Bandeira

Na abertura das Olimpíadas, na hora de levar a bandeira, me chamou atenção que nem todo mundo agia da mesma forma. Quase todos entravam sorridentes, curtindo. Uns poucos estavam tão concentrados na difícil tarefa de carregar a bandeira que representa seu país que nem olhavam pros lados e ficavam até carrancudos. Eles representavam o seu país perante o mundo, oras. Acho que só depois de tudo terminado e a bandeira bem instalada no lugar dela, que eles se deram conta que nem era tão difícil assim, dava perfeitamente pra carregar a bandeira e ver a paisagem, aproveitar aquele momento histórico. Isso me chama atenção porque acho que faria igualzinho.

Isso sem falar na possibilidade de eu não reparar em alguma coisa e quase me estabacar com a bandeira na mão. Quem me conhece sabe do que estou falando.

Amiga de infância

Eu nunca gostei de manter contato com amigos de infância ou escola porque não gosto da idéia de ser julgada pelo que eu era. Quando a gente é muito novo, repete muito a nossa criação; demora pra gente descobrir que fala em nome dos outros antes de descobrir as suas próprias opiniões ou modo de vida. O que há de realmente verdadeiro naquela época? Alguns adultos são a reprodução do que eram em criança, até nos traços fisionômicos; outros mudam muito, são outras pessoas. Cada ano durante o período de formação é muito tempo e me dá sempre a impressão de que amigos antigos te olham pelo que você era naquela época. Nada mais injusto – quando se trata de mim, claro. Eu me dei conta disso quando, pelas voltas que o mundo dá, amigos meus se tornaram amigos de uma das protagonistas de uma história importante da minha infância. O quanto um dia ter liderado um bullying contra outra criança fala a respeito de alguém? Pra mim ela será sempre uma pessoa má, eu não conseguiria me aproximar e relevar isso. Não sei o quanto há de injusto em pensar assim, mas é o que eu guardei dela.

Por cima e por baixo

Quando a gente vê muito programa americano acaba descobrindo diferenças culturais sem querer. Na série Smash, o namorado da protagonista perde um cargo importante e leva muito tempo pra contar pra ela; na verdade, ela que acaba descobrindo sem querer. No Homem Aranha 3, a ruivinha namorada do homem aranha perde o papel de destaque numa peça e também demora pra contar pra ele. Aqui seria o contrário, a primeira coisa que se faz é ligar correndo pro(a) namorado(a) pra choramingar. Minha hipótese é que os americanos são tão preocupados com a idéia de loser, que a primeira preocupação seja não parecer um perdedor diante do outro, muito mais do que ser consolado. Já nós somos chegamos mesmo em coitadinhos, então não tem problema. Basta ver como gostamos de premiar quem choraminga em realitys show.

Todos esse anos de casada me mostraram que em algumas fases é inevitável que o outro estar melhor do que você. Ou pior. Por causa do trabalho, o outro é obrigado a viajar muito. Um fica sozinho em casa, comendo pão com ovo, e o outro está num hotel com piscina e sai com o pessoal. Ou um está com um grupo de amigos unido, que adora festas, cheio de assuntos, e o outro não tem ninguém pra quem ligar. São fases. Basta uma pequena mudança – de casa, emprego, faculdade, família – pra que uma pessoa se veja temporariamente expatriada, sem amigos ou coisas importantes a fazer. Isso sem falar de coisas mais graves, como um problema de saúde que pode afetar um parente que é só seu – por mais que o outro se envolva, isso não o afeta diretamente. Ser o que assiste o outro brilhando não é tão fácil de segurar. Às vezes dá vontade de fazer exigências, ter crises de ciúmes e que o outro fique em casa vendo novela também. São horas que é preciso respirar fundo e tirar maturidade de algum lugar.

Curtir a vida

– Agora eu vou embora porque eu tenho um fim de semana inteiro pela frente e vou curtir mu-i-to!

Essa fui eu, me despedindo das pessoas num início de sábado, depois de um estágio. Hoje não sei nem explicar direito porque disse aquilo. Quando falei em curtir o fim de semana, estava apenas falando em passar um fim de semana como outro qualquer. Eu ficaria em casa, ouviria música, veria TV, leria, faria trabalhos de faculdade. Mas falando daquele jeito deu a impressão de que eu faria algo radical, que sairia todas as noites, que beijaria na boca, que tomaria um porre. Devo ter dito porque numa fase é isso que se espera que a gente diga. E dentre as pessoas que ouviram aquilo, estava um estudante de medicina muito bonito, e aquilo deveria me deixar com uma imagem arrojada diante dele. Mas foi justamente quando olhei para ele que dizer que “curtiria muito a vida” ou coisas do gênero perdeu o sentido para mim. Ele não sorriu, não achou legal, não disse nada; apenas abaixou os olhos, numa atitude culpada de quem não faria nada de importante no fim de semana. Foi só então que percebi que a cobrança de ter fins de semana e viver intensamente torna todos complexados. Seja por falta de dinheiro ou apenas de pique, é muito mais comum ficar em casa do que virar a madrugada na night. Quem diz que faz e acontece afasta a maioria das pessoas, por pura falta de empatia.

Uma distração

Não sei se é a idade, porque na adolescência eu vivi isso intensamente; não sei se é o fato de eu estar casada, então há muito tempo não tenho esse tipo de preocupação – o fato é que estou cada vez mais impaciente com histórias de namoricos. Sabe aquela coisa de “aí eu disse x, aí ele me disse y só que e eu acho que é z porque uma vez aconteceu tal coisa”? Tenho vontade de sair correndo e deixar a pessoa falando sozinha. De certa forma, ela já está falando sozinha… Eu sei que quando nos acontece, cada passo do outro parece muito importante e cheio de significados. Só que de fora, essas histórias são todas meio iguais. Na maioria delas, dá vontade de recomendar o Ele simplesmente não está a fim de você.

Para piorar minha impaciência, eu tenho uma teoria: se importar demais com os namoros é espécie de fuga. Talvez a fuga preferida das mulheres. Falo isso por mim, falo pelo que já observei. Não são poucas vezes que a vida da criatura está errada em tantos sentidos que fica até difícil saber por onde começar. Já vi gente sem casa, sem emprego, brigando com a família, com a saúde abalada e sem poder criar o filho, tudo ao mesmo tempo. Numa lista tão grande sobre o que fazer, a única preocupação da pessoa parecia ser se o Fulano, quando disse que ela era uma pessoa especial, quis dizer especial no sentido de amiga ou se aquilo foi uma insinuaçãoZzzzZZZz… Às vezes a realidade é dura demais, desesperadora demais. Então a pessoa opta por fingir que não sabe, fingir que não se importa. Se é para pensar e se envolver, é muito mais fácil fazer com paixonites.

Ricos

É um ato de heroísmo dar aula para calouros de ciências sociais. Não é um curso que as pessoas entram sabendo o que os espera. Muita gente entra de olho na baixa concorrência, acha que vai ser algo fácil e quando chega lá se surpreende com muita leitura e idéias que parecem estraçalhar. É chocante pra quase todo mundo se ver tão determinado por circunstâncias externas, ainda mais na adolescência. Então os alunos ficam discutindo com os professores, querendo provar que eles são quem são unicamente por causa da centelha única que os anima. Pelo menos um terço da turma que entrou comigo largou o curso logo no primeiro ano.

Com o passar do tempo a gente acaba percebendo sozinho que não é tão independente assim. Que alguns gostos e hábitos que levaremos a vida inteira foram formados lá atrás, por coisas que escapam ao nosso controle. Uma vez conversei com uma atriz, cheia de estilo e extrovertida. Ela me contou que entrou na PUC para fazer um tal curso, e no meio do caminho largou (“minha mãe ficou puta!”) para ser atriz . No seu primeiro espetáculo fez um nu e a família toda estava vendo. Ela parecia conhecer tudo e todos nessa cidade, o que há de mais descolado. Surpreendo se disser que ela é de família rica? Lembro de mim mesma, que ou passava na Federal ou não fazia curso superior. O dinheiro era curto e eu tinha uma consciência muito aguda disso. Lembro do dinheiro contadinho cada vez que queria ir pra uma balada, e chegando lá só bebia uma coca-cola. No meio da faculdade eu não achava o curso tão legal quanto deveria, mas a obrigação de me formar era tamanha que nem me permiti questionar se queria ou não, era minha obrigação.

Quando eu vejo pessoas jovens que têm nos seus lugares preferidos baladas que a gente paga caro pra entrar, o contraste fica claro pra mim: eles são de família rica. Eles não têm que escolher entre balada ou roupa, balada ou pegar ônibus. Eu não sou do time que cansou de ir a festas de quinze anos, que viajou para a Disney, que fez curso de línguas. Na minha adolescência nunca associei ter popularidade, ser festeiro, irresponsável e cheio de histórias para contar com dinheiro. Mas hoje vejo que dinheiro teria me trazido segurança e outras possibilidades. Outras possibilidades me fariam viver outras coisas e teriam alterado quem eu sou. Ao invés de me sentir livre e disposta a experimentar de tudo, minha vida era como um revolver com apenas uma bala. Eu não podia perder tempo ou ser inconsequente, eu não teria outra chance.

Nada a dizer

Esses dias me deu uma crise de que eu não tenho mais nada a dizer. Vocês, leitores, são um bando de iludidos se pensam que sou uma pessoa interessante com uma vida interessante. Vai ver passo uma idéia de glamour que… aí eu vi que nunca, jamais, passei a idéia de glamour. Nunca falei aqui de festas, compras, vida loca e viagens internacionais. Aí me ocorreu que os blogs mais interessantes que eu leio são de pessoas que tem vidas comuns e rotineiras como a minha, mas que por saberem escrever sobre elas as tornam interessantes para os seus leitores. Só que acreditar que eu não tinha nada a dizer me deixou tão travada que eu realmente passei um tempo sem ter o que dizer. O mesmo sem ter o que dizer que sinto do lado de bailarinos que eu admiro muito. O mesmo que sinto frente às peruas de salto agulha que se arrumam na academia, enquanto eu visto moletom e tenho a simpatia das faxineiras. O mesmo sem ter o que dizer que senti diante dos amigos do Milton. O mesmo – tão presente e comum como o Mesmo parado dentro dos elevadores – que sinto diante de todos aqueles pra quem não sei explicar quem sou e o que faço, porque minha vontade é responder: nada. Fui algumas coisas no meu passado, não sei para onde estou indo no futuro e penso o mesmo que pensa aquele que admira a paisagem por onde passa o trem.

Tempo

Quando eu era muito ocupada, com aulas de manhã, de tarde e todo o resto do meu tempo escrevendo trabalhos e dissertação, deixei muita gente de lado. Pra mim era assim: em nome da nossa amizade eu abria espaço na minha atribulada agenda. Ao invés de comer em dez minutos, eu marcava um almoço; ao invés de voltar correndo pra casa pra digitar alguma coisa, me dispunha e encontrar alguém pra um café. Depois eu tinha que compensar o tempo perdido, sair correndo e retomar minha loucura. Quando mais de um amigo me procurava era um transtorno, porque era mais coisa pra se acumular. Pouco meses depois eu me supreendia com um e-mail se queixando de falta de notícias, saudades, que há meses não nos víamos. Pra mim tinha sido ontem. Algumas semanas não são nada para quem não descansa. Por que as pessoas tinham que ser tão carentes e não podiam me deixar em paz?

Agora eu sou o outro lado. Todo mundo com jornada dupla, seja por emprego e pós, emprego e filhos, emprego e emprego. Olho para os lados e está cada vez mais comum as pessoas trabalharem mais de dez horas por dia. Voltamos à Revolução Industrial, só que desta vez “voluntariamente”: eles fazem isso para serem mais qualificados, serem promovidos, ganharem mais… ou pra simplesmente não ficarem para trás num mundo onde os outros estão dispostos a trabalhar dez horas. Agora sou eu que tenho que me lembrar que os meses passam voando e não levar pro pessoal essa gente que não tem mais tempo de me dizer Oi.

Curso con Concha Jareño

Esse vídeo me fascina por vários motivos. A coreografia em si é linda, muito rica, divertida, graciosa. Acredito que ela seja o resultado final de um curso com duração de alguns dias, dado a uma turma avançada. Concha Jareño é uma das grandes bailaoras da atualidade. Uma das minhas partes preferidas é quando logo no início da coreografia ela faz um movimento de ombro junto com o sapateado, avançando enquanto dança. Por mais bonitas que sejam as outras alunas, Concha tem um domínio todo especial do que está fazendo. Mesmo sem saia e mais preocupada em marcar a coreografia do que propriamente interpretar, alguns movimentos mínimos que ela faz de ombro, nos braços, no tronco, fazem com que assisti-la seja mais interessante do que qualquer outra. É o valor do mestre, da experiência e do que há de mais particular em cada baiaor.

Blogs

Um blog relevante tem que ter por dia o número de visitantes que eu tenho por mês. Nunca fiz esse blog com a intenção de ser blogueira. Ele era pra mim, pra destravar minha escrita. Quando instalei o Analytics e vi que quinze pessoas tinham me visitado num dia, dei pulos de alegria. Eu jurava que as únicas pessoas que visitavam o blog eram os poucos amigos pra quem havia contado. A minha vida, meus sonhos e minhas perspectivas mudaram, e com tudo isso o blog passou a ocupar outro lugar. Quando fica difícil demais, eu me agarro à obrigação imaginária de vir aqui escrever. Ele me ajuda a colocar as idéias no lugar e não ceder ao desânimo. Estes textos são minhas mensagens em garrafas, largadas por aí. Sei da sua importância para mim, quando os lanço. Para que servem ou para onde vão eu não sei. Pode ter valor para um desconhecido ou jamais encontrar um destino. Angústia sobre ter ou não valor literário são para os que burilam melhor o que escrevem. Eu apenas lanço.

Só que quando vejo blogs piores que o meu muito mais lidos, repercutindo e ganhando até dinheiro, é foda.

Eu quero

Criança quer. Conta a minha mãe que qualquer propaganda que eu via me fazia pedir pra ela um igual, fosse o que fosse. Um dia eu lhe pedi um “já nas bancas”. Não tão criança assim, eu olhava o corpo das outras mulheres e queria algumas coisas e rejeitava outras. Pés de galinha eu não tinha nada contra, mas ficar com aquelas linhas que se juntam nos lábios eu não queria. Eu gostava de pernas longas e não de pernas curtas. Como é que algumas mulheres se deixavam ficar feias e pesadas com o passar dos anos? Eu não, eu queria envelhecer magra e bonitona. Minha mãe me explicou que ela também pensava assim quando era mais jovem, como se o corpo que a gente tem fosse uma escolha. E quando eu crescesse eu perceberia que o meu corpo é como ele é, e não um conjunto de coisas que eu gosto. 

Algumas pessoas são troncudas, outras têm membros compridos. Mulheres podem ter ombros largos e quadris estreitos, ou quadris largos e ombros estreitos. Algumas acumulam gordura em cima e ficam com as pernas fininhas, outras é o contrário. Peitão e bundão nunca costumam aparecer juntos. Cachinhos são lindos quando definidos, mas dão muito trabalho para ficarem assim. Cabelos lisos são práticos, não embaraçam, mas também não têm volume. Se eu tivesse escolhido, jamais teria pedido as mãos pequenas que tenho, e sim dedos longos e talhados para tocar piano. Mas com pai e mãe de mãos pequenas, minhas chances eram quase nulas. A famosa barriginha chapada eu nunca tive, nem quando adolescente. Grande parte da vida isso não me incomodou; depois da década de 90 a barriga ficou subitamente importante. Passou a ser exibida em piercings, tattoos, cinturas baixas, videoclipes, atrizes que acabaram de parir. Eu passei, então, a ter uma parte do corpo para rejeitar.

Numa coisa minha mãe estava errada: nem todo mundo cresce e descobre que o nosso corpo é o que é. As plásticas e as dietas dão a impressão de que superamos nosso fenótipo. As pessoas escolhem seus corpos como quem vai ao mercado. A peituda não se conforma em não ser também bunduda, a de membros curtos fica anoréxica pra se parecer com a de membros longos. E todas elas querem parecer ter dezessete anos. O corpo que você deve querer: já nas bancas.

Economia

Minha mãe chegou a estudar um ano de Belas Artes, e nesse período ela adquiriu um lindo conjunto de estecas que passaram a ser minhas quando comecei a esculpir. Só que eu não as usava. No atelier tinha um material coletivo, umas estecas muito velhas, faltando, poucas opções. Então eu pegava uma ou duas com um tamanho meio bom e ficava com elas. Achava que assim estava poupando o meu valioso material. Se eu deixasse lá, mesmo com nome, era capaz de alguém usar. Elas poderiam estragar, elas ficariam sujas. Eu queria usar só quando não tivesse mais opção, ou quando fosse realmente importante. Depois de alguns anos, o professor se encheu daquilo e me disse com todas as letras pra usar o meu material, e deixar aquele para o atelier e alunos que precisassem. Só que eu não tive muito tempo: poucos meses depois, resolvi sair do atelier e fui trabalhar em casa. Em casa o meu trabalho não durou muito e acabei parando de esculpir. Minhas estecas estão aqui, novinhas e guardadas.
***
Algumas vezes, apaixonada, eu disse que o adorava. É raro os sentimentos entre as pessoas não serem recíprocos, ainda mais com algum grau de intimidade. Dá para notar pelo olhar, pela necessidade de estar juntos e ouvir a voz. Apesar de todos os sinais mostrarem que ele também me adorava, eu não ouvi. Ao invés de receber a minha enunciação como um presente – porque ser amado é um presente – a minha declaração gerou tudo menos felicidade. Eu havia me colocado em desvantagem: ela está apaixonada, ela está louca por mim, ela quer casar comigo, eu estou ganhando! Como se relacionamentos à dois fossem disputas. Às vezes imagino chegar ao coração de alguns homens como provas do Domingão do Faustão, passando por piscinas de lama, paredões de socos e plataformas altas da qual se tem que saltar. Enquanto a minha manifestação vinha fácil, a dele parecia sempre estar querendo mais e mais provas, mais tempo, mais confiança. Falei o que sentia quando sentia, e quando acabou para mim foi para sempre. O “eu também te adoro”, dele, que eu sei que existia, nunca foi pronunciado.

Barrigas e barrigas

Eu tenho preconceito com homem de barriga tanquinho. Diria até que seria um dos meus critérios de eliminação – “Tem barriga tanquinho? Então deixa eu te apresentar minha amiga…” Raciocinem comigo: como é que eu iria saber, antecipadamente, que o sujeito tem barriga tanquinho? A não ser que eu o conheça numa aula de natação, a única chance de eu saber que um desconhecido tem barriga tanquinho é que ele tenha aquela tendência brega e auto-erótica de ficar erguendo a camiseta em público, para se exibir. Falam tanto de mulher que exibe o corpo e não existe um termo pra falar de homens que fazem o mesmo.

Existe um outro problema da barriga tanquinho, que fica ainda mais grave à medida que os anos passam: o cuidado constante que a barriga tanquinho exige. É um pet, uma barriga de estimação. Um homem de barriga tanquinho precisa fazer não sei quantas mil abdominais por dia, passar horas na musculação, evitar álcool e comidas gordurosas, fazer exercício aeróbico. Ela exige tempo, dinheiro e atenção. Eu sou favorável a gastar esse tempo, dinheiro e atenção em outras coisas… Um homem que se dedica tanto à sua barriga perfeita não vai permitir que a mulher ao seu lado faça por menos. Um homem desses não te deixará comer um pastel de feira em paz. Aquela gordurinha normal que toda mulher tem pra ele será sinônimo de preguiça. Sem dizer que ele deve saber muito bem qual a diferença entre estria e celulite.

Por mais magros que tenham sido, homens ficam barrigudos com o tempo. Lutar contra a barriga é quase lutar contra o tempo. Leave barrigas alone.

Sabedoria do corpo

Já deu pra perceber que eu aprendo muito com a Dúnia, minha cadela. Desde que comecei a dançar, passei a respeitar muito a sabedoria do corpo; o nosso corpo sabe e nos avisa muita coisa antes das nossas mentes. Somos capazes de mentir e nos convencer, em nossos egos, mas nosso corpo não se deixará iludir. Por isso que eu olho a Dúnia: como cachorro, ela está muito mais perto da sabedoria do seu próprio corpo do que eu do meu. 

A Dúnia era o menor filhote de uma ninhada de cinco, abandonada na frente de uma pet shop. Com cerca de um mês, subnutrida, coberta de fezes, xixi e pulgas, vermes maiores do que ela, era claramente um cachorro que não ia durar muito tempo mais. Então a veterinária nos proibiu de levar a Dúnia para lugares públicos até que recebesse as primeiras vacinas. Tínhamos a recomendação até de evitar que ela ficasse em frente de casa, porque os cachorros passam pela rua e poderiam passar alguma coisa pra ela. Por causa disso, a Dúnia passou longos meses dentro de casa, roendo tudo o que havia pela frente (até rodapé), colocando as patas na parede, barbarizando tudo o que estivesse ao seu alcance. Sempre brincávamos com ela no quintal pra ajudar a gastar a energia, e pra ela esses momentos eram essenciais. Os dias de chuva, os longos e frequentes dias de chuva em Curitiba, eram terríveis. Ela queria brincar, nós não a levávamos, ela não entendia, e a bagunça dobrava, agora com ares de revolta.

Quando ela finalmente pode viver fora de casa, ficamos preocupados de como seria quando chovesse – ficaria ela agitada e louca embaixo da chuva? Para nossa surpresa, isso não aconteceu. Ao contrário de alguns cães, a Dúnia não gosta de se molhar. Nos dias de chuva ela fica na casinha quase o tempo todo, sonolenta e olhando tristemente para o céu. É sua versão deprimida.

Eu também não gosto dos longos dias chuvosos. Fico com uma vontade irresistível de reclamar e querer jogar a culpa em alguém. Agora eu me conformei que talvez o mais natural seja ficar deprimido com a chuva. Ou alegre com tempo ensolarado. Com a Dúnia eu descobri que existe tempo de ficar quietinho e devagar, assim como existe tempo de ficar agitado e saltitante. Antes eu tentava ser mais relógio suíço. Eu me propunha a um nível tal de atividade, e se não conseguisse mantê-lo todos os dias, via aquilo como um fracasso. Tinha que manter a dieta mesmo nos dias tristes ou doente em casa. Tinha que estudar não sei quanto tempo mesmo quando não conseguia me concentrar. Tinha que me manter produtiva mesmo nas fases que só queria me esconder. Agora tenho tentado confiar mais. Alguns dos meus dias serão completamente inúteis, por uma necessidade que eu não entendo mas que agora aceito. Tem funcionado.

Paradoxo

É duro tentar ser fã de um artista de outro país.

Quando descobri a Bebe, fiquei muito entusiasmada. Ela tinha uma coisa de libertação feminina, como a música Malo, que diz que “não se bate nas mulheres“, ou a música Ella, que pra mim é um verdadeiro hino – “não dormiu esta noite, mas não está cansada/ Não olhou nenhum espelho, mas se sente tão gata”. Outras músicas são de uma fragilidade extrema, algo sincero e meio depressivo. A música Siempre me quedará, pelo que eu li, fala de um aborto que ela teria sofrido: eu guardo a sua lembrança/ como o melhor segredo/ que doce foi ter-te dentro. Razones, cantada à capella, é a canção mais linda que já ouvi sobre saudade: o ar cheira a ti/ minha casa se cai porque não estás aqui/ meus lençóis, meu cabelo, minha roupa, buscam a ti.

Comprei o segundo CD com entusiasmo, mas já era flagrante que muita coisa havia mudado. Me busco ainda lembrava a outra fase (“me busco, me busco e não me encontro”), mas tinha também músicas provocantes como a Uh, uh, uh eu gosto de você/ Eu gosto de você e do seu irmão. Ou a muito quente La bichaque quando quero levo calças/ mas gosto mais das sainhas/ para quem me metas a mão por debaixo/ e me arranque todo arrancável. Ou em Se va, se fueque me importa que agora entre ou saia/ o que me importa é o instante (…) capazes de provocar em mim tanta brutalidade carnal. É óbvio que muita coisa havia mudado entre um disco e outro. Ela cresceu, virou uma artista famosa, realizou seus sonhos, passou a se sentir mais segura. O segundo disco não me tocou tanto quanto o primeiro mas, vá lá, as pessoas mudam.

Aí soube do terceiro CD, lançado no início do ano, um trabalho ainda fresco. Ao contrário dos outros, ele não foi um sucesso. E muitas pessoas que eram fãs dela deixaram de ser por causa do que ocorreu quando ela convocou uma coletiva para divulgar seu trabalho. Como se não bastasse o ataque de estrelismo, achei a música péssima… Fiquei com a impressão de que ela pegou esse lado sexual e foi mais fundo. Se eu quisesse ouvir isso não precisava buscar uma cantora espanhola.

Tudo isso foi pra dizer uma coisa: é paradoxal você gostar de alguém e o seu gostar alimentar um lado que você não gosta. Se ela nunca tivesse ficado tão famosa, seria sempre aquela Bebe…