There’s something about Mary

Fui ver Quem vai ficar com Mary no cinema, acompanhada. Na época, se existisse Facebook, eu colocaria que estava num relacionamento complicado com o Carlos. Eu não entendia ao certo o que o acontecia, o motivo das coisas não evoluírem entre nós. Assim que nos conhecemos, eu o ignorei. Ele era a cara do Márcio Garcia, alto e simpático – mesmo hoje esse não é o meu tipo. Só que fazíamos parte de um mesmo trabalho, com muitas reuniões, o mesmo grupinho, eu fui rejeitada por um cuja namorada era apaixonadíssima pelo Carlos então já viu… Depois disso, passamos um ano inteiro nos encontrando esporadicamente. Ele me ligava quando queria e eu me achava super difícil, moderna e bem resolvida. Hoje eu sei que fui uma idiota e que era apenas lanchinho.

 

O motivo que ele alegava para não namorar comigo, apesar de toda nossa afinidade, é que ele era muito apaixonado por uma tal de Giovana. Essa Giovana e ele eram amigos de infância, moravam na mesma vizinhança e ela atualmente estava namorando. Enquanto ficava comigo, ele não parava de falar nela. Durante o período que ficaram juntos (não lembro porque se separaram), ele chegava a dirigir sempre na mesma marcha, tudo pra poder segurar a mão da Giovana o tempo todo. Ela era doce, tinha um jeitinho de falar muito meigo, ajudava os outros e todos os amigos dele eram meio apaixonados pela Giovana. Porque a Giovana era assim, irresistível.

 

Ri muito do Quem vai ficar com Mary, divertidíssimo. Quando saímos do cinema, o Carlos me disse o filme pra ele teve um algo a mais, porque ele se identificou com o Ben Stiller. Que a Giovana era bem a Mary mesmo – uma menina legal que deixava todos apaixonados, que era irresistível não por adotar uma atitude mulherão e sim por ser linda e acessível. E blábláblá. Passei a ter ódio do filme, da Mary e da Cameron Diaz.

Depois ele arranjou uma namorada – que não era a Giovana – e parou de me ligar.

Psis

Psicólogos são bichos orgulhosos. Eu não costumo tocar no assunto, mas também não me nego a falar a verdade quando surge esse assunto na mesa. Os de fora acabam percebendo que eu fiz psicologia, mas os psicólogos passam anos falando comigo e acham que apenas me interesso pela área ou que não consegui (aka não tive capacidade) me formar. No dia que sabem, que realizam que eu tenho a mesma formação que eles, estagiei, me formei e depois nem me dei ao trabalho de tirar o CRP (registro que permite exercer a profissão), eles ficam agressivos. Eles não aceitam que alguém possam largar uma profissão tão nobre. São psicólogos, então não ficam agressivos de maneira assumida. Num primeiro momento, eles querem que eu diga o porquê da minha escolha, e seja lá o que eu responda – me arrependi, não acredito na profissão, a vida quis assim, fui abduzida – eles a desvalorizam. Eu que não persisti, que não vi direito os sinais, que tomei uma decisão errada. Depois desse período inicial de negação, eles finalmente aquietam com o seguinte argumento: É, é que ser psicólogo não é pra qualquer um mesmo…

~o~

Depois da faculdade, acabei me afastando de uma colega bem chegada. Para mim foi algo mais do que natural, já que não fazíamos mais trabalho juntas e não frequentavamos os mesmos ambientes. Outro motivo importante, que eu não via como dizer, e que ela era extremamente católica, radical, do tipo que desrespeita e vê como inferior qualquer outro tipo de religiosidade, e isso para mim era demais. Tenho problemas com pessoas dogmáticas, ainda mais no sentido religioso. Para ela, me parece, o meu afastamento foi um corte inesperado. Eu ligava, ela reclamava que eu tinha “sumido uma semana inteira”, aí eu tinha cada vez menos vontade de ligar porque ao invés dela ficar feliz eu tinha que ouvir uma bronca. Era tanta DR que nós parecíamos um casal lésbico. Eu fui me afastando, me afastado, e uma vez ela me ligou no meu aniversário, depois de quase uma no. Eu justifiquei minha ausência dizendo que estava muito ocupada, fazendo outra faculdade, mestrado, academia, amigos… e ela, para tentar se mostrar compreensiva e superior só repetia:
– VOCÊ ESTÁ FELIZ? – seguido de uma longo discurso de psicóloga-compreensiva-que-vê-as-coisas-do-ponto-de-vista-do-outro.
Um dos motivos que me afastei da área: acho insuportável essa coisa de ser psicólogo full time. Difícil quem não caia nessa armadilha.

 ~o~

Tem quem se sinta atraído por psicólogas. Uma vez comecei a sair com um cara que me disse que tinha três ex-namoradas psi. Na hora achei pura coincidência, até que numa conversa ele me disse algo como “sempre quis andar de bicicleta quando era criança e os meus pais não deixaram, você acha que é por isso que eu blábláblá?”. Eu percebi que ele queria ser analisado, e naquela época já não era psi na minha alma, só não tinha certeza. Eu respondi com uma brincadeira qualquer, fingindo que não percebi a isca e ele não gostou. Claro que a história não durou quase nada. Tive um amigo no segundo grau que era apaixonado por mim e dizia que seria meu primeiro paciente quando eu me formasse, e ficou com esse discurso anos a fio. O que meu amigo não sabia é que era justamente sua vontade de ser meu paciente que me impedia de ter alguma coisa com ele. Ou eu cuido ou eu vejo como homem. Em outras palavras: tesão zero por quem depende de mim.
Eu sempre aviso que não gosto que elas me façam de terapeuta. Eu já percebi que quando a amizade vai por esse rumo, nunca mais sai. Tem uma história em particular que me dá muita raiva, cansei de ser feita de trouxa. Ao contrário do que meus colegas psi gostam de acreditar, devo ser boa nisso, porque basta eu me distrair pra nego querer chorar no meu ombro. Quando acontece, respiro fundo, ajudo e faço de tudo para que não se repita. Se repete, odeio a pessoa por isso. Se eu quisesse ser psi, cobraria e ganharia bem pra isso. Dos meus amigos eu quero amizade.

O filme

Era um casal irresistível. Os dois muito masculinos, bonitos, cultos, viajados. Um estrangeiro e outro brasileiro. Até entrar naquela casa e ser apresentada ao marido, ainda havia dúvidas se ele era gay. Era um homem tão bonito e tão másculo! Aí conhecemos o marido e ele também era o máximo. Másculo e bonito de outra forma, também um homem irresistível. Posso dizer que fiquei meio apaixonadinha? Fiquei, achei que se ele não fosse gay, se eu não fosse casada, se tivéssemos nos conhecidos há dez anos atrás, enfim, todas aquelas fantasias que tentam unir quem jamais se uniria, que são só uma certa homenagem a quem nos atrai. Pelo meu amigo, o estrangeiro do casal, eu tinha um sentimento terno, algo fraterno. O seu companheiro, talvez por tê-lo visto tão pouco, me despertava mais curiosidade. Juntos, eles haviam viajado durante muito tempo, por toda Europa, antes de se estabelecerem aqui. O apartamento deles era lindo, bem localizado, confortável e estava sempre cheio de amigos. Passar a frequentá-lo era como entrar um círculo de pessoas cultas, alternativas e divertidas.

Era uma dessas reuniões e surgiu o assunto filmes. Nenhum dos anfitriões estava lá naquele momento. Aí surgiu como assunto o filme Dançando no Escuro. Aí eu disse que o filme havia me traumatizado, que foi uma experiência muito ruim vê-lo. Quando disse isso, o anfitrião brasileiro, se meteu na conversa por achar inaceitável que eu falasse mal daquele filme. Como podia, um filme excelente de Lars Von Trier, um dos diretores mais geniais da atualidade. Eu disse que concordava com ele, mas que estava falando da minha experiência e do desgaste que senti quando saí do cinema. O sujeito continuou, citando o quanto Björk foi premiada e estava maravilhosa no papel de cega, nas músicas compostas especialmente para o filme, na questão social abordada na história, as muitas qualidades do roteiro… e eu continuei dizendo que não estava falando disso, e sim do meu desgaste ao sair do cinema. Ele martelava a qualidades do filme, eu que saí deprimida do cinema, e aquele diálogo de surdos não chegava a lugar nenhum. Ou melhor, chegou: todo o encanto que eu sentia por ele acabou ali.

O grande JC

Eu tenho antipatia por Jesus. Ele mesmo, o da Igreja, o que tem imagens, o pra quem todo mundo apela, O. Não tem explicação – na minha família ninguém me influenciou pró nem contra, não tenho figuras fanáticas próximas a quem possa atribuir uma má impressão. Um espírita pode dizer que sofri perseguições religiosas numa encarnação passada, vai saber. É algo irracional, e como tudo o que é irracional, não se dobra a argumentos. Dos símbolos católicos é o que mais me desperta antipatia. A Virgem Maria eu acho fofa, a pomba branca que representa o Espírito Santo é a coisa mais linda, tenho até na minha casa. Gosto da Medalha de São Bento como amuleto. Mas Jesus, ah, disso eu não posso nem ouvir falar. Menos ainda as suas imagens, rezar pra ele, pedir ajuda a ele, gostar dele. A ironia é que quando as várias religiões querem se mostrar igualitárias, elas se prendem justamente à idéia de serem cristãs, o que me deixa fora de todas elas. Eu sei que Jesus não é a igreja e todos os seus equívocos, as imagens arianas de olhar doce. Li os Evangelhos e sei que lá há revolução, inovação, até agressividade. Mas a antipatia persiste.
É difícil ter problemas justo com o grande JC. Moro perto de uma igreja (o que é bem comum) e meus vizinhos se consideram uma “comunidade”. Assim que mudamos, nossa caixa de correio vivia cheia de folhetos religiosos, que eram claramente recados, dos mais simpáticos às ameaças de inferno. De tanto ignorarmos tudo, de bilhetes a visitas, as pessoas nos deixaram em paz. Só que os assaltos e a necessidade de cuidarmos uns dos outros geraram uma nova onda de solidariedade e agora nos convidam para as novenas. Uma vez por mês, combinam uma noite na casa de alguém, as pessoas se visitam, fazem um lanche, arrecadam coisas. É um momento de integração e isso eu acho muito bonito. A religião tem essa parte bonita, ela preenche uma necessidade na vida dos fiéis. Só que, por mais que admire, eu não consigo participar de novena – e dizer não a ela é também dizer não ao resto. Já seria complicado pra mim assumir compromisso de encontrar as pessoas sempre (meu lado antissocial grita só de imaginar), quanto mais com gente falando de Jesus perto de mim. E rejeitar Jesus, para quem crê, é rejeitá-las no que há de mais importante e íntimo. Então eu não falo, mas também não vou. Sabe quando uma amiga começa a namorar um mala sem alça e não pára de falar nele? É a mesma coisa, aquele incômodo calado. Por isso que eu me dou muito melhor com ateus.

Mapa astral

Não fui criança geniazinha que gostava de dinossauros, mas desde que me lembre eu conhecia a história dos deuses gregos. Havia um motivo muito prático pra isso – se eu conhecesse a história dos deuses que dão o nomes aos planetas, eu saberia o seu significado na astrologia. Os signos todo mundo conhece um pouco, e depois foi ler o significado das casas e entender como signos, planetas, ascendentes, casas e aspectos se movem nesse esquema complicado que é o mapa astral. E, claro, desde criança eu conheço o meu mapa astral. Tinha em casa um livro chamado Curso Básico de Astrologia, que depois de explicar tudo isso, descrevia o que significava cada aspecto. Minha mãe marcou com uma bolinha cada aspecto de cada um em casa, então era fácil saber quais eram os meus. Enquanto a maioria cresce lendo sobre os signos, eu lia sobre o meu marte, os meu stelium, a minha quadratura, etc. Eu sabia de cor não apenas os meus aspectos como quase todas as descrições do livro.
abandonei. Quando minha vida se tornou algo mais independente, quando passaram a fazer parte do meu mundo apenas o que eu busco, a astrologia e todo o conhecimento místico daquela época deixaram de fazer sentido, passaram a ser apenas uma lembrança. Se me falam de tarot, espiritismo, yoga, cabala, sei de tudo um pouco; mas daí eu buscar e me ver como parte disso já não mais. Eu desacredito acreditando, acredito desacreditando. Sei o que é tudo, mas também duvido de tudo.
Só que, acreditando ou não, a vida me colocou de novo em contato com astrologia. Nem que seja apenas com olhos de outras pessoas, de pessoas que são capazes de olhar para mim e achar que eu sou “muito gêmeos” – ver numa pessoa o seu signo, coisa que eu nunca fui capaz de fazer. E de me olhar com os olhos do outro e procurar o que há de tão claramente gêmeos em mim, descubro um pouco da maneira como os outros me vêem. Puxa, eu sou muito gêmeos mesmo. Durante muito tempo lutei para ser profunda, adulta, madura, séria… depois cansei e hoje tento ser leve. Ou ter espírito jovem do geminiano. Fugi tanto e cheguei no gêmeos; como se eu fosse personagem de tragédia grega, que ao lutar contra o seu destino vai de encontro a ele. Falando de amor, penso na minha vênus em touro na segunda casa. As primeiras palavras do livro para me descrever eram: fiel e estável. E sou mesmo. Invejo as que têm no currículo aventuras amorosas, paixões avassaladoras ou filas de admiradores, aquelas que sabem ser sensuais com um olhar. Minha maneira de gostar sempre foi amor, compromisso, fidelidade, confiança. Bem touro mesmo. Nunca serei uma femme fatale; cada qual com o seu jeito, com as suas vantagens e desvantagens. Não é à toa que tenho mais de dez anos de casada…
Quando adolescente eu tinha decorado os meus aspectos, só que eles eram para mim apenas palavras. Eu não sabia o quanto daquilo era verdade, o quanto se refletia em atitudes e escolhas. Eu ainda não tinha vivido, eu não tinha testado. O que me surpreende é ter chegado na fase em que olho para trás e sei dizer quase com precisão quem eu sou. Das muitas coisas que ficam melhores com a idade, mapa astral é uma delas.

Brinquedo para os muito pequenos

Eu gosto de sentar na parte lateral da direita de quem entra no Madero do Shopping Estação porque é uma das poucas partes daquele mezanino que não balança. Mezaninos já me deixam nervosa quando balançam, pior ainda se estou comendo. Bem ao lado daquelas mesas tem um brinquedo, uma espécie de carrossel para crianças muito pequenas. A criança entra numa das cabines em forma de bichinho e eles sobem e descem com as luzes piscando, ao som de uma canção. Aquele negócio em movimento me trouxe à tona um sentimento tão antigo, da época que eu cabia num brinquedo daqueles, que é difícil até de explicar. Talvez uma parte dele que possa ser expressa em palavras é: traição.

 

O que eu brincava, que ficava no Shopping Iguatemi de Salvador, era apenas um único bicho. O esquema era o mesmo: um moeda e ele balançava de um lado para o outro (ou para frente e para trás, tenho impressão de que podia ser um cavalo), acendia as luzes e tocava uma musiquinha. Para mim, era irresistível. Lembro de pedir pra ir, achar maravilhosamente divertido. Só que o problema é que aquela merda – pude comprovar depois de adulta – é muito rápida. Deve durar dois minutos e dezessete segundos. Depois, tudo começa a ficar lento e o brinquedo pára. Lembro da minha euforia, que mal tinha chegado ao auge e o brinquedo começava a apagar. Era rápido demais! Eu pedia para os meus pais colocarem mais moedas e eles se recusavam, dizia que era caro e assim não ia ter moeda que chegasse. Era muito frustrante. Lembro do quanto eu desejava ser grande logo, pra poder ter o meu dinheiro e comprar quantas moedas eu quisesse. Quando acontecesse, eu encheria a máquina de moedas e poderia passar o dia inteiro lá, com luzes piscando e a musiquinha.

Pena que eu não caibo mais.

WASP

WASP é o acrônimo que em inglês significa “Branco, Anglo-Saxão e Protestante” (White, Anglo-Saxon and Protestant). Com frequência usada em sentido pejorativo, presta-se a designar um grupo relativamente homogêneo de indivíduos estadunidenses de religião protestante e ascendência britânica que supostamente detêm enorme poder econômico, político e social. (Fonte: Wikipedia)

 

Eu dei graças quando descobri que sou alérgica à tinta da tatuagem, porque passaria a ter a justificativa perfeita para jamais fazer uma. Ao mesmo tempo, gosto de tatuagens nos outros e já pensei tanto no assunto que já tenho até a minha tatuagem escolhida, a minha tatuagem imaginária. Essa coisa de gostar e não gostar de tatuagem sempre me intrigou, eu não conseguia entender minha contradição com relação ao tema. Estar com a Flávia e o Elson – um casal tatuadíssimo – me deu uma pista. O taxista já foi perguntando se eles vieram pro psy carnival, o mendigo na rua olhou pra eles e já disse que eles eram “rockbilly” e a Flávia já está acostumada a ser olhada estranho. É que basta olhar para saber um pouco sobre eles, do que eles gostam.

 

Acho que essa é isso o que eu gostaria: de ter um visual que informe algo. Que apesar de branca, hetero, casada e classe média, eu não me encaixo. Por todo o meu histórico, meu jeito de ser e a maneira como me visto, passo uma informação muito WASP. E do fundo do meu coração eu não sou WASP. Tinha tudo para ser, fui criada para ser mas não sou. Desde que me lembre eu gosto de me vestir de uma maneira certinha. Nessas horas me dá uma certa raiva, porque percebo meus limites, que não consigo negar 100% as minhas origens e adotar um visual radical. Gosto das minhas roupas; o que eu não gosto é de parecer que faço parte da conservadora classe média curitibana. Eu fico muito ofendida quando as pessoas se sentam ao meu lado pra dizerem que não se deve alimentar mendigos, que filhos de pais separados são piores que os outros, que negros ou nordestinos são inferiores e todo tipo de barbaridade, apenas porque elas olham pra mim e acham que sou igual a elas – WASP. Seria bacana se algo em mim já dissesse para as pessoas: Nem venha, eu não concordo.
(Que visual expressaria melhor o meu eu? Não faço a menor idéia…)

O justo e o melhor

Ser justa era uma preocupação muito grande pra mim e parece que isso era muito claro para os outros. Digo que parece porque essa vontade de ser justa foi usada contra mim inúmeras vezes. Eu era acusada de ser injusta, ou diziam que o mais justo seria fazer tal coisa, e lá ia a trouxa quebrar a cara, enfrentar sozinha o dragão e receber o ônus de quem fala a verdade enquanto os outros apenas assistem. Mas lutar para ser sempre justo, como todas as vezes que as pessoas tentam aplicar um grande princípio na vida diária, é também de uma arrogância e onipotência tamanha. Quem sou eu, que vejo apenas o meu lado e sei o que é melhor para mim, para decidir que caminho a questão deve tomar. Ou seja, eu me sacrificava à toa. Não sei quais eram as intenções no passado e muito menos quais as consequencias no futuro. Às vezes, algo muito ruim e doloroso no presente pode ser revelar libertador; ao contrário, passar a mão na cabeça no momento errado pode ajudar a manter uma atitude nociva. Então abri mão da justiça e passei a fazer o que é coerente comigo. Eu faço o que eu posso, dou até onde consigo sem me fazer falta. Não quero fazer mal aos outros, mas cuido primeiro do meu umbigo. Ainda assim não é simples, mas é muito mais fácil de aplicar do que a justiça.

Ser boa, muito boa, fazer um trabalho excepcional sempre foi uma preocupação muito grande pra mim e parece que isso era muito claro para os outros. Nos trabalhos em grupo, eu era uma praga, daquelas exigentes que carregam o grupo nas costas e brigam com as pessoas no fim de semana, mas com quem todo mundo queria trabalhar porque tirava dez. Era desgastante levar tudo à ferro e fogo e já na adolescência eu tinha crises de gastrite. Só que eu conseguia. E consegui durante muito tempo, enquanto meus trabalhos tinham um alcance pequeno, enquanto eu me comparava com quem estava do meu lado. Só que a maturidade e a internet abriram meu mundo de tal forma que nunca mais poderei ter a ilusão de ser a melhor. Nem ao menos de estar entre as melhores. É como se eu precisasse de uns vinte anos a mais no meu passado para obter a cultura literária, a capacidade de análise, a profundidade do trabalho e até mesmo o conhecimento flamenco que eu gostaria. Hoje eu me vejo como uma blefadora. Se fosse lutar para alcançar os padrões que gostaria, as qualidades que vejo nos que admiro, não escreveria mais nem uma linha, não dançaria nunca mais. Então abri mão de fazer o melhor e procuro pelo menos não passar vergonha. Corrijo os erros, faço o básico, ouço os conselhos de quem entende e vou. O suficiente pra estar no jogo, sem a menor chance de ir pro pódium.

O balão

Eu amo a Dúnia e todas as características que a tornam única: a maneira como uiva de impaciência pra qualquer coisa. como se afasta e senta exigindo que a gente dê logo o ossinho dela, como sai da casinha lentamente e se espreguiça pra disfarçar que não virá nos cumprimentar na chuva. Eu aprendi muito com ela sobre amor e dedicação. Estou acostumada com essas características caninas, com suas necessidades caninas e a maneira como nosso convívio se firmou ao longo dos anos. Sou eu quem a levo pra passear na maioria das vezes, e sua animação já me fez sair com ela mesmo em momentos que jurava que não faria. A Dúnia tem um trajeto longo, que ela não aceita que seja diminuído, e o torna mais longo ainda pela sua mania de cheirar atentamente vários matinhos. Ela é claramente um cachorro olfativo e se daria muito bem no combate às drogas. Mas lá vou eu levá-la para passear – cansada, atrasada, com vontade de ir ao banheiro ou tudo junto, porque para a Dúnia é importante. Uma necessidade canina.

Era um dia comum, mais um passeio. Quando eu estava fechando o portão, vi um balão surgindo por detrás da minha casa. Não sei por que ou por quem, há muitos balões por aqui. Aquele chamava atenção por ser um charuto gigante, de pé, não apenas pelo formato como pelas cores e até uma parte dourada na ponta. Acho que foi o balão mais bonito que eu já vi. Observei o balão enquanto a Dúnia já tentava me arrastar e cheirava as folhas. Terminei de fechar o portão, seguimos, dobramos a esquina e fomos. Até que a Dúnia viu o balão.

Eu quase a puxei, porque estávamos perdendo tempo. Mas ela parou tudo o que estava fazendo e ficou observando o balão atentamente. Ela se interessou de tal modo que ficamos as duas paradas na calçada, olhando aquele charuto gigante se afastar lentamente. Foi a primeira vez que me dei conta de que a Dúnia tem mais do que manias, ela é um ser. Como ser ela tem curiosidades. Há nos seus passeios e nos seus matinhos um conhecimento, um envolvimento com a vida e uma aprendizagem, que só porque eu não entendo não quer dizer que seja importante. Desde então passei a respeitá-la mais e ter até mais boa vontade quando ela cisma com alguma coisa. A Dúnia também quer aprender.

Princípios simples

Chega a ser frustrante, para o meu orgulho, que à medida que eu envelheça a vida parece cada vez mais psicanalítica. Odiei a psicanálise de todo o coração e fiz questão de aprender o mínimo possível, o suficiente para passar em algumas matérias. E eis que os princípios entraram em mim por frestas e hoje eles voltam à minha memória e concordo. Como os princípios de prazer e realidade. O de prazer quer pra já e agora, o de realidade diz que não, não agora, não desse jeito. E esse atraso provocado pelo princípio de realidade, ao invés de cortar o barato do princípio de prazer, aumenta a tensão e faz com que a descarga seja ainda maior. Ou seja, esperar aumenta o prazer. É simples, é bobo e hoje parece explicar de tudo pra mim. Da minha felicidade ao colocar cortinas novas aos mais complexos problemas sociais.
Não adianta, se demora tem mais valor. Somos idiotas, somos bichos, somos regidos por princípios bobos e simples. Pense na letargia dos que já nasceram com tudo e na garra dos que ambicionam o mundo. Se temos tudo de mão beijada… olhe o que acontece se temos tudo de mão beijada:
O que podemos esperar… de um ser humano? Torne-o rico, faça-o feliz até o pescoço, até a cabeça, de maneira que à superfície da sua felicidade, como ao nível da água, emerjam apenas bolhas de ar; deixe-o tão abastado, que nada lhe reste fazer a não ser dormir, comer doces, chupar sorvete e cuidar da preservação da espécie. Pois bem: em troca, este mesmo humano lhe pagará com alguma trapaça suja, por pura falta de gratidão, simplesmente por maldade. Arriscará, para tanto, até mesmo os doces. De propósito, cometerá a maior loucura, a asneira mais anti-econômica, somente para misturar o bom-senso extremamente positivo que lhe tem sido ofertado com o funesto, elemento fantástico que faz parte de sua própria essência. E, justamente os sonhos mais mirabolantes, a estupidez, são o que mais deseja conservar…
Nietzsche (citado por Watzlawick)
Por isso que não dá pra valorizar fast food, nem quando a comida rápida é sexo. Isso nos leva a idéias tão perigosas e machistas, de concluir que para a mulher ter valor ela precisa se fazer de difícil. Não concordo com o “se fazer de difícil”, menos ainda em pensar que esse papel cabe exclusivamente às mulheres. Mas existe sim uma tendência a desvalorizar quem nos acolhe  – na sua cama, na sua vida – de imediato. Como já disse, unicamente porque somos idiotas. Sem saber como a plantinha é plantada, demora a crescer, chega ao ponto certo, é colhida, lavada, cortada, temperada e cozida, como estabelecer uma conexão com a comida? Se a gente só abre um pacote não tem como dar valor. Cozinhar deixou de ser sagrado, logo o comer também deixou, e com isso perdemos o controle até do nosso peso. A roupa descartável feita por escravos estrangeiros também é jogada fora, não é igual à feita sob medida pela costureira de confiança. Eu adoraria ter dinheiro para pagar alguém que arrumasse minha casa inteira ao invés de passar anos vivendo como quem acabou de se mudar. Mas quando sou eu que envernizo minha porta, espero anos para colocar a cortina do jeito que eu quero – ahá, cheguei na cortina! – é tão diferente, é tão mais pessoal. Eu tenho mais carinho. Idealmente, talvez devêssemos fazer tudo que está à nossa volta, participar de todos os processos e de todos os consumos. Isso nos daria uma dimensão melhor do trabalho e o respeito viria como consequência. Quando é rápido a descarga é pequena, o que leva mais tempo tem mais valor. Somos estúpidos e primitivos.

Grandes defeitos

Uma vez li uma entrevista do Flávio Gikovate, que dentre tantas perguntas sobre o trabalho dele, novo livro e sabedoria acumulada por anos de divã, queria saber se era verdade que ele era um homem muito vaidoso. Eu cresci lendo suas colunas, vendo um retrato meio de lado num belo rosto barbudo, e achei que faz todo sentido imaginar que ele seja vaidoso. Sempre o achei bonito e me parece que ele envelheceu bem. Só que perguntar isso a ele, em meio a tantas coisas, parecia quase um demérito, como se a repórter estivesse falando – Ok, você diz coisas muito interessantes sobre pessoas e relacionamentos, mas quem é você para apontar certos erros se você também é vítima da vaidade. Ele respondeu que era sim vaidoso, como tantas pessoas o são e dentre muitos outros defeitos. Ele só questionou porquê a vaidade dele deveria chamar mais atenção e ser digna de nota, qual a necessidade que querer confirmar que ele é sim, vaidoso e humano.

Em termos de humanidade, também penso no meu amigo e editor do blog Livros e Afins, o Alessandro. Não posso falar sobre o seu passado e sobre suas decisões, o que sei é que hoje ele deixa muito claras algumas de suas escolhas. Ele defende formas de amor mais livres, curte mulheres de botas e se encanta com a estética latex sado-masô. De um lado, poderíamos dizer: desnecessário deixar isso tão evidente, eu não tenho nada a ver com a vida sexual dele. Por outro, ele está sendo sincero, consigo e com os outros. Ele assume seus gostos e não se envergonha, mostra desde o início o que se pode ou não esperar dele. Acho provável que isso faça com que os que pensam igual se sintam ainda mais livres perto do Ale. Ninguém pode alegar que iniciou um relacionamento com ele sendo iludido ou enganado. Quem achar chocante, feio ou doentio, faz um grande favor em se afastar logo. Eu não compartilho os gostos do Alessandro, mas reconheço a honestidade do gesto.

Também tenho os meus defeitos. Tenho muitos anos de blog, o que torna fácil notá-los, tanto pelo que disse quanto pelo que omiti. Mesmo que não enumere, mesmo que alegue coisas que eu não sou, dá pra entender muitas coisas a meu respeito nas entrelinhas. Aqui estão registradas minhas ambições, meus problemas de relacionamento, minha dificuldade em negociar, minha total inconstância profissional. Tenho sido também acusada de narcisismo, de não suportar críticas, de imaturidade e de superficialidade. O que posso dizer é que abraço todas essas críticas. Pior: não apenas sou tudo isso como nem ao menos tento mudar. O que somos muda muito pouco durante os anos – ou quem sabe nem mude. Eu conquistei um certo equilíbrio. O que eu não entendo, tal como Gikovate, é o porquê de uma preocupação tão grande com os meus defeitos. São meus, meus, interferem na minha vida. Eu nem ao menos opino sobre a vida dos outros. Quem não suporta meus defeitos pode simplesmente se afastar, pra quê mais do que isso? Não preciso ser mais do que sou, menos ainda o que outros querem. Viva e deixe viver.

Sah

A nossa amizade foi intensa durante um ano, e só um pouco mais, meses depois. A culpa foi minha – fui eu que fui embora, eu que achei que merecia mais do que aquele lugar poderia me oferecer. Depois disso a nossa amizade se tornou uma convenção, um nome do passado na lista de amigos de redes sociais. De vez em quando eu vou lá olhar umas fotos. Sempre esteve claro para mim que o que nos unia era o fato de dançarmos juntas. Fora a dança, tínhamos em comum também o vício em Matte Leão de limão diet. Uma casada e a outra solteira, uma mulher e a outra menina, uma leitora e outra miguxa, eu poderia fazer uma lista enorme das nossas diferenças. Tento lembrar das nossas conversas e nada pode ser citado aqui, nunca conversamos sobre coisas diferentes do nosso dia a dia, as pessoas que nos cercavam, piadas. O que a Sah tinha e a tornava uma amiga maravilhosa é uma característica rara: a doçura. A doçura, hoje em dia, é mais difícil do que achar jacu de testa larga, do que tesouro escondido, do que um príncipe encantado. E a Sah era um doce. Ela tornava os ambientes melhores, só por estar lá. Seja pra ficar em silêncio, pra brincar ou pra chorar, ela é uma boa companhia. Se gostava de você, era a melhor amiga: carinhosa, atenciosa, sensível; se não gostava, tampouco se fazia de inimiga. Alguns a consideram, simplesmente, uma boba, porque não podem entender alguém que ande desarmado. A Sah tinha suas antipatias, suas torcidas contra, suas fofocas, como todo mundo. Mas isso é muito diferente de ferir deliberadamente, de desejar o mal de todo coração, de encontrar satisfação no sofrimento do outro. Conheço mais de meia dúzia de donos da verdade, anjos vingadores, exemplos de conduta, esquizofrênicos de todas as vertentes, máquinas de fazer dinheiro, pessoas de QI alto e cultos no sentido mais elitista do termo. Já pessoas doces dá pra contar nos dedos. Talvez quem leia isso nem entenda o que estou falando, porque infelizmente é possível passar a vida inteira sem experimentar a doçura. Ou – muito pior – ver nessas pessoas apenas um adversário frágil e maltratá-las. Pena de quem age assim. A doçura genuína, aquela que faz parte da própria alma da pessoa, é um dos sentimentos mais macios de se viver. A doçura é parente do amor.

“O amor não é, primacialmente, uma relação para com uma pessoa específica; é uma atitude, uma orientação de caráter, que determina a re­lação de alguém para com o mundo como um todo, e não para com um “objeto” de amor. Se uma pessoa ama apenas a uma outra pessoa e é indiferente ao resto dos seus semelhantes, seu amor não é amor, mas um afeto simbiótico, ou um egoísmo ampliado. Contudo, a maioria crê que o amor é constituído pelo objeto e não pela faculdade. De fato, acredita-se mesmo que a prova da intensidade do amor está em não amar ninguém além da pessoa “amada”. Este o mes­mo equívoco de que acima já falamos. Por não se ver que o amor é uma atividade, uma força da alma, acredita-se que tudo quanto é necessário encontrar é o objeto certo – e tudo o mais irá depois por si. Tal atitude pode ser comparada à de alguém que queira pintar mas, em vez de aprender a arte proclama que lhe basta esperar pelo objeto certo, passando a pin­tá-lo belamente quando o encontrar. Se verda­deiramente amo alguém, então amo a todos, amo o mundo, amo a vida. Se posso dizer a outrem “Eu te amo”, devo ser capaz de dizer: “Amo em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me a mim mesmo em ti”. 
Erich Fromm, citado por Alessandro Martins.

Fase Bob Esponja

Acho que foi depois que eu vi Onde os fracos não têm vez, no cinema, não tenho certeza. A fase Bob Esponja não foi uma decisão consciente, pensada, e sim um desejo. Fui ver Onde os fracos totalmente ignorante sobre o seu tema. Não gosto de spoilers e fujo a todo custo deles. Então sobre esse filme eu só sabia que era bom, que os diretores eram bons e o ator era bom. Cheguei lá e o filme era realmente bom, mas… que paulada. Além da violência do protagonista em si, é um filme que não faz a menor questão de reconfortar quem o assiste. Então eu assisti um filme bom e achei a experiência ruim. Talvez, pro que eu estava vivendo no momento, não era pra ver um filme daqueles. Senti, a partir daí, a necessidade de encaixar o filme bom com o que eu podia ver no momento. O problema é que desde então nunca passou a ser o momento de ver coisas pesadas. O que quer dizer que minha Fase Bob Esponja é também um atestado indiscutível que não sou uma boa assistidora de filmes. É lamentável constatar isso, uma pessoa que foi educada nos melhores filmes franceses e ficava a par de todo circuito de filmes de países sem água potável. Quem ama filmes adora a linguagem do cinema, que ele seja bem feito, que seja bem construído, que fuja do clichê – não que ele se resuma, simplesmente, à obrigação de ter um final feliz. E eu percebi, com Onde os fracos não têm vez, que preciso de finais felizes.
Minha fase Bob Esponja é, nada mais, do que a vontade de ver coisas felizes. Quero me sentir bem depois de um filme, uma série, um programa. Fujo dos me façam triste demais, que me tirem a vontade de viver, que deixem o mundo com um aspecto mais violento. Prefero rir tolamente, do mesmo modo que rio quando vejo Bob Esponja. A vida tem me parecido pesada demais pra pesá-la com a ficção. Não aguento ver pessoas morrendo queimadas no noticiário e depois ver um psicopata queimando uma vítima. Tenho até uma boa justificativa do ponto de vista da psicologia: o nosso inconsciente não sabe o que é verdade e o que é de mentirinha, o que é vida e o que é filme. Pro inconsciente, todos os sofrimentos são iguais, ele sente tudo na pele. Então, me reservo o direito de evitar o sofrimento de mentirinha, já que com o sofrimento da vida real posso muito pouco. Minha fase Bob Esponja tem me deixado tão burra e inculta cinematograficamente que dá até vergonha. Mas não consegui abandoná-la, não consigo mais me obrigar a tensões voluntárias.