Flerte

Eu não devia ter mais de doze anos quando minha mãe me deu pra ler um livro em forma de diário. Ele contava a história de uma menina mais ou menos da minha idade até o fim da adolescência. O livro era de mil novecentos e bolinha. Não tinha TV, ela descrevia a emoção de tomar sorvete pela primeira vez, esse tipo de coisa. Lembro que eu adorei o livro, achei tudo muito fofo. Por causa da época, mesmo quando mais velha ela tinha atitudes e se sentia de forma parecida com a minha. Até que ela ficou uma moça e começou a chamar atenção dos rapazes. Eles começaram a flertar com ela. E ela sentiu vontade de flertar também. Eu não fazia idéia de que diabos flertar significava, mas continuei lendo na esperança de entender. Um dia ela foi pra uma festa e um rapaz flertou com ela. Ela, quando se deu conta, estava flertando com ele e depois morreu de culpa. Sem saber o que fazer, ela consulta o padre, que lhe chama à responsabilidade e ensina que flertar é coisa muito séria.

– Mãe, o que é flertar?

– Flertar é ficar olhando. Você fica interessada num menino, fica olhando pra ele e ele fica olhando pra você.

– SÓ ISSO???


Roubei do Cinema em Cena.

Se eu fosse contar as minhas aventuras amorosas adolescentes vocês teriam uma reação parecida. Ah, gerações…

Os fios

No Cidades Invisíveis descreve uma cidade onde os moradores colocavam fios que os uniam a outros moradores, de cores diferentes, de acordo com seus laços. Interessante pensar que para os místicos todos que se relacionam estão unidos por fios, como cordões umbilicais. Existe também uma teoria que indica número de pessoas, não sei de cinco ou seis, que é o número de conhecidos pela qual estamos ligados a qualquer pessoa do mundo. Às vezes, confesso, acho esses fios tão sufocantes que tenho vontade de cortar todos, de fugir. Um dia fiz um mapa de fios, de todas as pessoas que eu tinha em comum com o Luiz antes de conhecê-lo, e lembro que era tanta gente que a surpresa foi demorarmos tanto tempo para nos encontrar. Estamos todos emaranhados, todos enrolados. A pessoa que viaja muito, que fica fora do país, se emaranha de um jeito que sempre fica numa posição de saudades, porque aqui ou lá há fios demais, algum sempre precisará ficar esticado. E a internet fez isso também. Mesmo sem ver, mesmo que alguns classifiquem essa experiência como superficial, temos fios com todo país, com o resto do mundo. Lugares que eu nem conheço agora têm um nome, têm alguém especial vivendo. Já tínhamos conexões, na verdade sempre tivemos, só que agora é claro, imediato. Os religiosos diriam: somos todos irmãos. Um biólogo concordaria, ainda que por caminhos totalmente diferentes. O fato é que temos mesmo um laço, que o acontece ali não é apenas ali, mexe comigo porque temos uma conexão. Somos uma rede, todos nós. 

***

Eu não conhecia uma única pessoa que morreu em Santa Maria. Quando o Luiz leu a notícia de manhã – que ainda era muito vaga – e falou em Santa Maria, minha primeira reação foi dizer: “A terra da Nikelen e do Farinatti?”. Quando comecei a ler a ter noção do que estava acontecendo, a morte de tantos jovens, fiz outra associação: pensei na Xu, filha da minha amiga Suzi. As duas são de Curitiba, em nenhum momento a Xu passou qualquer risco. De manhã, a Suzi postou uma foto da Xu mostrando um colar, toda exibida. A legenda dizia: “Minha modelo preferida mostrando o próximo colar”. Embaixo, a própria Xu escreveu: “Apaga isso”. Suzi: “Num apago”. Minutos depois a foto tinha sumido, acho que a Xu foi no computador da mãe e apagou. Coisa banal, brincadeira de mãe e filha, que adquire ares de privilégio quando penso no que aconteceu. A Xu é universitária, linda e cheia de amigos, bem que podia estar lá. E a Suzi, uma pessoa tão maravilhosa e que lutou tanto para criar os filhos, poderia ser uma dessas mães que choram agora. Eu não conheço nenhuma das mães que choram agora mas os fios que me unem a elas e aos filhos delas foram violentamente cortados.

Sdds: Orkut

O orkut foi importante para mim, por mais que hoje o renegue tanto quanto as minhas fotos de mullets. Lá fiz grandes amigos, e muitos deles são meus amigos até hoje. Eu os vejo casados, tatuados, morando sozinhos e tenho a dimensão do quanto o tempo passou.  Eu lembro de como eles eram antes, na época que trocávamos scraps e diziam que o meu scrapbook era “uma praça de eventos”. Eu tinha casado há pouco tempo, tinha poucos amigos e me divertir com eles pelo orkut era importante pra mim. Lá eu vi namoros, amizades, casamentos nascerem e morrerem. Conheci muita gente por causa do orkut, e descobri que pessoalmente é sempre outra amizade, outra relação, que a internet é uma realidade paralela. Foi no orkut que assumi que gosto de brincar e não de falar sério, que ter senso de humor precede o “oi, de onde tc?”. Era ótimo ficar fuçando os perfis – de amigos, inimigos, desconhecidos – tentando adivinhar a personalidade pelas comunidades. Eu adorava descobrir comunidades engraçadas, como a “Malufistas que dão o cu”, que diziam que eram pessoas que sofriam duplo preconceito, por sua posição política e sexual ou a “Eu já chorei vendo filme pornô”, que tinha uma descrição tão engraçada que me fazia rir sempre que lia. Eu tinha minhas próprias comunidades, a “Invejosos” e a “Rancorosos”, sendo que essa última era um sucesso. Uma vez fizeram uma comunidade pedindo a minha volta, porque cometi orkuticídio (quem nunca?). Quando voltei (quem nunca?), transformei numa comunidade mutante. Por falar em mutante, uma comunidade mutante de amigos foi recriada recentemente no facebook, como página, mas é claro que não é a mesma coisa – nós não somos os mesmos. Alguns falam mal de quando os brasileiros pervertem a função inicial das coisas em redes sociais, mas eu sempre vi nisso uma criatividade, algo positivo. No início, as brincadeiras eram nas comunidades, depois o negócio virou mandar scrap. E o que dizer dos depoimentos secretos?  Era uma prova imensa mandar um, com a advertência *Apague*. Era entregar um segredo na mão de alguém, precisava ser muito íntimo para mandar testimonial secreto. Pra saber de quem se era íntimo, era só listar com quem se trocava esses depoimentos. Dos depoimentos, alias, é a parte que eu mais sinto falta. Nosso perfil era conhecido não apenas pelo que dizíamos, mas também pelas coisas bonitas que nossos amigos tinham a dizer a nosso respeito. Era de aquecer a alma. Saudades.

Curtas e flamencas

Quando eu mudei de escola de flamenco, tomei todo cuidado do mundo pra não sair falando mal. Minha saída não foi planejada e muito menos espontânea, então houve um clima, uma expectativa por declarações polêmicas. Não o fiz por um motivo simples: não sou idiota. Eu sei que essas coisas podem crescer e gerar arrependimentos maiores no futuro. E foi uma mudança tão boa pra mim que não vi motivos pra me lamentar. Só que apesar de todos os meus cuidados, meus antigos colegas ficaram cheio de dedos comigo. Como se eu fosse agarrá-los num canto pra soltar os cachorros, pedir pra largarem a escola, sei lá. Isso me aborrece, julgarem tão mal as minhas atitudes sendo que nunca fiz nada parecido com isso.

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Quando eu saí, algumas pessoas ficaram a meu favor, outras não falaram comigo e certamente algumas ficaram contra. Suponho que houve comentários, que a história foi repetida, que cada um teve a sua opinião. Eu não estava lá pra querer contar a minha versão, e na verdade eu acho que isso não faz tanta diferença, as pessoas sempre pensam o que querem. E mesmo tendo sido lá o lugar que fui mais popular na minha (impopular) vida, no fim das contas, nossos laços se afrouxaram. Desculpem a constatação tão óbvia nessa altura dos acontecimentos, mas só agora descobri que quando você sai, pouco importa se foi justo ou injusto, se as pessoas te amavam ou odiavam, se você conhecia todo mundo ou não era ninguém. Quando você sai, você sai. Você não é mais, acabou.
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Na minha nova escola, logo nas primeiras semanas, fiquei apaixonada pela nova aula e a nova professora. E não quis dizer nada, contive meu entusiasmo por todos os meios virtuais, porque ia ficar parecendo que era uma crítica velada à antiga. Como se eu só dissesse que uma sabe muito pra dar a entender que a outra não sabe nada, entende? Pra ver o tato que eu tive, até mesmo exagerado. A verdade é que eu tinha vontade de pular de alegria, senti que estava no melhor lugar onde poderia estar. Lembro que na época, quando tinha vontade de escrever sobre alguma coisa, o tema que mais me vinha à cabeça era o da Generosidade. Com ela eu descobri que a pessoa mais generosa não é aquela que te faz benesses porque você é o preferido: é pura e simplesmente porque você está lá, porque ser generoso é o estado natural dela, um perfume. Te admiro muito, Tereza!

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Fiz um workshop maravilhoso com uma bailaora que mora na Espanha há muitos anos, a Yara Castro. Era dividido em dois níveis e de metida que sou fui pro mais difícil, junto com um povo que tem pelo menos uma década de flamenco, com professores. Talvez por acreditar na neurologia, eu me submeto a fazer umas aulas puxadas porque acredito que em algum lugar o meu cérebro está sendo forçado, que estou acelerando meu aprendizado de alguma forma. Eu lá, sofrendo com passos que aparentemente todo mundo pegou menos eu, querendo pegar a Yara e me explicar (como se ela não tivesse notado sozinha que eu tinha menos tempo de flamenco), aí ela diz: “Essa sensação de ‘onde é que eu fui me meter em fazer flamenco’ vocês terão a vida inteira, desculpa falar”. Vou? Ah, então está tudo sob controle!

Protesto masculino

Os homens hoje em dia sabem que nós mulheres não fomos geneticamente criadas para amar os serviços domésticos. Eles sabem, ninguém pode negar que hoje eles saibam. Então eles sabem que o trabalho doméstico é chato, precisa ser feito e muitas vezes se dispõem a ajudar. Só que, veja, eu acho que dentro deles alguma coisa ainda não aceita. Uma resistência, um protesto, algo muito profundo deles grita que não, que eles são grandiosos demais para aquilo. Homens nasceram para liderar tropas, suas mãos devem ficar ásperas ao amarrar cordas e não com detergente. Um homem fica intimamente ofendido com essas exigências. Cortar a grama, carregar sacola de supermercado ainda vá lá, porque são atividades que usam a força e força é com eles. A coisa está gritando quando, por exemplo, eles colocam o lixo para fora. Lixo não é pesado, lixo tem restos e homens não lidam com restos – homens criam restos, restos de corpos no campo de batalha. Mas por algum motivo cultural, jogar o lixo é uma das poucas coisas que conseguimos que eles façam direito. Eu acho que tem a ver com uma dinâmica de: o exterior e o público são masculinos, o interior e privado são femininos. Então jogar o lixo para fora, ainda que faça alguma coisa dentro deles gritar, tem a ver porque os tira de casa.

Como a cabeça aceita e o coração grita, sua forma de conciliação interna está em fazer as coisas pela metade. Perceberam que os homens levam os objetos até a metade do caminho, às vezes até fisicamente perto, mas jamais executam as tarefas domésticas até o fim? Não colocam no lugar, apenas sinalizam. O Luiz tira as toalhas do varal e joga em cima da cama. Ele atravessou a maior parte da casa com as toalhas, subiu um lance de escadas, faltam poucos passos até o banheiro… mas aí já não é mais com ele. Ele já fez tudo aquilo, já se humilhou bastante, e você ainda por cima quer que ele coloque as toalhas no cabide? Ou quando eu olho para a pia e tem um pratinho com cascas de banana, de cebola e outras coisas que devem ser jogadas fora. “O que é isso?” “São restos de comida, é lixo” “Então porque você não jogou no lixo?” Ele não sabe. Ele juntou tudo e seria muito fácil pisar num pedal e jogar lá dentro, mas isso não lhe ocorreu. É uma coisa inconsciente, sabe? Outra forma de deixar pela metade é o tal do desengorduramento. É sabido que se um homem faz um sanduíche com três itens quentes, eles conseguem usar no mínimo de três panelas. A prova disso é que depois, em cima do fogão, serão encontradas três panelas cheias de água. “É pra desengordurar“. E as fiadamãe ficarão lá dias a fio, desengordurando, até uma mulher perder a paciência e lavar tudo de uma vez.

Cães felizes

Depois de um dia resolvendo problemas, eu e o Luiz chegamos tão cansados que não bastava se estirar no sofá de frente à TV, nós precisávamos também ver algo relaxante. Colocamos no Animal Planet e vimos dois programas seguidos sobre raças de cães: Border Collie e o Bouvier Suiço. Desde a Dúnia, borders se tornaram a minha raça preferida de cães, porque ela tem uma certa semelhança física com eles. Primeiro mostrava uma corrida de borders, eles praticamente saiam voando sobre os obstáculos. Dava para ver que eles se divertiam muito. Depois mostrava um fazendeiro que tinha dois borders cuidando das suas ovelhas, porque eles são excelentes cães de pastoreio. Os cachorros não paravam de correr pra lá e pra cá, enquanto as ovelhas os evitavam. Eles são rápidos, adaptáveis e muito inteligentes. Aí o dono falava de cada um, de quanto um deles era amoroso e fazia tudo para agradar, o outro era um companheirão e tinha o terceiro que trabalhava o tempo todo. O border era parte importante da organização da fazenda.

O bouvier é um cachorro massudo, forte, tímido, silencioso. Não é rápido e adaptável como o border, mas é infinitamente paciente e nunca esquece o que aprendeu. Ele era usado por fazendeiros que não tinham dinheiro para ter cavalos como um cachorro de carga – coisa que eu nunca imaginei que existisse. Ele é tão bom nisso que mostrou um concurso de bouviers: eles tinham que carregar carroças, cujo peso aumentava gradualmente com sacos de ração. Algumas ficavam tão pesadas que chegam a ter o peso de um carro popular. Os donos tinham que chamar o cachorro até a linha de chegada. Mostrava os bichos fazendo uma força danada. Quando o cachorro não conseguia a tempo, uma pessoa ajudava dando um empurrãozinho atrás para que o cachorro não saísse de lá sem atravessar a linha, “todos os cachorros tinham que sair de lá se sentindo campeões”.

Não sei se foi o estado preguiçoso que eu estava depois de um dia cheio, mas aquilo me fez pensar. Primeiro a semelhança com o border fez com que eu sentisse dó da Dúnia ter um espaço pequeno sendo ela um cachorro tão inteligente e brincalhão. Passear todo dia não é de longe a utilização de todo potencial que ela tem. Aí cheguei à outra reflexão: nossa forma de amar – aí talvez eu esteja falando mais do que cães – tem a ver com almofadas macias, comida abundante, horas preguiçosas, ausência de esforço, carinhos sem cobranças. E quem disse que é isso que os cachorros querem. E quem disse que é isso que uma pessoa precisa para ser feliz.

Carona

Tereza estava separada e tinha três filhos em idade escolar. O ex-marido ajudava, mas nenhum dos dois era rico. Quando eram casados, o custo de três filhos já era alto; agora que estava cada um na sua casa, estava muito mais. Sua rotina era toda controlada para dar conta de arrumar a casa, mandar os filhos para a escola, deixar a comida pronta, trabalhar, voltar, preparar a janta, fazer supermercado, etc. Foi uma fase na vida cheia de responsabilidades, centrada nos filhos, sem muito tempo para pensar. Ela era precisa como um relógio. Tudo era contado, tudo era apertado, cada moeda e cada minuto faziam diferença. Então foi um alívio quando um colega de trabalho começou a dar carona a Tereza. Ela economizava um vale transporte por dia, chegava em casa cedo e ainda por cima vinha conversando. Ele era casado, também tinha filhos, então eles tinham assuntos em comum.

Muitas caronas depois, na repartição, ela ouviu uma indireta – como se não bastasse o próprio casamento ter dado errado, ela agora queria estragar o do outro. Ou seja, as caronas já tinham virado motivo de comentário. Ela respondeu na hora: era apenas uma amizade, ela não estava tendo um caso e nem pretendia ter. Naquele mesmo dia, no carro, ela comentou com seu amigo o quanto as pessoas eram maldosas, de como podiam concluir coisas tão feias sobre a amizade e gentileza dele. Para sua surpresa, aquele papo fez com que o amigo se revelasse – ele sabia que ela estava sozinha, ele era discreto, então ele imaginou se…

O que ela mais lamentou nessa história foi deixar de economizar no vale transporte.

É curto

Há um episódio do Tiny Toons que eu adoraria ter, porque o cito para várias situações. É assim: os personagens participarão de um concurso cinematográfico. O Patolino decide fazer sua biografia, começando com ele bebê, um patinho chorão, e avança para os vários feitos da sua vida. O desenho mostra outros personagens, acontecem várias coisas, e no dia do concurso estão todos no platéia para ver os filmes. Mostra o filme de um personagem, de outro, até que começa o filme da Felícia (aquela criança que ama animais e dá abraços esmagadores). Lembro que o filme dela começa com uma borboleta, acompanha o seu vôo e se estende por cenas lentas. O filme não termina nunca, a platéia em desespero, aquela coisa. O produtor fala pro Patolino: “o da Felicia está acabando com o nosso tempo, vai cortando umas cenas aí”. O filme dela continua, a platéia morrendo, o Patolino vai cortando, cortando… Quando acaba o filme dela e começa o dele: só aparece a cena dele bebê chorando e o filme acaba. A platéia fala: “É CURTO!” e aplaude efusivamente. Ele ganha o concurso.
O “é curto” pra mim vale desde filmes – me desculpem os mais cinéfilos, mas saber que um filme tem três horas me dá preguiça antecipada – até os projetos mais mirabolantes e ideias que vão se ajustando ao tempo, ao orçamento, ao que dá. Se vocês soubessem as coisas maravilhosas que já desenhei pra minha sala. Eu, modéstia nenhuma, tenho um bom gosto tremendo. É dura essa vida de ter bom gosto e não ter dinheiro para isso. Quem dera então que eu tivesse apenas o dinheiro. A mesa exclusiva que escolhi, o sofá ao lado da chaise estampada, o espelho gigantesco, colocado por cima do papel de parede… A mesa tinha uma base de lâminas de madeira sobrepostas. Isso faz uns cinco anos, no mínimo, e ela custava quase quatro mil reais. Nem todas as pragas do mundo evitaram que ela fosse vendida, a loja nem existe mais,  virou lanchonete. Depois escolhi outra mesa redonda, não tão linda, mas com tampo de mármore e base que lembrava aquela primeira – ao invés de lâminas, era uma cobertura de resina em formado ondulado e amarelo vivo. Essa custava dois e meio. O modelo está saindo de linha, a opção amarela não existe mais e… bem, acho que vocês entenderam. Qualquer dia desses, se der, vou comprar uma mesa de tampo de vidro da Tok Stok com base de metal e ficar louca de feliz. Dez anos e não temos mesa de jantar. Mal e mal sala de estar. Sabe o orçamento? “É curto”.

Ataque de buraco

Eu gostaria de explicar que sou uma convalescente. Dentro de mim o que deveria ser sólido é cheio de buracos, muito mais do que um queijo suíço. Tive aquelas doenças que a gente nunca cura, nunca se recupera, apenas vive com ela dentro do organismo. Eu ajo como pessoa forte mas é por causa da necessidade. Se me dessem a opção, se me perguntassem se quero fazer parte desse assustador mundo adulto, eu me negaria. O corpo cresce tal como erva daninha; a maturidade e a responsabilidade chegam, mesmo que a gente feche os olhos com bastante força. Uma história: eu tenho uma tia que perdeu um filho, num acidente de carro, quando ele tinha treze anos. O irmão mais velho, meu primo, me contou que o luto era uma coisa esquisita. O quarto do menino estava lá, intacto, e às vezes a mãe entrava e saía de lá sem problemas, para limpar, para pegar um objeto. Outras vezes, ela estava fazendo outra coisa, cozinhando que seja, e olhava pra uma colher e começava a chorar. Os buracos são assim, inesperados; eles só fazem sentido pra gente. Então eu que atravessei geleiras, impedi sozinha a invasão do visigodos e construí barragens com as minhas próprias mãos, de repente sou vencida por uma colher. Eu sei que quem vê não entende.

Quando um dos meus buracos me atinge – sim, eles atingem, eles atacam como um tigre faminto, quando menos se espera- eu me sinto mergulhada numa noite sem manhãs. É difícil ser normal e ensolarada quando dentro de você só há escuridão. Não dá pra pedir equilíbrio de quem subitamente tem que andar às apalpadelas. O pior é que dentro do buraco descubro outros buracos, buracos dos buracos, buracos dos buracos dos buracos, coisas tão antigas que remetem à Criação. Eu, que me achava tão feliz, descubro que tenho tantas lágrimas por debaixo. Se eu pudesse contar, se eu pudesse revelar o que carrego comigo… Mas eu sei que não adianta explicar o que é ser cúmplice de um golpe de estado ou o efeito de fazer rituais de invocação.  E mais: que eu nunca parei, que estou presa a uma dolorosa repetição onde pessoas se alternam como fantasmas e cumprem sempre o mesmo script. Eu não posso contar porque não existem palavras que possam contar sem empobrecer. O que eu sei é que sofro, que quero acertar e não faço mais a menor idéia de onde está o norte. Se me calo é porque é o máximo que posso fazer no momento.

Coentro

Fui no restaurante perto de casa, um dos buffets mais gostosos e caros que já comi nessa cidade e me servi, dentre outras coisas, de uma salada de camarão. Entre uma garfada e outra senti um gosto marcante que me levou a um verdadeiro orgasmo culinário. Não sabia exatamente de onde era, e vasculhando o prato descobri que vinha de uma folhinha. Era um gosto de não sentia há muitos anos, que estava enterrado na minha memória como algo muito forte e familiar. Depois acabei me dando conta de que era coentro.
O engraçado é que eu não gostava de coentro quando era criança. Minha madrasta é baiana e usa tanto tempero na comida que um dia levei algumas garfadas pra descobrir que estava comendo um bacalhau. Pra ela usar dendê é tão básico como óleo e cebola na hora de refogar. Na casa do meu pai, todo feijão era feijoada, todo arroz era oleoso, todo peixe tinha dendê, leite de côco e coentro. Parecia que eu vivia dentro de um restaurante de comida típica. Além do enjôo pela repetição, eu sempre tive o fígado sensível e passava muito mal. Até que um dia – a última vez que comi coentro em Salvador e durante todos esses anos – fui numa festa e tinha um patê verdinho. Era de coentro. Eu quase comi aquele patê inteiro, com o dedo. Só entendi que o problema era a comida da minha madrasta e não o coentro.
Meu passado em Salvador foi, durante muitos anos, algo que eu negava. Como se não tivesse existido, como se não tivesse deixado marcas. Eu era como seu eu fosse um novo rico que negasse suas origens, O fato é que por mais que eu tenha vivido coisas difíceis em Salvador e não tenha vontade de voltar pra lá, eu vivi em Salvador. Hoje brinco e acho estranho que o meu marido não entenda quando eu digo que vou “pocar a pipoca”, que fiquei com “o braço todo lenhado”. Olho pra carne de caranguejo toda bonita na casquinha e acho que não é assim que se come, tem que comer o bicho inteiro, arrancando as patas e batendo com a madeira. Aparentemente só eu reparei que no primeiro Tropa de Elite, quando jogam a comida no chão, o Capitão Nascimento pergunta aos aspirantes se eles estariam com “nojium” da comida. Nojinho no melhor estilo nordestino.

Oportunidade para costureiras

Mais um papo ouvido no ônibus.

– Você sabe costurar? Eu tenho uma amiga minha que está trabalhando com costura, está muito bem, fazendo muito dinheiro. Ela está precisando de ajudante, eu posso te colocar em contato com ela. Nem precisa saber costurar muito. Sabe essas camisetas, coisa bem simples? Então, é só fechar uns tecidos, coisa bem básica. Ela recebe umas encomendas de umas camisetas assim simples e só tem que fechar. Ela ganha um, dois reais por peça. Que ela faça quarenta peças por dia por um real dá quarenta reais, se for por dois reais sai oitenta. Ela fica o dia inteiro na máquina, ela não dá conta de tanta encomenda. Tem dias que eu passo lá e a comadre nem almoçou. Eu ponho você em contato com ela, serviço pra ela é o que não falta.

A outra não quis aceitar o emprego.

Não vai dar certo

A idade e o assentamento da maioria dos meus preconceitos me faz ver algumas coisas com certa antecedência. Uma delas é a questão da compatibilidade. Eu já sei mais ou menos o que funciona e o que não funciona comigo. São coisas muito subjetivas. Pra uns o gosto musical é muito importante, pra mim não é. Tenho o maior carinho por gêneros desprezados, conheço pessoas ótimas que curtem sertanejo e também tem a turma dos que só ouvem clássicos. Já colocar a @ na hora de falar mal de celebridades no twitter é uma coisa que me incomoda muito e já fez com que eu me afastasse de alguns. O feriadão na cidade vazia que para os outros é um tédio para mim é perfeito; já praia e qualquer lugar em alta temporada é a própria definição do inferno. Só que o grau de previsão nem sempre é útil. Há os que tentam me convencer do contrário, de que apesar de toda a minha natureza e experiência gritarem Não, desta vez será diferente. Acham que ao chegar lá, vai baixar um espírito e começarei a gostar do ingostável – não há registro, claro. Sem dizer que, infelizmente, saber que algumas coisas não funcionam não quer dizer que podemos evitá-las. Eu simplesmente não posso me negar. Então às vezes essa capacidade de previsão torna nas coisas piores, vou ao encontro do inevitável sabendo que vai dar merda, só não sei quando. Eu me sinto como o Nostradamus português, que olhou para a casca de banana e previu: “Vou escorregaire!”.

Idéias para negócios

Eu tenho algumas idéias, umas para grandes negócios e outras para inovações que dariam dinheiro. São idéias. Como não tenho paciência para implantar nenhuma delas e acho que o mundo precisa dessas coisas que eu pensei, coloco aqui à disposição. Quem passar por este blog e decidir implantar, pode ir em frente. Não peço nada, só o reconhecimento. Qualquer plaquinha com o endereço do meu blog já tá ótimo.

Venda de refri gelado no fim da subida do parque Tangüá: 

Quem já foi lá sabe do que estou falando. Normalmente visitamos o parque na parte de cima, que nos oferece uma bela vista da cachoeira. Seguimos pela esquerda, onde há uma plataforma de madeira que nos faz descer suavemente. Conhecemos a cachoeira por debaixo, passando por um túnel de pedra. Só que na hora de voltar, há uma subida quase vertical que mata até o mais preparado atleta. Se no término desta subida houvesse um vendedor de bebidas geladas, que fosse um mero isopor, seria um sucesso. Depois daquela subida, eu sempre penso que pagaria de bom grado dez reais por uma Sprite.

Delivery de chocolate: 

Quantas vezes não saí de casa apenas para comprar chocolate. Quantas noite eu não desejei ardentemente por um chocolate e não tinha nada aberto. E olha que eu nem sou chocólotra: eu paro quando quiser e não é minha culpa que o chocolate combina com tudo. Não é só pizza que as pessoas querem. Chocolate não é apenas uma sobremesa, ela é também um pronto-socorro. A necessidade de chocolate surge à qualquer hora e nem sempre a pessoa está preparada. Adoraria ter à minha disposição um cardápio com os melhores chocolates, de bis a lindt, e que um motoqueiro trouxesse na minha casa a qualquer hora. Todo mundo que eu conheço já teria ligado pra um disk-chocolate, se ele existisse.

Venda de absorvente e band aid a granel:

Essa é para as banquinhas e bares. Assim como os fumantes não precisam comprar um maço inteiro e podem comprar só um cigarrinho para as emergências,  as mulheres deveriam ter a mesma opção com absorventes e band aid. Cansei de ficar louca atrás de uma farmácia ou supermercado porque minha menstruação me pegou desprevenida. Aí era obrigada a comprar dez unidades de um absorvente qualquer, sendo que em casa eu tinha um estoque da minha marca preferida. Band aid, então, tenho o suficiente pra um orfanato. Sapatilhas acabam com o pé e lá ia eu comprar uma caixa inteira enquanto precisava de apenas dois, ou um.

Cursos e livros de receitas for dummies:
Eu sei que existem livros que ensinam as receitas básicas do dia a dia, mas não é disso que estou falando. Precisava ter um livro de receita que supusesse o quão idiotas ou inexperientes alguns podem ser na cozinha. Público eu sei que existe, tem essa aqui que vos digita. Cansei de começar a fazer uma receita, e depois que eu já fui lendo e jogando todos os ingredientes na tigela, lia embaixo que precisava primeiro misturar os secos. Ou que o forno deve ser pré-aquecido. E que depois a gente muda a temperatura quando põe a massa dentro do fogão. Como é que eu ia adivinhar? Os livros deveriam ensinar o que fazer na ordem cronológica, algo: acenda o forno. Pegue todas as farinhas. Meça. Coloque na tigela. Em outra tigela quebre os ovos. E por aí vai.

Política

Aqui e ali li algumas coisas sobre Getúlio Vargas, e todos são unanimes em dizer que ele manejava bem as pessoas e, por consequência, as situações. Ele se mantinha em cima do muro e acenava para os dois lados enquanto fosse necessário. Mudava de posição conforme a conveniência, fazia alianças com aqueles que antes eram seus inimigos. Um bom exemplo é a posição do Brasil na II Guerra Mundial: Getúlio tendia aos alemães e depois se voltou para os aliados quando viu que a Alemanha perderia a guerra. Sempre vi essas coisas de uma maneira muito negativa, mas aí Samuel Wainer, na sua autobiografia, coloca essa característica como positiva, coisa que João Goulart não tinha e deu no que deu – o Golpe de 64. Eu, que sou ofendida num dia e vinte anos depois ainda não esqueci, seria a pior política possível. O que é mau caratismo na vida comum é pensar acima dos seus interesses na vida pública. Política é realmente outra coisa, outro universo, outra lógica.
Sou do time “não guardo rancor, guardo nomes”. Não apenas pelo que fizeram a mim, e sim pelo que acredito que a pessoa é. O arrependimento e a mudança estão em locais diferentes do cérebro. Interromper uma ação é fácil, durante um certo tempo. Difícil é implantar em alguém o respeito pelo outro, esteja ele por cima, por baixo, fragilizado ou no topo. O exemplo mais interessante sobre essa filosofia de guardar nomes é uma história que ouvi sobre o Paulo Coelho. Ele apanha da imprensa brasileira desde que começou a fazer sucesso. Me disseram (não sei se isso está na biografia dele ou se gravado em alguma entrevista) que ele tem um imenso arquivo pessoal, onde estão catalogados artigos e declarações sobre ele. Um dia, por exemplo, apareceu um pedindo apoio para entrar na Academia Brasileira de Letras. Ele foi lá no arquivo, procurou o nome do Fulano e lá estava: um artigo escrito em mil novecentos em bolinha onde ele descia o pau no escritor Paulo Coelho. A resposta, imagino, foi um “Infelizmente eu não posso te apoiar”, seguido de uma cópia do artigo.