Cemitério indígena

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Se eu não me engano, meu amigo Leilson, que adora filmes de terror, uma vez comentou de onde surgiu essa história de construção feita em cima de um cemitério indígena. Não surgiu do nada, é o enredo de um filme específico. E essas brincadeira de cemitério indígena pegou, virou um daqueles clichês que todo mundo entende, até quem nunca vê filmes de terror (meu caso). Vi um episódio de South Park em que tudo dava errado, apareciam espíritos e tal, e quando investigaram tinha um comercio qualquer construído em cima de um cemitério indígena. “Então vocês simplesmente encontraram um cemitério indígena e construíram em cima dele?” “Nãããão, claro que não! Antes de construir a gente mexeu em todos os ossos, pisou em cima e fez xixi neles, só depois a gente construiu…”

A lógica por detrás do cemitério indígena é simples: que felicidade é possível quando construída em cima de um extremo desrespeito ao que é importante para os outros? Uma vez ouvi uma história mística, que era mais ou menos assim: a Terra ia sofrer uma provação e o que havia aqui – Atlântida, Civilização Maia ou sei lá o quê – tinha que ir embora. Aí teve um que não foi. Não quero, não vou, a mim isso não atinge. Ah, tudo bem. Diz que tudo foi destruído, só a casinha do sujeito ficou de pé. Eu fico imaginando a pessoa acordar de manhã e na sua janela se levantam rios de lava, furacões, gritos de desespero e só na sua casa tudo fica de pé. Pelo que me lembro da história, o sujeito acabou mudando de ideia e foi embora também.

Estou no fim do livro do Jango, lendo o que aconteceu logo em seguida à deposição dele, ou seja, o Golpe de 64. Foi de uma caça às bruxas e violência que nenhum dos envolvidos previa ou até mesmo gostaria, nem os articuladores. Mas apesar de tudo isso, apesar do desmonte, cassação de direitos e as sabidas torturas, pra quem defende o golpe militar nada disso importa: “Éramos felizes e prósperos, a estabilidade tem seu preço”. Ou seja, tem quem não se incomode em dormir sobre ossos desde que seu colchão seja fofinho.

Errada, eu?

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Já dizia Freud que um dos perfis difíceis de paciente é o inteligente demais. Desculpem voltar ao assunto – os posts sobre dança são dos mais impopulares do blog – mas foi difícil me convencer de que eu não dançava bem. Poxa, a mais frequente, que pegava os passos primeiro, aquela que as pessoas consultam pra saber da coreografia e eu não danço bem? Não aceitava. Via os meus videos e me enchia de desgosto, mas quem não se sente desgostoso ao se ver em vídeo ou com a voz gravada? Até que um dia eu pensei numa metáfora perfeita, digamos assim, aí eu nunca mais duvidei. Não apenas não duvidei como me aquietei. Ok, a vida é assim, a dança é meu hobbie e não meu metier. A citação a Freud foi porque como pessoa inteligente e teimosa, precisava de alguém que chegasse ao ponto na argumentação e ninguém soube direito. Eu sou como aquela pessoa que escreve muito bem, com coerência, bom português, raciocínio linear, frases curtas e tal, mas chaaaaata. Escrever (ou dançar) certo não é sinônimo de gostoso.

Eu matei barata

Eu matei barata. Não apenas matei, como depois recolhi. Assim como também recolhi vários passarinhos que a Dúnia matou. Tive que contratar pedreiro, paguei, fiquei meses no vermelho. Lidei com problema de vazamento na privada, duas vezes, três vezes, quase tive o banheiro inundado numa –  na outra tive o sangue frio de esperar o fim de semana passar antes de dar um jeito. Percorro a cidade inteira de ônibus, em qualquer horário. Já despistei tarado no terminal. Caí da escada, caí de bike, fiquei encolhida de dor no sofá; passei eu mesma remédio nos roxos, preparei meu chá, esquentei a água da bolsa de água quente. Nas noites desse prolongado inverno, me esquentei apenas com cobertor; já nas noites frescas, dispensei carona e andei por ruas desertas observando o céu apinhado de estrelas. Eu não entendia qual era a relação de ser independente e mais seletivo na hora de querer companhia. Agora eu sei.

una vida chiquitita y normal

In timo we trust

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Os fãs de Hannibal sabem – há uma glândula atrás do coração, chamada Timo. Os místicos veem nela o centro do chakra cardíaco. Dizem que o tamanho dela varia de acordo com o nosso estado de humor: se estamos felizes, ela está grande e bonitoza, se tristes, encolhida. Sem saber pra que servia e vendo os tamanhos alterados, teve época que retiravam com cirurgia. É ela quem causa aquele aperto no peito, aquela dor terrível de amor.  Tenho uma amiga que alimenta uma paixão há anos, e cada vez que a vida dizia que essa história não era nada, que não teve importância, ela sentia essa dor. Agora, finalmente, ela ouviu o contrário, que foi tão importante pra ele quanto pra ela. Eu conheço essa dor, todo mundo conhece essa dor: o mundo dizer o contrário do que nos deixa felizes. Queremos ser racionais, argumentamos, sabemos que não faz sentido, mas o coração não se convence e dói. A dor de quando a gente se violenta e duvida do que nos é muito caro. Parece que a timo da minha amiga é que estava certa esse tempo todo. Eu acredito na timo.

Nelson Rodrigues

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Sem dúvida não era fácil ser Nelson Rodrigues. Além de ter tido uma história pessoal difícil, cheia de tragédias familiares, o seu estigma de pervertido é tão forte que recai até sobre quem lê sobre ele. “O que te levou a ler a biografia do Nelson Rodrigues?” – ninguém se interessou em saber o porque de ler a do Jango, Carmen Miranda ou Chatô. E a resposta, antes que vocês maldem: Ruy Castro.

Pois é, virei fã do homem. Olha só como em poucas frases Ruy Castro nos coloca todo contexto e nos faz entender Nelson Rodrigues de forma diferente:

No Rio em que se passam as histórias de “A vida como ela é…” – o dos anos 50, quando elas foram escritas -, não havia motéis, nem pílula e nem a atual liberdade absoluta entre os jovens. A Zona Norte, quase sem comunicações com a paradisíaca e permissiva Zona Sul, ainda preservava valores contemporâneos da (gripe) “Espanhola”. As famílias eram rigorosas e, o que é muito pior, muito mais famílias moravam juntas do que hoje. Maridos, cunhadas, sogras, tias e primas cruzavam-se dia e noite nos corredores dos casarões, sob uma capa de máximo respeito. Nessa convivência compulsória e sufocante, o desejo era apenas uma faísca inevitável. (p.237)

Se serve de consolo: ele e a família sofreram muito com a história de toda mulher gostar de apanhar. A esposa, com fama de quem apanhava, e os colegas dos filhos perguntavam se a mãe deles já tinha apanhado aquele dia.

Rebelde

Depois de tantos anos de poás e babados, vou confessar que fiquei cansada. Fiquei cansada da flor de lado, ou atrás. Das peinetas, das saias longas, das cores e acessórios que eu não usaria. E comecei a me rebelar, achar tudo brega demais. Se devo aprender com o flamenco a me expressar, a incorporá-lo nos meus gestos ao invés de apenas repetir gestos alheios, como fazer isso vestindo roupas que eu não apenas não usaria como acho exageradas, demais? Aí numa apresentação eu quis colocar uma blusa linda estilo oriental. Pareceu que tirei isso do além, mas no primeiro dia que vi minha professora dançar, no primeiro espetáculo de flamenco da minha vida, ela vestia uma blusa cujo desenho me pareceu muito oriental, apesar de flamenco. Lembro que isso me desagradou quando vi. Aí ela vetou. No dia, apareci com aquele arquinho de flores que agora está na moda, que tem até no snap, aquele que ficam umas flores bem na frente. Tanto desconfiava que ela ia vetar que nem comentei antes. E ali, pouco antes de subir no palco, levei um safanão e fui obrigada a colocá-lo de lado pra me adequar às normas. Há tempos já concluí que se tivesse nascido na Espanha ou em família flamenca, teria virado dentista e não Farruquito. Eu me conheço e se tivesse nascido nessa linguagem – porque flamenco é isso, uma linguagem – não seria capaz de ser a continuadora de uma tradição, e sim quereria quebrar estruturas e trazer ares novos. Digamos que eu estaria mais para Israel Galván. Não gostei dos vetos, me senti podada. Aí vi, poucas semanas depois, vi minha professora dançando com uma outra grande bailaora, uma espanhola. As duas vestiam roupas flamenquíssimas, com babados e poás enormes, a cabeça abarrotada de coisas, peinetas, brincões, o out do out. Chegaram lá e hipnotizaram, dançaram com uma força e gestos despudorados que só o flamenco tem. Absorvida pelo momento, eu me senti um bebê, uma criança, uma menina que olha pra mãe e descobre nela o que no futuro ela pode ser. Naquele momento eu entendi que elas estavam trabalhando dentro de um arquétipo, e que seus gestos nos davam permissão para gestos mais fortes e despudorados na vida. Eu é que estava errada, não é pra ter a roupa comum lá em cima, o palco mostra o além. Pensei também que pena que as mulheres de hoje perderam essa ligação com as mais velhas, fortes e sábias, que não temos mais esses arquétipos maravilhosos para nos espelhar. Mas isso é outra discussão.

Atração

Como ser atraente para quem a gente gostaria de ser atraente, taí uma questão insuperável. Todo mundo quer ter o it, o borogodó, aquilo que tem a ver com a beleza mas que não se reduz a ela. A quantidade de buscas e artigos relativos ao tema são uma prova disso. No tempo que o blogger me mostrava as buscas do Google, alguém sempre aparecia no meu blog com varições desse tema: do que os sagitarianos gostam? Como conquistar homens na balada? Homens gostam de mulheres de cabelo curto? Os artigos que dão passos e dicas são tão inúteis quanto irresistíveis. Dia desses cliquei num que dizia que um dos itens importantes na atração era o “Alongamento”. Como ninguém nunca se preocupou em saber se (a resposta é sim) eu encosto as mãos no chão com os joelhos esticados, tive que ler. Na verdade, o autor quis dizer consciência corporal, porque falava de dança, esportes e outras coisas que faziam com que a pessoa se expressasse bem fisicamente. Vendo pela bilionésima vez o vídeo da Carmen Miranda, e sentindo vontade de morder essa mulher, ser essa mulher, usar roupas coloridas enquanto desenho círculos no ar e olho de lado, tive um insight sobre o tema: atração é algo que a pessoa faz – seja pela forma como sorri, a doçura da sua voz, seu senso de humor, a espiral dos seus gestos ou do seu mindinho ou das suas argumentações inteligentes – que nos dá a impressão de que a nossa vida seria muito mais luminosa ao lado dela.

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Xadrez

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Eu cito muito uma frase do Millôr que diz “jogar xadrez desenvolve muito a inteligência de jogar xadrez” não apenas pela crítica que ela faz aos que extrapolam ao dizer que certos hábitos ou atividades – ler, não comer carne vermelha,etc – mostram que o indivíduo é superior em coisas que não tem nada a ver. Cito esta frase porque tenho um problema especial com o jogo de xadrez. Acho cansativo demais pra uma diversão, não sei. Em casa nós jogávamos; conheço os movimentos desde que me entendo por gente, mas levei muito tempo derrubando tudo no chão quando começava a perder. Claro que era a pior jogadora da família. O que eu gostava mesmo era um jogo que aprendi no Manual do Escoteiro Mirim que consistia em fazer o cavalo andar por todos os quadrados do tabuleiro, sem repetir – ou seja, um desafio individual. Quando aprendi a lidar melhor com a minha frustração e comecei a empatar as partidas – o meu rei era um verdadeiro atleta – minha mãe e meu irmão pararam de jogar comigo. Mas trauma mesmo eu fiquei por causa de um namorado que adorava jogar xadrez e me obrigava a jogar com ele. Quando eu me recusava eram tantas reclamações pela minha falta de espírito esportivo, que eu era assim mesmo, que eu era egoísta, que eu isso e aquilo, que o jeito era jogar. O problema é que, mesmo detestando, eu ganhava a maioria das partidas. Aí ele me obrigava à revanche.

Buraco

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“Ela só estava interessada no meu dinheiro“, e a palavra dinheiro foi dita com tanta dor que eu entendi: o ex-marido, aquele interesseiro, dos homens que buzinavam apenas porque ela estava num carrão, as mulheres que se avaliam através de sobrenomes e roupas. Fiquei com medo de eu mesma falar alguma coisa e soar dinheirista. Foi a primeira vez eu percebi o buraco numa outra pessoa. Só que não são buracos onde caímos, aqueles no chão – eles estão mais  para buracos negros, com o poder de sugar tudo à sua volta. O buraco não apenas atrai situações semelhantes, como também faz com que situações neutras ou que poderiam ser interpretadas de várias formas soem como mais do mesmo. A questão do dinheiro era atraída, batia, doía, confirmava. E nada poderia convencê-la do contrário.

Originalidade

Tem uma frase que eu li em algum lugar que me ajuda muito e não sei direito como dizer isso sem querer parecer uma pregadora religiosa. É assim: “Através de você, Deus está vivendo uma experiência que ele nunca viveu antes.” Para mim, essa frase é um apelo máximo à originalidade. Ela me faz pensar o quanto regras de conduta são perigosas e até inválidas, porque o que rege a minha vida pode ser um estrago na vida do outro. Eu ia escrever “o que equilibra a minha vida” mas já está aí, pode ser que tudo o que o outro menos precise seja equilíbrio. Eu penso também numa conhecida minha, que nunca sonhou em viajar, mas colocou o nome num projeto e os frutos dele estão levando-a a viver em outras partes do mundo, de Inglaterra à Nova Zelândia. Eu mal e mal vou até Campo Largo; se fosse tentar ser uma pessoa viajada, teria que fazer imensos esforços. Ou seja, pra ela vem fácil e pra mim seria uma luta, uma tentativa de cópia, a vontade de ter o que não é a minha realidade. Me faz pensar também no escrever, nessa crise imensa que todos que escrevemos temos, ao olhar para o lado e achar tão lindo, genial e disse tudo – e nessa de achar o outro tão maravilhoso, dá a impressão de que tudo está tão dito e muito melhor dito que não tem porque euzinha escrever. E realmente já está dito e não vale a pena, se eu virar uma cópia mal feita de Paulo Coelho ou Borges. Mas valerá a pena, será único e original se eu disser o que apenas eu posso dizer – mesmo sem viagens internacionais.

otro dia más

Aurora

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Vi referência à Aurora Miranda como uma injustiçada, uma cantora muito boa que não tem o reconhecimento que deveria por causa da irmã. Mas quando a gente lê a biografia da Carmen Miranda, não fica com essa sensação ruim. Carmen sonhava em casar e ter filhos. A princípio, ela não conseguiu casar porque namorou homens de uma condição social superior à dela, e como simples cantora não estava à altura. Depois, quando se tornou Carmen Miranda, não conseguia ser levada à sério, era estrela demais. Acabou casando com o único homem que lhe pediu, uma bela porcaria que provavelmente só queria dinheiro. O amor pelas crianças a levava a ser madrinha de todos que podia e adotar de coração os filhos dos amigos e qualquer criança que lhe aparecesse na frente, mas quando finalmente tentou à sério não conseguiu levar a gravidez adiante. Aurora fez menos sucesso que a irmã, mas fez sucesso, pegou carona e aproveitou bastante, com direito a filme do Walt Disney e show nos EUA. Não uma carreira histórica, mas deu pra sentir um belo gostinho – e casar, ter filhos, ser saudável e viver uma vida longa. Sucesso quase nunca é o que dizem.

Carmen

Estou louca pela Carmen Miranda e só não houve uma grande onda de retorno à Carmem porque as pessoas não leem tanto assim. Porque Carmen vista pelo Ruy Castro merece. Ainda vou sentar e escrever direitinho sobre o livro, só falta terminar. Devo ter visto todos os (poucos) clipes dos filmes dela que tem no youtube e este é o que eu mais gosto. Tem o sotaque abrasileirado que a obrigavam a fazer, mas pelo menos não tem aquele modismo horrível de cantar em FF e ela já não precisava se afirmar tanto com a baiana de quilos de bijoux. É uma música bobinha e ela está fofa.

Uma das muitas curiosidades contadas no livro: o Brasil Pandeiro foi oferecido a Carmen na primeira vez que voltou para o Brasil depois da temporada nos EUA. Mas ela não quis gravar porque o samba exaltava demais a sua pessoa e era cheio de referências a ela, e Carmen jamais ficaria se gabando numa música. Olha como os versos mudam depois dessa informação:

O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada

Está dizendo que o molho da baiana melhorou o seu prato

Vai entrar no cuzcuz, acarajé e abará

Na casa branca já lançou a batucada de ioiô e iaiá

PS: Eu já vi tanto esse clipe que fico reparando nas pessoas do fundo. Elas estão genuinamente maravilhadas. Não é todo dia (onde mesmo está essa citação?) que surge uma mulher que consiga ser ao mesmo tempo linda, engraçada e querida.

Amor e fuén

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Eu me casei muito apaixonada. Nesse sentido, olho para trás e não consigo achar que foi uma decisão errada, porque é como se não tivesse sido uma decisão – eu não tinha escolha, era inevitável, não dava mais para seguir adiante sem ele. E com tanto amor, com todo esse sentimento das duas partes e a vontade de dar certo, tivemos nossas dificuldades e chegou ao fim. Eu me pergunto então como deve ser quando a pessoa casa meio “ah, ele é legal, o currículo é bom, também gosta de Beatles…”

Tentativa

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Eu andei até a agência dos correios que tem perto de casa com os envelopes na mão e pronto. Nos dias anteriores imprimi, tirei xerox, comprei pastinhas. No final da impressão do original, a impressora começou a se queixar de falta de tinta, e as últimas páginas tiveram que ir no rascunho. Num dos envelopes escrevi à mão, e numa pastinha a folha com meus dados foi em azul. Na saída, encontrei um mendigo com cachorros e dei as moedas que haviam sobrado de troco. Passei no supermercado e comprei um pote de sorvete, prática que havia abandonado faz um tempo. Pra comemorar, pros meus dentes que doem, porque faz tempo que não tomo sorvete no frio. Eu achei que ficaria feliz, mas toda minha demora em fazer isso apenas evidenciou o quanto é difícil pra mim. Minhas células se lembram: anos de papéis caprichosamente impressos, colocados em pastinhas e envelopes e oportunidades de dar aula que nunca surgiram. Comentei isso há poucos dias com uma amiga, que achava que eu seria uma boa professora, mas que bati nessa porta durante anos, até com ajuda de amigos, e ela nunca se abriu. “Comigo isso não teria acontecido, eu teria insistido até entrar”, ela me disse, segura de sua capacidade por ser realmente uma profissional muito requisitada. Dá pra imaginar que não foi um comentário que me fez bem; de um lado eu poderia argumentar o quão inseguros anos de portas fechadas nos deixam, mas aí chega um ponto que a gente compra mesmo a ideia de que não foi persistente o suficiente, de que não é capaz . Meus amigos leitores insistem em dizer que sou muito boa, que deveria ser mais confiante, que escrevo tão bem, que minha escrita é um compromisso que não estou honrando com a disciplina necessária. Depois de corrigir tudo o que podia, de tirar e colocar na gaveta, mexer até não poder mais e me convencer de que mais ninguém faria isso por mim, eu dei o passo. Foram só envelopes no correio e arquivos anexados, nove no total – mas o meu esgotamento é de quem enfrentou uma batalha. Ainda sinto o mal estar de quem fez, mais uma vez, frente ao seu medo; mais uma vez envio papéis em pastas e espero resposta. Só que desta vez não foi um currículo e sim um escrito.

Sub

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Foi ele quem me apresentou Marcuse, numa época em que só me mandavam ler sobre sentimentos e subjetividade. Estudante de filosofia, quase certeza de que se chamava Expedito; se não for esse o nome, é um outro nome comprido e fora de moda. Expedito tinha uma origem humilde e foi seminarista. Ele me contou um pouco sobre seleção das diversas ordens, da vida no seminário, a desistência por não suportar pregar uma coisa e viver outra – em português claro, a abstinência sexual simplesmente não acontece. Fora do seminário e precisando se sustentar, Expedito começou a aceitar vários sub-empregos. Num deles foi parar numa empresa de alimentos que se vangloria por ser Saudável. Eles faziam os embutidos. O local de trabalho ficava abaixo do nível da terra, num lugar escuro, com só umas janelinhas distantes lá em cima. Eram horas recheando alimentos silenciosamente. Expedito não achou nada demais no trabalho em si, mas depois de alguns meses ele se viu com dificuldade de lembrar de algumas coisas. Pensava, se esforçava e era como se no lugar da lembrança estivesse um lugar vazio. Ele comentou isso com os colegas e soube que era comum, que todos lá tinham esses brancos de memória. Expedito achou a sua memória um preço alto demais e pediu demissão.

Ex-colega

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Eu desenvolvi uma paranoia de que todos os que já foram aqui citados leram, me odeiam e querem a minha morte, de maneira que quando minha ex-colega de faculdade começou a trabalhar aqui do lado, rapidamente pensei que era o caso. Nossa amizade não terminou bem, pra nenhum dos dois lados: eu me senti perseguida por uma amiga que queria manter um grude que eu não era mais capaz; ela não deve ter gostado de se ver no papel de quem insiste e é cada vez mais ignorando. Olhando para trás, me parece que ela pode até ler como bullying algumas brincadeiras que eu e outras do mesmo grupo fazíamos, vai saber que olhar ela lança sobre ao passado. Porquê bullying: sabe aquela pessoa que rende histórias ótimas? Era ela. Por outro lado, as outras amigas ficaram num preconceito feroz e muito sério pelo namorado (futuro marido) dela não ter curso superior e etc., e fui a única a defendê-lo. Enfim, eu não sabia a que pé as coisas estavam porque, ao contrário do que imaginei, a sua reação ao me ver jamais foi de correr pra falar comigo, nem um informal “e aí?”

No dia em que eu vi True cost, eu fiquei muito mal. Uma combinação do que eu vi no filme e minha vida no dia. Era sexta-feira à noite quando finalmente terminei e vi que naquele estado lamentável era melhor sair de casa, ver gente. Decidi ir no supermercado comprar uma bobagem. Coloquei correndo um casacão enorme – fazia frio – e quando estava de saída, ouvi o barulho do outro portão. Pelo carro estacionado, eu já sabia que era ela. Não dava mais para recuar. Quando estávamos lado a lado, meu olhar concentrado no cadeado, ouço um “Boa noite!”, naquela voz muito familiar. Já imaginei suas perguntas, que nunca eram apenas sociais: eu estaria bem, e o fim do meu casamento, e o que fiz depois de desistir da profissão? Eu senti que não tinha condições naquele momento, nem pra resposta social, nem pra mentir, pra nada. Estava uma ameba, no chão, e qualquer coisa faria com que eu me sentisse tripudiada. Respondi o boa noite com um sorriso sem dentes, só puxando os lábios, me virei e fui embora. Nesse rápido movimento, ainda deu tempo de ver que ela vinha em minha direção. Pelo que conheço dela, iria me dar um abraço.

Se textos e bullying não causaram o ódio da minha ex-colega, isso deve ter bastado.