A vida é mesmo coisa muito frágil

Para quem é novinho e não viveu isso, o cantor Roberto Carlos teve uma esposa chamada Maria Rita, que morreu de câncer. Foi um assunto que mobilizou bastante as pessoas na época. Acho que quando alguém como ele – rico e famoso – perde alguém que ama dessa forma, todos nós lembramos o quanto a vida é frágil e que dinheiro e fama não conseguem resolver tudo. Ela morreu no final do ano e acredito que o especial do final daquele ano foi dedicado em memória dela. Até aquela data, eu não havia tido nenhuma perda significativa na minha vida. Aí me lembro que perto do meu aniversário, ou seja, no meio do ano, estava conversando com algumas pessoas, uma delas inclusive bastante fã do Rei. Ele fez alguma aparição na tevê e dedicou uma música à memória de Maria Rita. Lembro que as pessoas ao meu lado falaram: “mas ainda isso, não superou a morte dela ainda? Aí eu já acho doença”. Foi a primeira vez que eu lembro de ter reparado o quanto somos intolerantes ao luto.

Antigamente tinha aquele costume, o de vestir preto. Eu lembro que quando eu era criança ainda existiam umas remanescentes. A mulher ficava viúva e passava alguns anos só se vestindo de preto, sempre roupas muito fechadas. Era uma medida difícil de atingir: se a mulher passava muito tempo vestindo preto (algumas o faziam o resto da vida), o comentário é que ela era exagerada e tinha que seguir em frente; se a mulher passava pouco tempo de preto, era um irônico “já tirou o luto?”, como quem diz: “não sentiu nada a morte do marido e está doida pra arranjar outro homem”. Obrigar uma mulher a se vestir sem alegria pra se fazer notar à sociedade que ela havia sofrido uma grande perda – todo aquele processo me parecia meio medieval. Até aquela data, eu não havia tido nenhuma perda significativa na minha vida.

Off-topic: no livro “Quinta Avenida, 5 da manhã: Audrey Hepburn, Bonequinha de Luxo e o surgimento da mulher moderna“, de Sam Wasson, que discute os vários elementos do filme que o tornaram icônico, o autor diz que, na época em que Bonequinha de Luxo foi filmado, o vestido preto era vestimenta apenas de viúvas. Mulheres solteiras e casadas se vestiam com roupas coloridas. O preto passava uma dupla mensagem: de ser uma mulher enlutada, mas também sexualmente experiente. O filme teria inaugurado a associação que fazemos hoje de preto + luxo.

Pelamordedeus, não estou defendendo que devemos obrigar as mulheres que sofreram perdas a se vestirem de preto! O que quero dizer que, depois que sofremos uma perda muito grande, há um longo período em que tudo dói e que as pessoas deveriam ter mais paciência. Uma vez li em algum lugar que num país por aí, quando a pessoa tirou a carteira de motorista há poucos meses, ela anda com um enorme adesivo L na traseira do carro, que quer dizer Learning. Os outros motoristas vêem aquele L e já sabem que dali pode sair alguma besteira que não se espera de motoristas experientes. Acho que o motorista Learning fica mais tranquilo e os outros também. A pessoa em luto tem que fazer um esforço muito grande pra levantar da cama de manhã, tratar as pessoas com civilidade, não ter crises de choro constantes, até mesmo pra tentar sorrir e participar de um número infinito de ritos sociais inúteis que são ainda piores quando você não está bem. A pessoa em luto vai ficar mais chata, vai se irritar mais facilmente, vai ter menos paciência pra fingir que está tudo bem, enfim, não vai ser mais quem ela era durante muito tempo e seria muito bom que as outras pessoas se lembrassem disso e dessem um desconto.

A pessoa em luto precisa de tempo e paciência – justo os dois produtos mais escassos do mercado. Existe uma parte do luto que é orgânica, todo processo intenso de stress libera diversas substâncias que demoram algum tempo pra sair do corpo. Ficamos literalmente envenenados. Existem pessoas que reagem mal a acontecimentos traumáticos, que não se conformam, que não acreditam em melhoria, que não têm fé e vários outros fatores, mas mesmo para aquelas que realizam a parte que lhes cabe com o melhor otimismo possível, o orgânico também cobra seu preço – menor, mas cobra. Logo depois que eu me divorciei – não foi meu único luto desde então, mas sem dúvida foi o mais intenso -, ou melhor, alguns anos depois do meu divórcio, acordar se tornou o momento mais difícil do meu dia. Eu nunca acordava bem, a sensação podia variar de simples mal estar a total terror com a ideia de continuar viva. Depois eu saía da cama, tomava banho e começava o meu dia e gradualmente a sensação ia diminuindo, mas durante muito tempo eu só ia para a cama completamente exausta, nem pensar tirar soneca à tarde, e precisava de compromissos que me obrigassem a sair da cama correndo assim que o alarme tocasse. Com o tempo aquele terror foi passando, muito lentamente, tão lentamente que nem consigo determinar uma data. Lembro que o primeiro final de semana que o alarme tocou e decidi dormir mais um pouco, sentindo que gostoso era ficar entre os lençóis, foi uma grande vitória para mim.

O problema é que nenhum de nós tem tempo e equilíbrio nem pra si mesmo, quanto mais para sair doando por aí. Não quero fazer uma análise rasa aqui, mas estamos a toda no capitalismo e sempre nos sentimos para trás, a sensação é que se você parar um pouco ou se distrair, alguém toma o seu lugar – e isso não só em relação ao trabalho, vivemos essa pressão em tudo. Lembro de uma amiga, uma pessoa super determinada, que mal se separou e já começou a ir pra balada. Não estou dizendo “mal se separou” de uma maneira moralista, foi no final de semana seguinte e assim continuou até arranjar alguém. Nunca ouvi dela que o lugar era bacana, que ela gostava da vida noturna, que tinha uma turma ou gostava de dançar, ela ia porque tinha um objetivo. Um dia ela me perguntou aonde eu cortava o cabelo, porque queria aderir ao curto. A explicação foi: tem um monte de loiras de cabelo até os ombros na balada, eu quero me destacar. Ela fez todo um plano em como se recolocar no mercado de solteiras e me explicou que precisava agir assim porque era difícil, as novinhas estavam aí, se ela não arranjasse alguém logo ia ficar velha e quanto mais velha a mulher mais difícil… ufa! Mas ela também me disse chorava antes de dormir, o que eu não teria adivinhado apenas observando suas atitudes. Se eu mesma me sinto em falta e mal me sustentando em mim mesma, meu vizinho também, meu irmão também, se está todo mundo procurando um lugar no mundo, a pessoa que ainda por cima precisa de paciência acaba ficando pesada. Ei, não se pendura em mim que assim nos afogamos os dois! Mas, ainda assim, é preciso acolher. Somos humanos, precisamos uns dos outros, a própria continuidade da espécie só é possível se houver solidariedade.

Tem uma foto que circula de vez em quando na internet de um cachorro atravessando a rua e que leva a própria guia na boca. Nunca a salvei porque, apesar das legendas engraçadinhas, sempre achei a imagem meio dolorosa. Eu me identifico com aquele cachorro, acho que somos todos cachorros levando as próprias guias e se auto-passeando. Há uma porção da dor que não pode mais do que ser carregada e suportada, e apenas por nós mesmos. Feliz ou infelizmente, a nossa biologia em luto não está nem aí se existe capitalismo, se as estatísticas estão contra você ou se não parece racional, ela nos coloca pra sofrer e leva tempo. Depois que um braço quebrado sai do gesso, ele já passou pelo pior, mas ainda não está tão forte como o outro ou como era antes – e assim também somos por dentro. Acho que o único conselho possível ao luto foi o que eu recebi do meu amigo Milton Ribeiro: sobreviva. A tentativa é chegar na outra margem com alguma condição de continuar em frente, então é preciso evitar os excessos que vão impossibilitar reconstruir a vida depois que a dor passar, do tipo se tornar dependente de drogas ou ficar sem ter aonde morar. Alguns, pra conseguir chegar na outra margem, terão de tomar tarja preta, outros vão engordar, tem quem acabe comprando uma grande quantidade de sapatos pela internet, e eu acho que está tudo bem. Continue a nadar, apenas continue a nadar.

A humilhação da escrita

Eu tenho uma amiga que tenta há vários anos passar num desses concursos públicos muito disputados. A cada fracasso, ela me confessou ficar chateada não apenas por ela mesma, mas também por ter que admitir diante das pessoas que, mais uma vez, seus esforços deram em nada. Ela me disse que, para quem está de fora, é apenas uma sucessão de nadas, enquanto que para ela cada prova tem circunstâncias, histórias, progressos e regressos. Eu disse que sabia exatamente como ela se sentia, que escrever trazia o mesmo problema pra minha vida. Falei com sinceridade e só depois lembrei que ela era uma dessas pessoas que me falou que poderia escrever um livro ótimo sobre as muitas histórias amorosas que ela conhece, que basta um dia ela colocar se sentar diante do computador e colocar pra fora. Este “basta” é o que mata todo aspirante a escritor. Só quem tentou de verdade sabe que este “basta” contém tudo, e que quem acha que “basta” é porque nunca enfrentou o problema e nunca enfrentará. E por isso sempre olhará para o aspirante a escritor como um fracassado, porque como é possível existirem tantas histórias boas para serem contadas, que basta escrever, e diz você ter produzido muitas delas e ninguém quis publicar? Sinal de que o que você tem pra contar não é tão interessante assim, já no meu caso apenas bastaria que…

O penúltimo livro da série Minha Luta, de Karl Ove Knausgaard, A Descoberta da Escrita é, sem dúvida, o mais interessante para qualquer um que sonhe em escrever. Ele me fez lembrar de outro livro: Do que eu falo quando falo de corrida, de Haruki Murakami. O próprio Murakami não é o caso do que citarei a seguir, porque ele pulou da vida de dono de bar de Jazz para escritor logo na sua primeira tentativa, que ocorreu quando ele tinha quarenta e dois anos. Depois de discorrer sobre a importância da disciplina necessárias para ser corredor e/ou escritor, Murakami diz que para alguns o talento é um lugar difícil de alcançar, e esse tipo de escritor é premiado pela sua persistência: depois de cavar muito, ele finalmente encontra o “petróleo” do próprio talento e a escrita fluir. O Karl Ove que conhecemos no Descoberta da Escrita é alguém que deseja desde sempre escrever e durante mais de dez anos é um sabido aspirante a escritor para todos o que o conhecem, desde a família até vizinhos. Ele até entra até num conceituado curso superior com outros escritores, todos pessoas maduras que já escrevem. O privilégio de estar cercado de tais pessoas acaba sendo muito doloroso, porque deixava claro o quanto ele era limitado. Karl Ove lê muito, aprende a teoria, passa fases da vida em que se dedica full time à escrita, noutras vira apenas um trabalhador comum, e no final nos confessa que levava dois anos pra produzir cerca de quatro páginas. Páginas lindas, revisadas, belamente escritas, mas apenas quatro trabalhosas e paridas à forceps páginas. Juntar um número suficiente de folhas para conseguir material para enviar para publicação era difícil, como vocês podem imaginar. E não dava certo.

Mas, claro, estou falando do incensado Karl Ove, e da série auto-biográfica que é considerada o novo Em busca do tempo perdido, o que mostra que no fim ele conseguiu superar tudo e o final é feliz. Quando, depois de dez anos de tentativas, ele finalmente consegue publicar, Karl Ove fica nas nuvens e liga pro irmão pra contar a novidade. A reação do outro lado da linha não é a festa e a surpresa que esperava, e o irmão responde algo como: “é que era meio óbvio que acabaria acontecendo, né?” NÃO ERA NÃO! – respondeu ele, respondo eu, responde a Cíntia, e tantos outros aspirantes a escritores pelo mundo afora.

Do lado de cá, tentamos arranjar falsas simetrias: há esperanças pra mim porque, como Karl Ove, eu levo anos pra produzir poucas páginas de qualidade, eu ainda acharei a minha fonte! Ou: eu acabarei me tornando uma grande escritora porque minha vida tem se tornado cada vez mais reduzida à vida interior, tal como aconteceu com Borges… Ou: sou um anônimo num emprego comum, como Bolaño; tenho a religiosidade de Tolstói; a feiura de Sartre; os tormentos de Virgínia Woolf; a timidez de Veríssimo, infelicidade no amor de Oscar Wilde; a dependência econômica de Marx… Queremos crer que a nossa infelicidade, impopularidade e limitações faz com que a vida nos deva, e queremos como pagamento que pelo menos ela nos permita a vaidade de ser um autor. Mas e os bonitões como Camus e Casares que faziam muito sucesso com as mulheres? Capote frequentou a alta sociedade, Suassuna era interessantíssimo, Jorge Amado tomava chopp com os amigos na praia, Voltaire era nobre, Vargas Llosa quase virou presidente. Ou seja, aquela minha amiga do concurso – que me disse aquilo em meio a uma das muitas caronas, porque ela tem carro e eu nem ao menos dirijo – pode um dia realmente sentar na frente do computador e sair dali um livro interessantíssimo. Ela pode passar no concurso e ganhar melhor ainda do que já ganha, publicar livro, trocar de carro, casar, e isso se somaria ao fato dela ser popular, bonita, inteligente, culta e viajada – e eu posso continuar na mesma. Procurar garantia na vida dos outros pra ver se vai dar certo na nossa é como aquelas estatísticas de futebol que dizem que o “time ganhou 69,5% das vezes que jogou em casa com o primeiro uniforme no inverno”, ou seja, não dá em nada. Daria pra terminar este texto aqui com uma constatação muito profunda e acertada: a vida é injusta.

Eu me pergunto o que seria de mim e de outros frust… aspirantes se fôssemos noruegueses ou até mesmo argentinos. Um dos nossos grandes problemas – e começo aqui a explicar o que há de tão difícil que as pessoas não entendem – é o fato de morarmos num país onde poucas pessoas leem. Publicar é uma atividade tão pouco lucrativa que o escritor brasileiro precisa ser ainda melhor para ser publicado, a seleção é extremamente difícil. As editoras precisam lucrar e para elas é mais garantido publicar autores como J. K. Rowling ou Elena Ferrante, ou atores globais, do que investir num desconhecido. Já é difícil para o brasileiro entrar numa livraria para comprar um livro clássico, quanto mais ver um João da Silva na capa e decidir levar. Existe também o regime de participação, onde o escritor banca uma boa porcentagem do custo da publicação. Na prática, todos os que fazem isso os fazem apenas para realizar seu desejo, porque é um investimento sem retorno – não vende o suficiente pra recuperar o dinheiro e ainda fica atravancando a casa. Por isso que quem escreve, seja em editora grande ou pequena, sempre se empenha na propaganda e acaba apelando para os amigos.

Existe também o problema da escrita em si, daquele diabo do Talento. Não existe nenhuma história que não tenha sido contada e recontada muitas vezes; se você acha que existe algo inédito a ser dito, e ainda por cima esse algo inédito está em você, lamento dizer mas isso é tão somente ignorância, falta de cultura. Existe livro sobre tudo que já existe, existiu ou existirá, tenha certeza. O grande segredo é a maneira de contar, a mágica de transformar algo muitas vezes banal numa narrativa que te faça abrir mão de tempo de vida para descobrir aonde aquela sequencia de palavras vai te levar. Que interesse poderia haver em ler as opiniões de um tuberculoso amargo que desprezava todos à sua volta como Thomas Bernhard, ou até o próprio Karl Ove, com seu padrão estúpido de estragar tudo com álcool e sexo? Por isso a lógica de vender livros de celebridades ou para amigos, porque metade do caminho é se interessar em saber o que o outro quer dizer. Mas a boa literatura é aquela que consegue gerar o desejo do zero, que um nome completamente desconhecido – de quem podemos ignorar a origem, que época viveu, até mesmo se é homem ou mulher – nos entusiasme apenas pelo que escreveu. Franz Lebowitz, na série sobre ela na Netflix (Faz de conta que NY é uma cidade) faz a definição perfeita do que seria um livro ruim: era aquele que ela começado a ler e, depois de ser interrompida com alguma tarefa banal, esquecia de retomar. E completa: “é muito pior do que fechar o livro, furiosa”. Saber escrever direitinho, com início-meio-fim, com frases que obedecem as regras gramaticais, enredo e personagens é apenas o muito básico. Pode ter certeza que todos nós que temos livros na gaveta sabemos fazer isso, não precisa nos recomendar livros de Como escrever uma história, Escrita criativa e afins. Não é pelo básico que as editoras nos rejeitam e sim pelo que escapa do controle: que o que escrevemos pareça fresco como algo que nunca foi dito e instigue o leitor.

Chego no final deste texto como Virgílio deixando Dante às portas do Paraíso. Pensei em falar da loucura que é querer tanto publicar um livro, sendo que isso não é sinônimo de vender e ser lido, menos ainda de se tornar uma pessoa relevante pra literatura. Quem sabe seja igual fazer aquele belo corte de cabelo e descobrir minutos depois que não estamos mais sedutoras e confiantes. Já imaginei várias vezes como seria receber o e-mail ou telefonema que diria que meu manuscrito foi aceito, pensei em lista de agradecimento e dedicatória, me perguntei se passaria a me apresentar como escritora cada vez que preenchesse uma ficha. Mesmo ignorada pelo mundo, imagino que algo dentro de mim realmente seria curado, tamanho poder simbólico que o meu próprio livro teria pra mim – mas aí já estou entrando em terreno desconhecido. Você chegou até aqui, mesmo sem se interessar em publicar? Então muito obrigada, porque é isso que eu busco o tempo todo.

Os mapas mais complicados

É sempre surpreendente pra mim quando certas pessoas me procuram querendo um mapa astral. Pessoas com quem não tenho muito contato, ou às vezes que até tenho mas que nunca pensei que me procurariam para falar sério. Nunca na minha vida estive tão próxima da minha primeira formação, em psicologia. Conheço algumas pessoas que teria conhecimento o suficiente para lerem mapas para estranhos, mas ler mapa astral tem muito a ver com aconselhamento e acaba sendo algo íntimo e muitas vezes pesado. Não apenas não dá pra sair comentando o que foi falado, como eu nem ao menos falo quem já fez mapa comigo. Eu vejo que o que me faz poder encarar o tranco é aquela formação que tive lá atrás, que de certa forma era um comprometimento em lidar com a parte pesada da vida pessoal, e o fato de eu mesma ter um mapa bem difícil. Nada a ver eu ficar falando do meu mapa por aí e só cito em atendimento se acho que vai contribuir em alguma coisa, então apenas confiem em mim quando digo que é difícil; meu mapa me faz ter a certeza de que mesmo com tudo errado, mesmo torto, mesmo esquisito, dá pra se viver. Ou melhor: tem que se viver.

Um dos astrólogos que eu tenho como referência e crush, Ryan Kurczak, é co-autor de um livro chamado “A Arte e Ciência de Astrologia Védica“. Acho o título perfeito, porque há muito de arte envolvida na interpretação de um mapa e é difícil explicar para quem é de fora. Eu lembro a primeira vez que fui num dentista e ele comentou a obturação que eu fiz com outro, e aquilo me pareceu muito estranho – obturação não era tudo igual, um buraco tampado com massa? Não, não é. Eu jamais poderei admirar o que foi feito na minha própria boca, mas há dentistas que são mais habilidosos, que preservam mais o desenho do dente e outros mistérios que eu nem alcanço. Com astrologia também é assim, é mais do que A + B = C. Antes eu adorava informações categóricas do tipo “regente da casa doze na casa sete é casamento com estrangeiro” ou “Vênus em conjunção com Marte gera muita sexualidade” e hoje sei que tudo fica muito mais complicado quando você tem o mapa de uma pessoa de verdade na sua frente. A leitura de um mapa é um daqueles eventos que a gente guarda para a vida, às vezes é a lembrança pra que você apela quando as coisas estão difíceis, então é preciso ter muito cuidado ao se fazer certas afirmações. Já disse antes que é íntimo e parece um pouco terapia? Pois é.

Os astrólogos recomendam: se você quer estudar o seu mapa, não vire astrólogo, contrate um. Eu vivo uma gangorra em relação aos meus aspectos: ora descubro que alguma coisa é péssima, e vou dar uma chorada no twitter, “que péssimo viver dessa maneira”; ora descubro uma coisa boa e fico feliz de novo. Eu estou envolvida demais pra conseguir mensurar – e é por isso que é preciso procurar seu astrólogo – o peso de uma coisa ou outra. O que sei dizer com certeza é que tenho um mapa intenso e quando/se o dólar baixar, se Vishnu permitir, vou me consultar com um dos astrólogos que eu admiro… Adoro a astrologia védica não ter papas na língua e dizer que sim, alguns aspectos são melhores do que os outros, algumas combinações planetárias, casas, graus, períodos, ascendentes, são melhores do que os outros e, em contrapartida, algumas combinações planetárias, casas, graus, períodos, ascendentes, acrescentam dificuldades à sua vida. Mas aí quando você lê a verdade nua e crua sobre o seu mapa, e percebe que você não está na classificação dos mapas de seres iluminados e talentosos, acaba sendo necessário dar uma pausa de horas ou até dias até assimilar.

Os donos dos melhores mapas provavelmente nunca procurarão um astrólogo – a pessoa simplesmente não precisa. Mesmo nós, reles mortais onde o ótimo e o péssimo se misturam, não queremos adivinhação nenhuma quando tudo vai bem. Dá medo, é como procurar uma cartomante em início de namoro, toda apaixonada. Vai que ao invés de dizer que tudo vai dar certo, ela diz: “e esse porcaria novo que você arrumou, hein? Já te contou do filho que fez na outra e abandonou?”. Então, se a pessoa se sentiu motivada o suficiente pra procurar alguém que faz mapa e pagar, é porque tem algum treta, nem que seja apenas interna.

Mas eu até me pergunto o que dizer para esses donos dos mapas fáceis que aparentemente encarnaram a passeio, é como gente que tem problemas por ser linda demais. Que coisa maravilhosa deve ser ter tudo o que se deseja, desconheço a sensação; o meu coração bate mais forte e se identifica com os mapas difíceis. A pessoa com mapa difícil é a pessoa que teve que se virar, é a versão astral de quem nasceu sem ser desejado, cresceu sem amor, estudou como deu, e agora enfrenta a vida adulta usando a mesma calça jeans e camisa que os outros candidatos a emprego, sem que saibam a luta que ela empreende para aparentar normalidade. Nem todo mundo tem uma Vênus super favorável, mas todos querem dinheiro, beleza e serem felizes no amor, então como é que faz? Alguns apelam pra lábia e amizade de Mercúrio, outros pra iniciativa de Marte, alguns se tornam sólidos e confiáveis como Saturno. Porque nenhum mapa é forte em tudo, mesmo mapas legendários das encarnações divinas (existem mapas de Krishna e Rama, isso sem falar em vários mestres de yoga) mostram que aspectos fortes também podem trazer problemas igualmente fortes.

Eu já fiz mapas de pessoas com certas posturas que, se tivessem perguntado a minha opinião, eu diria que não concordo. Mas aí quando vi o mapa, ele dizia que a pessoa estava certíssima, aquela era a essência dela. Já vi mapa com posições difíceis e a pessoa fez milagre diante do pouco que tinha. Nunca aconteceu com vocês de conhecer alguém que parecia ter um comportamento obviamente inadequado e você não sabia como ela não se corrigia, até que de alguma maneira você entra em contato com a origem dela (leiam “origem” em sentido amplo) e tudo passa a fazer sentido? Ler um mapa é uma experiência assim. Os mapas difíceis me dão uma vontade ainda maior de ajudar, de tentar achar um caminho pra fazer dar certo. Cada pessoa de mapa complicado que dá a volta por cima, sou eu que também posso dar a volta por cima; cada pessoa de mapa ruim que consegue ter uma vida boa é um exemplo que melhora a minha vida também.

Escrever para não ser lida

Quando eu clico numa postagem antiga do blog, em qualquer ano, eu fico assustada com o quanto de sinceridade auto-biográfica tem ali. “Meu Deus, eu falei disso com todas as letras na internet?”. Por isso eu não sei se consigo voltar a escrever aqui com a frequencia de antes. Olho para a maneira como o conto do Paulo Coelho ocupou muito espaço e fico feliz, acho que criou tipo uma tampa que me protege do que um monte de pessoas já fizeram: começaram a ler o texto mais recente por curiosidade e foram subindo e voltando no tempo. Já recebi e-mails falando disso, de gente que estava “há horas” maratonando o blog e descobrindo tudo a meu respeito.

Mas eu tirei férias apenas de escrever no blog. Embora pareça que tudo foi acontecendo espontaneamente, eu criei uma fórmula para escrever, baseada no que eu via em outros blogs. Eu via que não gostava nem quando as pessoas eram extremamente pessoais, do tipo “eu fui pra uma festa, eu encontrei Fulano, eu dancei e voltei pra casa”, assim como também não gostava quando as pessoas discutiam o sentido na vida, algo que elas pensaram, mas de maneira completamente abstrata. De tanto retirar o lado pessoal de como se chegou na conclusão, a postagem fica parecendo mais um apanhado de frases de auto-ajuda. Minha observação me fez pensar que minhas reflexões só ficaram interessantes se acompanhadas de pitadas de biografia. E sempre procurei deixar a reflexão em aberto, porque acho que dizer tim-tim por tim-tim o que eu queria expressar seria duvidar da inteligência do leitor.

Com o tempo, e com a consciência de que o blog foi se tornando uma grande biografia nem sempre lida por quem gosta de mim, a fórmula foi ficando cada vez mais sufocante. Embora a minha intenção nunca tenha sido criar um personagem, eu senti que a persona Caminhante foi se tornando muito característica. Eu lembro de uma amiga que colocou no blog pessoal um mini conto erótico, aí nos comentários apareceu gente reclamando de que ela estava sendo infiel ao marido, ou que era vagabunda, algo assim. Meu blog passou a ser um espaço onde apenas os temas da “Caminhante” poderiam entrar, com seu olhar melancólico-otimista, praticamente ignorando sexo, desviando de falar mal de alguém, etc. Percebi várias vezes que alguns homens se aproximaram de mim já cientes do que eu havia escrito e fingiam que não, que nunca leram nada meu, para assim poder usar o que sabiam à favor deles. Nada contra ler meu blog e saber muito a meu respeito (“estou ciente e quero continuar”), tudo contra tentar me manipular.

Eu escrevi muito durante a pandemia, todos os dias. Tenho escrevido contos e os tenho enviado para concursos e editoras. Como nos regulamentos diz que não podem participar contos que tenham sido publicados na internet, eu fico impossibilitada de colocar aqui para não perder o meu material. Acho que um lado meu sempre teve esperança de que o blog um dia chamaria a atenção de alguém e tal, que editora importante entraria em contato comigo dizendo que me queria, porque eu sei que isso existe. Nunca nem me enviaram livros para escrever, menos ainda que eu escrevesse um, assim como nunca me tornei uma blogueira famosa. Então, por mais satisfatório que o blog seja, de certa forma ele é um grande ralo de textos. O que for publicado aqui é perdido; publicar aqui nunca me deu nem ao menos prestígio, eu sou só uma que “faz uns posts legais”, então fui correr atrás de um pouco de resultados, amigos. Já estou entrando na idade que perde as esperanças e as sementes apodrecidas se tornam amargor.

Mas deixa eu contar que essa vida de escritora séria, que escreve com liberdade e com muitas páginas, tampouco está sendo fácil. Longe dos olhos de vocês, apenas eu e o computador, é tão difícil se manter confiante. Eu escrevo porque não sei mais viver de outra maneira, independente de qualquer resultado. O personagem de ficção com quem eu mais me identifico no momento é Geppetto. Passei a entender a história de dele de outra forma – enquanto todo mundo se fixa no boneco mágico que conta mentiras, eu penso no velho solitário que fabrica para si uma companhia. Escrever é isso para mim, é a minha companhia, sou como aqueles personagens de desenho animado antigos que estavam com fome e desenhavam uma comida no papel e comiam. Incapaz de ter um amor, eu escrevo sobre amor; em busca de um sentido, eu escrevo sobre sentido. Quando recebo os muitos nãos dos concursos e editoras e fico triste, eu escrevo sobre ser rejeitada e ficar triste.

Sobre crushs, devo confessar que é meio dose homem chegar perto de mim e ser bolsonarista (moro em Curitiba, praticamente todos os heteros são minions). Achei que seria tão lindo, tão Nothing Hill, um homem se interessar por mim apenas por me olhar e trocar algumas palavras comigo… aí eu me peguei quase anotando o endereço do blog e entregando pra ele ler e já se localizar antes de dizer alguma besteira. Um ano na internet é como uma década na vida real, então mesmo depois de escrever durante dez anos, eu me tornei ninguém por deixar de postar. Até escritora eu conheci e nem ao menos pude dizer que “eu também escrevo” porque abri mão da pequena vitrine que eu tinha – pequena, sem prestígio nenhum, desprezada como coisinha fácil, mas pelo menos era um espaço.

Por isso estou aqui, agora. Voltei pra ter um tiquinho de calor.

O óbvio

É uma semana inteira de meditação, mas o estalo que me deu foi logo na primeira que eu me sentei, nos primeiros minutos. Não foi um estalo – nunca é – ou uma sensação de uma grande descoberta. Foi algo tão ridiculamente óbvio que cheguei a mover a cabeça para os lados, inconformada. Lembrando que eu deveria me manter completamente imóvel nos próximos quarenta minutos, sentada de pernas cruzadas e olhando para a parede.

Eu comecei a meditar sozinha aos quinze anos, mesma idade que parei de comer carne, e as duas decisões não foram coincidência. Ávida leitora de livros de Yoga, eu queria seguir seriamente um caminho espiritual. Naquela época, calculei que começando tão mais cedo do que as outras pessoas, aos trinta já seria um ser tão meditativo e iluminado que já poderia ter contato com algum mestre, sem dúvida teria experiências como extases, sartoris, completo domínio dos meus pensamentos. Quase trinta anos depois, posso dizer: não tive nada. Se paro para pensar no assunto, me sinto a pior meditadora possível. Nunca tive estado nenhum, nunca consigo controlar nada. Faço lista de compras, penso no almoço, no que vou tuitar, no vizinho, cantarolo, conto o barulho dos segundos no relógio, tudo. Mas, de alguma maneira, minha mente parece gostar disso.

Comecei a frequentar o centro pouco antes da pandemia, porque meu irmão já ia. Eu queria incrementar minha meditação, depois de tantas décadas sem progresso e sem conseguir aumentar minha prática, achei que um grupo seria uma boa. Conheço várias pessoas que admiram muito a Monja Coen e eu nem ao menos sou uma delas. Não estou dizendo que desgosto, mas ver na minha TL gente dizendo que sente paz só de olhar para a foto dela é muito para mim. Assim como uma vez uma amiga desceu o pau nela, com argumentos da qual ela mesma se arrependeu mais tarde e ficou impressionada com a minha paciência: “Como eu pude falar mal da Coen justo pra você, que frequenta um centro dela! Era o caso de você ter me mandado tomar no cu.” Juro que não foi nenhuma bondade que me fez não mandar. Talvez eu devesse ser mais apegada a Coen; meu pensamento no momento que eu ouvi aquelas coisas foi de que minha amiga prejudicava apenas a si mesma – eu não iria deixar de frequentar, a Coen nem ia ficar sabendo, já ela ia deixar de ouvir voluntariamente algo que parecia estar lhe fazendo bem…

Poucos meses depois de eu começar a meditar com eles nos sábados, anunciaram um retiro de Carnaval. Eu estava muito mal naqueles dias e previa que ficar sozinha no Carnaval não seria bom pra mim. Teve uma vez que eu viajei pra uma fazenda com o Alessandro Martins, um daqueles rolês bem aleatórios, e minha motivação para o retiro foi basicamente a mesma daquela época: não quero ficar só. Então enfrentei dias de meditação, saía de casa de manhã e voltava à noite, completamente quebrada. Tem hora que a gente já sente o ciático doer só de olhar para a almofada. Decidi algumas vezes chorar e derramar minhas dores todas ali, o que fiz. Mas era tanta meditação que eu chorava, secava, ficava com o olho ardendo por causa do salgado das lágrimas e ainda estava sentada. É uma sensação bastante ridícula.

Foi no retiro que eu descobri que Buda não curtia astrologia. Repetimos várias vezes aquele que foi o último discurso dele antes de morrer e acreditam que uma das primeiras coisas da qual ele fala é que não é pra fazer mapa astral? Não nessas palavras, mas ele fala para não consultar as estrelas. Buda era indiano, várias coisas nos textos fazem referência ao hinduísmo e os budistas nem tem muita noção do que é. Falam de Indra, falam das cinco direções. Ter que repetir aquele discurso, aquele trecho, me deixava muito magoada. Se o Divino achava errado, por que me deixou sem opção? Um dos motivos para estar sentada em retiro, sentindo o coração em carne viva, era o fato de que tentei muitas coisas na vida e fracassei em todas. Estava naquela fase da vida cheia de talentos e experiências, mas incapaz de me manter, pressionada por ex-marido, sem amor, sem livro publicado, sem nada. Das minhas muitas paixões, a única que estava dando brotinhos era a astrologia, e esse pouco que o destino me permitia tinha que ser avacalhado constantemente pelo centro que eu ia? Eu não poderia fazer parte de uma crença que desprezava o que eu fazia. E é Kshatriya, que aportuguesam como Xaquiamuni. É a casta guerreira, a mesma da família Bharata, do Mahabharata.

Aí veio a pandemia. Não preciso explicar a pandemia, as muitas lives, as inúmeras reuniões de zoom, o que perdemos e o que ganhamos, disso falaremos o resto de nossas vidas. Eu já fazia parte do grupo de whats da sanga e o começo foi confuso, sem horário, tentando ver o que dava para fazer por zoom. No fim, de todas as atividades da pandemia, meditar pelo zoom é a única que eu realmente achei que funciona – talvez porque basicamente a gente já não se olha mesmo. Havia dias que meu único contato humano era a sala de meditação. De pessoa que ia lá só aos sábados, entrava muda e saía calada, acabei virando das mais participativas. Insisti num horário de meditação porque ele me era conveniente e, como apareci lá sem falhar todos os dias, o horário pegou. Meu professor começou a dizer que eu já meditava pra caramba, já havia feito retiro, participava de grupo de estudos, zoava as pessoas pelo whats, por que não assumir publicamente meu comprometimento e virar budista de uma vez? Eu dava risada, dizia que gostava muito de ser leiga, dizia que sabe-se lá que nome budista me dariam.

Agora volto a mim mesma sentada, no maior e mais importante retiro do ano do Budismo Soto-Zen, o da primeira semana de dezembro. É um retiro de uma semana, que faz referência a uma semana que Buda passou debaixo da árvore, determinado a alcançar a iluminação e só parou quando, ao ver a estrela da manhã no oitavo dia, declarou: “Eu, a grande Terra e todos os seres, juntos, simultaneamente, nos tornamos o Caminho“. Como todos os retiros ao longo da pandemia, foi on line. Há algo de sagrado quando você senta sozinho porém junto, sem olhar para ninguém mais sabendo que estão lá, mais ainda quando há pessoas do mundo inteiro com você. Eu sentei sem ter qualquer questionamento em especial, pelo menos não na minha relação com o budismo ou a meditação. Eu gostava das pessoas da minha sanga, gostava de sentar em zazen e, nessa altura da vida, nem sonho em ter do sentar mais do que acalmar minha mente. Aí a obviedade fez plec e decidi fazer os votos.

Para contar a história de uma maneira gráfica, eu me imaginei no meio da sanga de São Paulo, que é grande. Eu me imaginei vestida de preto e todos vestidos de preto, como manda o figurino. Eu de rakusu, que é o símbolo de ter recebido os votos. Quando precisasse dizer qualquer coisa, o que somos, o que fazemos, no que acreditamos, eu saberia que não era como os outros, professores, ex-católicos, espíritas. Eu me sentiria estranha porque faço mapa astral védico. Veja bem, não é que eu fazia e acreditava, não era o meu passado sujo que abandonei porque virei budista, era o meu presente. E minha relação com isso só fazia aumentar, estudando noite e dia as histórias hindus, amando cada vez mais cada planeta, tendo deuses favoritos, tentando aplicar princípios de ayurveda e remédios astrológicos, absorvendo e sendo absorvida por isso cada vez mais na minha vida. Eu me sentiria mal, eu me sentiria estranha. Mas é claro, é ÓBVIO. Eu me sentiria estranha no meio dos budistas por fazer mapa. Mas se magicamente surgisse um grande emprego, se finalmente virasse escritora, se o destino tirasse a astrologia da minha vida, eu ainda assim me sentiria estranha. Seria por um outro motivo qualquer; como numa caixa de lenços que quando você tira um o debaixo salta pra fora, outro estranhamento surgiria na frente. Eu jamais me sentaria com aquelas pessoas todas de preto sem me sentir diferente, uma farsa, uma que chegou cedo ou tarde demais, impura numa quantidade de crenças e experiências variadas que nunca combinam totalmente com quem está do meu lado. Assim como me sentia assim do lado do pessoal do flamenco, sem jamais ficar tão alegre como eles cantando e dançando nos lugares públicos, sem achar que eu tenho talento, jurando que quando me convidam pra dançar é só porque conto piadas, jamais pela dança em si. E assim foi em toda a minha vida, em todos os grupos, com todas as pessoas, e assim seria no budismo também. Eu jamais me adaptaria a lugar nenhum, eu jamais deixaria de ser um bicho estranho.

E, no entanto, apesar de achar que não faço parte dos grupos, eles me viam como parte deles e me deixavam viver coisas maravilhosas com eles. Os lugares onde eu dancei, nadei, os bastidores, as reuniões, as confidências. O carinho das pessoas, elas me verem e dizerem o meu nome e me convidarem pra entrar. Apesar de tantos fracassos, há os que insistem em dizer que me acham talentosa. Eu nunca fui totalmente de grupo nenhum, mas a culpa jamais foi deles. Eu que sou esse bicho estranho, eu que sou Rahu, eu que sou alien, eu que sou esquisita em nível hard – e tenho desenhos que fizeram de mim, tenho conversas por escrito de amigos que jamais negaram que eu sou muito estranha, mas também jamais se negaram a estar comigo por isso. Então eu me tornaria budista sim, sabendo que jamais entrarei numa sala com eles e me sentirei à vontade, que jamais serei budista o suficiente, que a qualquer momento a vida pode me levar pra outra direção e eu vou largar o tal do rakusu num canto e nunca mais pegar, porque esses movimentos nunca dependeram de mim, eu sou apenas uma marionete. Mas aceitar o que eu estava vivendo naquele momento, com aquelas pessoas, com a sanga de Curitiba da qual eu já gostava tanto, me proporcionaria experiências maravilhosas, como todas as outras experiências que tive em grupos. Como pode alguém ser tão solitária e grupal ao mesmo tempo. Como pode eu ter sido assim a minha vida inteira e isso só se mostrar óbvio agora, quando eu já estou na segunda metade.