O monge olhou para Angulimala como se ele uma pessoa íntegra e digna de respeito.
Angulimala perguntou: “Você é o monge Gautama?”.
O Buda consentiu.
Angulimala disse, “É uma pena não encontrei você antes.
Já fui longe demais no meu caminho de destruição.
Não é mais possível voltar atrás”.
Não é verdade que nunca é tarde para voltar atrás. Não é verdade nas leis da física – o conceito de Flecha do Tempo fala que o universo caminha de uma baixa entropia para uma alta entropia, por isso que os acontecimentos caminham sempre na mesma direção, a que chamamos de Futuro. Voltar no tempo seria como tentar pegar várias partes explodidas e tentar juntá-las de novo, a “bagunça” excederia o volume do objeto original. Voltar atrás tampouco é uma verdade orgânica. Biologicamente, o máximo que se pode fazer é tentar retardar o envelhecimento. Um órgão de uma pessoa de quarenta jamais voltará a ser o mesmo de quando tinha vinte anos, porque aos vinte estamos numa curva ascendente e depois dos trinta começamos a decair. O que se faz hoje é tentar diminuir a angulação dessa curva, tornar menos acentuada, mas sabemos que a direção inevitável é a decadência. Por fim, quanto mais velhos ficamos, mais difícil é a aprendizagem. É muito pequena a janela na infância onde tudo pode ser aprendido, desde a interpretação de estímulos luminosos serem transformados em imagens até habilidades muito especiais e refinadas, como tocar um instrumento musical. Não estou dizendo que, depois que essas janelas passam, é impossível e proibido aprender certas coisas, sempre existem os casos de pessoas que começaram tarde e se tornaram muito boas, etc. O que quero dizer que não é tudo na vida que você pode acordar, tenha trinta, quarenta ou sessenta anos de idade e dizer pra si mesmo: “nessa nova fase da minha vida, serei violinista. Nunca estudei música, mas basta contratar um bom professor e me dedicar bastante e tudo é possível.” Existe um discurso que diz que com força de vontade tudo é possível, e não é verdade.
O mundo adora os jovens, e mais ainda os prodígios. O próprio termo prodígio só se aplica a jovens, se você parar pra pensar. Um adulto que seja muito bom em algo, de certa forma, não faz mais do que a sua obrigação, porque se dedica a uma determinada atividade há muito tempo. E mesmo que ele se revele muito bom em algo que não fazia antes, vamos encontrar atividades correlatas que de forma indireta contribuíram para que ele tivesse um bom desempenho. Os jovens prodígios têm tantos feitos alardeados, que às vezes os feitos infantis se sobrepõem até mesmo ao que produziram de melhor, depois – porque o impressionante é fazer quando criança, depois de adultos era obrigação. Penso sempre em Mozart, que é tão famoso por ter sido prodígio, por ter composto a primeira não-sei-o-que na idade que nós ainda arrancávamos cabeça de boneco com os dentes. O que ele compôs naquela idade é completamente irrelevante, ninguém nem ouviu, as obras maduras de Mozart que são interessantes, mas gostamos muito de repetir a história da infância. A fixação nos prodígios faz com que nós, reles mortais, tenhamos sempre um sentimento de insuficiência. Os prodígios fizeram pelo menos dez anos antes o que você só começou a se interessar agora. Quem mandou demorar pra pensar, quem mandou querer namorar quando adolescente ou brincar quando criança, perdeu tempo!
Verdade seja dita, gostamos muito de pessoas mais velhas que voltam a estudar, talvez porque nem encaremos isso como uma volta. Conhecimento é sempre algo novo. Pensamos em pessoas que tiveram que se dedicar às famílias e ao trabalho e que só depois de tudo resolvido é que finalmente podem ir atrás do que deveria ter lhes pertencido por direito. Queremos pais e avós em universidade, que ter curso superior se torne comum. Eu adoro séries de arquitetura, como As casas mais extraordinárias do mundo e Grand Designs, e acho que não é à toa que nunca apareceu nenhuma casa brasileira por ali. Falta de milionários dispostos a ter casas fabulosas é que não deve ser, nem tudo é questão de dinheiro. Vejo nessas séries técnicas de construção e cálculos elaborados em várias etapas; aqui, o conhecimento é tão verticalizado que imagino que tremendo telefone sem fio seria conseguir fazer metade do que foi pensado pelo projetista chegar lá na outra ponta, na obra propriamente dita. Mas, para o nosso mercado de trabalho, parece que só fazer conta e ler instruções tá ótimo. É muito bonito alguém se formar já maduro, é um enriquecimento pessoal e etc., mas que ele pretenda usar o diploma que acabou de obter para entrar na profissão é outra história. Um recém-formado velho e sem experiência, o pior dos mundos.
As últimas eleições para presidente foram dominadas por fakenews transmitidas predominantemente por whatsapp, mas elas não são um fenômeno isolado, um “privilégio” brasileiro, elas estão relacionadas a um movimento anti-cientificista global. As pessoas não querem mais confiar em especialistas, que fazem afirmações baseadas em algo que só eles mesmos entendem. Por que devo confiar no que diz um livro sobre o formato da Terra se, quando olho para o horizonte, o que vejo é plano? Recomendo muito o documentário A Terra é Plana, da Netflix. Achar simplesmente é que é um bando de gente ignorante, burra e teimosa não ajuda em nada a entender o fenômeno. No documentário vemos que o terraplanismo – e podemos supor que as conclusões valem para teorias conspiratórios em geral – apenas aproveitou uma brecha que já existia na sociedade: pessoas com desajuste social e que encontram sentido de pertencimento em teorias fora do mainstream, com inteligência e espírito investigativo que não encontra meios de expressão no seu dia a dia. Como os próprios cientistas entrevistados no documentário refletem, a emergência das teorias conspiratórias também não deixa de ser um atestado de fracasso à nossa maneira de compartilhar o conhecimento científico, que de tão misterioso e isolado acaba se tornando quase mágico. E, crença por crença, o indivíduo pode se sentir mais empoderado em produzir a sua.
Acho que esta reportagem que saiu na BBC, sobre QAnon e teorias conspiratórias em geral, vai no cerne sobre o problema de se arrepender quando diz:
“Para as pessoas que estão totalmente envolvidas com uma teoria da conspiração, se o que está previsto para acontecer pela teoria não acontecer, não importa. Às vezes é aí que as pessoas se comprometem ainda mais fortemente com a própria conspiração. Isso porque, neste ponto, as pessoas investiram tanto tempo e energia nisso, danificaram suas relações pessoais em nome disso. Virar as costas à teoria da conspiração seria uma admissão de que o último ano, dois anos ou três anos de sua vida foram um desperdício”, explica Young.
O problema de voltar atrás é que nunca realmente se volta atrás, a Flecha do Tempo vai sempre para frente. Eu costumo imaginar a vida humana como uma régua, onde começamos no zero e vamos passando pelos números até chegar ao fim. Reconhecer que estamos errados é como estar lá pelo número trinta e riscar um zero em cima. Quantas vezes na vida conseguimos recomeçar a graduar no Zero sem que isso nos afete pessoalmente, sem o sentimento de vida jogada fora ou de fracasso? Em teoria, é possível reconhecer e apagar continuamente, inclusive é bastante raro que alguém não tome uma decisão que não foi a mais acertada pelo menos uma vez. Ao mesmo tempo, se tudo bem estudar uma graduação e depois trabalhar em outra coisa, se tudo bem ter um relacionamento longo e ele chegar ao fim, se tudo bem parar numa sala de aula com o dobro da idade de todos que estão lá… mas quantas vezes isso é viável? Quem suporta encher a régua da sua vida de zero, riscar aos vinte, aos trinta, aos sessenta, quantas vezes suportamos decidir, arrepender e mudar?
Meu pai bebia muito e a aposentadoria lhe deu tempo livre para beber o quanto quisesse, sem amarras. Aí ele dizia que tinha dificuldade de arranjar companhia, porque ninguém acompanhava o ritmo dele. Mesmo aqueles que, no passado, bebiam tanto quanto ele, já haviam se endireitado; os mais novos, que bebiam o tanto quanto, não viam a menor graça de ter um velho bêbado com eles. Eu lembro de mim mesma aos trinta, no meio de meninas de quinze, fazendo balé. As mães me lançavam olhares espantados e as professoras não sabiam direito o que fazer de mim, tanto que o último ato que me fez largar foi quando a Diretora nem ao menos me avaliou. Fizemos um dia inteiro de prova, fomos testadas de várias maneiras, algo bem rigoroso. Depois, tivemos uma conversa séria de avaliação, que continha não apenas as notas como comentários sobre o desempenho na prova e no ano inteiro, sugestões, perspectivas de futuro. Ouvi durante horas todas as avaliações das outras meninas, fui deixada por último. Quando finalmente chegou a minha vez, a Diretora disse: “não tem en dehors” e dispensou a turma. Não tinha, é biológico, e eu não tinha mais como desenvolver, não tinha corpo pra balé, pra quê perder meu tempo falando mais – foi isso o que ela disse sem dizer naquela frase curta. Entendo pessoalmente sobre começos e recomeços, então sei que até para se arrepender e se “endireitar” existem expectativas – sobre quem você é, quais as suas obrigações, quantos anos você tem. Depois de certa idade, não é mais pra passar vergonha bebendo ou querer fazer balé. A sociedade espera que determinadas mudanças de rumo aconteçam até certas fases; depois que “época certa” termina, deixa de achar interessante e passa a ver como ridículo, motivo de vergonha.
Ao mesmo tempo, o desejo de voltar atrás seja um dos sentimentos mais básicos, aqueles que nos tornam mais humanos. Não estamos sempre chafurdando a vida dos nossos ídolos através de biografias e/ou revistas de fofoca para descobrir seus pés de barro, que um grande talento por um lado também acompanha grandes problemas em outros setores, algo que também para o ídolo não foi tudo perfeito e em algum setor da vida ele diferente? Ou, dito de outro modo, alguém é capaz de acreditar na estrela que é rica, talentosa, boa pessoa, come rúcula, é feliz no amor e sempre amorosa com os filhos? Sabemos que ninguém passa incólume pela vida. Queremos descobrir as imperfeições não necessariamente para criticar, e sim para humanizar. O arrependimento é tão humano existe uma categoria especial de pessoa que faz qualquer tipo de atrocidade e nunca se arrepende: o psicopata. E a eles temos horror.
A existência de um sacramento como a Extrema Unção (que agora é chamado de Unção dos Enfermos) mostra que até o último minuto é possível se arrepender, e que mesmo sem a menor oportunidade de transformar o arrependimento em atitudes, ele tem valor. Angulimala virou monge, protegido por Buda, mas ainda assim teve que lidar com a fúria das pessoas pelo que fez. É a finitude da vida humana que tornam o voltar atrás ao mesmo tempo apavorante e bonito. Para Anne Rice, em Entrevista com Vampiro, a perspectiva de uma vida infinita literalmente matava os vampiros de depressão, porque depois de algum tempo o tédio era insuportável. Borges, em O Aleph, nos faz acompanhar um explorador em busca da fonte de juventude eterna, e ele por fim descobre que os bárbaros que estavam por ali eram os Imortais. Embrutecidos, imóveis e sem ambições, a eternidade era para eles uma maldição. “Encarados assim, todos os atos são justos, mas também indiferentes. Não há méritos morais ou intelectuais. Homero compôs a Odisséia; postulado um prazo infinito, com infinitas circunstâncias e mudanças, o impossível é não compor, nem uma única vez, a Odisséia”. (p.20). Nós só nos arrependemos porque agimos, só agimos porque vivemos; só nos arrependemos porque o tempo que nos resta é pouco, e é o pouco tempo que temos que torna a vida preciosa.
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