feliz no meu atual caminho.

Uma flor

Como a própria Rita disse no seu post, nós nos conhecemos. Eu não sabia que ela vinha e fui surpreendida com uma mensagem, foi algo meio “ou vai ou racha”. A TIM derrubava a ligação toda hora, a Família Paschoalin não encontrava lugar pra almoçar em Santa Felicidade (!?), mas corre daqui e corre de lá, nos encontramos todos no Bosque Alemão e passamos algumas horas muito agradáveis. Não foi a sensação de conhecer um amigo virtual, e sim de encontrar alguém que você já conhece de longa data e aquela ilusão de que pode voltar a encontrar de novo qualquer dia desses, dobrando a esquina.

Quando já tinha voltado, a Rita veio falar comigo no Facebook. Com medo de ser mal interpretada, mas também sabendo que era um elogio, ela veio me falar que eu sou “muito mais gracinha” do que pareço virtualmente. Depois, no próprio mural, ela disse que eu sou “uma flor”. Ela não me ofendeu de maneira alguma, tive que dizer – eu sei. A Luciana me disse algo parecido, quando escreveu no seu próprio blog, após sua vinda a Curitiba, que eu fui uma surpresa boa. Parecia tão antipática assim? Não, responderiam as duas em uníssono. Até salvei os twittes da Lu : “ahaha, eu explico. sempre te achei inteligente, ironica, precisa, sagaz e várias virtudes cognitivas. mas não sabia que você era também suave, doce e uma pessoa tão disponível e delicada. foi ótimo passear com você”. As palavras da Rita foram: “Mas você não revela nos seus textos esse seu lado gracinha’ “.

Não, não revelo. Sempre digo que a escrita é uma coisa mentirosa, apenas uma versão escolhida e a escolha da minha versão deixa de fora esse lado. Poucos amigos reais se tornam meus leitores, tamanha antipatia que essa persona virtual talvez tenha perto da realidade. Eu nem saberia o que escrever se tentasse incluir esse lado. Talvez eu tenha medo de soar piegas. Talvez seja uma tentativa débil de me proteger, como uma cobra budista. Felizmente, apesar de tudo, uma pessoa e outra toma coragem e se dispõe a me conhecer e descobre a verdade. Mais: ela conta pros outros.

Queridas, essa é minha débil e meio envergonhada tentativa de mostrar aos outros o que vocês viram e eu não sei exprimir. Muito obrigada por me encontrarem, apesar de tudo! Agora voltaremos à programação normal.

Tempo

Olho para trás e nem sei como pude fazer aquilo. A minha rotina era acordar cedo e ir para a faculdade. De tarde, ia para o mestrado. Não eram dois lugares diferentes, eram dois estados diferentes. A mesma rua, o mesmo local, tudo pode ter um significado totalmente diferente se você passa lá com o intervalo de algumas horas. Assim era eu, em poucas horas – aluna de graduação e de mestrado. Quando tentei o mestrado, estava no segundo ano da graduação e já tinha outra faculdade. As pessoas já não iam muito com a minha cara na faculdade, a CDF mais velha que tinha desprezado abertamente o centro acadêmico logo nas primeiras semanas de aula. Mas os professores gostavam de mim, aquela aluna que sentava na frente, anotava muito e prestava atenção. Só que, como vocês podem imaginar, as coisas não foram feitas para que as pessoas façam graduação e mestrado juntos. Eu pude porque a matrícula de graduação fica num registro geral de alunos e a de pós fica no departamento, então eu aproveitei a brecha. Os alunos que já não iam com a minha cara passaram a me detestar – o que foi bom, porque eu não precisava fazer social e podia passar todo tempo lendo. Os professores acharam que eu devia largar a graduação. Claro, eu devia largar o menos importante em nome do mais importante. Mas eu sabia que se fizesse só o mestrado, seria para sempre a psi com mestrado em sociologia, e eu não me via como psi há muitos anos. Mais ainda depois de dois anos estudando sociologia. Então eu queria muito o diploma de socióloga. Se fosse para escolher trancar alguma coisa, por incrível que pareça, eu teria trancado o mestrado. Por isso resolvi ir levando, fazendo mestrado e graduação juntos. Numa tacada só, desagradei todo mundo. Como a expectativa era que eu não desse conta, soube que jamais poderia me queixar, pedir pra que aliviassem algo, me dessem um prazo maior para entregar um trabalho. Por isso levei ambos a ferro e fogo, fazendo tudo direito, comparecendo às aulas, ao grupo de estudo, às palestras, entregando todos os trabalhos, fazendo todos os seminários. Passar doze horas dentro da Reitoria era o normal. Eu estava sempre tão ocupada que, por mais que trabalhasse, sempre havia mais uns cinco trabalhos me esperando. A vantagem do fim de semana era trabalhar de pijama, só. Minha carga de leitura era inacreditável, eram centenas de páginas por dia. Foram dois anos inteiros sem saber o que é descansar, sem ter tempo para nada. Quando um amigo queria me ver era um problemão, eu ficava torcendo pra não me ligarem. Isso me obrigava a abrir espaço na agenda e  atrasar toda minha programação fechada, sendo que na verdade eu não sentia falta de ninguém porque pra mim o tempo sempre voava. Meu descontrole emocional no fim daquele período era tão grande que eu chorava em praças de alimentação, em saída de livrarias quando não encontrava um livro, na frente do computador quando recebia e-mail do meu orientador. Eu não lembro do que vestia, do que comia, como era o meu cabelo na época. As pessoas me admiravam, achavam que eu era um gênio sociológico e eu jamais havia me sentido tão miserável. Naquela época eu tive clareza de que aquele sonho acadêmico era o da minha mãe e não o meu.
Mas apesar de tudo isso, havia uma tranquilidade. Em meio àquela atividade frenética, eu tinha a certeza de estar fazendo o meu máximo, que eu ia chegar a algum lugar, que eu era competente. Hoje somos socialmente estimulados a não ter tempo pra nada. Há a tendência a achar que quanto mais ativo melhor, o que não é verdade. É a diferença entre se debater e nadar, esmurrar e dar um soco. A quantidade de coisas que eu li naquela época foi tão grande que minha mente apagou tudo. Dei as costas a tudo, exausta, achando que depois colheria os frutos e nunca mais consegui voltar. Lutei tanto por algo que nem… Sofri um efeito rebote e da loucura de trabalhar o tempo todo fui para a disponibilidade total de tempo – meu destino parece gostar de seguir os mesmos extremos da minha personalidade. Hoje tenho toda pausa e solidão que preciso, até mais do que preciso. Dos extremos, o agitado é mais fácil para mim. Ele é mais fácil de explicar, é mais o que se espera. Fazer o que os outros esperam de mim: tenho um lado Augie March difícil de curar. Eu era mais, aos meus olhos e aos dos outros. Não tenho saudades do descontrole emocional e da absurda falta de tempo, mas tenho saudades do sentimento de importância. Aquele não era o melhor dos mundos e este não é o melhor dos mundos. Esse negócio de lançar sementes e esperar brotar da terra é o avesso do que sou. Sinto como que se não estivesse fazendo nada, como se tivesse morrido. Descobri que espera e inferno são aparentados. Se não estou torturada pela atividade, me torturo com dúvidas. Tenho que achar um meio termo, eu sei.