A voz dos selvagens

selvagem

A antropologia surgiu quando os europeus conheceram novos mundos e se depararam com os “selvagens”. Primeiro através do relato de pessoas que comercializavam direto com eles, depois pela iniciativa de alguns corajosos, foram levantadas as informações sobre esse novo tipo de gente, que se vestia, tinha lendas, línguas, tudo tão exótico. Fizeram muitas teorias sobre eles, que essencialmente diziam que havia uma linha evolutiva que começava com a selvageria e barbárie dos primitivos e terminava na civilização européia; começava com a magia e religião e terminava com o pensamento científico. Não havia nenhum valor no que vinha “deles”, um estágio substituía o outro – um raciocínio que ainda hoje é difícil de abandonar. Era possível ser “antropólogo de gabinete”, pegar os diversos relatos sobre um povo e com esse material formular teorias sobre eles. Há uma história famosa e bem ilustrativa que diz que James Frazer, autor do influente O Ramo de Ouro (1890), quando questionado se gostaria de conhecer um dos seus selvagens, respondia: Deus me livre! De lá pra cá as coisas mudaram de tal forma, que não apenas não é possível ser antropólogo sem ir a campo, como o seu objeto de estudo hoje provavelmente sabe ler e escrever, e pode aparecer no dia da defesa e dizer: “está errado, não é isso que eu penso, você não entendeu nada”. Era muito mais fácil antes.

Uma vez uma pessoa – que já adianto que tinha curso superior e todos os requisitos necessários para ser levada a sério – disse, ao voltar da sua viagem à Africa do Sul, que lá havia mais brancos do que negros. Foi uma dessas viagens de excursão, naqueles hotéis magníficos e programação toda fechada – e em todos esses lugares, falando inglês com os turistas, estavam funcionários brancos. Quando eu e as outras pessoas presentes tentamos dizer que não era verdade, que ela havia ido para a Á-fri-ca, ela reafirmou. Na África do Sul havia mais brancos do que negros, ela viu.

É fácil entender a lógica desse raciocínio, que coloca os próprios sentidos acima de qualquer outra informação. Acabo de ler no meu facebook uma discussão que relaciona minorias com os governos de esquerda e termina com: “o Brasil e nós não aguentamos mais a falta de políticas públicas sérias que busquem a reforma do Estado e afastamento desses vícios“. No mundo das minhas lembranças e mais ainda nas lembranças de pessoas mais velhas do que eu, não existiam tantas minorias. Vá lá, havia sempre algum tio esquisito e que morreu solteirão, a empregada negra que era “quase da família”, a Roberta Close. Nós literalmente não víamos as diferenças, elas não frequentavam os clubes e as igrejas. Muita gente quer voltar a esse mundo – se um dia ele foi assim, por que não pode ser de volta? – sem se dar conta que não é uma questão de um governo ou outro e sim parte de uma mudança maior, um equilíbrio nas relações de poder. Elas se perguntam porque os gays de hoje não podem ser discretos como o tio esquisito, sem se perguntar se o tio esquisito gostava de se esconder. As minorias querem mais do que assistir e dizer que está errado, querem estar na mesa e apresentar teses também. Antigamente era mais fácil – mas pra quem?

Leão no apartamento

leão

Parece Cortázar mas é Animal Planet. Lembrei e fiquei com vontade de contar.

Era uma série que só falava de casos de pessoas que adotaram grandes felinos (na sua maioria) e acabaram morrendo por isso. Não sei se o recorte do programa dava uma impressão errada, vai ver que fora os casos descritos existem milhares de pessoas com leões, onças e jaguares de estimação e que vivem muito felizes com elas; no programa, todos os retratados tinham uma relação tão apegada com os bichos que era algo doentio, como se o felino o dominasse. Se ter um gatinho doméstico em casa já deixa as pessoas meio servos deles, imagino que um gato de toneladas tenha um poder que enlouqueça um pouco. Essas pessoas ficavam cada dia mais fechadas no mundo delas, faziam tudo em função do bicho e com o tempo ficavam muito imprudentes – se aproximavam de fêmea furiosa no cio, de bichos famintos, etc. Aí um dia o bicho perdia a cabeça e atacava. Era só um rompante, igual memória curta de cachorro, mas como o animal era forte demais, um simples rompante desses era fatal.

O caso mais interessante que eu vi eram de dois irmãos que, não sei como, arranjaram um filhote de leão e levaram pra um apartamento. Se não me falha a memória o apartamento ficava no Bronx, era um lugar bem central. Um dos irmãos ficou com o leãozinho e o outro ajudou a guardar segredo. Claro que o lindo filhotinho foi crescendo, passou a comer muitos quilos de carne crua por dia, a ter uma pata do tamanho de uma cabeça e se sentia meio confinado. Mostraram imagens das paredes arranhadas de cima abaixo. O rapaz passou a viver em função do leão – ele não trabalhava e mal saída de casa, praticamente só saía para comprar comida. Os vizinhos só o viam de vez em quando no elevador. O outro irmão nem ia mais para o apartamento, mandava dinheiro e deixava coisas na porta. Eu fico imaginando a existência estranha de uma pessoa num apartamento submetida, apaixonada e hipnotizada por um leão. O leão esparramado pela sala, enorme, com o peito subindo e descendo suavemente a cada respiração. Passar uma escova na linda juba do leão. O leão deitar a cabeça no seu colo na hora do jornal. Pelos de leão pela casa. Dar banho no leão. Olhar para o leão estraçalhar com facilidade grandes pedaços de carne crua.

O que causou o fim do relacionamento foi quando apareceu um gato – desta vez um normal, doméstico – no corredor do prédio e o rapaz resolveu adotá-lo também. Tadinho do gato. O leão não viu ali um parente. O rapaz notou que desde o primeiro instante o leão olhava estranho para o gato e ele ficou de olho no leão olhando para o gato. Aconteceu o esperado: o leão tentou comer o gato, e quando o rapaz viu o que estava pra acontecer, tentou evitar o bote. O leão amava mesmo o rapaz, porque ele se meteu entre um leão e a sua caça e saiu vivo. O leão apenas o afastou, o que fez o rapaz voar longe e quebrar vários ossos. Ele ligou pro irmão pedindo ajuda. No hospital, com aqueles ferimentos, eles tiveram que se explicar para os médicos. Aí o programa mostrava imagens reais da fachada do prédio, vizinhos consternados, uma multidão acompanhando. Atiradores entraram no apartamento com tranquilizantes. Imagina a sensação de invadir um apartamento com um leão dentro. O leão foi levado para um zoológico e os irmãos foram punidos.

Védico e sideral

Nakshatra wheel

A ideia de gostar de um outro país e tê-lo como sua cultura do coração sempre me pareceu meio boba. Sempre tive simpatia pelos argentinos, mas eu sei que diante de um argentino de verdade eu nada mais sou do que uma brasileira, e por aí vai. Então, eu mesma fiquei surpresa quando comecei a ler sobre os nakshatras e sentir uma euforia no coração. Não tenho como explicar, apenas adoro coisas relativas à Ìndia. Passei a adolescência inteira lendo sobre yoga e parei de comer carne por isso, sonhava em ir pra um ashram, ouvia as músicas, enfim, seguia toda cartilha mística.

Em linhas gerais, é assim: existem duas grandes correntes na astrologia. A que se pratica aqui é a tropical e a que se pratica no oriente é a sideral. Sem entrar em detalhes, a diferença de cálculo é porque na tropical a mudança dos signos está ligada às estações do ano, na sideral às constelações. Os pressupostos de uma e outra são diferentes, e querer transportar automaticamente o conceito de uma para outra é igual quando a gente acha que sabe espanhol e se depara com falsos cognatos. Os signos da astrologia védica são quase um signo inteiro para trás. Aqui é signo é determinado pelo sol e lá pela lua. Exemplo: no mapa ocidental, eu tenho o sol em gêmeos e a lua em touro, o que me torna geminiana; no oriental, eu tenho o sol em touro e a lua em áries, o que me torna ariana.

Aqui um signo é sempre igual nos seus trinta graus. Tem os quadrantes, mas na prática ninguém diz que alguém que nasceu no início de um signo é diferente de quem nasceu no fim. Lá, os signos são divididos a cada 13 graus e 20 minutos, que são os nakshatras. E cada nakshatra tem 4 subdivisões, os padas. Cada nakshatra corresponde a um símbolo, um modo de energia, estrelas, deuses. As histórias indianas me fascinam pelos caminhos inesperados, algo que uma mente ocidental jamais conseguiria produzir. Olha que legal esta história (resumida), que corresponde a um nakshatra que fica em câncer sideral.

O grande sábio Kashyapa , o filho nascido em desejos do Senhor Brahma , era casado com as duas filhas Kadru e Vinata . Ambas as irmãs eram de grande beleza e inveja uma da outra. Kashyapa ficou extremamente satisfeito com os dois e ofereceu a cada um deles uma benção.

Kadru disse: “Que mil filhos de incomparável força e valor nascem para mim!” E para Kadru nasceu a raça das serpentes, um total de milhares delas, dotadas de grande força. Quando chegou a sua vez de escolher seu benefício, Vinata disse: “Que dois filhos sejam nascidos para mim, os quais eclipsarão os filhos de minha irmã em força, valor e fama”. Vinata colocou dois ovos. Quinhentos anos se passaram, mas os ovos não nasceram.

As irmãs Kadru e Vinata se envolveram em uma discussão. Kadru perguntou a sua irmã: “Irmã, qual é a cor do cavalo divino Uchaishravas que pertence a Indra ?”

Sua irmã respondeu: “É de uma cor branca impecável, desde o nariz até a cauda magnífica”.

Kadru disse: “Você está errada. Embora seja verdade que seu rosto e seu corpo são de uma cor branca impecável, eu acho que sua cauda só é uma cor preta brilhante. Diga-lhe uma coisa, vamos apostar neste tópico.” Se você estiver certa, eu me tornarei seu escrava. Se eu estiver certa, você deve se tornar meu escrava. “

Vinata aceitou a aposta. Kadru sabia que o cavalo era branco de um lado para o outro, então ela arquitetou um plano. Ela chamou seus filhos e disse: “Eu aposto com sua tia que o cavalo Uchaishravas possui um rabo preto. Você deve fazer as minhas palavras se tornar realidade. Vá em frente e enrosque-se em torno de sua cauda e dê uma aparência preta.”

Retirado daqui.

Só duas cobras não aceitaram fazer parte disso, e são essas duas nagas que fazem parte do nakshatra de Ashlesha.

 

O ciclista, o dono e a florzinha

flor cabelo

O ciclista pelado: É através do ciclista pelado que eu sei se estou atrasada ou não. No horário ideal, ele está passando na frente da minha casa quando estou saindo. Algumas dessas vezes, eu também estou ciclista. Claro que ele não anda literalmente pelado, não é o Oil Man – pra quem não é daqui, informo que o Oil Man circula pelo centro. O ciclista pelado é um rapaz comum, de barba, na faixa dos seus vinte anos que passa por aqui todos os dias, acredito que a caminho do trabalho. Eu me refiro a ele como pelado porque muitas vezes a temperatura está abaixo dos dez graus, eu mesma pedalando com duas calças, casacos, corta-vento e balaclava, e o sujeito está de bermuda. Pelado.

O dono de pet que odeia falar de cachorro: Antes eu comprava ossinhos pra Dúnia numa loja no centro, mais barata, mas como não passo por ali com frequencia suficiente, tive que me contentar com uma pet um pouco mais cara aqui da região. Circulando por ali, ficam sempre três lindos pastores alemães entediados. Outra coisa muito característica é que sempre tem um problema na conexão, no computador ou sei lá o que, então ele precisa anotar meu cpf na mão. Talvez seja pelo fato de ouvir as mesmas coisas o dia inteiro, mas sempre tentei falar qualquer coisa sobre cachorro -nada sério, papo de balcão- , o cara não apenas me ignorou com só faltou fazer cara de tédio.

A senhora sorridente que gostava de acessórios no meu cabelo: Essa me fez perceber o quanto somos influenciáveis pelos elogios. É a loja onde gosto de comprar a granel. Tinha duas funcionárias, e a mais velha era uma senhora simpática que ficava muito feliz em me ver. Conversávamos sempre. Um dia fui com uma fivela de uma florzinha branca no cabelo e ela ficou encantada, me achou linda. Outro dia também, com uma flor vermelha; na terceira vez não estava usando nada, ela não me elogiou. Quando me dei conta, eu me programava pra sempre colocar um acessório no cabelo quando passava na loja. Um dia fui lá, de flor no cabelo, estava a outra funcionária e duas adolescentes em treinamento. A senhora sorridente se aposentou. Nunca mais passei lá de florzinha.

Um episódio machista

atelier

Já falei algumas vezes aqui que fui escultora. Eu tinha vinte e poucos anos. O atelier é público e fica no Parque São Lourenço, na base de um monte, digamos assim. Conto isso pra vocês saberem que era quente. Trabalhar lá era muito sujo, então eu comprei um macacão jeans grosso, igual aqueles de mecânico. Tem foto minha neste post usando ele. Uma vez eu estava lixando uma peça à mão, no verão; lixar já é um trabalho braçal, então imagine num lugar quente e usando um macacão jeans. Peguei a peça e saí do atelier, sentei num banco meio isolado que tem perto da entrada. Cabelo preso, macacão sujo, lixa e escultura.

Acho que não aguentei nem trinta minutos e voltei para dentro, furiosa. No pequeno período que eu passei lá, fui abordada por três homens, em separado. Eu trabalhando e do nada surgia um homem e se sentava na minha frente e começava a me cantar. O primeiro eu até me dei ao trabalho de responder secamente, mas depois veio outro e outro, e senti tanto ódio que não conseguia nem falar. Porque eu percebi bem o que estava acontecendo: como eu estava com aquele macacão sujo, concluíram que eu era uma funcionária, uma trabalhadora braçal – mas novinha e bonitinha. Então, eles acharam que tinham todo direito de tentar alguma coisa. Quem sabe eu até deveria me sentir honrada, porque eu era uma pobre coitada e eles estavam dispostos a dormir comigo mesmo assim. Sabe aquele pensamento senhor de engenho com as escravas, patrão com a empregada?

Saí do atelier há mais de uma década, nunca mais lixei nada e não cheguei nem perto de vestir um macacão sujo, por isso achei que nunca mais passaria por nada semelhante. Até que eu me divorciei.

O mar da ignorância

monstro lendo batu nieby

Não são poucos os que tem desanimado. Do meu ponto de vista, um dos muitos motivos para o encolhimento dos blogs é a falta de diálogo, pra quê ter o trabalho de escrever um texto, se expor e levar pedradas. Porque o problema não é discordarem – uma discordância bem fundamentada é até estimulante, mas hoje o debate anda raso como torcida de reality. Pra não nos sentirmos remando contra um mar de ignorância, cada um tem falado com seu próprio grupo, seus amigos, sua bolha. Mas, ao mesmo tempo, justamente agora é importante falar. Se você se retira, o espaço é preenchido por alguém que pode ter muito menos a dizer. E há algo que eu acho muito importante, quase do mundo ideal: não ser agressivo. Eu sou mulher, e me sinto agredida quando apoiam candidatos que dizem que mulheres deveriam ganhar menos e que consideram o estupro uma forma de mérito. Eu me sinto agredida quando desvalorizam negros, nordestinos, pessoas de baixa escolaridade e/ou baixa renda, homossexuais e minorias em geral, porque também me sinto uma minoria. Mas eu sei que o que o outro lado espera de mim é que eu me descompense. Isso só vai reforçar o que já pensam; minha atitude agressiva seria como um “ela começou”, “são todos assim”. Soa meio como Gandhi, eu sei. É a minha pedrinha em meio ao que estamos vivendo, o que eu consigo fazer para não me omitir e conseguir ser feliz. Por favor, leitor, encontre a sua.

Um fado

Vamos mudar um pouco o clima desse blog. Eu vejo o vídeo e me imagino passando mal de rir, porque tentaria não rir para não desrespeitar os anfitriões e só pioraria as coisas. Obrigada pela pérola, Antônio!

 

Mensagem

hug

Eu sou uma pessoa de muita fé. Fé, da maneira como eu concebo, é um otimismo sem base na realidade, é acreditar que as coisas seguem uma direção melhor mesmo que nada na realidade indique que existe essa direção. Que das coisas ruins tiramos lições. Mas isso sou eu, para mim, algo muito pessoal. Há dias tenho tentado escrever para uma amiga. Ela dança, nada, é linda, tem um filho adolescente, é poucos anos mais velha do que eu e o câncer voltou. (Que semanas, amigos, que semanas) Até agora fui incapaz de escrever a ela palavras de apoio, nem duas linhas. Falar de Deus, de lições, ter fé, tudo me parece tão vazio. Lembrei de uma história sobre Gandhi, quando lhe pediram para intervir com alguém que comia muito doce e estava com diabetes, que Gandhi lhe pedisse para parar. Ele levou dias sem falar com a pessoa, e acharam que era insensibilidade. Depois de semanas ele explicou: antes, não podia pedir, porque ele mesmo não havia conseguido.

Telefonema

telefonema

Foi difícil. Quando a terça-feira passou e ela não me ligou, eu sabia que ela havia morrido. Tenho do lado do computador um calendário onde anoto os compromissos, e quando fui anotar aquele dia, a intuição me disse que iria riscar meu calendário à toa. Eu ouvi e entendi, mas fiz questão de marcar, como se o meu gesto com a caneta fosse mudar a realidade. Esperei ansiosa o dia inteiro, a manhã seguinte. Ela vinha tendo tantos problemas de saúde que era comum não atender o telefone na hora e ligar mais tarde. Mas eu sabia que não era o caso. Entrei em contato com a única pessoa em comum que tínhamos. A amiga em comum ficou de ligar, de ver, de entrar em contato. Mandou um e-mail pra família meio que para constar. Na teoria que ela formulou, nada havia acontecido, foi como umas férias inesperadas, uma manipulação. “Ela vai ligar mais tarde, quando estiver assistindo a novelinha dela”. Fiquei tão irritada com o tom condescendente. Combinamos de passar as novidades uma para a outra, de continuar ligando. Eu não liguei mais, não tinha coragem – me dava arrepios saber que o telefone do outro lado estava tocando para o vazio. Para tentar convencer, dei a cartada final e disse a verdade: ela está morta, há poucos dias ela me ligou avisando que iria morrer, que havia sido avisada num sonho. “Se ela tivesse sonhado isso teria me dito”. A novelinha dela, a manipulação. Se em poucas palavras eu percebi esse tom, o que ela não terá percebido. As pessoas me contam cada coisa, vocês não sabem. Me contam porque sabem que eu não as julgo. Pessoas de família margarina não ouvem confidências sobre problemas familiares, pessoas contra “abortistas” não ouvem confissões sobre fazer um aborto. Ela me contou que iria morrer. Eu me sentei e agi com o máximo de naturalidade que eu pude diante do direito de alguém de finalmente descansar. Abriram o apartamento e encontraram o corpo na sexta-feira.

Feroz

judges

Eu não gosto de realitys que deixam as pessoas entediadas dentro de um ambiente fechado, mas gosto muito daqueles que fazem a pessoa trabalhar em meio a outros profissionais da mesma área. Terminei há pouco a 10º temporada de Project Runway e comecei a 9º de Ru Paul´s Drag Race. Numa dessas duas, teve gente que surtou e foi embora. Programa super concorrido, o sonho das pessoas e elas surtam. A organização não gosta, os outros participantes dão a entender que são covardes e pega muito mal. Quando entra, todo mundo se descreve como ambicioso, disposto a tudo, feroz, aquele que vai dar trabalho. Aí coloca a pessoa entre estranhos, trabalho duro, críticas, surpresas, sem lazer e longe do seu círculo de afeto. Descobrimos que, dos doze que se diriam ferozes, só dois são e olhe lá.

Não condeno quem sai, eu nem iria porque sei que seria massacrada. Mas sei disso hoje. Eu com vinte também me descreveria como feroz – é uma soma de imaturidade, expectativas sociais e o desejo de ser realmente feroz. Ninguém quer se ver como circunstancial e formiga operária. Hoje, na realidade, nem gosto das pessoas ferozes. Muitas vezes quem se dá bem nesses programas é quem se alimenta do descontrole alheio, quem cresce em cima dos outros. Aí me lembrei de um dos muitos motivos que larguei a psico: eu não queria realmente “tratar” os que me procuravam. Eram pessoas sensíveis que sofriam na mão dos ferozes e com a cobrança do mundo em sermos ferozes. Elas realmente precisavam de ajuda para conseguir se proteger e enfrentar, mas o que realmente precisa de tratamento é a agressividade do mundo.

Ilibada

no-de-oito

Lembro de uma enfermeira que eu conheci, que num determinado momento da vida prestou concurso para trabalhar nas Forças Armadas. Nunca convivi muito com ninguém que foi das Forças Armadas, então repetirei apenas o que ela me disse, ok? Quando ela entrou, por ser uma pessoa correta, achou que conseguiria ter um currículo sem nenhuma prisão. Isso acabou não acontecendo. Lembro de um rapaz que me contou que foi preso porque se atrasou. Minha amiga nem me contou o motivo, mas ela foi presa. De acordo com ela, existe uma pressão pra isso, que de certa forma era pretensão dela achar que nunca seria presa, as pessoas não largam do pé até que aconteça.

Eu acho que a vida também faz isso com a gente. Temos a pretensão de passar ao largo dos erros – mas, à medida que avançamos, a coisa vai ficando confusa e as escolhas limitadas. Muitas vezes o moralmente correto é escolher entre o sacrifício anônimo e o prazer. Quando conhecemos aquele que parece que conseguiu passar por tudo sem cometer um deslize, ele não passa uma impressão feliz, pelo contrário, soa mais como arrogante e invejoso. Isso me faz pensar que o erro (ou pecado, use o termo que quiser) é inevitável, e na balança o não jogar o jogo seja o pior deles.

Insight

biarticulado

Eu estava na última parte do Biarticulado, ou seja, no ônibus, para variar. Entrou um mendigo pela porta 3 e ele começou a se dirigir às pessoas que estavam ali, naquele pedaço. Eu podia vê-lo falar e seus gestos, mas não conseguia entender o que ele dizia. Depois passou de cadeira em cadeira. O discurso – ou o método de parar na frente de cada um – foi muito eficiente, porque pelo menos três pessoas lhe deram esmola. Lembro especialmente da última moça, que pegou um porta moedas barulhento e prendeu as mãos dele nas suas enquanto lhe falava alguma coisa, acho que de Deus.

Meu dia havia sido agitado e bom. Quando ele chegou na parte do ônibus que eu estava, se encostou na pilastra e falou algo como: “Eu agora vou lhes falar sobre Respeito”. Eu estava sentada bem na ponta. Antes de começar a discursar, ele se virou para mim e eu coloquei na palma da mão dele uma moeda de um real, aquela moeda gorda. Ele olhou para mim e eu olhei para ele. Eu estava de óculos escuros. Aí ele me perguntou se eu era enfermeira, psicóloga, assistente social ou alguma dessas profissões que cuidam de pessoas. Fiz que não com a cabeça e ele me disse que parecia, e foi para o banco contar suas moedas.

Insights chegam de maneira inexplicável. Quando ele me olhou nos olhos, alguma coisa aconteceu. Lembrei das pessoas com quem havia tratado nas últimas horas. Me dei conta de que todas sorriram pra mim. Algumas dessas pessoas eram conhecidas, digamos assim – sou uma pessoa arraigada a hábitos e horários, e desenvolvo com meus lugares preferidos uma relação de amizade. Outras pessoas não, resolvemos alguma coisa naquele momento e talvez nossos caminhos nunca mais se cruzem. Estou sempre sozinha e não estou. Aquelas pessoas haviam me dado um pouco do seu calor, provavelmente porque eu dei um pouco do meu para elas. Quando percebi isso, alguma coisa se curou aqui dentro. Mais especificamente, minha tristeza por não escrever um livro. Este blog, estas linhas, e uma pessoa ou outra achar que eu tenho talento para a literatura, tudo isso é uma consequência dos meus passeios pela rua e nos ônibus, da maneira como eu reparo nas pessoas e gosto das suas histórias. Meu verdadeiro talento talvez seja esse, a capacidade de olhar para as pessoas e gostar delas. Como uma Oprah sem programa. Talvez eu escreva para sempre livros que não satisfazem editoras. Tudo bem.

Ninguém ouve o Dr. Drauzio

Acho que o Dr. Drauzio Varela é uma daquelas poucas unanimidades – alguém já viu uma pessoa dizer “nossa, não suporto do Dr. Drauzio”? Ao mesmo tempo, por mais que muita gente se diga fã, me parece é como aquela pessoa do grupo de amigas que é muito querida, mas que ninguém vai consultar pra um assunto realmente importante. Ou o amigo que conta piada e quando diz algo sério as pessoas riem do mesmo jeito. Pensei nisso quando me peguei relendo um link que ele fala de presidiárias, um trabalho que fecha sua trilogia sobre o sistema prisional: Estação Carandiru, Carcereiros e Prisioneiras. Demorei para me tocar que havia lido a entrevista há anos, porque basicamente ele sempre fala o mesmo: prisão não reabilita, é infinitamente mais violenta do que a simples supressão da liberdade, tem consequências sociais terríveis. Ou, mais resumido: sistema carcerário não funciona, temos que pensar em outra alternativa. Se a pessoa diz que respeita a opinião dele e quer que todo mundo seja preso, tem alguma coisa errada aí. Nessas entrevistas, Dr. Drauzio nem tenta apelar para nossa empatia, ele trabalha com números e prova que o aumento de prisões não diminui violência e que é um buraco sem fundo em termos de custos.

É uma questão profunda e com muitas nuances e sei que se colocar contra o encarceramento soa para muito como “não vamos fazer nada, vamos deixar roubarem e matarem à vontade e depois ainda dar um buquê de flores”. Que os bandidos, ao contrariarem conscientemente as regras, tornaram-se parte do Mal, e o Mal deve ser combatido sem tréguas e nem acordos; não se colocar frontalmente contra o Mal, não tentar coibi-lo da maneira mais absoluta, é o mesmo que fazer aliança com ele, é como negociar com o diabo. Os discursos mais recentes sobre regulamentação das drogas também me chocam e me assustam – eu não gosto nem de bebida alcoólica, como ser favorável à liberação de substâncias que alteram mais ainda a consciência e com mais rapidez? Mas eu reconheço minha ignorância diante do Dr. Drauzio e de outros estudiosos. Entendo que, por mais chocante e pacto com o diabo que pareça, eles partem de uma lógica simples e que funciona no mundo real: a mesma atitude produz sempre os mesmos resultados. Mais polícia, mais presídios, mais armas, mais verba para polícia, presídio e armas – não é o mesmo que sempre fizemos, mas em escalas cada vez maiores?

 

 

Uma coisica

vendo tv

Sabe aquelas lembranças que chegam sem motivo e te bate uma luz? Mais: sob esse luz nova você percebe algo que te passou batido na época. Adoro uma tirinha do Macanudo (procurei aqui e não tenho) que ele, andando de bicicleta, se dá conta que a menina que dançou com ele no primário queria um beijo.

A lembrança que tenho para contar não é fofa, mas é o que tem para esta noite de pouca inspiração. Poucos meses depois de ter me separado, ouvi que “quando a pessoa está deprimida ela fica na frente da TV se enchendo de salgadinho”. Eu não percebi que a que me disse isso estava vendo nas minhas roupas caindo – porque eu fiquei esquelética – um sinal de que eu estava ótima, não estava sentindo nada.