A berinjela da não-violência

De abelhas a ratos, parece que para outros organismos na natureza o trabalho desinteressado, em prol do coletivo, parece muito fácil. Das abelhas todos sabemos, então deixa eu falar sobre os ratos. Depois que eu li o Todos os ratos do mundo, de Francesco Santoianni, passei a ter um medo respeitoso por eles. Não é à toa que no Guia do Mochileiro das Galáxias eles aparecem como a espécie mais inteligente da Terra. É muito difícil desenvolver veneno contra ratos, e o olfato apurado é apenas um dos motivos. Além de serem inodoros o suficiente, os venenos para ratos precisam ter uma eficácia atrasada. Quando encontram um alimento que lhes parece suspeito, apenas um deles come, e ele é posto em observação durante alguns dias, para só então decidirem que é seguro para o resto do bando comer. O livro também conta a história de um navio que estava infestado de ratos. A tripulação foi retirada, todas as saídas foram lacradas e pequenos tubos com veneno foram introduzidos na tubulação do navio durante vários dias. Não adiantou -ratos maiores se introduziram nos tubos e os entupiram. Quando colocados em cativeiro, sempre no mesmo espaço e com a mesma quantidade de comida, em pouco tempo os ratos param de se reproduzir. Eles parecem sempre ser capazes de tomar as melhores decisões em prol do bando, sacrificando o menor número de membros para isso.

Pensei nesse exemplo porque, caso vocês não saibam, eu me tornei budista e colaboro semanalmente com o instagram da minha sanga. O texto que acabei de escrever fala sobre Ahimsa, o princípio da não-violência. Tentar não o fazer mal é um princípio que parece muito simples, uma abdicação de comportamentos maus: eu poderia me vingar e não vou, eu poderia jogar na cara tal atitude e não vou, eu poderia aproveitar a situação e fazer a pessoa se sentir mal e não vou. Depois, vamos levando o princípio adiante e ele se torna cada vez mais complicado: é válido que eu coma carne, já que com isso estou fazendo mal aos animais? Eu tenho moeda na bolsa e o mendigo me pede, é válido que eu minta e não dê? E se levamos mais a sério e tentamos ser bons e não violentos a todo momento, o problema volta a nós mesmos, como a cobra que morde o próprio rabo. Ouvi a história de uma outra praticante que disse que veio uma criança na rua lhe vender um saco de laranjas. Ela não queria comprar laranjas, mas aquela criança apareceu na sua frente, pequena demais para estar longe da escola e vendendo na rua, então ela ficou penalizada e quis ajudar. Quando perguntou quanto custava o saco de laranjas, e a criança lhe cobrou uns trinta reais pelo saco, extremamente caro, e a moça pagou. Depois, ela voltou para casa com aquelas frutas que nem queria e se sentiu trouxa. Sem dúvida, por detrás daquela criança havia um adulto que sabe o efeito que uma criança pequena vendendo frutas nos causa, e por detrás daquele preço havia a esperteza de quem sabia que era muito mais um auxílio do que uma compra. O principio de não violência e a vontade de fazer o bem nos leva a essas perguntas do que é o bem, e como fazer o bem aos seres. Mas, quando falamos de favorecer os seres, também estamos falando do próprio praticante. Naquele gesto de pagar caro pelas frutas, a moça não fez bem a si mesma. Mas ela fez um bem à criança e aos seus pais – ou à pessoa esperta que colocou a criança naquela situação. No final das contas, foi um gesto bom?

Por isso meu pensamento em abelhas e ratos, porque tenho a impressão que todo gesto bom só faz sentido se pensado junto com o social. Não temos, por natureza, acesso ao que o outro pensa, muito menos ao que sente. Para estar consciente do sofrimento do outro, precisamos buscar, ver, fazer um esforço para imaginar uma troca de lugar. O Covid tem nos mostrado o quanto é difícil agir em prol do social – enquanto uns sofrem entubados, os saudáveis sentem que usar uma máscara que deixa a sua respiração menos livre é sacrifício demais. Agora a doença está espalhada em todos os grupos, mas no início o Covid foi identificado como doença de velhos ou pessoas de saúde fragilizada – então os jovens e saudáveis acharam demais ficar em casa, deixar de ir a festas, enfim, se privarem de “viver” em prol de pessoas frágeis que eles não conhecem e não se importam. Mesmo àqueles que se cuidaram muito no início agora se mostram mais descuidados – o quanto e durante quanto tempo o indivíduo é capaz de abrir mão do seu prazer para melhorar a vida do coletivo? Quantas pessoas não estão alegando a manutenção da própria sanidade como justificativa para o seu comportamento totalmente egoísta? O quanto de sacrifício é justo pedir?

Quando se lê sobre o sistema de castas indiano, parece muito lógico e coerente. O sistema de castas, de acordo com a tradição, divide as pessoas conforme a sua vocação: aqueles que tem um temperamento voltado para a conquista e comando, são Kshatryias, a classe guerreira; os de temperamento religioso e voltados ao estudos, Bramanes; os que gostam de lidar com comércio, Vaishyas; por fim, os que fazem trabalhos pesados, Shudras. Cada um trabalharia naquilo que faz de melhor e receberia o que combina com seu temperamento: quem gosta de guerrear, lições de luta e administração; quem tem um temperamento voltado para os estudos, não ter que lidar com questões materiais, preocupar-se apenas na aquisição de conhecimento; aos que gostam de lidar com comércio, apenas lições que os ajudem a comercializar ainda mais; os de trabalho pesado, a proteção dos seus líderes e o trabalho braçal mecânico e sem preocupações. Um dos grandes problemas dessa questão é decidir quem tem vocação para o quê. Cada um tende a olhar para si mesmo de maneira a se favorecer. Quantas vezes na vida você conheceu alguém e disse: “Fulano é muito melhor do que eu, mais talentoso e mais capacitado, vou abrir mão do que eu tenho e entregar a ele, porque ele merece mais e fará melhor do que eu”? Acredito que nunca. Vi um vídeo curto da Cardi B cortando uma berinjela que exemplifica bem o que eu quero dizer. Ela tem unhas enormes, mal consegue segurar a berinjela, diz que é muito desajeitada em serviços domésticos, e no fim se emociona e declarar: “É por isso que Deus me abençoou e me tornou rica e famosa. Ele sabe que eu não sei ser dona de casa. Eu não nasci para ficar na cozinha. Eu nasci para contratar chefs.”. Somos todos assim, todos nos vemos como nobres que não nasceram para passar dificuldades, os Shutras são sempre os outros.

O trabalho pesado dos Shudras jamais seria uma opção, em qualquer tempo? Se a diferença de remuneração entre um advogado e um pintor não fosse tão grande, todos continuariam sonhando em ser advogados? Escolho estes dois exemplos porque um advogado uma vez me disse que adorava quando o chamavam para uma reforma, que ele adorava trabalhos exaustivos, pintar paredes e montar móveis. Já o trabalho dele, bem, ele fez concurso e pagava as contas… Já comentei num texto anterior: nossa sociedade paga mal os serviços mais essenciais, os mais exaustivos, os mais sem significado, os que existem apenas para fazer a roda continuar funcionando. Somos empurrados a estudar mais, porque com mais diplomas o mercado nos paga mais, mas não necessariamente gostamos de estudar ou nos interessamos pelo assunto; somos convidados a amar a nossa empresa, a “vestir a camisa”, porque se você não demonstrar por ela mais interesse do que o básico no horário do expediente, outra pessoa o fará, e ela será favorecida nas promoções, ou seja, vai ter um salário melhor e uma vida mais confortável. Até sobre promoções: mesmo que nunca receba nenhuma, você não pode ser um funcionário que diga que só quer ganhar o básico e levar uma vida boa, porque isso demonstra falta de interesse. E mesmo que não pensemos só na questão do salário, existe também o valor social; de um lado, algumas profissões são pura privação, enquanto em outras o sujeito têm valor, respeito e dinheiro. A verdade é que não temos a menor noção de qual seria nossa vocação sem tamanha pressão, porque somos forçados à ambição em busca de dignidade.

No meio a tanta competição e mais-repressão, pensar no bem comum é distante e confuso demais. Fica o gesto isolado de pagar caro por laranjas, de economizar a água do banho enquanto o agronegócio gasta muito mais do que todos os banhos curtos de uma vida inteira, a vontade isolada de quem tenta fazer o seu melhor no dia a dia. O triste de ser pequeno e insignificante é que não sentimos que nossos esforços consigam melhorar o mundo, mas sem dúvida não fazer o que nos cabe o torna pior. Se engenheiro tivesse feito um bom trabalho, a fiscalização tivesse alertado, se o alerta tivesse sido levado adiante, se o departamento tivesse liberado a verba… será que teríamos barragens que estouram e inundam cidades inteiras com terra? Prisões injustas, encanamentos que estouram, pessoas que não recebem atendimento, até no atraso porque o ônibus quebrou – sempre estamos em algum lugar da engrenagem, nossas ações têm impactos que vão além de nós mesmos.

O silêncio é de ouro ou quem cala consente?

Uma das vezes que eu viralizei no twitter foi quando comentei que uma caixa da padaria aonde eu vou teve que ouvir, em pleno natal, um cliente lhe dizer que ele estava comprando e ela trabalhando porque ele havia estudado e ela tinha sido má aluna – havia o detalhe, que ele ignorava, de que ela saía dali e fazia supletivo, porque não tinha tido oportunidade de estudar quando criança. Essa moça não trabalha mais lá, foi mais uma que sumiu na vida e não sei o que aconteceu, porque seria demais considerar que eu sou uma amiga, eu sou apenas uma cliente boazinha. Há outras, eu sempre acabo conversando com todas as moças do caixa; uma delas, com quem converso desde que estava grávida, tem me preocupado cada vez mais. Logo que a vi, pela sua maneira de falar e todo seu gestual, tive a sensação de estar diante de uma pessoa muito doce. Enquanto estava grávida não passava bem e me dizia ter que continuar por ali porque senão não pegaria bem, que chegou a ouvir indiretas de ter engravidado para não trabalhar. Não a vi durante os longos meses da pandemia, e agora que nossos horários coincidiram de novo, tudo parece estar ainda pior. Ela mora tão longe que acorda todos os dias às 4:30 para conseguir chegar no primeiro horário e chega em casa por volta das 18h. Entre os cuidados com o filho e a casa, nunca consegue dormir antes das 24h. Com os olhos fundos como não tinha antes, ela me contou que há poucos dias uma mulher ficou muito impaciente porque atrasaram a abertura da porta por quatro minutos. A atitude da mulher estragou o dia da moça, que atendeu o telefone chorando quando o marido ligou. Ele lhe disse que aquela reação estava sendo desproporcional. “Faz tempo que tento marcar com psiquiatra, não estou conseguindo horário. Eu choro por qualquer coisa, preciso de um remédio contra ansiedade”. Digo que se pelo menos ela conseguisse dormir mais, já ajudaria – e então fui embora, porque vieram outros clientes.

Esta história renderia muitas discussões, poderíamos falar de maternidade, de saúde mental, de trabalho… mas o que eu gostaria de falar é da minha frustração de me sentir sempre dentro da música Sinal Fechado, do Paulinho da Viola, quando ouço essas histórias. Ouvi-las, oferecer um olhar de solidariedade e sair do caixa com meus produtos me parece tão cruel como alguém que ouve um se afogando e ignora. Te ouvi, achei pena, agora voltarei para a minha vida confortável e você voltará a não existir. Só que “minha vida confortável” também não é lá muito no topo da piramide, também sou dessas cujas finanças do mês ficam comprometidas com o preço do botijão de gás. Para algumas pessoas que convivem comigo, eu que sou a moça na situação difícil e elas me ouvem com pena, sem saber o que dizer. Leio reportagens como as que dizem que o Keanu Reeves ajuda desconhecidos por aí e penso que faria o mesmo se tivesse tanto dinheiro quanto ele. Mas a minha sensação, a sensação das minhas amigas e a sensação de você que me lê deve ser mais ou menos a mesma: eu não consigo te ajudar, também estou lutando para manter a cabeça para fora d´água.

Eu achei triste quando soube – extra-oficialmente, claro – que quando o pretendente a uma vaga no mestrado dizia que precisaria da bolsa para estudar, aquilo contava como um ponto negativo. Meu primeiro pensamento foi: se vamos selecionar quem não precisa porque já ganha bem ou tem uma boa base, jamais daremos chance de ascensão àqueles que precisam – ideia que vai de encontro àquilo que consideramos como a missão da educação. Mas, de forma bem mais concreta, o problema era assim: as bolsas eram poucas, levavam meses para serem liberadas, e ainda por cima atrasavam. Isso sem falar que se exige dedicação exclusiva de aluno bolsista. O que fazer se esse aluno com a bolsa atrasada começar a interpelar seu orientador ou o coordenador da pós-graduação (cargo que todos os professores parecem detestar assumir) expondo o quanto é difícil pra ele ficar comparecendo em reunião de grupo de estudo ou uma discussão qualquer com a conta de luz atrasada ou sem ter como atender seu filho recém-nascido. Ninguém poderia ajudar, então queriam evitar de ter de passar por isso.

Quem sabe se houvesse a garantia que esse aluno, mesmo sem dinheiro para o ônibus e para o filho, faria todas as suas atividades como se não houvesse nada de errado com a sua vida financeira. Os professores olhariam para ele sabendo que a bolsa estava atrasada e que isso certamente criava dificuldades, mas poderia continuar cobrando o que precisavam cobrar sem que isso estragasse o seu dia com queixas. Todos nós já fomos essas pessoas – mantendo a dignidade por fora enquanto nos sentimos destruídos por dentro. Quando a gente ouve uma queixa sem fazer parte do problema temos vontade de pedir por quem está sendo prejudicado. Às vezes a pessoa pode não estar sendo particularmente prejudicada, apenas não consegue suportar a pressão. Mas, para quem está dentro da situação, o sensível e o queixoso são apenas um fardo. Para fazer com que o sensível não se sentisse mal, todo trabalho estressante teria que ser espalhado entre as outras pessoas, ou seja, o queixoso/sensível tornaria mais pesada a vida do grupo. E queixas não são uma régua justa para medir sofrimento psíquico, pode ser pura falta de maturidade ou até mesmo noção. Então acabamos preferindo isto: se você não está aguentando sua rotina e chora a todo instante, tome um ansiolítico. Não podemos fazer nada a respeito da sua falta de tempo ou de saúde porque mora longe do trabalho.

O tal “lugar de fala” é incômodo porque subverte o que é esperado. Existem coisas que é adequado dizer e coisas que nunca devem ser ditas em público. Quanto ganha a pessoa que trabalha logo acima de você? Talvez o único modo de saber seja assumir esse cargo no futuro e, uma vez ocupando-o, você também guardará segredo. Li uma vez um artigo (não lembro onde, lamento) que dizia que organizamos nossa sociedade de maneira a que, quanto mais essencial a função no nosso dia a dia, pior a remuneração. O artigo exemplificava dizendo que se o pessoal que recolhe o lixo da minha rua não aparecer uma vez, me fará falta em poucas horas. Já se o CEO do banco ficar uma semana de folga, eu nem fico sabendo. Gostamos de dizer que cargos hierarquicamente inferiores ganham mal porque exigem pouco em termos de inteligência ou responsabilidade, mas basta olhar para a questão com um pouco mais de sinceridade para perceber que não é verdade. O motivo real dos cargos mais baixos ganharem menos provavelmente passa pelo fato de nunca serem essas pessoas que decidem a distribuição de dinheiro. Quem pode garante o melhor pra si, simples.

Quando nada é dito, ou é dito de uma maneira muito privativa, o problema permanece muito particular. Nós nos queixamos aos nossos cônjuges, fechados no consultório do psiquiatra, com o cliente que passo no nosso caixa, e acaba aí. A ironia é que a popularização da internet tornou possível tornar nossa privacidade algo público e, mesmo assim, continuamos que cada indivíduo é auto-determinado, que o “sucesso” é reflexo do seu “esforço” e etc. Continuamos sendo apenas indivíduos com problemas semelhantes, milhares de posts e twittes falando de dietas frustradas, solidões e segundas-feiras, mas é tudo coincidência. Já não buscamos nos outros soluções coletivas, não nos parece nem que seja possível. A esfera da decisões que buscam impactar de maneira favorável a vida de muitos deveria ser a política, mas o comum é ouvir: “eu nunca precisei de nada com política na minha vida”. Não se faz mais a ligação do problema cotidiano com a política; a política passou a significar votar de vez em quando, ler sobre escândalos de corrupção e se sentir impotente. À pessoa comum, cada vez mais pressionada, tem restado apenas a adaptação e o silêncio. Tenho a impressão que o único lugar aonde é possível ter o problema acolhido e uma comunidade que busca de soluções é nas igrejas – não é à toa que elas estejam tão populares e metidas na política.