O carnaval das impossibilidades

Percebo que passei por três fases no que diz respeito a ser determinada pelo meu passado: na primeira, “Tudo é Passado”, e cada gesto e erro da minha família havia me traumatizado. Depois, “Nada é Passado”, eu como sujeito autônoma sou capaz de escolher tudo o que quero ser e fazer, o passado foi apenas um ponto de partida. Agora dá a impressão de que direi: finalmente chegou ao ponto da minha vida que equilibra as duas visões, etc. Só que onde cheguei agora é mais parecido com “Tudo é passado”. O que mudou é que não vejo mais como culpa e sim que o que eu vivi era a minha única referência. Referências, de certa forma, nunca são boas ou ruins, elas são o que são.

Eu levei muito tempo achando o Carnaval uma data horrível. Levei muitos anos pra descobrir que é um feriado apenas de terça, porque as coisas paravam de funcionar em Salvador muito antes. Meu pai e minha madrasta amavam o Carnaval e saíam de Pipoca. Pra quem não sabe, os trios cobram bastante caro para sair com eles dentro da estrutura de segurança e banheiros. As pessoas que pagam por isso ganham um abadá e ficam dentro de uma corda. As pessoas que pulam fora da corda, aproveitando o som sem pagar, são as Pipocas. Minhas lembranças de infância do período mais hard-core carnavalesco – tudo ia parando até chegar nos cinco dias finais – eram a de sair pra brincar e encontrar uma janta fria com um chocolate do lado me esperando no final da tarde. De manhã, a porta do quarto do meu pai ficava trancada a manhã inteira. Eu comia, saía pra brincar e quando voltava havia um prato de comida com chocolate do lado. Isso ia se repetindo até o quarta-feira. A promessa de que eu iria pular carnaval de rua se tornou uma ameaça que me aterrorizou e azedou minha relação com o meu pai durante anos, até dia que ele conseguiu me arrastar pra rua e me devolveu por volta da meia noite, do tanto que eu não entrei na festa e reclamei. Não, eu não dei uma de super chata, apenas queria sentar, comer e fazer xixi depois de algumas horas. Acho que ele se iludia pensando que baixaria algum espírito festivo até a manhã do dia seguinte, igual acontecia com ele.

Meus amigos curaram minha visão de Carnaval sem querer. Acompanhando suas redes sociais, eu me alegro com a alegria deles. A Iara com as suas makes maravilhosas, o Rodrigão que fica a cara do Fidel Castro, a Silvia que tem um adereço de cabeça muito lindo, a Regina que volta às suas origens nas ruas de Recife. Eu os vejo e os imagino tirando as fotos, andando, parando um pouquinho, bebendo um pouquinho, dançando muito e depois – uns mais cedo, outros mais tarde – voltando felizes pra casa, ainda mais amigos de seus amigos. Descubro que pra maioria dos foliões, aquele Carnaval do meu pai também é considerado meio intenso, não é todo mundo que iria. Ele viveu o suficiente pra saber que desfilei numa escola de samba, junto com o pessoal que dança comigo, então tive tempo de mostrar a ele que não me tornei o oposto de tudo o que ele representava, que nem tudo dentro de mim era trauma por ele ter tentado me tornar uma pessoa extrovertida. Este ano, cantando Trem das Onze numa roda de violão, lembrei novamente dele, que considerava isso o supra sumo de viver bem e ficaria orgulhoso.

Mas os meus dons carnavalescos se encerram aí, de verdade. Gente como eu não consegue. Eu sou realmente aquela que aproveita o carnaval pra ler. Posso afirmar: a gente fala com superioridade que prefere ficar lendo, mas não é uma escolha. Ontem os amigos da minha vizinha da frente interfonaram pra mim sem querer, e me percebi quase rugindo pra eles. Por mais que goste das pessoas, estar no meio delas me exaure. Nunca serei alguém que tem as portas abertas pros amigos. Uma das maiores vantagens de envelhecer é a consciência do que está e o que não está ao nosso alcance. Essa conversa sobre pureza de hábitos ou cultura que nos faz não pular carnaval é só conversa, é coisa de quem não consegue sentir essa felicidade – e tá tudo bem também.

(Outra maneira de terminar o texto seria: “É por isso que eu escrevo”. Vocês ficam querendo conhecer escritores, mas no geral é gente que sai na rua 5 min e depois escreve páginas e páginas, como se vivesse intensamente.)