Já fui longe demais no meu caminho de destruição

O monge olhou para Angulimala como se ele uma pessoa íntegra e digna de respeito.

Angulimala perguntou: “Você é o monge Gautama?”.

O Buda consentiu.

Angulimala disse, “É uma pena não encontrei você antes.

Já fui longe demais no meu caminho de destruição.

Não é mais possível voltar atrás”.

Não é verdade que nunca é tarde para voltar atrás. Não é verdade nas leis da física – o conceito de Flecha do Tempo fala que o universo caminha de uma baixa entropia para uma alta entropia, por isso que os acontecimentos caminham sempre na mesma direção, a que chamamos de Futuro. Voltar no tempo seria como tentar pegar várias partes explodidas e tentar juntá-las de novo, a “bagunça” excederia o volume do objeto original. Voltar atrás tampouco é uma verdade orgânica. Biologicamente, o máximo que se pode fazer é tentar retardar o envelhecimento. Um órgão de uma pessoa de quarenta jamais voltará a ser o mesmo de quando tinha vinte anos, porque aos vinte estamos numa curva ascendente e depois dos trinta começamos a decair. O que se faz hoje é tentar diminuir a angulação dessa curva, tornar menos acentuada, mas sabemos que a direção inevitável é a decadência. Por fim, quanto mais velhos ficamos, mais difícil é a aprendizagem. É muito pequena a janela na infância onde tudo pode ser aprendido, desde a interpretação de estímulos luminosos serem transformados em imagens até habilidades muito especiais e refinadas, como tocar um instrumento musical. Não estou dizendo que, depois que essas janelas passam, é impossível e proibido aprender certas coisas, sempre existem os casos de pessoas que começaram tarde e se tornaram muito boas, etc. O que quero dizer que não é tudo na vida que você pode acordar, tenha trinta, quarenta ou sessenta anos de idade e dizer pra si mesmo: “nessa nova fase da minha vida, serei violinista. Nunca estudei música, mas basta contratar um bom professor e me dedicar bastante e tudo é possível.” Existe um discurso que diz que com força de vontade tudo é possível, e não é verdade.

O mundo adora os jovens, e mais ainda os prodígios. O próprio termo prodígio só se aplica a jovens, se você parar pra pensar. Um adulto que seja muito bom em algo, de certa forma, não faz mais do que a sua obrigação, porque se dedica a uma determinada atividade há muito tempo. E mesmo que ele se revele muito bom em algo que não fazia antes, vamos encontrar atividades correlatas que de forma indireta contribuíram para que ele tivesse um bom desempenho. Os jovens prodígios têm tantos feitos alardeados, que às vezes os feitos infantis se sobrepõem até mesmo ao que produziram de melhor, depois – porque o impressionante é fazer quando criança, depois de adultos era obrigação. Penso sempre em Mozart, que é tão famoso por ter sido prodígio, por ter composto a primeira não-sei-o-que na idade que nós ainda arrancávamos cabeça de boneco com os dentes. O que ele compôs naquela idade é completamente irrelevante, ninguém nem ouviu, as obras maduras de Mozart que são interessantes, mas gostamos muito de repetir a história da infância. A fixação nos prodígios faz com que nós, reles mortais, tenhamos sempre um sentimento de insuficiência. Os prodígios fizeram pelo menos dez anos antes o que você só começou a se interessar agora. Quem mandou demorar pra pensar, quem mandou querer namorar quando adolescente ou brincar quando criança, perdeu tempo!

Verdade seja dita, gostamos muito de pessoas mais velhas que voltam a estudar, talvez porque nem encaremos isso como uma volta. Conhecimento é sempre algo novo. Pensamos em pessoas que tiveram que se dedicar às famílias e ao trabalho e que só depois de tudo resolvido é que finalmente podem ir atrás do que deveria ter lhes pertencido por direito. Queremos pais e avós em universidade, que ter curso superior se torne comum. Eu adoro séries de arquitetura, como As casas mais extraordinárias do mundo e Grand Designs, e acho que não é à toa que nunca apareceu nenhuma casa brasileira por ali. Falta de milionários dispostos a ter casas fabulosas é que não deve ser, nem tudo é questão de dinheiro. Vejo nessas séries técnicas de construção e cálculos elaborados em várias etapas; aqui, o conhecimento é tão verticalizado que imagino que tremendo telefone sem fio seria conseguir fazer metade do que foi pensado pelo projetista chegar lá na outra ponta, na obra propriamente dita. Mas, para o nosso mercado de trabalho, parece que só fazer conta e ler instruções tá ótimo. É muito bonito alguém se formar já maduro, é um enriquecimento pessoal e etc., mas que ele pretenda usar o diploma que acabou de obter para entrar na profissão é outra história. Um recém-formado velho e sem experiência, o pior dos mundos.

As últimas eleições para presidente foram dominadas por fakenews transmitidas predominantemente por whatsapp, mas elas não são um fenômeno isolado, um “privilégio” brasileiro, elas estão relacionadas a um movimento anti-cientificista global. As pessoas não querem mais confiar em especialistas, que fazem afirmações baseadas em algo que só eles mesmos entendem. Por que devo confiar no que diz um livro sobre o formato da Terra se, quando olho para o horizonte, o que vejo é plano? Recomendo muito o documentário A Terra é Plana, da Netflix. Achar simplesmente é que é um bando de gente ignorante, burra e teimosa não ajuda em nada a entender o fenômeno. No documentário vemos que o terraplanismo – e podemos supor que as conclusões valem para teorias conspiratórios em geral – apenas aproveitou uma brecha que já existia na sociedade: pessoas com desajuste social e que encontram sentido de pertencimento em teorias fora do mainstream, com inteligência e espírito investigativo que não encontra meios de expressão no seu dia a dia. Como os próprios cientistas entrevistados no documentário refletem, a emergência das teorias conspiratórias também não deixa de ser um atestado de fracasso à nossa maneira de compartilhar o conhecimento científico, que de tão misterioso e isolado acaba se tornando quase mágico. E, crença por crença, o indivíduo pode se sentir mais empoderado em produzir a sua.

Acho que esta reportagem que saiu na BBC, sobre QAnon e teorias conspiratórias em geral, vai no cerne sobre o problema de se arrepender quando diz:

“Para as pessoas que estão totalmente envolvidas com uma teoria da conspiração, se o que está previsto para acontecer pela teoria não acontecer, não importa. Às vezes é aí que as pessoas se comprometem ainda mais fortemente com a própria conspiração. Isso porque, neste ponto, as pessoas investiram tanto tempo e energia nisso, danificaram suas relações pessoais em nome disso. Virar as costas à teoria da conspiração seria uma admissão de que o último ano, dois anos ou três anos de sua vida foram um desperdício”, explica Young.

O problema de voltar atrás é que nunca realmente se volta atrás, a Flecha do Tempo vai sempre para frente. Eu costumo imaginar a vida humana como uma régua, onde começamos no zero e vamos passando pelos números até chegar ao fim. Reconhecer que estamos errados é como estar lá pelo número trinta e riscar um zero em cima. Quantas vezes na vida conseguimos recomeçar a graduar no Zero sem que isso nos afete pessoalmente, sem o sentimento de vida jogada fora ou de fracasso? Em teoria, é possível reconhecer e apagar continuamente, inclusive é bastante raro que alguém não tome uma decisão que não foi a mais acertada pelo menos uma vez. Ao mesmo tempo, se tudo bem estudar uma graduação e depois trabalhar em outra coisa, se tudo bem ter um relacionamento longo e ele chegar ao fim, se tudo bem parar numa sala de aula com o dobro da idade de todos que estão lá… mas quantas vezes isso é viável? Quem suporta encher a régua da sua vida de zero, riscar aos vinte, aos trinta, aos sessenta, quantas vezes suportamos decidir, arrepender e mudar?

Meu pai bebia muito e a aposentadoria lhe deu tempo livre para beber o quanto quisesse, sem amarras. Aí ele dizia que tinha dificuldade de arranjar companhia, porque ninguém acompanhava o ritmo dele. Mesmo aqueles que, no passado, bebiam tanto quanto ele, já haviam se endireitado; os mais novos, que bebiam o tanto quanto, não viam a menor graça de ter um velho bêbado com eles. Eu lembro de mim mesma aos trinta, no meio de meninas de quinze, fazendo balé. As mães me lançavam olhares espantados e as professoras não sabiam direito o que fazer de mim, tanto que o último ato que me fez largar foi quando a Diretora nem ao menos me avaliou. Fizemos um dia inteiro de prova, fomos testadas de várias maneiras, algo bem rigoroso. Depois, tivemos uma conversa séria de avaliação, que continha não apenas as notas como comentários sobre o desempenho na prova e no ano inteiro, sugestões, perspectivas de futuro. Ouvi durante horas todas as avaliações das outras meninas, fui deixada por último. Quando finalmente chegou a minha vez, a Diretora disse: “não tem en dehors” e dispensou a turma. Não tinha, é biológico, e eu não tinha mais como desenvolver, não tinha corpo pra balé, pra quê perder meu tempo falando mais – foi isso o que ela disse sem dizer naquela frase curta. Entendo pessoalmente sobre começos e recomeços, então sei que até para se arrepender e se “endireitar” existem expectativas – sobre quem você é, quais as suas obrigações, quantos anos você tem. Depois de certa idade, não é mais pra passar vergonha bebendo ou querer fazer balé. A sociedade espera que determinadas mudanças de rumo aconteçam até certas fases; depois que “época certa” termina, deixa de achar interessante e passa a ver como ridículo, motivo de vergonha.

Ao mesmo tempo, o desejo de voltar atrás seja um dos sentimentos mais básicos, aqueles que nos tornam mais humanos. Não estamos sempre chafurdando a vida dos nossos ídolos através de biografias e/ou revistas de fofoca para descobrir seus pés de barro, que um grande talento por um lado também acompanha grandes problemas em outros setores, algo que também para o ídolo não foi tudo perfeito e em algum setor da vida ele diferente? Ou, dito de outro modo, alguém é capaz de acreditar na estrela que é rica, talentosa, boa pessoa, come rúcula, é feliz no amor e sempre amorosa com os filhos? Sabemos que ninguém passa incólume pela vida. Queremos descobrir as imperfeições não necessariamente para criticar, e sim para humanizar. O arrependimento é tão humano existe uma categoria especial de pessoa que faz qualquer tipo de atrocidade e nunca se arrepende: o psicopata. E a eles temos horror.

A existência de um sacramento como a Extrema Unção (que agora é chamado de Unção dos Enfermos) mostra que até o último minuto é possível se arrepender, e que mesmo sem a menor oportunidade de transformar o arrependimento em atitudes, ele tem valor. Angulimala virou monge, protegido por Buda, mas ainda assim teve que lidar com a fúria das pessoas pelo que fez. É a finitude da vida humana que tornam o voltar atrás ao mesmo tempo apavorante e bonito. Para Anne Rice, em Entrevista com Vampiro, a perspectiva de uma vida infinita literalmente matava os vampiros de depressão, porque depois de algum tempo o tédio era insuportável. Borges, em O Aleph, nos faz acompanhar um explorador em busca da fonte de juventude eterna, e ele por fim descobre que os bárbaros que estavam por ali eram os Imortais. Embrutecidos, imóveis e sem ambições, a eternidade era para eles uma maldição. “Encarados assim, todos os atos são justos, mas também indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível é não compor, nem uma única vez, a Odisséia”. (p.20). Nós só nos arrependemos porque agimos, só agimos porque vivemos; só nos arrependemos porque o tempo que nos resta é pouco, e é o pouco tempo que temos que torna a vida preciosa.

Koan

OLYMPUS DIGITAL CAMERA

Há um koan – que é uma questão não para ser respondida e sim meditada – que pergunta “se uma árvore que cai numa floresta, e não tem ninguém lá para ouvir, ela realmente faz barulho?”

Ao longo da minha vida, este koan me remeteu a muitas coisas. Eu já tive momentos de sair cedíssimo de casa, resolver mil coisas o dia inteiro, voltar para casa à noite e ainda ter mil outras coisas para fazer, assim como já tive momentos de acordar e olhar para o teto sem saber o que fazer para as horas passarem. Dias de ter apenas os meus fantasmas como companhia, meses dedicada apenas às burocracias da vida adulta, anos escrevendo coisas que nunca virão a público. Eu me pergunto: será que alguma coisa realmente mudou em mim e/ou na minha escrita? Solidão seguida de descobertas, assuntos novos, cadernos cheios de anotações… Se você aprende, vasculha, trabalha e, ao mesmo tempo, não coloca nenhum produto no mundo, a sensação é de apenas se olhar no espelho e se ver mais velha.

Curtas de um ano ou nem sei

O facebook me lembrou que há um ano eu estava na passeata #elenão. Vizinhos, pessoas do ponto de ônibus, nas conversas, homens paqueráveis, ninguém parecia compartilhar do meu voto. Eu lembro de ter pensado que eu estaria sozinha na rua XV. Iria porque a vontade de dizer não era grande demais, eu que nunca havia ido pra protesto nenhum. Aí, no ônibus, haviam umas adolescentes que pareciam ir, assim como haviam uns rapazes que olhavam para elas de uma maneira que dava medo. Aí encontrei as amigas, fomos pra lá, e como tinha gente. Eu me senti tão feliz, tive esperança. Não impedimos a besteira, mas foi um momento importante pra história do país e que orgulho de ter feito parte.

.oOo.

Minha ex-sogra esperava o filho (meu ex) se afastar pra me dizer umas coisas de cortar o coração. Nunca entendi porque ela me tornou sua confidente naquele momento. Ela se casou com meu ex-sogro na adolescência, foi daqueles casamentos exemplares, os dois se davam muito bem. Fazia alguns meses que ele havia morrido. Ela me disse: “faz tão pouco tempo que ele morreu e parece que está tão longe, como se fizesse anos. É assustador”.

.oOo.

Sobre a pergunta de como eu gostaria que fosse o fim do mundo (tô falando do programa do Porchat), eu só consigo pensar que eu acho que já foi. Acho que acabou em 2012 e estamos presos na nossa mente. Devemos ser uma recriação holográfica de ETs que querem entender o que havia aqui antes da chegada deles, milhões de anos depois da destruição da chegada do meteoro. Acho que li Philip K. Dick em demasia.

.oOo.

Então, tem as moças da padaria. Uma delas estava com uma cara péssima um dia. Mas no dia seguinte, voltava a ser feliz. Aí ficou com uma cara péssima, e no dia seguinte também, e também, de maneira que agora eu olho pra ela e digo o básico. Tudo porque um dia quis brincar quando ela não estava bem e senti que fui invasiva, além de não estar bem ela tinha que rir de piada de cliente que quer ser íntima. Enfim. Tem outra também, sempre muito séria. Ela teve um ano péssimo, o pai morreu em acidente, está tendo problemas pra vender seu cavalo. Eu chego lá e tem as duas moças, sérias. Me pego com vontade de falar algo que o meu pai me dizia nessa fase da vida, e eu detestava tanto: sorria, não vale a pena ficar assim. A vida é curta.

.oOo.

Miguel Araújo diria: Dança até ser dia/ que a vida são dois dias.

As dificuldades

dificuldades

A vida na internet me colocou em contato com muita gente que escreve bem. Nós não sabíamos, mas estávamos todos naquela idade das possibilidades. Ou talvez um deles soubesse, quando me dizia: “você sabe que o que eu invejo não é o que você escreve, e sim você continuar escrevendo”. Porque ele, na verdade, foi um dos que eu conheci pós-escrita. Ele foi dono de um site delicioso, que teve muitos fãs e lhe permitiu “comer muita gente” (palavras dele). Eu acreditei piamente que um dia todos nós estaríamos num cocktail, comentando nossas críticas, dizendo por debaixo dos panos que Fulano ou Beltrano nem é tudo isso, que a literatura brasileira anda mesmo bastante decadente. Eu pensava, como na tirinha do Liniers, que a gente lutava contra os nossos fantasmas, contra o fato do que o que pareceu lindo na imaginação, praticamente um livro inteiro, se transformar em poucas linhas medíocres quando finalmente sentamos para escrever. Mas estes entraves – sei agora – são o de menos. O problema são os vazamentos do Intercept. Eu fico doida, não consigo pensar em mais nada. Clico em cada paródia, tenho que dividir todos os memes. Fui atrás do filme do Snowden (Netflix), ainda não tinha visto. Vi o David Miranda dançando e agora quero formar um trisal com Glenn e David (mas me conformo com um jantar). Quando o que me invejava-porque-ainda-escrevo me falou isso, eu lhe respondi que ainda escrevia porque não conseguia parar. Na expressão dele vi que isso soou muito invejável, mas talvez isso seja apenas um atestado da minha falta de saúde psíquica. Eu poderia ter lhe dito que ele se diverte em comer gente, em se envolver com as questões dos filhos, em frequentar bons restaurantes e eu não tenho nada disso. Até já tive, mas hoje estou sem restaurante, sem dinheiro, sem companhia, sem nada. Passo dias sem interagir com nenhum outro ser humano que não seja atendente da padaria. Uma pessoa mais normal se angustiaria; já eu acostumei e gosto. Até minha mãe se angustia pela minha recusa em conhecer gente. Meu mundo praticamente se resume a escrever e, sob este ponto de vista, eu sou extremamente incompetente. De todos os amigos escritores que eu imaginava um dia discutir, um deles ganhador do Nobel, o outro autor de crônicas, eu aparecendo disfarçada de personagem no livro de alguém, aquele que realmente conseguiu escrever foi um que não fazia alarde. Mais inteligente, ele não se propôs a nenhuma revolução, ouviu muitos conselhos e surpreendeu a todos com livro bacana, editado, recomendável; comparado com a nossa empáfia e publicidade, ele foi um verdadeiro um azarão. Conseguiu porque é professor, vida estável e disciplinado. A nossa culpa, dos que não escrevemos os famosos livros, é do Intercept, do divórcio, dos vídeos de gatinhos, dos app, dos astros. Pelo menos uns dez anos se passaram e estamos numa idade “ih, daí não sai mais nada”. Ou será que ainda sai?

O vampiro pianista

vampiro no piano

Já tentei me dedicar a diversas modalidades artísticas, chegando a ser mediana ou boazinha em algumas. De tudo o que eu fiz, acho que a que eu consegui alcançar um nível melhor é a escrita. E a escrita comprova a impressão cada vez mais forte que eu tenho de que a arte é muito uma questão de tempo. Hoje consigo nos meus escritos uma fluidez e um humor que não conseguia antes, mas, pensem bem, o antes tem quase quatorze anos! Talento existe, e como existe – você vê a pessoa muito talentosa começar a fazer aula quando você é veterano, no ano seguinte vira seu colega de classe e depois segue adiante. Mas se você é formiguinha, insistente, TOC e/ou sem noção o suficiente para insistir apesar de aprender muito lentamente e ter dificuldade de expressar, acaba conseguindo alguma coisa. Esta sou eu, e minha alcunha exasperante de “esforçada”, porque esforço talvez seja o que me resta. Por isso que eu me pergunto se uma pessoa que não tivesse o problema do tempo, como um vampiro, e insistisse o suficiente para enfrentar as todas as barreiras, se ela pessoa poderia chegar à excelência artística. Uns vampiros poderiam demorar “apenas” cem anos e outros quatrocentos, mas eu acho que a resposta é um sonoro SIM.

(Acho que os diretores de filmes estão do meu lado. Fui procurar foto pra colocar no post e me parece que todo vampiro famoso toca piano)

Curtas muito adultos

muito adulto

Não ir ao médico é muito adulto. Quando eu ainda estava na curva ascendente da vida, achava um absurdo a pessoa perceber que tem algo errado com o seu corpo e não correr pro médico. Depois, alguma coisa passa a estar sempre errada com o nosso corpo. E sabemos que o médico nunca nos dirá nada agradável.  Eu e minha lombar, por exemplo, ele não vai me dizer que ela dói porque está bem encaixada e eu faço tudo certo.

.oOo.

Eu saí do armário com essa história de fazer vídeo e tenho visto outras pessoas saindo também. Pessoas que tem algo a dizer sobre seus livros, sua carreira acadêmica, o que estuda. Que não sabem mexer direito em câmera, têm cacoetes estranhos, rugas, erram palavras. Que tem consciência de que daria pra fazer uma lista imensa de pessoas mais habilitadas do que elas pra falar do assunto em questão. Mas é o que tem, somos o que tem.

.oOo.

Numa das primeiras vezes que eu dancei em tablado, foi justamente com a minha ex-professora. Fiquei surtada durante uma semana inteira. Minha fantasia era que, se um dia ela voltasse a me ver, eu estaria super poderosa, com todas as falhas técnicas que ela via na época que me conhecia sanadas, enfim, queria provar que ela estava cem por cento errada em não me achar um fenômeno.

Lembrei dessa história porque tive algumas idas e vindas na minha vida e em nenhuma foi como eu fantasiei. Não sei se é porque não alcancei nenhuma das minhas metas ou se é porque somos pra sempre aquela mesma pessoa meio desajeitada de sempre e o tempo só nos acrescenta quilos.

Dashas e vida de borboleta

zodiac copy

Se pegar um mapa normal de astrologia, normal digo ocidental, eu sei dizer mais ou menos quais são os trânsitos que estão acontecendo. Já a astrologia védica tem um cálculo tão diferente, que por mais que eu olhe, ainda não consegui entender a lógica. Fui em sites e procurei os tais dos dashas, e cada dasha tem os subdashas, digamos assim, que são as subdivisões dos períodos. Alguns duram anos, e começam no meu aniversário, outros duram meses outros sei lá daonde. Não foi nada bom saber que estou em Rahu-Saturno e as referências dizerem que une o mais temido com o pior. Preveem que eu procurarei um astrólogo, o que entendi que era outra forma de dizer: você vai ficar bem desesperada e vai pagar alguém pra te dizer o que está acontecendo. E, de fato, tentei procurar um astrólogo védico. Meu dasha temido e pior começou em 2017 e vai até 2020. Pensem na minha alegria ao ler isto.

Aí, CDF do jeito que eu sou, copiei tudo no word e transformei numa tabela. Período, quando começou, quando terminou e um espaço em branco do lado. Coloquei no espaço os fatos relevantes da minha vida, pra ver se entendo a lógica da relação entre os fatos e os períodos. Que.ex.pe.ri.ên.cia. A vida me bater na cara e me dizer que não sou importante já tem sido tão frequente que já chego protegendo o rosto, mas desta vez foi diferente. Eu me senti uma borboleta – nunca minha vida me pareceu tão curta e irrelevante. Anos e anos de espaços em branco, nada de realmente significativo pra registrar.

Nasci.

Mudança pra Curitiba.

Mudança pra escola pública.

Entrei na faculdade.

Terminei faculdade.

Atelier.

Casei.

Outra faculdade.

Flamenco.

Separei.

 

Omiti uma ou duas coisinhas muito íntimas, mas basicamente é isto. E se for pensar no que eu realmente decidi, no que manifesta meu livre arbítrio e decisões enquanto pessoa, são ainda menos itens. A gente toma uma ou duas decisões na vida, o resto é tempo perdido no trânsito.

Todas as manhãs

dudu aguinaldo 06

…você chama o seu cachorro pra lhe fazer um carinho, mas chega uma manhã que ele, com a cara já toda branca, prefere permanecer deitado. Na padaria do bairro, de novo, uma funcionária some e nunca se saberá o motivo. Na festa de encontros de ex-colegas de faculdade, além da exibição das rugas e barriguinhas, um casamento não vai bem colide com um coração que está livre. Os tapumes e a sujeira da calçada somem e, como mágica, se transformam em mais um arranha-céu. Na turma da academia, cheia de pessoas da terceira idade, é a jovem que está com câncer. Uma área inteira da cidade, um trajeto de ônibus e um lojinha somem da sua vida, deixam de existir no mapa, porque o motivo pra ir até ali não existe mais. Ser chamada de “senhora” se torna tão corriqueiro que deixa de ser ruim. A peça que estava à venda e já esquecida no meio da decoração da loja finalmente sai e rende um dinheirinho. A filha que nunca passava em medicina finalmente passa no vestibular, ou decide fazer outro curso, mora num apartamento e tem namorado. O calendário ideal, com espacinhos para escrever todos os compromissos do mês, no próximo ano não vai ter mais. Grandes amigos do passado e grandes ódios do passado desbotam e ficam quase iguais. A alça pra abrir a porta do guarda-roupa se solta. O irmão que era galinha se casa, o irmão mais amado não dá notícias. A longa estadia no exterior já foi e já voltou. A comida que era apenas para “se virar” se torna boa. A morte que parecia insuperável se mistura na rotina. Eu prossigo, vocês insistem em mudar.

Não veremos

muro pichado

As pessoas me chamam de radical às vezes. Eu nasci em 63, um anos antes do Golpe Militar. E na minha juventude não tinha um muro pichado, não tinha essa bagunça que vemos por aí. Hoje eu tive que arrancar as flores que tinha na frente da minha casa porque estavam escondendo droga dentro delas.

A crise que vem com a idade é complicada. Os que passaram a vida inteira lutando para serem ricos e família margarina, podem se descobrir vazios, que lutaram para comprar anúncios na TV e por opiniões que no fundo não interessam. Quem viveu de puro idealismo vê o mundo tão ruim quanto, ou talvez pior, num quarto e sala com as contas atrasadas. A vida é uma só, nunca temos todas as informações necessárias, partimos das condições que nos foram dadas quando nascemos, não conseguimos prever nem a metade da consequências dos nossos atos. É difícil.

O que eu tive vontade de dizer pra funcionária da padaria que me disse a sentença do primeiro parágrafo, antes do cliente seguinte nos interromper, naquele dia que pudemos conversar um pouco mais porque o Brasil estava perdendo pra Bélgica, é que eu nunca vi essa juventude que ela viveu. E, independente do candidato que se eleja – falávamos de eleições -, continuarei sem ver. Mesmo que vença o mais radical deles (desconfio que é quem ela gostaria), que promete descer bala em todo mundo que sair da linha. No fundo, o discurso radical me parece de um tremendo idealismo, alguém na sua explicação de mundo é sempre mais limpo e justo do que os outros – a polícia vai nos proteger, o exército vai acabar com a roubalheira, pessoas realmente éticas vão nos governar. Do mesmo modo que nós temos escolhas de vida e elas nos determinam, um país também tem. Não existe gesto capaz de corrigir décadas de decisões – décadas quando pensamos em biografias pessoais, séculos quando países. Não existe órgão ou pessoa incorruptível capaz de separar o bom e o ruim para nós. O ideal é que o marginal tivesse tido oportunidades o suficiente para não ir para o crime, mas não podemos voltar no tempo e agora temos que lidar com esse ser humano formado e violento. De certa forma, é possível dizer que não há salvação. Existe o possível, e acredito que nossas décadas de erros passam justamente por esse desejo de milagres.

Vegetação

musgos-mexico

Eu sonhei que olhava para os fundos da minha casa e os vi cobertos de hera e musgo. E fiquei impressionada, como quem estava dormindo e finalmente abre os olhos, com a passagem do tempo. A árvore que avançava sobre o céu, a forragem verde que demora pra se acumular no caule, a força de plantas que cresceram selvagens por chuvas sem que ninguém as visitasse. Quanto tempo já se passou, eu repetia. E eu o abracei e disse que o amava, amor da qual eu nunca duvidei mas que a dor de outros tempos não me permitia mais pronunciar. E senti em volta de mim um abraço de amor que nunca mais tive. O tempo passou, já passou, muito depressa. Parecia distante e lutei um dia de cada vez; ao ver aquela vegetação tão forte, percebi que eu havia conseguido. Eu não sabia quanto tempo era necessário; nenhuma bruxa me avisou ou se colocou no meu caminho, nenhuma bruxa teve culpa. Quem não tem um guia externo tem que ser seu próprio leitor de sinais: a vida e a fertilidade cresceram sobre os meus erros. Tudo é novo.

Algumas recomendações

bailemos

Eu já ouvi falar que não se é mais jovem quando a gente olha pra um velho ciente de que vai ficar também. Antes disso, o que existe é um sentimento de juventude eterna e inabalável; lembro que eu dizia que acreditava na ciência, que até eu chegar à idade de decidir se faria reposição hormonal ou não, ela já não seria mais necessária. Talvez por já ter passado – ou alcançado – metade da régua da minha vida, hoje gosto da biografia olhada de trás para frente. Gosto de pensar em legado, no que fizemos com o que tínhamos. Como a Teoria do Fruto do Carvalho (o nome do livro é O código do ser), que diz que nossas experiências atendem a um anseio pré-existente, e não que somos moldados por ela. Ou, de uma maneira bem mais dura, quando Günter Grass, na sua autobiografia, se envergonha de ter sido da SS porque, quando jovem, aquilo representava apenas uma imagem de heroísmo e força; ele fez o que lhe pareceu conveniente sem pensar no peso que sua atitude geraria na consciência dele mesmo mais velho. A série Merlí (Netflix) também me fez pensar nessas questões, mas não avançarei nisso pra não dar spoiler – eu tenho uma teoria a respeito do fim dela, quem ouviu achou interessante. Tem o discurso de George Saunders sobre gentileza, que mandei pra tanta gente por ter me tocado de maneira praticamente religiosa.

O que me fez pensar em tudo isso foram as prateleiras vazias, porque as pessoas correram para comprar comida. Também cresci ouvindo falar que há muito não vivemos uma guerra, que ela molda o caráter. Deve ser verdade. É como a pessoa que, durante uma conversa sobre o efeito estufa, disse que se garantiu porque tem ar condicionado em todos os cômodos da casa. Lamento informar, mas ninguém conseguirá ser uma ilha fresquinha e bem alimentada em meio ao caos.

Dentes de leão

dentes de leão

Meu irmão foi me ver num dos primeiros campeonatos que participei. Da arquibancada, ele me viu chegar com as outras sete nadadoras e me aproximar do meu bloco de saída. Da minha parte, posso dizer que estava uma pilha, coração acelerado, touca incomodando porque coloquei com antecedência, óculos muito apertado para não pular pra fora quando eu pulasse na água e, principalmente, nervosa em pensar que exibiria para o mundo a minha terrível barrigada na hora de entrar na piscina. Ele me disse, depois, que sentiu uma pontada de inveja: “eu não sei como é essa experiência, eu nunca participei de um campeonato”. Ele até hoje não sabe qual o sofrimento de se separar, um sofrimento que muda o nosso material, mas acredito que ele viverá uma das mudanças mais fundamentais da vida que é ter filhos. Acredito que nenhum dos dois terá a experiência tão comum de ter carro, porque nunca gostamos. Eu não sei das longas viagens de ônibus por Minas Gerais e o interior da Bahia, as horas tediosas, o vômito do banco da frente aplacado com revistas de Comunicação. Eu não sei o que é ficar solitário em outro país, ele não sabe o que é a solidão de ovelha negra da família. Na época que éramos próximos e parecidos, eu juraria que tudo isso é impossível. Eu vi um astrólogo dizendo que mesmo gêmeos nascem com minutos de diferença que se tornam graus, e com o passar dos anos é como se esses graus se tornam cada vez maiores e definidores, como ângulos que se afastam. É da natureza que seja assim – não é isso que ela busca ao fazer dentes de leão tão leves e sopráveis?

Invencível

Heavy rain in Spain

Vocês já andaram num dia chuvoso de galochas, capa de chuva e guarda-chuva? A sensação é ótima, estamos invencíveis. Enquanto os incautos correm para as marquises e molham os pés nas poças, caminhamos com independência, no ritmo que queremos, podemos erguer os olhos do chão na maior tranquilidade. Demorei pra descobrir o quanto a caado influencia no humor relativo ao clima. Quem me conhece pessoalmente sabe o quanto que fiquei contando vantagem, igual criança, quando comprei a minha bota de pelinhos. O frio se aproxima e já olhei para ela, feliz. É uma bota que vende nessas lojas de alpinistas, caras pra caramba, mas por acaso a esposa do fabricante me ofereceu a preço de custo. Com o preço de custo, ela já era o máximo que eu gastaria num calçado, pra vocês terem ideia. Mas, enfim, comprei. A bicha dá um calor que é como se eu colocasse os pés numa bolsa de água quente, vem subindo aquele bem estar. Não é bonita, mas quem enfrentou inverno de verdade sabe que vaidade não importa, quando o frio aperta a vontade é dar uma de Di Caprio e entrar nas vísceras de um urso morto. Pode vir chuva, pode vir inverno, estarei nas ruas, preparada para vocês.

Eu sou do tempo do purgante

purgante

Constatei mais essa velhice em mim. Eu sou do tempo que se entendia que era preciso purgar. Que quando algo chegava ao fim, nunca era abrupto. É como se tudo deixasse um rastro atrás de si, uma sujeira, e era preciso se livrar dela antes de colocar outra coisa no lugar. Que depois de perder uma criança, o útero precisava passar um período quietinho antes de tentar gerar mais uma ou que depois do resfriado era normal ficar com o nariz cheio de coriza. Ou seja, a gente aceitava que havia um sofrimento e que fazia parte da natureza. O período de purgação era algo que não podia ser apressado, ele nos ensinava a paciência. Por ser do tempo do purgar, a mim soa estranho quebrar a cara num dia e no outro já se enfiar no novo como se nada tivesse acontecido. Purgar pode levar anos. Eu sei, a vida tem nos exigido pra ontem, mas repito: eu sou de outro tempo. O que hoje tende a se chamar de desistência e passividade, eu chamo de purgação. É tanto medo de perder seu lugar, tanta pressão pra sair correndo, que se dar um tempo é nadar contra a corrente. Só depois de uma purgação bem feita – nós, os antigos, acreditamos – é possível colocar algo realmente novo, belo e forte no lugar.

Meu tempo

lavatorio-salao

Eu cheguei um pouco antes do horário e minha cabeleireira estava atendendo uma moça, muito normal. Na despedida ela disse algo como “nossa, obrigada, vou ver sim”. Aí ela veio me chamar, conversamos rapidamente sobre o que eu queria e fomos para o lavatório. Aí, enquanto ela lavava o meu cabelo, a moça voltou com o celular na mão. “Olha aqui as fotos”. Aí ela mostrou que a casa tinha um deck que dava para um lago. Várias fotos. Eu não vi nenhuma, porque estava no lavatório e a mão em cima de mim. A casa era do lado de uma comunidade, uma “seita de yoga”, e a casa pertencia a um dos caras da seita, era onde ele vivia, mas alugava para temporada, para gente de estreita confiança, como ela e o marido com filhos. Olha aqui, que demais. Olha essa vista. Que pechincha. Eu te indico. Ela era realmente bem relacionada, baita férias. O que eu sei é que me vi detestando a mulher. Seita de yoga, pechincha exclusiva? Então descobri que a gente paga, também, pela atenção total do nosso cabeleireiro, que a parte da fofoquinha faz parte do pacote. E que eu me importo.

Carpe nada

ampulheta

A expressão carpe diem é bonitinha mas, tal como diz as propagandas, precisa ser apreciada com moderação. É um equilíbrio difícil o de aproveitar o dia, não deixar para depois e perder o momento, mas também não estragar o futuro por um impulso sem sentido. Porque o futuro é malvado, o futuro é Saturno devorando o filho. O tempo traz de volta o cadáver, o tempo traz a verdade, o tempo revela tudo. Quando me esqueço do quanto o tempo é valioso, penso em alguém que tenha sido preso sem culpa. Se a pessoa passa vinte anos na prisão e depois soltam porque reconheceram o erro, nosso primeiro impulso é pensar que ela deve processar o Estado e ganhar uma fortuna. Mesmo que ganhe, de que adianta? Ela entrou jovem, cheia de forças e ilusões e saiu um velho amargo, não há dinheiro que pague. A pior coisa para o canalha, para o carpe diem alalaô, é o tempo. Eles acham que vão morrer na farra, garrafa na mão e de preferência penetrando uma prostitua. Mas não morrem. Um monte de pessoas fitness morrem cedo, às vezes de câncer do pulmão sem fumar nem cigarro eletrônico, e o sujeito que exagera continua aí. Tenho certeza que é castigo. É pra olhar no espelho e ver a feiura, o pau caído, se sentir doente quando está de ressaca, sentir o desprezo dos que chegaram no mundo agora. Saturno não, é Deus Saturno pra você.