Paulocoelhando

Sem falsa modéstia, nos comentaristas do Milton Ribeiro tem quem escreva muito melhor do que eu. Gente que sabe transmitir emoções que eu nunca chego perto, que tem uma cultura tão mais vasta do que a minha que nunca os alcançarei, que consegue escrever ficção, colocar personagens, inventar situações, enquanto este humilde blog fica numa egotrip perpétua. No entanto, também tenho consciência de que sou mais lida do que eles. Por essa diferença entre qualidade literária e número de leitores, me sinto uma verdadeira Paulo Coelho nesse assunto. Eles são melhores mas eu influencio mais. Não sei se encho o peito de orgulho para falar isso ou me envergonho por representar a injustiça e a pobreza intelectual do mundo.

Mas é claro que o Paulo Coelho não merece que eu me compare com ele. Estou falando de gente que se faz ler por umas sete pessoas, enquanto eu pra umas oito. Já a quantidade dos que lêem e adoram Paulo Coelho… Como artista que já foi artista sem ninguém saber, como artista que mais ama a arte do que é correspondida, como pessoa que talvez nem mereça se dizer artista, sei que ter o seu trabalho admirado vale muito mais do que qualquer idéia a respeito de qualidade. Não existe confiança ou crítica positiva que resista quando vemos as nossas coisas desconhecidas, encalhadas num canto, pegando pó. Dói demais quando alguém pior do que a gente recebe a atenção que não temos. Burra ou não, quem produz uma obra precisa de audiência. Entre ser Paulo Coelho e ser uma escritora excelente e obscura, eu ficaria com a primeira opção.

Prelúdio flamenco

Eu acho até engraçado quando alguém quer me ver dançar e se oferece pra ir junto comigo ao teatro. Antes de começar a dançar, eu também pensava que as pessoas envolvidas chegavam uma meia hora antes, só pra se trocar. Uma hora antes, no máximo. Não sabia que os artistas passavam o dia inteiro lá, que chegavam quando o dia estava claro. A coreografia ensaiada no estúdio precisa funcionar no palco. O dia do espetáculo, geralmente, é a nossa única oportunidade de fazer essa transposição. Então tudo é dançado de novo, visto de novo, remarcado de novo. Com marcas discretas no palco ou observando o ambiente, cada um precisa dar um jeito de garantir que estará no lugar certo. Não existem os pontos eletrônicos que eu jurava que tinha. Outra ilusão era pensar que existiam maquiadores, figurinistas e toda uma equipe de apoio; imaginava pessoas deitadas na cadeira enquanto diversos profissionais os aprontavam que antes de entrar em cena . Quem sabe seja assim na Globo, na Broadway. Normalmente a coisa toda é feita na raça, com o elenco todo se ajudando.

O flamenco tem uma particularidade sobre as outras danças, que o torna tão atraente e tão mais difícil: a dança e a música conversam o tempo todo. Dá pra dançar com um CD, como a necessidade costuma levar as pessoas a fazer, mas a alma flamenca não é essa. Um tablao flamenco tem palmas, guitarra, cantor, um espaço para o bailaor dançar. A Cris tem se empenhado e conseguido fazer nossos espetáculos com música ao vivo. Como não é possível ter um músico em cada aula, é perto do espetáculo que somos “apresentados”. Então é sempre meio em cima da hora que fazemos tudo juntos, e os músicos precisam ser instruídos do que vão tocar. Eles precisam se adaptar e nós também, porque cada músico toca de um jeito, cada um tem sua característica. Um flamenco precisa saber o que está dançando, qual o andamento, que palmas, que resposta gerará – com gestos e sons – em quem está tocando. Acredito que essa vivência seja muito peculiar ao flamenco; quando dançava outras coisas, tudo o que precisava fazer era me adaptar a um andamento (totalmente indiferente) ao que eu fazia.

Ou seja, estou cansada. Fazer parte de um espetáculo é sempre um prazer e um empenho. Hoje é dia de flamenco, bebê.

"Você não é nenhum Fábio Assunção"

Eu nunca lembrava o nome do cara, agora sei: Marcelo Médici. Quando ele começou a aparecer na Globo, sempre em papéis de humor, vi uma entrevista dele em que ele dizia que um tal diretor/professor de teatro, lhe disse “Você não é nenhum Fábio Assunção”, ou seja, que ele nunca seria um galã. Ele disse que na hora doeu ouvir, que o outro chamou ele de feio na cara dura, mas que depois ele entendeu o conselho e aproveitou. Se ele insistisse em querer ser galã, nunca seria mesmo. O jeito foi descobrir outros caminhos, algo que combinasse com ele.

(Nesse ponto do texto, eu adoraria dizer um monte de coisas. Que essa história de “Você não é nenhum Fábio Assunção” também é um mantra pra mim. De quantas vezes na minha vida me forcei a ser coisas que eu não era. Aí eu não era nem uma coisa e nem outra, e não agradava ninguém. Ou as muitas vezes que eu achei que negar o que eu sou facilitaria as coisas, e que também não dá certo. Nem mesmo com as qualidades. Quanto eu tentava me fazer de humilde, estava apenas vendendo barato uma mercadoria cara, e os outros se aproveitavam dessa pechincha involuntária. Gostaria de contar mas não encontro palavras; é uma aprendizagem tão íntima que se recusa a ser transmitida.)

Nem preciso dizer que com ele deu certo e o Marcelo Médici é um baita ator. Vale a pena ver essa entrevista dele:

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O jeito certo

Poucas pessoas tiveram a honra ou o desgosto de se consultar comigo profissionalmente. Num desses poucos atendimentos, uma moça se queixou pra mim de que não conseguia um homem que prestasse. Ela queria apenas ser levada à sério. A vizinha dela se vestia como uma vagabunda, bebia, dançava e tinha moral duvidosa, e os caras só faltavam fazer fila. Ela era uma moça correta e estava sozinha; a vizinha era toda errada e tinha montes de homens atrás. Deu vontade de falar que se o jeito certo não estivesse funcionando talvez ela devesse fazer do jeito errado. Não sei se devia ter falado; era como eu falaria com uma amiga, meio brincando. Talvez a ajudasse ouvir algo tão chocante, talvez apenas aumentasse sua angústia. Ela não agiria diferente só pra arranjar um namorado, porque certo e errado não podem ser escolhidos assim. Alias, nem o que consideramos certo ou errado é uma escolha.

Lembrei disso por causa uma que dança comigo, no flamenco. Ela, como eu, você e o resto da humanidade, quer ser destaque, quer aparecer mais do que os outros – o que é difícil numa coreografia que envolve dez pessoas. Ninguém se sente confortável sendo apenas mais um bailarino ou mais um ser humano. A graça é ser especial, em qualquer atividade que a gente ame. A diferença entre as pessoas está no que elas buscam pra se sentirem especiais e que estratégias usam pra conseguir isso. Eu uso a estratégia da boa filha: faço tudo da maneira mais correta e escrupulosa, na esperança de que meus esforços e minha dedicação sejam notados. Danço de maneira fiel ao que foi coreografado, procuro os alinhamentos certos, respeito o espaço de quem dança comigo. Já essa minha colega tem optado pela “personalização”: uma reboladinha aqui, uma mãozinha acolá, um pé que se ergue de uma maneira diferente num sapateado. Quase uma coreografia dentro da coreografia. Até marcarem os lugares, ela dançava na frente e na troca de filas magicamente voltava para frente. Quando alguém a corrige, ela finge que ouve e continua fazendo do jeito dela. Pra ficar diferente do grupo tem funcionado. E pra torná-la impopular também.

Eu fiquei com vontade de dizer a ela que não é assim que se faz. Que a gente conquista um lugar trabalhando direito, respeitando as regras e confiando que nosso bom trabalho falará por si. Só que me dei conta de que essa é a minha maneira de achar que é certo… o que até hoje não me rendeu muito. Ainda estou esperando aquele reconhecimento que disseram que eu teria se agisse assim. Não sei mais o que diria a ela ou a qualquer um que quisesse saber como se obtém as coisas na vida. Vai ver que o jeito certo é fazer errado.

O gás

Era feriado de carnaval e o tempo estava chuvoso. Estávamos casados há poucos meses. Havíamos passado o dia inteiro fora, passeando, resolvendo coisas, visitando a família. Nos primeiros meses de casamento quase não parávamos em casa no fim de semana. Sempre comíamos fora, minha sogra tentava nos fazer almoçar com ela, eu passava muito tempo com a minha mãe, arrumávamos coisas para a casa. Lembro que era bem tarde quando o Luiz parou o carro em frente ao portão para que eu pudesse abrir a porta. Naquela época não tínhamos cachorro. Abri o portão, fui para a porta da frente, e mesmo antes de abrí-la senti que havia algo de errado. Já dava para sentir o cheiro de gás.

O Luiz mal saiu do carro e eu o mandei encontrar a chave do cadeado da casinha de gás. Nossa casa foi projetada para ter aquecimento à gás, coisa que nossas famílias se opuseram. Citaram os inúmeros casos de pessoas que morriam no chuveiro, ou dormindo, porque a chama apaga e ninguém percebe. Não tínhamos nos decidido ainda. Temporariamente, compramos um chuveiro elétrico e um botijão de gás pequeno. O espaço da casinha era para dois botijões de 45kg. O nosso era só para a cozinha e estava praticamente novo porque raramente comíamos em casa. O botijão ficava na frente da casa, por uma tubulação que passava pela garagem, por debaixo da cozinha e dali subia até os banheiros. Em algum lugar dessa imensa tubulação o gás havia escapado.

Quando abrimos a casa, o cheiro era tão forte que o botijão devia ter esgotado seus 13 kg inteiros naquele dia. Não acendemos as luzes e corremos pra abrir a casa. O que nos salvou é que um relâmpago havia atingido a casa e queimado a geladeira – naquela época, não tinha muito mais pra queimar. Se o motor da geladeira tivesse funcionado, ela teria explodido. Ficamos no escuro, com a casa inteira aberta, tensos. Todas as providências – usar a garantia da geladeira, reclamar com a construtora, descobrir a origem do vazamento, trocar de botijão – teriam de ficar pros dias seguintes. Fomos dormir depois de meia noite, ainda com um resto de cheiro, e com a sensação de que nossa casa poderia ter nos matado. Eu quis chamar alguém (e posso jurar que o Luiz também). Pensei em chamar o porteiro, mas agora eu não tinha mais porteiro. Pensei em ligar pra minha mãe, mas ela não tinha nada a ver com aquilo. E o que diriam meus sogros, acostumados a morar em casa? Não tinha mais o que fazer e era muito tarde pra ligar pra qualquer pessoa. A responsabilidade era nossa, a casa era nossa. Foi a partir daquele dia que eu percebi que não estava brincando de casinha.

Porque hoje é sábado, Jon Hamm

Ao contrário do Milton Ribeiro, não tenho um HD cheio de imagens de beldades, todas à espera de uma aparição no sábado.

Este post excepcional é porque estou tirando meu atrasado da série Mad Men. Ou Mad Man, porque pra mim Don Draper é o único que interessa.

A série, ambientada nos anos 60, mostra o (sub)mundo da publicidade, onde Don Draper é um dos seus maiores expoentes. Como pano de fundo, os costumes e mudanças de uma época que fumar e beber o tempo todo eram normais.

Dá pra entender perfeitamente as muitas mulheres da série, casadas ou não, dispostas a tudo com ele.

(pausa para sonhar acordada)

Ao contrário de outras séries atuais, Don é tudo o que os mocinhos de antigamente eram: charmoso, elegante, misterioso, pai de família, ético

e mulherengo. Porque mocinhos de antigamente não eram pra ficar dentro de casa.

As contradições e mistérios do personagem o tornam cada vez mais interessante. Não é à toa que Mad Men seja campeã em Emmys de Melhor Série Dramática.

Cheguei a pensar que Jon Hamm nem fosse tudo isso, que seu charme se devia exclusivamente ao seu papel de Don Draper.

Ou pelo fato de estar sempre de terno. Corri para o Google.

Respirei (e suspirei) aliviada. Sim, ele é mesmo lindo.

Lindo e másculo, de uma forma que os ídolos teens de hoje nunca chegarão a ser.

E quem se importa com ídolos teen? Eu é que não.

Quero mais é um homem barbudo e de óculos pra chamar de meu.

Poder

Quando meu ex-orientador me sacaneou, algumas pessoas me disseram que eu deveria ter ido lá, perguntar o que havia acontecido. Há uma crença generalizada de que tudo deve ser perguntado, falado, esmiuçado. Eu não a compartilho. Sempre fui a favor do adeus sem explicações, porque ouvir desculpas esdrúxulas me deixa com mais raiva ainda. Seja lá o que meu ex-orientador me dissesse – “não tive nada a ver com isso”, “ano que vem você entra”, ou o totalmente improvável “desculpe” -, nada iria mudar o fato de que eu comprometi um ano da minha vida para algo que não aconteceu. E que não tinha nenhum plano B para os anos seguintes. Mas o que realmente fez com que eu não o procurasse, é por ter ouvido dele a seguinte história:

Uma vez eu tinha uma orientada que não estava fazendo o que eu queria. Eu disse pra ela escrever um capítulo de um jeito, e ela insistia em escrever de outro. O trabalho estava ficando pronto, eu insistia, e nada dela fazer o que eu mandei. Aí chegou a época da qualificação, e eu falei para as professoras convidadas mandarem ela fazer aquela modificação que eu havia mandado. As professoras falaram e nada. Até que nós dois quebramos o pau, ela não querendo fazer o capítulo e eu disse que ela tinha que fazer, porque:
– Acho que esse mestrado é importante pra você, não é? Porque se não for, você pode ir embora. Você é apenas uma linha no meu currículo. Pra mim tanto faz que você continue ou não, mas acho que pra você é mais, não? Então é melhor você fazer o que estou dizendo.

Às vezes chega coberta de chantilly, mas a essência é essa.

Um pouco de flamenco

Não na música, mas completamente na dança e no espírito. As palmas no fundo são totalmente flamencas. Uma boa aula de flamenco, idealmente, tem um guitarrista pra tocar ao vivo, porque a dança conversa o tempo todo com a música. Adorei a elegância de todas, a precisão das mãos. Quem vê a professora dançar no final com a bata de cola não tem idéia do quanto é difícil lidar com todo aquele tecido. Acho que vocês também vão curtir.

Ann x Chelsey

Ann ganhou o America´s Next Top Model. Depois de uma longa fase de choradeira, ela ficou determinada a ganhar e se recuperou. Quem disputou a final com ela foi Chelsey, que desde o começo se mostrou uma das mais competitivas. Chelsey era a única que já era modelo. Ela nunca ficava entre as últimas, mas também nunca ficava entre as primeiras. Ao contrário das outras meninas, Chelsey conhecia todos os grandes nomes, quem era cada fotógrafo, cada estilista. Ela sabia desfilar com confiança, – enquanto a Ann parecia um boneco desengonçado e assustado – sabia se dirigir às pessoas, e à medida que a competição se centrava menos em fotos, foi se firmando. Tanto que na final, Chelsey estava extremamente confiante. Tão confiante que ela não aceitou o resultado, porque ela era muito melhor preparada do que a Ann. E era mesmo. Ann ganhou tinha algo a mais.

Chupa Chelsey!

Dias depois, passou a final de novo e eu quis me deliciar revendo a vitória da Ann. Foi aí que aconteceu. Eu vi a vontade imensa da Chelsey. Ela estava sempre dizendo que desejava aquilo mais do que ninguém. Eu vi a sua determinação, a disciplina, o quanto ela estava sempre dentro do que era proposto. O que pedissem, a Chelsey fazia. Enquanto o desempenho da Ann alternava entre momentos brilhantes e péssimos, Chelsey sempre fazia certo, ela era a CDF das modelos. E o retorno disso era pequeno em relação a todos os esforços dela, porque sempre tinha alguém na frente. Aí eu comecei a sofrer pela Chelsey, porque me vi nela. Eu sou aquela que leva à sério, que chega mais cedo, que traz o conteúdo estudado, que faz extras. O que isso tem me rendido? O reconhecimento de que sou esforçada. Sou aquela que seria escolhida Se – sempre tem um Se. O esforçado é aquele que não apenas não tem sorte como sabe ela joga contra ele. Estou cansada desse pessoal que tem algo a mais, que se destaca só porque respira. Será que existe um mundo em que todos nós receberemos em proporção aos nossos desejos, ou as pessoas comuns estão condenadas a serem só esforçadas?
Eu te entendo, Chelsey.

Minha primeira música clássica

Pra gente como o Milton Ribeiro, que cresceu ouvindo música clássica, é difícil imaginar que alguém um dia tenha que descobrí-la. Ela era algo distante da minha vida, uma música de fundo no elevador, uma versão no teclado de uma música popular. Clássico e instrumental eram a mesma coisa pra mim. Minha mãe tem amusia. Pra ela, música tem que ter letra; e pra entender melhor a letra ela precisa vê-la por escrito. Sem as palavras, ela é incapaz de cantarolar qualquer coisa, nem que seja Atirei o pau no gato. Isso só para citar as coisas mais simples. Não sei se meus tios e primos também são assim; talvez isso explique que não haja um único músico na família. O meu pai, por outro lado, é um que coloca música o dia inteiro. Mas ele gosta de uns populares tão obscuros e bregas que nem com boa vontade. Ou Martinho da Vila. Ou que está tocando na rádio.

Eu tinha cerca de 13 anos. Estava vendo TV e passou a propaganda do novo disco do Richard Clayderman, chamado My Classic Colection. Eu sei que o leitor mais culto se torceu na cadeira; hoje sei que aquilo é pavoroso. Mas eu era ignorante, me encantei e decidi ter. Por uma feliz coincidência, pude comprar. Ter dinheiro para comprar algo pra mim era algo muito raro, porque eu nunca tive mesada. De vez em quando minha mãe soltava um dinheiro, geralmente com um destino pré-determinado. E calhou que naquela época eu estava pra comprar um disco. Quando disse que queria aquele, ninguém acreditou. Diziam pra eu pensar melhor, pra escolher um disco que eu realmente fosse ouvir, me ofereceram o disco que estava na moda naquela época. Mas eu bati o pé, e a frequencia com que ouvia o Richard Clayderman mostrou que fiz uma boa escolha. Minha família ficou impressionada. Até hoje, sou a única que ouve música clássica espontaneamente.

Na última faixa do disco, se não me engano do lado B, estava a Minha Música. A música que me fez ter um compositor preferido, que abriu meu coração e meus ouvidos à música clássica. Com o tempo, desgostei do disco inteiro, mas ela me prendia a ele.

Por causa dessa música, fiquei doida por Chopin. Li várias biografias dele, gostava de garimpar fotos, passei a admirar George Sand. Depois descobri que ele é um compositor romântico e passei a gostar dos românticos em geral, especialmente de Lizst. Mas esse estudo, Opus 10 n. 3, em particular, eu não conseguia achar. Fiz amizade com um pianista na escola (hoje ele é professor da Belas Artes) e ele também não conseguia achar. Nunca soube se era uma música semi-desconhecida ou se eu é que não sabia onde encontrar*. Pra aumentar a minha infelicidade, um dia arranhei essa faixa no Clayderman, ao tentar ouvir de novo. A música passou a pular tristemente as notas finais. Quando tudo isso já era passado, – adulta, casada, formada, etc – comprei um CD de Nelson Freire e lá estava ele, meu Opus preferido, na terceira faixa. Ouvi-lo sempre me transporta pra aquela época.

Depois de uma adolescência intensamente clássica, eu fui deixando de lado. Acho que sempre me faltou alguém que gostasse também, que me alimentasse de novas informações, que não achasse tudo um tédio. Em resumo, meu gosto não evoluiu. O Milton me disse que os românticos são todos uns mela cuecas, que eu deveria partir para os mais consistentes, que Mahler é o tal. Sou adulta e já estava na hora de atingir a maioridade também com os meus compositores.

Não consegui, Milton.


* pra este post, pesquisei o disco e descobri o porquê dessa dificuldade: a faixa consta como Opus 27 n. 2. Porra, Richard!

Se você soubesse quem você é

A coisa que me parece mais fascinante nos reality shows, de qualquer tipo, é a diferença entre a maneira como a pessoa se vê e o que acontece com ela quando confrontada com um mundo novo. No depoimento inicial, um diz que fará a diferença, que nasceu com alma de estrela – chega lá, o fulano se transforma numa samambaia, totalmente esquecível. Outro se diz um amigo sincero para todas as horas e se transforma no vilão da edição. Vi num reality de cabeleireiros (sim, existe) uma siliconadíssima que saía da sua cidade do interior e ia para Beverly Hills. No taxi, ela foi dizendo que já era muito Beverly Hills, que se identificava com aquele glamour e tinha planos de se mudar pra lá. Chegando no salão, a coitadinha se deu mal em tudo, foi esnobada o tempo todo. Uma cliente chegou a pegar o secador das mãos dela e finalizar sua escova sozinha. Nos depoimentos finais, bem mais humilde: “Eu me achava um peixão, grande demais pro lago onde eu estava. Agora fui para um lago maior e descobri que sou apenas um peixinho…”

Eu estive num mundo novo, fim de semana passado. Involuntariamente, não consegui deixar de lembrar de London, London. Fui extremamente bem tratada, por todos. Ótimas acomodações, pessoas simpáticas, boa comida, etc. Só que eu estava longe de casa, e sozinha. Ter um cônjuge tem essa vantagem de nos fazer estar em casa mesmo longe, porque ele é nossa referência ambulante. Eu não tinha essa referência. Só quando a gente está sem referências se dá conta de que a nossa vida inteira é feita disso, referências. Eu sabia dos meus rituais ao entrar em casa, que incluem dar oi pra Dúnia, tirar os anéis, andar o mais fresquinha possível. Eu sabia dos meus rituais culinários, do Matte Leão com laranja, da salada enorme e deliciosa que só o Luiz faz. Eu sabia que sentiria falta da familiaridade das ruas, de saber pra onde ir. O que eu realmente ignorava é a importância do olhar das pessoas, de interagir com quem me conhece. Senti falta mesmo daquelas de quem não gosto. Descobri que na maneira como os nossos conhecidos nos tratam estão todas as informações a nosso respeito. Quem nos conhece já sabe o que esperar, já sabe o que dizer – é um olhar que reafirma quem somos. Sem isso, me senti completamente perdida.

Três noites em POA

– Cadê aquele monte de chocolate Lindt que tinha antes de eu viajar?
– Tem uma barra pra você ao lado do sofá, pode comer à vontade.

– Eu sei, é que tem UMA barra ao lado do sofá.
– É que eu passei TRÊS dias sozinho.

***

A primeira vez que percebi que minha memória faz sobreposições foi quando conheci o Toby, o vira-lata de uma amiga. Quando nossos olhos se cruzaram – meu e do Toby – senti nele o mesmo olhar do cachorro que tive na infância, o Flock. O mesmo olhar de cachorro safado, inteligente, reprodutor, acostumado a ver a cidade inteira como sua casa. Vocês me dirão que cachorros assim existem aos montes, e na minha vizinhança mesmo existem vários. Mas com o Toby foi diferente, era como se ele e o Flock tivesse saído do mesmo lugar, como se fosse irmãos-caninos na alma. Quase como se aquela mistura de pincher de pêlo claro fosse o meu Flock, um mestiço de poodle preto de branco. Eu gostei e me aproximei do Toby como teria feito com o Flock, que havia morrido há muitos anos. E achei muito natural quando ele se aproximou de mim sem precisar de apresentações, como se eu fosse parte da família. Só mais tarde fui saber que o Toby não gostava de estranhos, que o comportamento dele comigo era completamente atípico.

Quando meu olhar cruzou com o da Claudia, ela imediatamente me remeteu à Flávia, que é uma pessoa de quem eu gosto tanto. Ambas possuem a pele olivastra, ambas tem na natureza a característica admirável (e tão longe da minha própria natureza) de gostar de fazer amigos, de espalhar calor ao estar com as pessoas. Isso me deixou aliviada, porque já sabia de antemão que me daria bem com o Milton, e não sabia o que esperar da Claudia. Só que com o Milton meu inconsciente pregou uma peça tão ardilosa que mal conseguirei explicar. Não foi de imediato. Ele me buscou no aeroporto, tomamos um café, andamos pela Feira do Livro, voltamos com a Claudia para casa, fomos para a festa de aniversário do sobrinho deles e nada demais havia acontecido. Apenas quando nossa presença se tornou comum o suficiente para não termos que dar atenção ao outro que aconteceu: o Milton falando me lembra o meu pai. O Milton, um gaúcho, me lembra o meu pai falando, um mato-grossense que vive em Salvador há quase trinta anos. Desejei muito que um dos meus irmãos estivesse lá pra confirmar essa impressão. Depois de tentar expulsar isso da mente muitas vezes, depois de me perguntar se estou tão carente assim de uma figura paterna, analisei o som e cheguei à conclusão que ele e meu pai projetam a voz pelos mesmos caminhos ao falar. Cantores me entenderão.

Isso pode soar bem, mas não foi. Meu pai não é um homem feliz e me flagrava preocupada com o Milton, que na verdade estava apenas ocupado. Eu tinha de repetir pra mim mesma que ele não era o meu pai. O auge desse teatro projetivo foi quando fomos à festa do aniversário de um amigo do Milton, o Dario. Na noite anterior havíamos comemorado o aniversário da Claudia e todos dormimos pra lá de 3h. Estar num churrasco, num dia ensolarado, tonta de sono e com uma voz que lembrava a do meu pai, me remeteu a uma situação muito antiga, da qual eu nem lembrava mais: eu passava apenas as férias com meu pai, em Salvador, então fazia e não fazia parte da vida dele. Sempre surgia a festa de algum amigo e eu nunca sabia de quem se tratava. Caso o amigo tivesse filhos, eu não conhecia as outras crianças. Então eu ia às festas dos amigos do meu pai como a famosa filha curitibana ausente. Era a mesmíssima situação na casa do Dario, de ser aquela que vem de Curitiba e não conhece ninguém. Só que o que nas minhas lembranças era algo ruim – música alta, crianças mal educadas, muito álcool, brincadeiras vulgares – pareceu se iluminar. Gostei de todos e facilmente me veria ali, conversando com eles, querendo fazer parte de suas vidas. No meio de tantas projeções, algum lugar em mim entendeu uns porquês. E descobriu na voz falsa o que o seu verdadeiro pai sempre buscou: estar entre amigos e ter o amor da sua família. O Milton conseguiu.

***
O casal Nikellen e Guto, em uma palavra: solar. Ele, piadista e extrovertido até dizer chega. Ela segura e madura o suficiente pra deixá-lo à vontade porque sabe que tem luz própria. Entre os dois, um amor imenso. É desses casais que faz tudo parecer fácil: casar, ser companheiro, cuidar de um filho, trabalhar juntos. Não é à toa que eles converteram a Bárbara (caçula do Milton) à idéia de ser uma historiadora. Eles converteriam qualquer um à qualquer coisa, só com a sua presença.

O buraco

Eu tinha um amigo com a necessidade irritante de ser elogiado. E num terreno muito específico – ele precisava ouvir que era bonito. Então ele vivia dando deixas, o assunto era conduzido até o ponto onde o mais adequado, educado e provável era que eu dissesse que ele era bonito. E era mesmo. Algumas vezes eu dizia, outras vezes não; dá pra imaginar que esse jogo era cansativo. Mas, como acontece em todos elogios provocados, ele não se convencia quando ouvia. Ele mesmo sabia a explicação – “Quando a gente cresce se sentindo feio durante a infância, esse sentimento fica. Por mais que na idade adulta nos elogiem, ficamos sempre com aquela impressão antiga”.

Os adolescentes e as crianças olham para nós, adultos, e não imaginam que temos com eles uma distância tão pequena, emocionalmente falando. O que é bom – eles não seria capazes de nos levar à sério se soubessem o quanto somos frágeis. Lembro da cena do Sexto Sentido, que o menino começa a gritar apelido de infância do professor, que volta a ser gago e desastrado como era na época que o ouvia. Quem dera crescer fosse amadurecer de maneira proporcional, ou pelo menos controlável. É como se crescer fosse uma casa que aumenta em cima das mesmas bases, ou uma construção cujo lixo fosse guardado, ou como se fossemos bonecas russas, em versões maiores e sempre iguais. Na minha vida sinto como se fosse um buraco. Na maior parte do tempo consigo administrar bem meus temores, sei por onde estou andando, me faço de muito confiante e segura. Só que no momento que algum ponto fraco é tocado, sou jogada de volta. Meus pontos fracos são formados sempre da mesma meia dúzia de inseguranças; sua repetição e previsibilidade não consegue alterar sua força. No buraco, nada mais é claro; desaprendo todas as minhas estratégias de sobrevivência, todas as minhas eficientes camuflagens. Lá, nós nunca deixamos de ser a criança feia.

Os bons

Às vezes contra toda lógica, tenho procurado estar próxima de pessoas boas. Digo contra a lógica, porque as pessoas que considero boas quase nunca são ambiciosas, então quase nunca elas são os melhores contatos. Nunca consegui favores, indicação de emprego e nem de longe apareci em colunas sociais. As pessoas que gosto de ter ao meu lado são boas de se conviver, só isso. Essas pessoas boas não são as presidentes de coisa alguma, nunca me pagaram ou me ajudaram a receber alguma comissão. Andar com elas não me faz frequentar lugares que de outra maneira eu não teria acesso e nem a conhecer pessoas que eu não tenho acesso. Com elas, eu não estou dentro do melhor grupo, não tenho meu nome associado a uma marca forte, não sou considerada uma pessoa importante. Não que uma vez ou outra alguém com esse perfil não tenha aparecido na minha vida. Nessas vezes, tive a oportunidade de me associar a elas, e delicadamente me afastei. Talvez eu tenha preconceito com gente importante e nem saiba. O que sei é que não sei ser subalterna ou puxa-saco de amigo. Nem preciso dizer que, em termos de network, sigo a pior estratégia possível.

Mais inúteis que os bons são para mim, só o que eu sou para eles. O que me motiva a procurá-los é o prazer de andar desarmada. Para alguns isso é nada, para outros isso é tudo.

Tempo e fim

Não consigo expressar o quanto fiquei arrasada com o fim do meu primeiro namoro. Acredito que o fim de todos os primeiros namoros sejam difíceis, ainda mais quando é um namoro longo, com planos de casamento. Ele era meu único amigo, a única pessoa em quem confiava. O ano havia sido muito difícil, com uma quantidade absurda de trabalhos na faculdade. O ano letivo encerrou junto com o namoro, depois de semanas de brigas, argumentos, voltas, acusações. Eu estava esgotada física e emocionalmente; nas semanas seguintes, acordava tarde, comia, via TV, dormia, comia e dormia de novo. Todos os meus planos o incluíam, e não enxergava nada num futuro sem ele. Terminei apenas porque não podia mais ficar, por achar que não era mais possível reconstruir a relação. O fim desse namoro, além das implicações afetivas, significou o fim de algo muito profundo: ele foi o marco que me fez deixar todo misticismo, yoga, teosofia, magia, espiritismo e outros ismos de lado. Eu já era mística quando o conheci, ele era muito mais e reforçou isso. Só que ele era completamente paranóico. Depois de uma série de acontecimentos fortuitos, ele me acusou de tê-lo traído. Eu argumentei e provei que não, com o gesto humilhante de dar o telefone das pessoas que estavam comigo na noite que teria acontecido alguma coisa. Não foi o suficiente porque “As Runas me disseram que você me traiu. Você por acaso está dizendo que as Runas é que estão mentindo?”. Não tem como argumentar com uma coisa dessas.

Isso foi em dezembro. Tenho poucas lembranças do que aconteceu nos meses seguintes. Sei que estive viva e estudando só porque não fiz nada de diferente nesse período. Me mantive funcionando. Do que eu lembro é a sensação de peso que me acompanhava o tempo inteiro. Da comida com gosto de cinza, do dia ensolarado que não me animava, da vontade de estar sempre calada e sozinha. Quando eu ria – se é que eu ria – era sempre algo superficial, como se lá no fundo um peso não se movesse. Estar sozinha era difícil e estar acompanhada não me satisfazia. Esse é o meu modo de sofrer, fico mais reservada e correta do que já sou. Algum lugar dentro de mim esperava. Não sei se teriam me dado algum antidepressivo se eu tivesse procurado ajuda, porque isso durou oito longos meses. Parecia que seria para sempre. Lembro claramente que um dia, em agosto, eu acordei e tudo isso havia passado. Abri os olhos de manhã e pela primeira vez em muito tempo eu voltava a me sentir eu. Um eu cuja existência eu já duvidava. Voltei a me sentir feliz e a sentir vontade de estar viva. Foi como se eu botão tivesse sido religado, como se a própria purgação tivesse se esgotado.