Para quem é novinho e não viveu isso, o cantor Roberto Carlos teve uma esposa chamada Maria Rita, que morreu de câncer. Foi um assunto que mobilizou bastante as pessoas na época. Acho que quando alguém como ele – rico e famoso – perde alguém que ama dessa forma, todos nós lembramos o quanto a vida é frágil e que dinheiro e fama não conseguem resolver tudo. Ela morreu no final do ano e acredito que o especial do final daquele ano foi dedicado em memória dela. Até aquela data, eu não havia tido nenhuma perda significativa na minha vida. Aí me lembro que perto do meu aniversário, ou seja, no meio do ano, estava conversando com algumas pessoas, uma delas inclusive bastante fã do Rei. Ele fez alguma aparição na tevê e dedicou uma música à memória de Maria Rita. Lembro que as pessoas ao meu lado falaram: “mas ainda isso, não superou a morte dela ainda? Aí eu já acho doença”. Foi a primeira vez que eu lembro de ter reparado o quanto somos intolerantes ao luto.
Antigamente tinha aquele costume, o de vestir preto. Eu lembro que quando eu era criança ainda existiam umas remanescentes. A mulher ficava viúva e passava alguns anos só se vestindo de preto, sempre roupas muito fechadas. Era uma medida difícil de atingir: se a mulher passava muito tempo vestindo preto (algumas o faziam o resto da vida), o comentário é que ela era exagerada e tinha que seguir em frente; se a mulher passava pouco tempo de preto, era um irônico “já tirou o luto?”, como quem diz: “não sentiu nada a morte do marido e está doida pra arranjar outro homem”. Obrigar uma mulher a se vestir sem alegria pra se fazer notar à sociedade que ela havia sofrido uma grande perda – todo aquele processo me parecia meio medieval. Até aquela data, eu não havia tido nenhuma perda significativa na minha vida.
Off-topic: no livro “Quinta Avenida, 5 da manhã: Audrey Hepburn, Bonequinha de Luxo e o surgimento da mulher moderna“, de Sam Wasson, que discute os vários elementos do filme que o tornaram icônico, o autor diz que, na época em que Bonequinha de Luxo foi filmado, o vestido preto era vestimenta apenas de viúvas. Mulheres solteiras e casadas se vestiam com roupas coloridas. O preto passava uma dupla mensagem: de ser uma mulher enlutada, mas também sexualmente experiente. O filme teria inaugurado a associação que fazemos hoje de preto + luxo.
Pelamordedeus, não estou defendendo que devemos obrigar as mulheres que sofreram perdas a se vestirem de preto! O que quero dizer que, depois que sofremos uma perda muito grande, há um longo período em que tudo dói e que as pessoas deveriam ter mais paciência. Uma vez li em algum lugar que num país por aí, quando a pessoa tirou a carteira de motorista há poucos meses, ela anda com um enorme adesivo L na traseira do carro, que quer dizer Learning. Os outros motoristas vêem aquele L e já sabem que dali pode sair alguma besteira que não se espera de motoristas experientes. Acho que o motorista Learning fica mais tranquilo e os outros também. A pessoa em luto tem que fazer um esforço muito grande pra levantar da cama de manhã, tratar as pessoas com civilidade, não ter crises de choro constantes, até mesmo pra tentar sorrir e participar de um número infinito de ritos sociais inúteis que são ainda piores quando você não está bem. A pessoa em luto vai ficar mais chata, vai se irritar mais facilmente, vai ter menos paciência pra fingir que está tudo bem, enfim, não vai ser mais quem ela era durante muito tempo e seria muito bom que as outras pessoas se lembrassem disso e dessem um desconto.
A pessoa em luto precisa de tempo e paciência – justo os dois produtos mais escassos do mercado. Existe uma parte do luto que é orgânica, todo processo intenso de stress libera diversas substâncias que demoram algum tempo pra sair do corpo. Ficamos literalmente envenenados. Existem pessoas que reagem mal a acontecimentos traumáticos, que não se conformam, que não acreditam em melhoria, que não têm fé e vários outros fatores, mas mesmo para aquelas que realizam a parte que lhes cabe com o melhor otimismo possível, o orgânico também cobra seu preço – menor, mas cobra. Logo depois que eu me divorciei – não foi meu único luto desde então, mas sem dúvida foi o mais intenso -, ou melhor, alguns anos depois do meu divórcio, acordar se tornou o momento mais difícil do meu dia. Eu nunca acordava bem, a sensação podia variar de simples mal estar a total terror com a ideia de continuar viva. Depois eu saía da cama, tomava banho e começava o meu dia e gradualmente a sensação ia diminuindo, mas durante muito tempo eu só ia para a cama completamente exausta, nem pensar tirar soneca à tarde, e precisava de compromissos que me obrigassem a sair da cama correndo assim que o alarme tocasse. Com o tempo aquele terror foi passando, muito lentamente, tão lentamente que nem consigo determinar uma data. Lembro que o primeiro final de semana que o alarme tocou e decidi dormir mais um pouco, sentindo que gostoso era ficar entre os lençóis, foi uma grande vitória para mim.
O problema é que nenhum de nós tem tempo e equilíbrio nem pra si mesmo, quanto mais para sair doando por aí. Não quero fazer uma análise rasa aqui, mas estamos a toda no capitalismo e sempre nos sentimos para trás, a sensação é que se você parar um pouco ou se distrair, alguém toma o seu lugar – e isso não só em relação ao trabalho, vivemos essa pressão em tudo. Lembro de uma amiga, uma pessoa super determinada, que mal se separou e já começou a ir pra balada. Não estou dizendo “mal se separou” de uma maneira moralista, foi no final de semana seguinte e assim continuou até arranjar alguém. Nunca ouvi dela que o lugar era bacana, que ela gostava da vida noturna, que tinha uma turma ou gostava de dançar, ela ia porque tinha um objetivo. Um dia ela me perguntou aonde eu cortava o cabelo, porque queria aderir ao curto. A explicação foi: tem um monte de loiras de cabelo até os ombros na balada, eu quero me destacar. Ela fez todo um plano em como se recolocar no mercado de solteiras e me explicou que precisava agir assim porque era difícil, as novinhas estavam aí, se ela não arranjasse alguém logo ia ficar velha e quanto mais velha a mulher mais difícil… ufa! Mas ela também me disse chorava antes de dormir, o que eu não teria adivinhado apenas observando suas atitudes. Se eu mesma me sinto em falta e mal me sustentando em mim mesma, meu vizinho também, meu irmão também, se está todo mundo procurando um lugar no mundo, a pessoa que ainda por cima precisa de paciência acaba ficando pesada. Ei, não se pendura em mim que assim nos afogamos os dois! Mas, ainda assim, é preciso acolher. Somos humanos, precisamos uns dos outros, a própria continuidade da espécie só é possível se houver solidariedade.
Tem uma foto que circula de vez em quando na internet de um cachorro atravessando a rua e que leva a própria guia na boca. Nunca a salvei porque, apesar das legendas engraçadinhas, sempre achei a imagem meio dolorosa. Eu me identifico com aquele cachorro, acho que somos todos cachorros levando as próprias guias e se auto-passeando. Há uma porção da dor que não pode mais do que ser carregada e suportada, e apenas por nós mesmos. Feliz ou infelizmente, a nossa biologia em luto não está nem aí se existe capitalismo, se as estatísticas estão contra você ou se não parece racional, ela nos coloca pra sofrer e leva tempo. Depois que um braço quebrado sai do gesso, ele já passou pelo pior, mas ainda não está tão forte como o outro ou como era antes – e assim também somos por dentro. Acho que o único conselho possível ao luto foi o que eu recebi do meu amigo Milton Ribeiro: sobreviva. A tentativa é chegar na outra margem com alguma condição de continuar em frente, então é preciso evitar os excessos que vão impossibilitar reconstruir a vida depois que a dor passar, do tipo se tornar dependente de drogas ou ficar sem ter aonde morar. Alguns, pra conseguir chegar na outra margem, terão de tomar tarja preta, outros vão engordar, tem quem acabe comprando uma grande quantidade de sapatos pela internet, e eu acho que está tudo bem. Continue a nadar, apenas continue a nadar.