O cortejamento

pavão

Uma amiga foi pra Inglaterra e se queixou que o mais próximo que chegou de ser cantada foi um nativo que fez uma onda imensa para chamá-la de funny. Aí minha mente doentiamente analítica pensou no quanto os nossos rituais de acasalamento consistem no homem nos elogiar até o último, ser uma metralhadora de elogios, para que assim nos sintamos seguras, lindas, interessantes, especiais e desarmadas. Que bom que ele gostou do vestido e não que essa roupa me deixa gorda, que gosta do meu cabelo assim e não acha que está muito ressecado, que adivinhou que os olhos são a parte do meu rosto que eu mais gosto. É humanamente impossível continuar receoso quando alguém nos elogia muito. O ingleses no bar não fizeram isso com a minha amiga, lá deve ser diferente. Todo mágico sabe que o segredo do truque é a sua aura de mistério. O homem deve parecer sincero – pelo menos naquela noite, sob aquela luz e aquele banco alto. É um truque, é infantil, é uma suspensão da realidade. Mas será que, como brasileira, basta assumir que isso é uma mentira para se libertar dela? Não pareceria que ele nem se esforçou?

Você não é Kardashian

Eu percebi que as grandes impaciências e infelicidades na vida são porque cremos que merecemos de tudo. Por isso, vivo repetindo pra mim mesma: você não é uma Kardashian, a vida não tem obrigação de te dar nada. É como se tivéssemos uma cartela de bingo imaginária: carreira – amor – dinheiro – viagem à Europa. Eu preenchi a viagem, mas cadê o mozão. Eu tenho um emprego, mas não quero preencher o item carreira, porque é apenas um ganha-pão que não me realiza. Tenho amigos, mas de que me adianta se não tenho casa. Vamos às cartomantes porque ela disse que vai aparecer, mas está demorando demais, os papéis ficaram retidos na burocracia do além, onde fica o setor de reclamação celeste. Tudo isto é porque, no fundo, temos uma lista do que a vida nos deve. Nos deve porque queremos, porque todos têm, porque gente muito pior do que eu tem e tem o dobro. Alguns recordam que a vida não lhes deve nada quando acontece uma tragédia ao lado, tipo uma amiga muito jovem para quase morrer. Aí lembramos: nada é garantido, nem ao menos a saúde. Se o mozão que a cartomante prometeu demorar, tem que ficar feliz porque pelo menos tem mozão, alguns nem isso. Muitos morrem sem jamais colocar os pés na Europa – e não há nenhuma tragédia nisso. Talvez o que você tenha é isso aí, é o que tem pra essa existência: a viagem até a cidade vizinha, os amigos que marcam em lugares baratos porque eles também têm empregos modestos, o nascer do sol pela janela do ônibus, beijar o galã da rua, economizar muito para trocar de sofá. Vamos quase todos morrer sem deixar qualquer traço na história da humanidade. Alias, os Kardashian também.

otro dia más

Companhia hiper realista

doll

Vi num programa de TV a cabo. Eram umas três histórias, acho que era uma série sobre distúrbios sexuais. Tinha um cara que tinha uma boneca hiper realista. Daquelas que são uma versão melhorada de bonecas infláveis, elas têm todos os detalhes e têm um peso de uma pessoa. Ela tinha nome, roupas, lugar na casa. O programa mostrava ele chegando, falando com a boneca, colocando prato de comida para ambos. Depois de ser bastante seguido pela reportagem, mandam um terapeuta falar com ele. O terapeuta o confronta, vai em cima das várias racionalizações e desculpas. Diz que aquele era um paliativo muito ruim para a necessidade de ter uma relação. Que não adianta dar nome e fantasiar uma personalidade, ter boneca não é relação – boneca não responde, boneca só espelha. O sujeito foi se defendendo como pôde, ora se esquivando, ora assumindo. Ele estava feliz sim, ela se chamava Fulana, o esperava todas as noites, eram felizes. No final do programa, quando subiu os créditos, fomos informados que, depois daquela conversa profunda com o terapeuta, o cara comprou mais duas.

Não sei para que lado eu deveria estar torcendo, mas dei gostosas gargalhadas.

Uma pequena pausa. Ou não

Eu havia acabado de ler um mapa astral. Mesmo sendo uma pessoa linda, conhecida, ler o mapa de alguém me lembra muito sessão de terapia. Aquele mesma atenção de quando fiz o curso há uns vinte anos, a condução. Quem chega vem leve, mas quem conduz quer que seja a melhor experiência, então não fica relaxado. É uma hora com um foco muito especial, toda sua energia está naquilo, em encontrar entre o que você quer transmitir e o que está sendo vivido a melhor maneira de falar. Quero que a pessoa saia bem e só desligo desse modo quando realmente encerro. Foi tudo bem, ela gostou muito e eu também, descemos as escadas e já era hora da aula que nós duas faríamos. Mesmo sabendo que perderia o começo, saí e fui até o posto de gasolina tomar um café. Mais pela pausa do que pelo café. Para respirar, me centrar, assimilar o que havia acontecido. Para sair do modo atendimento e quando voltar ser apenas aluna.

Preparei um mocaccino na máquina e me sentei no banquinho alto que fica numa das duas mesas apertadas da loja. Passo lá com frequencia o suficiente para ser conhecida da atendente. Os frentistas e outras pessoas sempre ficam conversando do lado de fora, visíveis através do vidro. Desse grupinho veio uma mulher e encostou no balcão. As duas retomaram a conversa provavelmente interrompida pela minha chegada. “Melhor coisa que eu fiz, você deve fazer”. “Eu nunca faço nada por mim, seria a primeira vez. Me incomoda tanto”. Elas estão bem na minha frente. Misturo o mocaccino com a pazinha transparente. A história começa a se esclarecer pra mim: a mulher fez plástica, barriga e seios. A atendente queria fazer. A mulher contou que fez três orçamentos, e acabou ficando com a opção que não era tão cara, mas que tem o médico e mais seis estudantes acompanhando a cirurgia. “Mas foi muito boa!”. Neste ponto, segundos antes de, que digo pra mim mesma: “Sério isso, você veio aqui para descansar e…”

-Moças? Oi! Desculpa me meter, mas sobre o que vocês estão conversando. Eu tinha uma amiga enfermeira e ela me disse que era a melhor coisa fazer operação plástica bem do jeito que você fez, com vários médicos, porque aí eles…

Cheguei MUITO atrasada na aula.

buena historia

Receita de bolo

A censura da época da Ditadura cortava qualquer coisa que não fosse conveniente de ser publicada, e às vezes fazia isso de última hora. Os jornais ficavam numa situação difícil. Ao invés de tentar cobrir o furo de última hora, alguns optaram por assumir que ali houve censura a publicavam receitas, algo bem fora de propósito. Era uma maneira de protestar, de deixar claro para o leitor que naquele buraco havia uma informação que não pode chegar até ele.

Eu tenho vontade de colocar receitas de bolo aqui, só que minha motivação é outra. Quero sofrer menos, os dias estão complicados demais. Todos os dias têm uma porrada e todos os dias eu penso: “não, essa foi demais, agora vai ser impossível defender, as pessoas vão acordar”. E não, você visita os perfis das falanges e seguem firmes e raivosos. A imprensa persegue, a NASA não sabe ler dados, “mas ele não fez caixa 2”. Não gosto de ofender as pessoas, mas as escusas chegam às raias da lobotomia. Até a Amazônia pode queimar que está tudo bem. Olha, tá demais.

Deixo aqui minha contribuição pra tentar arrancar um sorriso de vocês. Arrancou um meu.

Dois comentários sobre Mindhunter

Mindhunter-3ª-temporada

Não vou entregar nada, mas esta segunda temporada de Mindhunter está ainda melhor do que a primeira. Vi algumas críticas por aí, várias questões foram levantadas, mas a que mais me tocou foi a questão da responsabilidade. Você não mobiliza o governo, levanta fundos, ganha crachá e funcionários sem ter consequências. Engrenagens são movidas, expectativas são criadas, responsabilidades pesam. A série se arrasta no tempo para nos deixar claro o quanto é difícil manter as suas posições enquanto os dias passam. Todo mundo achando besteira, o que parecia tão redondo de repente perdeu a eficácia, chega um momento que até o que era muito sólido parece ter sido só um sonho. É a treva, o inferno astral, o momento decisivo na vida em que nada e ninguém te apóia, e é só você tentando manter seu projeto fora d´água enquanto o resto do corpo já está imerso. Será que passa de qualquer maneira, será que o grande prêmio será perdido?

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Este é mais pessoal: certo ou não, o que me fez ver a série foi um post que dava um perfil psicológico para cada um dos personagens, de acordo com a escala MBTI. O teste havia bombado no Facebook, todo mundo postando, e nas três ou mais vezes que fiz (quando fico psica gosto de esgotar todas as possibilidades) o resultado foi sempre o mesmo. Eu e o agente Ford seríamos INFJ. O resultado diz que é um tipo raro. Aí você vê que existem grupos de facebook, vídeos, guias, tudo o que você pode imaginar de INFJ. Além de ter posts extremamente chatos, as pessoas ficam brigando entre elas, julgando que nem todos ali merecem ser INFJ. Enfim, só pra dizer que qualquer coisa no mundo que ofereça uma etiqueta que diga que as pessoas são raras e especiais é motivo de disputas e brigas. Nem que seja um mero teste de Facebook, nem que seja algo que as pessoas nem sabem se existe.

Curtas andando triste por aí

tomar café

Tomando café com uma amiga. Eu só vou lá com ela, mas ela é cliente. Geralmente, quem está lá é a funcionária, mas pela primeira vez no nosso café lá é o dono. Ele nos deixa uma grande fatia de bolo, com doce de leite em cima. Conversamos na hora de pagar, damos risada. No final, ele nos deseja feliz dia dos pais, caso tenhamos. Eu quase o corrigi – por causa de poucos dias, nenhuma das duas têm.

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Chegando arrasada em casa. Vou no caminhão da verdura e o Verdureiro nos mostra foto da filha, tão comprida quanto ele, e os modelos lindos de babador que ele tem. Horas depois, arrasada, vou até a padaria, e a moça no caixa me atualiza que ela finalmente conseguiu vender o cavalo dela e deu entrada no DPVAT, depois de meses do pai dela ter se acidentado. É o universo tentando me consolar com pequenas fofuras.

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Vou na padaria, está cheio, três funcionários atendendo. Quem chega pra me atender é justamente o rapaz que eu não tenho intimidade, o que está sempre de cara fechada. Peço pão, peço uma rosca. Só a rosca. Ele me pergunta qual delas. Eu fico sem graça e digo que qualquer uma. Ele me fala que vai pegar a maior pra mim e dá um sorrisinho de lado. É o que eu sempre peço, mas pros outros.

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Vem e vai. Em dois dias e horários que por acaso eu estava bem, consolei um amigo que tinha perdido o cachorro. Como mensurar dor, eu também ficaria arrasada com a morte da Dúnia. E a dor da morte do meu pai tem piorado, na realidade na hora não me pareceu que seria tão difícil. Aí num dia de baixa meu, uma semana depois, meu amigo queria tomar um café. Respondi que estava ocupada com pintor, etc., o que era verdade mas também não era. Em alguma ocasião eu precisava ter dito o que eu estou passando, mas sabe aquilo que quanto mais demora pior fica?

Lembrança datada e com trilha

Eu e os meus irmãos estávamos na casa de alguém, numa festa. Embora, pela proximidade de idade, eu e o meu irmão caçula estivéssemos mais na mesma fase, o meu irmão mais velho e ele se uniam e a guerra entre os sexos era mais forte. Crianças não tinham muito acesso a refrigerante na minha infância; quando bebíamos, geralmente alguém havia aberto uma garrafa de um litro e nos dado um copo. Naquela noite, cada um estava com sua própria coca-cola, na tradicional garrafa de vidro de 250 ml. Eu segurei a minha garrafa com a mão direita, a mão próxima do gargalo, e pus na boca. Era pesada pros meus dez anos. Meu irmão mais velho:

-Olha só, ela está bebendo igual alcoólatra, segurando a garrafa igual a Heleninha. (canta com voz aguda) O meeeeeedo de querer…

A Heleninha era Helena Roitman, de Vale Tudo. E eu jamais teria decorado a trilha sonora das ressacas dela se não fosse esta lembrança.

 

Depois ele me mostrou como segurava a garrafa do jeito “certo”, mais embaixo. Nunca mais helenei.

O luto certo

Eu me lembro de quando uma professora minha do primário, que nos dava aula de história, teve que faltar porque o pai morreu. Ela faltou uma aula, depois na aula seguinte, ao invés de ser tão legal como sempre, ela foi menos legal. Mas eu lembro que fiquei bastante chocada, porque pra mim ela merecia nunca mais aparecer. Merecia ter olheiras profundas e chorar a cada frase. Porque a morte de um dos pais, quando se é criança, soa simplesmente insuportável. Velhos que se conformavam em perder o cônjuge depois de uma vida inteira de companhia também me impressionavam. Numa lembrança bem antiga, lembro de uma vez que comecei a chorar e um adulto perto de mim disse que eu estava chorando mais de susto do que pela dor, que criança era assim. É? Acho que foi a primeira vez que eu me perguntei o que havia me feito chorar e fui descobrindo que o adulto tinha razão.

Minha maneira de lidar com a dor parece ser diferente do que alguns esperam. Talvez eu seja mais silenciosa do que outros. Talvez eu devesse pedir mais abraços, gritar em altos brados, falar e falar. Mas, do meu lado, posso dizer que não entendo. O falar e repetir como foi e como estou, o aceitar constante de condolências, ter que reprisar a dor a cada conhecido não me traz nenhum alívio, pelo contrário. Sabe o momento que realmente me faz falta ter um marido? Não é a famosa carência e sim quando eu tenho um problema. Dificuldades adultas do tipo contas, ameaça injusta de multa por cancelar a TV a cabo, decisões importantes sobre o futuro, lidar com burocracia me dão uma saudade imensa do tempo que alguém fazia por mim ou comigo. Aí sim me dói. Dói porque eu posso no máximo contar com a solidariedade dos amigos, mas no fundo pra eles não faz diferença se eu tive que tirar dinheiro da poupança, se fiquei insone, se me precipitei. As pessoas podem apoiar, aconselhar, abraçar e tudo isso fica na superfície, a palavra final é minha, a dor é minha, a falta é minha, a vida é só minha. O luto também.

um pequeno passo

Os ninhos

ninho de pássaro

Era um horário de pouco movimento. Eu me sentei cheia de sacolas de supermercado num banco duplo preferencial, que ficava em frente à porta. Quando paramos no terminal, a senhora que tinha do meu lado saiu e uma mulher com seus cinquenta se sentou no lugar dela. Percebi que ela começou a mexer no celular e me ajeitei, abracei as sacolas no colo e fiquei olhando pela janela. Depois de algum tempo, senti o braço da mulher bater no meu. Virei instintivamente, mas meu pensamento foi o de que ela devia ter encostado em mim sem querer, tentado rolar uma tela ou tirado o casaco. Não tinha sido por querer, ela realmente havia me cutucado.

Olha isso aqui!

Era uma postagem no Facebook, várias fotos de ninhos.

-Olha que interessante, os passarinhos construíram vários ninhos, um em cima do outro.

-Ah, não é sempre foto do mesmo?

-Não, olha aqui. Esse é um, o outro é do galho de cima e outro galho mais pra cima.

-Um condomínio de ninhos!

-Sim! Eles construíram todos juntinhos, por cima um do outro. Olha só, é um pinheiro.

-Vai ver que são da mesma família.

-Devem ser. Queriam ficar juntos.

-É mais prático. Um pode aparecer no ninho do outro e falar: você tem uma minhoca pra me emprestar?

Eu pedi licença porque já ia descer. De pé, me despedi dela, que olhava para a tela do celular e ria baixinho: “minhoca”.

O pior melhor de todos aspectos para o amor

meninas montam carneiros

Animada com os lindos Lua e Júpiter visíveis no céu, fiz um vídeo curtinho, desses que somem da rede em poucas horas, e um amigo disse que queria ter tido tempo de me fazer falar sobre Vênus em Áries. Fiquei sem graça, ele mesmo falou: “é ruim, né?”. Eu, como todo mundo, também gosto de respostas simples e que, de preferência, essas respostas me digam que tudo será ótimo de agora em diante. Mas agora que eu me vejo no papel de fornecer as respostas, fico com receio desse sim ou não, especialmente do não, porque ele pode levar facilmente a uma vitimização (“eu sabia, culpa de Vênus que estava no lugar errado!”) e a vida (e os astros) não é assim. Eu já vi gente muito melhor do que eu, com mais dinheiro, amor, amigos, apoio, emprego e até mapa astral, e que reclama como se fosse o mais azarado da Terra. Tudo é relativo, de verdade.

Pra começar, o bom ou ruim. Vivemos num momento que o outro lado é sempre acusado de ter ideologia, como se existisse um estado puro fora da ideologia e que toda ideologia fosse algo ruim. Ideologia é background e tudo bem background. Até mesmo a sua língua nativa é background. Em algumas línguas existem as palavras bom e ruim, em outras existe bom e não-bom; para alguns idiomas, dependendo do sexo e idade dos falantes, há toda uma hierarquia nos pronomes de tratamento. Essas coisas definem o modo das pessoas pensarem de maneira tão profunda que elas nem percebem. Astrologia também não deixa de ser uma ideologia. Pensando nessa questão de Vênus em Áries ser ruim para o amor, pensei no que era bom para o amor e cheguei em Vênus em Touro e Saturno na casa 7, a do casamento. Há uma visão de amor por detrás disso. Touro é o signo mais lento de todos, assim como Saturno é o planeta mais lento da astrologia tradicional (que desconsidera Urano, Netuno e Plutão). A noção por detrás é clara: amor precisa de tempo. Áries vê, conclui rapidamente, age sem pensar, conquista, enjoa. Com Touro e Saturno, as coisas são mastigadas, elas demoram a serem postas em movimento. Em contraste com o fulgor apaixonado de Áries, são até tediosas, previsíveis. Mas, uma vez que comecem, avançam de maneira inexorável. Dizem que o casamento de Saturno na 7 é aquele que começa praticamente sem paixão e termina com velhinhos fofos de mãos dadas.

Frequentadores de Tinder me garantem que se não rola nada depois do primeiro encontro, nem ao menos um beijo, é provável que a pessoa já tenha te bloqueado no whatsapp antes de você chegar em casa. Bauman chama de relações líquidas, diz que geram insatisfação e são impossíveis de serem preenchidas. Bom ou não, este é o estado atual das coisas, muito mais Vênus em Áries do que em Touro, menos ainda Saturno. Ou seja, o que os astros dizem, o que os outros dizem, o que a sua época diz… no fim, tudo volta para a mesma questão de sempre: o que você é capaz de fazer com o que tem.

O universo dele

Durante todos esses anos eu tive medo de receber a notícia da tua morte e não chorar. Que a nossa distância física, que o convívio esporádico desde a infância e, principalmente, as nossas muitas diferenças me tornassem incapaz de sentir o que talvez exista de mais fundamental nos seres humanos: a força dos laços de sangue, o amor pelos nossos pais. Agora não preciso mais temer minha insensibilidade e a capacidade de ser uma boa filha, porque a notícia da tua morte, embora tenha demorado pra se concretizar pra mim, me atingiu em cheio.

Já você tinha medo de morrer inutilizado. Medo que o seu coração grande demais não lhe permitisse mais o prazer da praia, dos amigos, de comer lambreta, de andar pela casa, pela rua, de andar tantos quilômetros que até mesmo uma grande andarilha como eu ficava cansada. Por mais que fosse uma decisão pensada, me doía a ideia de te imaginar longe da casa que fica perto da praia, onde passei a minha infância. A casa que há anos não sabia o que era ser trancada. Também não o que eu desejava pra você. Fico feliz em pensar que nada disso foi necessário, que você teve o privilégio de morrer suavemente, que praticou seus pequenos prazeres até o fim.

Quando penso em você, a palavra que mais me vem à cabeça é absurdo. Me dói pensar que o universo absurdo que você construiu não existe mais. O acarajé barateza e sem nenhum glamour vendido por um homem na frente de um supermercado. Os carros velhíssimos, com a lataria enferrujada, mas que você sempre gostou de comprar, com segredos pra dirigir, portas que não abriam e que invariavelmente paravam de rodar. Nunca vi alguém com tanto talento pra achar lugares, inventar nomes que remetem a outras coisas e pra formar em torno de si um círculo de amigos tão apaixonados. Quantas pessoas tem mais de dois amigos que viram para a filha e falam: “eu amo muito o seu pai, amo tanto, ele é mais do que um irmão pra mim”.

O vínculo absurdo e exasperante com Salvador acaba de morrer pra mim. As bermudas floridas, os sorvetes gigantescos de uma bola, as caminhadas pela Cidade Baixa e sabe lá Deus aonde, as grandes histórias de grandes frases e blefes e pessoas variadas como a flora amazônica – mas com uma queda indisfarçável pelos mais humildes. A minha prosa não era nada perto do seu carisma, histórias muito melhores que você conhecia por ter uma capacidade muito maior do que a minha de se interessar e entreter qualquer um (“se eu tivesse metade do seu talento pra escrever…”).  Nunca mais vou entrar em bares feios, nunca mais um homem barbado e com netos virá me falar do grande amor por você. Nunca mais as festas, nem que fosse o prazer de assar uma carne pra si mesmo. Agora me restam as linhas retas curitibanas, a vida tão ordeira que eu criei pra mim.

Te amo, pai. Obrigada por tudo.

bonecos em bonfim

O sorriso da jararaca

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Tinha a Jararaca do ambiente de trabalho, daquelas tão boas em criar situações para subir que, até as pessoas perceberem, ela já estava em outro cargo, mais alto. E tinha também o estagiário. Todos o chamavam pelo seu nome no diminutivo, porque ele reunia muitas características e o faziam inho: baixo, novo, e uma maneira meio ingênua de ser. Como estagiário, ele não estava muito por dentro das fofocas e nem era afetado pelas puxadas de tapete.

Um dia o Fulaninho surpreendeu ao dizer que não gostava da Jararaca, achava uma pessoa falsa. Aí a colega de trabalho de ambos, a terceira pessoa oculta desta história, perguntou:

-Como é que você sabe disso?

-Porque eu percebi que ela é toda sorridente quando fala com as pessoas e fica imediatamente séria assim que a pessoa dá as costas.

O ponto de “já sou tão bom que não ligo”

Um dos orgulhos que levarei comigo para o túmulo é o fato de agora conseguir fazer uma saída decente quando nado. Já falei disso aqui. Deve fazer uns cinco anos que treino a bichinha. Morro de orgulho porque parti do zero, de precisar que o professor segurasse a minha mão pra eu ficar de pé em cima do bloco e descer, tamanho o medo que eu sentia da altura daquilo. Pra quem faz desde criança, fazer esse salto não é nada. Aí pensei no que representa o Nodo Sul num mapa astral.

Se você fizer um mapa em qualquer site ocidental, ele vai mostrar onde mostra o Nodo Norte e não vai mostrar o Nodo Sul. O argumento é que não é importante colocar, o Nodo Sul está sempre oposto e pronto. Mas se não está lá, atrapalha na hora de ler. E isso mostra o quanto os Nodos, tanto um quanto o outro, não importam muito para a astrologia ocidental. Para a védica, eles são Rahu e Ketu, que eu descrevi aqui.

mapa zuc

Ketu ou Nodo Sul, fala do que sabemos demais. Você pode acreditar que sabemos demais por encarnações anteriores ou apenas que sabemos demais porque aprendemos com nossos pais e nossas primeiras experiências. Quando sabemos muito uma coisa, ela é um assunto dominado, que não precisa voltar mais, rola um desprezinho. Nos damos ao luxo de sermos totalmente exigentes, porque temos um modelo de perfeição na cabeça. É como aquele aluno CDF que fica de bico porque tirou 9,8. Quem aprendeu a fazer saída desde criança o faz com perfeição sem precisar pensar. O desejo fica sempre no oposto, no que não dominamos e gostaríamos muito de saber fazer. O tanto que assisti vídeos de saída, os olhares que eu jurava sentir cada vez que me aproximava da borda da piscina, a sensação de que era constantemente avaliada. Quando queremos muito, damos importância. Mas meu sentimento de humilhação também era tão grande que eu não conseguia ficar nesse estado durante muito tempo, eu tinha que compensar com outra coisa. Lembrar que eu nadava bem, lembrar que sou boa em outras coisas na vida. Por isso que dizemos que o eixo Nodo Norte e Nodo Sul é uma dança, a pessoa alterna um estado e outro. Não ligamos, partimos pro desejo, não conseguimos lidar muito tempo com a falta e voltamos ao sabido, porque é mais quentinho.

Aí os insights disso num mapa são geniais. Às vezes o nojinho já completamente dominado é se relacionar com os outros, às vezes é a sua relação com dinheiro, às vezes é a família. O que é dominar cada uma dessas coisas, como isso altera nossa relação com o mundo, o quanto isso explica as escolhas na vida?

O bem e o mal

Tudo bem Bolsonaro prestar homenagem àquele que torturou a Dilma, porque ela era do PT, o partido mais corrupto do mundo. Tudo bem falar na morte do pai do presidente da OAB porque era um “comunista” na época da Ditadura, que só matou quem merecia. Tudo bem entrar nas redes sociais da mãe de Glenn Greenwald, que está com câncer, para tripudiar, porque a série de reportagens dele ataca o super Moro, herói da Lava Jato. Eles são Mal e vocês são o Bem, né?

o bem e o mal