Caro Ernani,
Uma vez me disseram que deveríamos fazer boas obras, ser bons com as pessoas, porque teríamos mais gente para interceder por nós do outro lado. Achei estranho e até mesmo egoísta pensar em fazer o bem para os outros pensando numa futura intervenção. Posso pensar em muitos motivos para ajudar os outros e nenhum deles passar
ia pela noção de que precisaria de alguém para interceder por mim. Pois bem: a tua preocupação gratuita comigo me remete a essa possibilidade e me faz um bem danado. Eu começo a pensar que se consigo que pessoas tão distantes torçam por mim é porque cometi alguns acertos. Digo isso porque em algum lugar, acho que errei demais. Se não tivesse errado, minha vida não estaria uma bagunça, minha casa não estaria vazia, meu futuro não estaria incerto. Não faz sentido, eu sei, mas é um pensamento que não consigo evitar.
Eu estou bem, como expressa com perfeição esta
canção do Pizzarelli. Eu acordo cedo e saio logo da cama. Sempre tenho algo a fazer de manhã, de maneira de estar às 7h a caminho de algum lugar. Tenho, invariavelmente, longos trajetos a pé. Levo a Dúnia para passear todos os dias e coloco roupinha para ela não passar fr
io à noite. Eu passo no correio, no banco, na farmácia, no supermercado, na biblioteca, na lavanderia, no posto de gasolina. No meio da manhã às vezes tomo um cappuccino numa padaria cara e de atendimento lento. Falo com todos os que encontro nos lugares, com qualquer um que me retribua o olhar. Eu chego no horário nos meus compromissos, ou mais cedo. Tenho sempre na bolsa um livro, que na verdade só é lido quando estou fora de casa. Nos dias de muito frio, passei quase todos como mesmo casaco e uma calça deliciosamente quente e confortável que eu fiz, mas não tenho me descuidado. Todo banho, pinto as unhas, arrumo o cabelo, me visto com o esmero. Combino os brincos com a roupa. Uso muito um cachecol vermelho e preto, muito fofinho, que me dá a sensação de abraço. Peguei para mim uma almofada de cachorro (fiz para vender) pelo mesmo motivo. Tenho aceitado todos os convites que posso, tenho ido para casa de amigos onde nunca estive, tenho entrado em contato com as pessoas. Fui assistir o jogo do Brasil numa casa cheia de gente, onde quase todos me eram completos estranhos. Fui a uma churrascaria. Fui no trabalho de um amigo de uma amiga, só porque era caminho.
Entre um comprom
isso e outro, eu me pego esquecida e até me divirto. Num dia vou no computador, ou começo a costurar, ou levo o cachorro pra passear, e aquilo me preenche e sinto que está tudo bem. Aí no dia seguinte nada disso, em que dose for, é capaz de tirar o peso. Sinto como se fosse uma
bad trip. O processo chega e fico presa nele. Não há o que fazer enquanto dura. Já tentei rezar, já tentei pensar, já tentei me distrair. Parece que independe do que eu faça. Independe, até, do que acontece ao meu redor. Hoje passei quase o dia inteiro muito mal, achei que não conseguiria, que teria que pedir socorro pra alguém. Minha primeira noite sem ter ninguém me esperando depois do flamenco. Deixei as luzes acesas e foi só sair de casa e olhar pro céu que o peso passou. Pudera, foram umas doze horas. Quando cheguei, tão tarde, sorri para as luzes mesmo ciente de que fui eu quem as acendi. Melhor ainda: cheguei em casa faminta, e aproveitei para comer dois sanduíches. Tem sido raro eu sentir fome, tenho simplesmente esquecido de comer. Como porque me obrigo, porque está no horário. Se você soubesse o quanto sou gulosa, teria noção do absurdo. Minhas roupas estão todas grandes, sambando no corpo, caindo. Devo ter perdido uns três quilos, não tenho coragem de me pesar. Sei que meu rosto está uma caveirinha.
Mas eu não choro antes de dormir. O que tenho feito é viver os dias, um de cada vez, à espera.