– Cadê aquele monte de chocolate Lindt que tinha antes de eu viajar?
– Tem uma barra pra você ao lado do sofá, pode comer à vontade.
– Eu sei, é que tem UMA barra ao lado do sofá.
– É que eu passei TRÊS dias sozinho.
***
A primeira vez que percebi que minha memória faz sobreposições foi quando conheci o Toby, o vira-lata de uma amiga. Quando nossos olhos se cruzaram – meu e do Toby – senti nele o mesmo olhar do cachorro que tive na infância, o Flock. O mesmo olhar de cachorro safado, inteligente, reprodutor, acostumado a ver a cidade inteira como sua casa. Vocês me dirão que cachorros assim existem aos montes, e na minha vizinhança mesmo existem vários. Mas com o Toby foi diferente, era como se ele e o Flock tivesse saído do mesmo lugar, como se fosse irmãos-caninos na alma. Quase como se aquela mistura de pincher de pêlo claro fosse o meu Flock, um mestiço de poodle preto de branco. Eu gostei e me aproximei do Toby como teria feito com o Flock, que havia morrido há muitos anos. E achei muito natural quando ele se aproximou de mim sem precisar de apresentações, como se eu fosse parte da família. Só mais tarde fui saber que o Toby não gostava de estranhos, que o comportamento dele comigo era completamente atípico.
Quando meu olhar cruzou com o da Claudia, ela imediatamente me remeteu à
Flávia, que é uma pessoa de quem eu gosto tanto. Ambas possuem a
pele olivastra, ambas tem na natureza a característica admirável (e tão longe da minha própria natureza) de gostar de fazer amigos, de espalhar calor ao estar com as pessoas. Isso me deixou aliviada, porque já sabia de antemão que me daria bem com o Milton, e não sabia o que esperar da Claudia. Só que com o Milton meu inconsciente pregou uma peça tão ardilosa que mal conseguirei explicar. Não foi de imediato. Ele me buscou no aeroporto, tomamos um café, andamos pela Feira do Livro, voltamos com a Claudia para casa, fomos para a festa de aniversário do sobrinho deles e nada demais havia acontecido. Apenas quando nossa presença se tornou comum o suficiente para não termos que dar atenção ao outro que aconteceu: o Milton falando me lembra o meu pai. O Milton, um gaúcho, me lembra o meu pai falando, um mato-grossense que vive em Salvador há quase trinta anos. Desejei muito que um dos meus irmãos estivesse lá pra confirmar essa impressão. Depois de tentar expulsar isso da mente muitas vezes, depois de me perguntar se estou tão carente assim de uma figura paterna, analisei o som e cheguei à conclusão que ele e meu pai projetam a voz pelos mesmos caminhos ao falar. Cantores me entenderão.
Isso pode soar bem, mas não foi. Meu pai não é um homem feliz e me flagrava preocupada com o Milton, que na verdade estava apenas ocupado. Eu tinha de repetir pra mim mesma que ele não era o meu pai. O auge desse teatro projetivo foi quando fomos à festa do aniversário de um amigo do Milton, o Dario. Na noite anterior havíamos comemorado o aniversário da Claudia e todos dormimos pra lá de 3h. Estar num churrasco, num dia ensolarado, tonta de sono e com uma voz que lembrava a do meu pai, me remeteu a uma situação muito antiga, da qual eu nem lembrava mais: eu passava apenas as férias com meu pai, em Salvador, então fazia e não fazia parte da vida dele. Sempre surgia a festa de algum amigo e eu nunca sabia de quem se tratava. Caso o amigo tivesse filhos, eu não conhecia as outras crianças. Então eu ia às festas dos amigos do meu pai como a famosa filha curitibana ausente. Era a mesmíssima situação na casa do Dario, de ser aquela que vem de Curitiba e não conhece ninguém. Só que o que nas minhas lembranças era algo ruim – música alta, crianças mal educadas, muito álcool, brincadeiras vulgares – pareceu se iluminar. Gostei de todos e facilmente me veria ali, conversando com eles, querendo fazer parte de suas vidas. No meio de tantas projeções, algum lugar em mim entendeu uns porquês. E descobriu na voz falsa o que o seu verdadeiro pai sempre buscou: estar entre amigos e ter o amor da sua família. O Milton conseguiu.
***
O casal
Nikellen e
Guto, em uma palavra:
solar. Ele, piadista e extrovertido até dizer chega. Ela segura e madura o suficiente pra deixá-lo à vontade porque sabe que tem luz própria. Entre os dois, um amor imenso. É desses casais que faz tudo parecer fácil: casar, ser companheiro, cuidar de um filho, trabalhar juntos. Não é à toa que eles converteram a Bárbara (caçula do Milton) à idéia de ser uma historiadora. Eles converteriam qualquer um à qualquer coisa, só com a sua presença.